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Natureza impositiva do orçamento público e EC 86/2015

Natureza impositiva do orçamento público e EC 86/2015

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Deve-se reconhecer na EC 86/15 um primeiro passo para a maior democratização do orçamento, no sentido de aumentar a participação popular, através dos representantes parlamentares, na elaboração e gestão das contas públicas, coibindo, inclusive, os abusos do Poder Executivo quando no controle absoluto das receitas/despesas públicas.

Resumo: Diante das inovações constitucionais trazidas pela Emenda Constitucional nº 86/2015, a natureza jurídica do orçamento público no Brasil, bem como o seu papel constitucional, ganhou novas matizes, fomentando o debate na doutrina sobre o novel caráter impositivo do orçamento e sobre a participação parlamentar nas leis orçamentárias através das emendas legislativas individuais. Tal temática será abordada para além do enfoque jurídico, analisando-se, também, os efeitos da mudança na economia do país, na forma como a receita pública é aplicada e no resultado efetivo da despesa pública na melhoria do bem estar da sociedade civil.

Palavras-chave: Direito Financeiro. Orçamento Público. Leis Orçamentárias. Emendas Parlamentares Individuais. Impositividade. EC 86/15. Despesa Pública.


01. INTRODUÇÃO

É cediço que o orçamento público é o instrumento de controle e avaliação dos gastos públicos, consubstanciando importante meio de planejamento e execução das políticas públicas, essencial ao atendimento das finalidades estatais.  Nessa esteira, tendo em conta que o orçamento é veiculado através de lei formal, de inciativa exclusiva do chefe do Poder Executivo, apreciada e votada pela respectiva casa legislativa, indaga-se até que ponto há vinculação do gestor ao orçamento aprovado, em sentido impositivo, ou se, de fato, é esse ato meramente autorizativo da despesa pública, consistindo em condição para a sua realização, mas sem obrigar o gestor a tal, em sentido autorizativo.

Compulsando o ordenamento constitucional, dessume-se a preponderância do caráter autorizativo, a qual não exclui, na via de exceção, notas de impositividade de certos gastos públicos, a exemplo da vinculação de receitas a despesas de saúde e de educação, exigida pela Carta Maior, ou das transferências obrigatórias aos entes menores da Federação. Tal impositividade, contudo, vem extrapolando o grau de exceção para aproximar-se da suplantação da regra, uma vez que promulgada a EC 86/2015, passou o Poder Executivo a estar obrigado a cumprir as despesas orçamentárias decorrentes de alteração legislativa à Lei Orçamentária Anual pela via das emendas parlamentares individuais, desde que observados certos requisitos e limitações estabelecidos na Constituição Federal.

Destarte, fato é que, agora, o Poder Legislativo assumiu papel mais ativo na execução das finanças públicas, pois poderá participar da Lei Orçamentária Anual em caráter vinculante, mitigando o protagonismo do Executivo no Direito Financeiro. Apesar de diversas críticas, que abrangem desde a falta de técnica legislativa na redação da emenda à pretensa invasão indevida de competência clássica do Poder Executivo, perpassando por pretensos interesses eleitoreiros, é possível avaliar positivamente a alteração constitucional, nela enxergando uma tendência à democratização do orçamento com o aumento da participação popular – através de seus representantes eleitos – na elaboração e na gestão das contas públicas, coibindo, inclusive, eventuais abusos do Poder Executivo.


02. CONCEITO DE ORÇAMENTO PÚBLICO E LEIS ORÇAMENTÁRIAS

2.1. ORIGEM, CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS DO ORÇAMENTO PÚBLICO

No regime estatal absolutista, era o monarca considerado soberano e detentor do patrimônio originário da coletividade, sendo livre para despender o dinheiro público como melhor lhe aprouvesse, sem qualquer tipo de limitação ou responsabilidade, afinal o soberano encarnava, na sua pessoa, o próprio sentido de Estado e sua vontade pessoal confundia-se com a suposta vontade da coletividade. Com o avanço da democracia, do império das leis e, mais atualmente, das constituições, ganhou protagonismo o controle legal da atuação estatal, sendo os orçamentos públicos uma forma de legitimar, pela vontade do povo, os gastos dos gestores públicos. A ideia é que nenhuma despesa estatal seja realizada sem anterior previsão orçamentária, de modo que a população não seja surpreendida por gastos inesperados dos gestores. Relacionando o surgimento do orçamento público ao próprio surgimento do Estado moderno, Ricardo Lobo Torres traça o seguinte histórico:

“A Constituição Orçamentária “constitui” o Estado Orçamentário, que é a particular dimensão do Estado de Direito apoiada nas receitas, especialmente a tributária, como instrumento de realização das despesas. O Estado Orçamentário surge com o próprio Estado Moderno. Já na época da derrocada do feudalismo e na fase do Estado Patrimonial e Absolutista aparece a necessidade da periódica autorização para lançar tributos e efetuar gastos, primeiro na Inglaterra (Magna Carta de 1215) e logo na França, Espanha e Portugal. Com o advento do liberalismo e das grandes revoluções é que se constitui plenamente o Estado Orçamentário, pelo aumento das receitas e despesas públicas e pela constitucionalização do orçamento na França, nos Estados Unidos e no Brasil (art. 172 da Constituição de 1824)”.[1]

Em seu conceito clássico, o orçamento representa documento estritamente contábil e financeiro, devendo contemplar a previsão de receitas e a fixação de despesas para determinado período. Nas palavras do autor Valdecir Pascoal:

“Documento eminentemente contábil e financeiro, pois não se preocupava com o planejamento governamental nem com as efetivas necessidades da população. Era um orçamento estático. Tratava-se de um mero inventário dos ‘meios’ com os quais a Administração realizaria suas tarefas, daí a denominação ‘lei de meios’ para o orçamento tradicional”.[2]

Diante da insuficiência do já defasado conceito clássico para expressar a real importância e finalidade do instituto do orçamento público, ganha destaque na doutrina o conceito moderno, que, para além de enxergar a mera previsão de receitas e despesas na lei orçamentária, aponta a função de programar a vida econômica e financeira do Estado por certo período de tempo. Novamente na lição de Valdecir Pascoal, orçamento no conceito moderno é:

“ato pelo qual o Poder Legislativo autoriza o Poder Executivo, por um certo período e, em pormenor, às despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotadas pela política econômica do País, assim como a arrecadação das receitas criadas em lei. O moderno orçamento caracteriza-se, pois, por ser um instrumento de planejamento. É um instrumento dinâmico, que leva em conta aspectos do passado, a realidade presente e as projeções para o futuro”.[3]

Delimitado o conceito de orçamento, convém destacar suas principais características. Primeiro, é um documento político, afinal o Poder Legislativo, que alberga os representantes do povo, autoriza a despesa público no momento em que aprecia e vota a lei orçamentária de acordo com as necessidades coletivas. Ademais, é um documento econômico, que possibilita uma intervenção direta e eficaz do Estado na economia nacional, através de instrumentos como o endividamento público e o aumento ou diminuição da carga tributária. Em terceiro, é um documento regulador, capaz de realizar a justiça distributiva ao financiar serviços públicos para a população mais carente às custas, sobretudo, das receitas extraídas daqueles com maior renda. Por último, é um documento técnico, obediente à rigorosa técnica orçamentária, máxima no que atine à classificação clara, metódica e racional da despesa/receita.

2.2. AS LEIS ORÇAMENTÁRIAS

A Magna Carta, em seu art. 165, estabelece três leis orçamentárias no ordenamento pátrio, todas de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo; são elas: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA).  Na descrição de Tathiane Piscitelli:

“De um ponto de vista geral, é possível dizer que o PPA é a lei orçamentária mais abstrata de todas, já que trata dos grandes objetivos da Administração pelo prazo de quatro anos, enquanto a LOA é a mais concreta, pois tem a função de estabelecer, detalhadamente, as receitas e despesas públicas de um dado exercício”.[4]

Não obstante a inciativa, sempre privativa, para todas as leis orçamentárias incumba ao Poder Executivo, vale ressalvar que, em homenagem à autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário, competir-lhe-á encaminhar proposta orçamentária relativa a seus gastos e interesses, a qual será apreciada pelo Congresso Nacional após ser incorporada à proposta do Poder Executivo. O mesmo mecanismo é aplicado ao Ministério Público. Consolidada a proposta e submetida ela ao crivo do Congresso Nacional, indaga-se em que situações o projeto de lei poderia sofrer alterações.

De um lado, o próprio chefe do Poder Executivo pode alterar o projeto de lei orçamentária através de mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, desde que ainda não tenha sido iniciada a votação, pela Comissão Mista Permanente, da parte cuja alteração é proposta, nos termos do art. 166, §5º, CF/88. Já por outro lado, no âmbito da iniciativa parlamentar, também são possíveis alterações por emendas, porém não de forma indiscriminada. No caso da LOA, verbi gratia, tais emendas parlamentares deverão obedecer ao §3º do art. 166 da CF/88, que reza:

CF/88, Art. 166 – “Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais serão apreciados pelas duas Casas do Congresso Nacional, na forma do regimento comum. (...)

§ 3º As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso:

I - sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias;

II - indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre:

a) dotações para pessoal e seus encargos;

b) serviço da dívida;

c) transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios e Distrito Federal; ou

III - sejam relacionadas:

a) com a correção de erros ou omissões; ou

b) com os dispositivos do texto do projeto de lei”.

Mesmo com essas limitações constitucionais ao poder de emenda parlamentar, no âmbito das leis orçamentárias, levantou-se controvérsia sobre a constitucionalidade dessa ingerência do Poder Legislativo na competência privativa do Poder Executivo, A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADI n. 1.050 MC/SC, relatada pelo Ministro Celso de Mello, cujo julgamento sedimentou a jurisprudência do pretório excelso no sentido de que a proposta de emenda orçamentária oferecida pelo Poder Legislativo não viola a competência do Poder Executivo para iniciar projetos de leis orçamentárias. Confira-se, a seguir, a íntegra da ementa desse importante julgado:

E M E N T A: TRIBUNAL DE JUSTIÇA - INSTAURAÇÃO DE PROCESSO LEGISLATIVO VERSANDO A ORGANIZAÇÃO E A DIVISÃO JUDICIÁRIAS DO ESTADO - INICIATIVA DO RESPECTIVO PROJETO DE LEI SUJEITA À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DE RESERVA (CF, ART. 125, § 1º, "IN FINE") - OFERECIMENTO E APROVAÇÃO, NO CURSO DO PROCESSO LEGISLATIVO, DE EMENDAS PARLAMENTARES - AUMENTO DA DESPESA ORIGINALMENTE PREVISTA E AUSÊNCIA DE PERTINÊNCIA - DESCARACTERIZAÇÃO DA PROPOSIÇÃO LEGISLATIVA ORIGINAL, MOTIVADA PELA AMPLIAÇÃO DO NÚMERO DE COMARCAS, VARAS E CARGOS CONSTANTES DO PROJETO INICIAL - CONFIGURAÇÃO, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS PERTINENTES À PLAUSIBILIDADE JURÍDICA E AO "PERICULUM IN MORA" - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

O poder de emendar projetos de lei - que se reveste de natureza eminentemente constitucional - qualifica-se como prerrogativa de ordem político-jurídica inerente ao exercício da atividade legislativa. Essa prerrogativa institucional, precisamente por não traduzir corolário do poder de iniciar o processo de formação das leis (RTJ 36/382, 385 - RTJ 37/113 - RDA 102/261), pode ser legitimamente exercida pelos membros do Legislativo, ainda que se cuide de proposições constitucionalmente sujeitas à cláusula de reserva de iniciativa (ADI 865/MA, Rel. Min. CELSO DE MELLO), desde que - respeitadas as limitações estabelecidas na Constituição da República - as emendas parlamentares (a) não importem em aumento da despesa prevista no projeto de lei, (b) guardem afinidade lógica (relação de pertinência) com a proposição original e (c) tratando-se de projetos orçamentários (CF, art. 165, I, II e III), observem as restrições fixadas no art. 166, §§ 3º e 4º da Carta Política. Doutrina. Jurisprudência. - Inobservância, no caso, pelos Deputados Estaduais, quando do oferecimento das emendas parlamentares, de tais restrições. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Suspensão cautelar da eficácia do diploma legislativo estadual impugnado nesta sede de fiscalização normativa abstrata.[5]


03. NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO PÚBLICO

Em definição clássica, no âmbito da escola do serviço público do Direito Administrativo, León Duguit tratava o orçamento, em relação às despesas, como mero ato administrativo e, quando em referência à arrecadação de tributos, como lei em sentido material. Já a doutrina mais moderna considera o orçamento, substancialmente, um ato administrativo, na espécie de ato-condição, uma vez que os tributos seriam criados por leis próprias, atos-regra, enquanto que as despesas derivam de outros normativos legais (atos-regra), sendo o orçamento, na verdade, o implemento de uma condição (ato-condição) necessária para a realização da cobrança e do gasto. Por fim, destaque-se a terceira corrente que considera o orçamento como lei, encabeçada pelo alemão Hoennel, na medida em que se origina de um órgão legiferante. Em meio a tantas teorias, lúcido é o ensinamento de Valdecir Pascoal, que logra sintetizar o tema, concluindo:

“A posição que nos parece mais adequada ao atual ordenamento jurídico brasileiro, em que a arrecadação de receitas e a realização de despesas, no mais das vezes, decorrem de atos-regra (leis, contratos, convênios etc.) – sendo o orçamento um pré-requisito para a realização da despesa –, é a de Ricardo Lobo Torres. Para ele ‘a teoria de que o orçamento é lei formal, que apenas prevê as receitas públicas e autoriza os gastos, sem criar direitos subjetivos e sem modificar as leis tributárias e financeiras, é, a nosso ver, a que melhor se adapta ao direito constitucional brasileiro’. Sendo assim, pode-se afirmar que, no Brasil, o orçamento é apenas AUTORIZATIVO”.[6]

No mesmo sentido, complementa Kioshi Harada, denunciando o caráter material e administrativo da lei orçamentária quando analisada no aspecto material, em seu conteúdo, porém reconhecendo seu caráter formal quando encarada no aspecto formal. Trata-se, pois, de lei de efeitos concretos, senão vejamos:

“a lei orçamentária difere das demais leis, caracterizadas por serem genéricas, abstratas e constantes ou permanentes. Ela é, na verdade, uma lei de efeito concreto para vigorar por um prazo determinado de um ano, fato que, do ponto de vista material, retira-lhe o caráter de lei. Exatamente, essa peculiaridade levou parte dos estudiosos a sustentar a tese do orçamento como ato-condição. Sob o enfoque formal, no entanto, não há como negar a qualificação de lei. Portanto, entre nós, o orçamento é uma lei ânua, de efeito concreto, estimando as receitas e fixando as despesas, necessárias à execução da política governamental”.[7]

Sendo autorizativo o orçamento, portanto, os gestores públicos só podem realizar as despesas devidamente previstas no respectivo orçamento, contudo a efetivação dessas mesmas despesas não é obrigatória ao gestor pelo simples fato de estarem projetadas no orçamento. Esse é, inclusive, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que assim já decidiu:

CONCEITO DE LEI ORCAMENTARIA. O SIMPLES FATO DE SER INCLUIDA UMA VERBA DE AUXILIO, NO ORCAMENTO, QUE DEPENDE DE APRECIAÇÃO DO GOVERNO, NÃO CRIA DIREITO A SEU RECEBIMENTO.[8]

ORÇAMENTO. A PREVISÃO DE DESPESA, EM LEI ORÇAMENTÁRIA, NÃO GERA DIREITO SUBJETIVO A SER ASSEGURADO POR VIA JUDICIAL. CARÊNCIA DE AÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.[9]

Destaque-se, outrossim, a lição da doutrinadora Tathiane Piscitelli, que reforça as conclusões anteriores no sentido da natureza autorizativa do orçamento como regra geral. Transcreva-se:

“no Brasil, o orçamento é, via de regra, autorizativo e não impositivo. Desse modo, o que se tem é mera previsão de gastos, que serão realizados de acordo com a disponibilidade das receitas arrecadadas no exercício. A previsão de uma dada despesa não necessariamente implica sua realização, já que o Poder Executivo tem a discricionariedade de ajustar os gastos públicos diante das necessidades que se realizam ao longo do exercício”.[10]

Por fim, cumpre observar que, mesmo que o orçamento não seja, em geral, impositivo, grande parte das receitas estatais tem destinação própria e específica, a exemplo daquelas constitucionalmente vinculadas a determinadas finalidades. Nesse particular, portanto, o orçamento pode ser encarado como impositivo, como no caso das contribuições para o financiamento da seguridade social, cuja arrecadação é afetada às despesas com saúde, previdência e assistência social. Nada obstante, têm-se observado manobras legislativas com o fito de desvincular parte das receitas constitucionalmente afetadas e, com isso, possibilitar ao gestor público flexibilidade no trato com o erário. É o caso da Desvinculação das Receitas da União (DRU), cujo início se deu em 2000 com a EC 27, mantendo desvinculados de órgão, fundo ou despesa 20% (vinte por cento) da arrecadação da União de impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico.


04. ORÇAMENTO IMPOSITIVO E EC 86/2015

Conforme exposto no item anterior, a natureza jurídica do orçamento no Brasil sempre foi – e permanece – autorizativa, como regra geral. Contudo, embora não tenha o condão de alterar essa natureza geral, a Emenda Constitucional nº 86 de 2015 inaugurou certa mudança de paradigma ao instituir certa impositividade de parcelas de despesas fixadas no orçamento. Em outras palavras, conquanto a regra ainda seja a autorizatividade, já se pode falar, desde a EC 86/2015, em Orçamento Impositivo no Brasil, no âmbito de suas disposições. Não é recente a intenção do Congresso Nacional de transformar o modelo orçamentário brasileiro para fixar a impositividade como regra, isto é, todas as despesas, a princípio, seriam de execução obrigatória pelo Poder Executivo, excepcionado o seu cumprimento, apenas, em caso de impossibilidade superveniente. Nesse contexto, a EC 86/2015 apresenta-se como o primeiro passo dessa futura e eventual transformação. Passemos à análise de suas principais inovações.

A principal mudança promovida pela EC 86/2015 foi a reserva do percentual de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL), dentro da proposta orçamentária apresentada pelo Poder Executivo, como limite destinado às emendas individuais parlamentares à Lei Orçamentária Anual. Em outras palavras, o chefe do Executivo, ao planejar o orçamento, deverá contar com a provável alteração, pela via da iniciativa parlamentar por emenda legislativa, de despesas que correspondam a até 1,2% da Receita Corrente Líquida dessa mesma proposta. No entanto, o poder de emendar não é livre, curvando-se a certos requisitos constitucionais. Conforme § 9º do art. 166 da CF/88, metade do percentual referido será destinado a despesas com ações e serviços públicos de saúde, em reforço à já existente vinculação constitucional de receitas para a área da saúde, caracterizando mais uma exceção ao princípio da não afetação da receita pública. Ainda assim, essa verba destinada à saúde será computada no cálculo do limite constitucional de despesas com ações e serviços públicos de saúde, a teor do art. 198 da CF/88, porém o § 10º do art. 166 veda, taxativamente, o financiamento por emendas de despesas com pessoal e encargos.

Nessa perspectiva, é OBRIGATÓRIA, ao Poder Executivo, a realização das programações orçamentárias oriundas de emendas parlamentares de 1,2% da RCL projetada no exercício anterior, conforme critérios de execução equitativa da programação definidos em lei complementar. É permitidos que valores de restos a pagar sejam computados, para fins de cálculo do 1,2%, até o limite de 0,6% da RCL do exercício anterior. Essa obrigatoriedade da execução orçamentária das emendas parlamentares só poderá ser afastada nos casos de impedimentos de ordem técnica e legal previstos em lei complementar. Passa a ser obrigatório, outrossim, a transferência de verbas derivadas de emendas parlamentares individuais a Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo defeso o seu bloqueio em razão da inadimplência do ente federativo beneficiado e, não bastasse, excluídos seus valores do conceito de RCL, para fins do cálculo dos limites da despesa com pessoal dos referidos entes. Por outro lado, é permitida a redução da verba destinada às emendas na mesma proporção da reestimativa da receita ou despesa que possa vir a comprometer os resultados fiscais almejados pela LDO. Havendo impedimento de ordem técnica no empenho da despesa, os §§ 14º e 15º do art. 166 da CF/88 propugnam a seguinte solução:

§ 14. No caso de impedimento de ordem técnica, no empenho de despesa que integre a programação, na forma do § 11 deste artigo, serão adotadas as seguintes medidas:

I - até 120 (cento e vinte) dias após a publicação da lei orçamentária, o Poder Executivo, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública enviarão ao Poder Legislativo as justificativas do impedimento;

II - até 30 (trinta) dias após o término do prazo previsto no inciso I, o Poder Legislativo indicará ao Poder Executivo o remanejamento da programação cujo impedimento seja insuperável;

III - até 30 de setembro ou até 30 (trinta) dias após o prazo previsto no inciso II, o Poder Executivo encaminhará projeto de lei sobre o remanejamento da programação cujo impedimento seja insuperável;

IV - se, até 20 de novembro ou até 30 (trinta) dias após o término do prazo previsto no inciso III, o Congresso Nacional não deliberar sobre o projeto, o remanejamento será implementado por ato do Poder Executivo, nos termos previstos na lei orçamentária.

§ 15. Após o prazo previsto no inciso IV do § 14, as programações orçamentárias previstas no § 11 não serão de execução obrigatória nos casos dos impedimentos justificados na notificação prevista no inciso I do § 14.

Expostas as principais inovações trazidas pela EC 86/2015, convém analisá-las sob ponto de vista crítico, perscrutando as imbricações projetadas não só no ordenamento jurídico, mas também na economia do país, na forma como a receita pública é aplicada e no resultado efetivo da despesa pública na melhoria do bem estar da sociedade civil. Infelizmente, muitos são os vícios e problemas apontados na alteração constitucional, destacando-se a opinião de Valdecir Pascoal, que critica:

“Além do excessivo detalhamento no texto constitucional e das imperfeições de redação, a principal crítica que se faz à EC nº 86 é o fato de ela não haver estendido a impositividade do orçamento para todas as despesas aprovadas, limitando-se às programações orçamentárias decorrentes de emendas individuais dos parlamentares. Ao tempo em que detalha em excesso muitos pontos, remete muitas questões para regulação em lei complementar, o que poderá dificultar sua compreensão e efetividade”.[11]

Essa ingerência parlamentar também pode resvalar para a execução das políticas públicas, prejudicando-as na medida em que podem restringir-lhes receitas. De fato, em nosso modelo de estado e de governo incumbe ao Poder Executivo a tarefa de planejamento e execução de políticas públicas, sendo que a divisão desse mister com o Poder Legislativo pode acabar por enfraquecer o poder de ação do primeiro, com prejuízo para a própria sociedade. Nos casos em que o Executivo não se desincumbe a contendo desse importante ônus de planejar e gerir a vida social, cabe à própria sociedade rever seus governantes no momento das eleições. Por outro lado, procurar atalhar esse caminho através de uma mudança institucional pode, em vez de solucionar uma deficiência de certo governo, ocasionar uma limitação permanente ao próprio Poder Executivo, que não mais poderá livremente planejar e implantar programas e projetos de melhoria social por dever obediência às emendas parlamentares individuais. Tal representa, outrossim, certo desvio do foco do Poder Legislativo, que deixará de investir tempo nas tarefas constitucionais de fiscalização do Poder Executivo e de edição de atos normativos primários, para fazer as vezes de gestor público e coercitivamente impor despesas públicas através das emendas individuais. Sobre o tema, professor Fernando Facury Scaff acrescenta à crítica:

“o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 86, que criou a curiosa figura do Orçamento impositivo à brasileira, pois ao invés de aprovar uma norma que realmente obrigasse o Poder Executivo a cumprir as leis orçamentárias, foi aprovada uma emenda constitucional que obriga o Poder executivo a cumprir as emendas parlamentares, que se caracterizam como uma pequena parte do orçamento, e vinculada a interesses eleitorais dos próprios parlamentares.

A bem da verdade, em face de tantos limites impostos aos parlamentares para dispor de matéria orçamentária eles tinham duas alternativas: ou propunham uma verdadeira reforma constitucional orçamentária, estabelecendo poderes para que pudessem efetivamente gerir os recursos públicos, ou criavam uma meia sola apenas para cuidar de seus interesses eleitorais — o que acabou prevalecendo. Uma pena. Para usar uma expressão popular, vê-se que a montanha pariu um rato. Poderiam ter ousado mais”.[12]

Inobstante essas ressalvas, o renomado professor consegue enxergar pontos positivos na EC sob comento, apontando como vantagem a redução do poder de barganha do chefe do Poder Executivo sobre os parlamentares, traduzido na utilização da liberação de recursos públicos como moeda de troca por votações legislativas. Nas palavras do autor:

“De toda forma, mesmo estas tímidas normas aprovadas já tem o poder de causar muitas modificações nas relações político-partidárias existentes, pois a liberação de emendas parlamentares deixará de ser uma espécie de moeda de troca nas relações entre o Congresso e o Planalto. Nem falo apenas do atual governo, mas de todos os governos do período democrático, em todos os níveis federativos, durante os quais se usou a liberação de emendas parlamentares para aprovar as matérias de interesse do Executivo junto ao Legislativo. Se o deputado votasse de acordo com o Planalto, as emendas seriam liberadas (mesmo que a conta-gotas); se votasse contra, não haveria liberação de recursos. Nos estados e municípios brasileiros esta mesma dinâmica existe e, tal como na União, é indiferente quais sejam os partidos na situação ou na oposição. A Emenda 86, embora tímida e circunstancial, se propõe a liberar o Legislativo do jugo do Executivo, o que é positivo. Repito: a ousadia poderia ter sido maior e colocado o Legislativo no efetivo comando dos destinos dos recursos que são arrecadados de todos em nosso país. Claro que muitos erros poderiam ocorrer, mas desta forma, ao longo de algumas eleições, conseguiríamos melhorar a qualidade da composição de nossos Parlamentos e instaurar um sistema de representação parlamentar estável e mais representativo em nosso país”.[13]


05. CONCLUSÃO

É possível concluir, diante do exposto, que o traçado do Direito Financeiro na Constituição Federal contempla o instituto do orçamento, via de regra, como mero ato condicional à realização da despesa pública, prevalecendo a discricionariedade do gestor público na efetiva alocação das dotações orçamentárias. A lei de orçamento, portanto, assume o caráter legal apenas sob a ótica formal, pois materialmente consiste em ato administrativo, produzindo efeitos apenas pelo período de um ano (lei de efeitos concretos).

Conquanto seja mesmo regra a autorizatividade, sempre se observou notas de impositividade do orçamento nas normas constitucionais, a exemplo da vinculação das receitas públicas a despesas de saúde e educação, bem como das transferências constitucionais obrigatórias, que restringem o poder de disposição do Poder Executivo sobre o erário. Com a promulgação da Emenda Constitucional 86/2015, ganhou força essa impositividade, visto que agora o Poder Executivo também é vinculado às alterações legislativas na Lei Orçamentária Anual, aprovadas por emendas parlamentares individuais até o limite de 1,2% da Receita Corrente Líquida estimada no projeto. Com isso, a doutrina dividiu-se na avaliação da mudança: embora se tenha criticado a ingerência pelo Poder Legislativo nas competências do Executivo, além da possível intenção de uso das emendas para finalidades pessoais e eleitoreiras dos parlamentares, elogiou-se a mitigação do poder de barganha do Executivo nos atos de liberação de recursos para os demais poderes. Em todo o caso, deve-se reconhecer na EC 86/15 um primeiro passo para a maior democratização do orçamento, no sentido de aumentar a participação popular, através dos representantes parlamentares, na elaboração e gestão das contas públicas, coibindo, inclusive, os abusos do Poder Executivo quando no controle absoluto das receitas/despesas públicas.


06. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010

PASCOAL, Valdecir Fernandes. Direito financeiro e controle externo. 9ª Ed. São Paulo: Método, 2015.

PISCITELLI, Tathiane. Direito financeiro esquematizado. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2014.

SCAFF, Facury Fernando. Surge o orçamento impositivo à brasileira pela Emenda Constitucional 86. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mar-24/contas-vista-surge-orcamento-impositivo-brasileira-ec-86. Acessado em: 29 de janeiro de 2016.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 17ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010


Notas

[1] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 17ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, pág. 171.

[2] PASCOAL, Valdecir Fernandes. Direito financeiro e controle externo. 9ª Ed. São Paulo: Método, 2015, pág. 18.

[3] Idem.

[4] PISCITELLI, Tathiane. Direito financeiro esquematizado. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2014, pág. 47.

[5] STF; ADI 1050 MC, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/1994, DJ 23-04-2004 PP-00006 EMENT VOL-02148-02 PP-00235 RTJ VOL-00191-02 PP-00412.

[6] PASCOAL, Valdecir Fernandes. Direito financeiro e controle externo. 9ª Ed. São Paulo: Método, 2015, pág. 19.

[7] HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010, pág. 60.

[8] STF, RE 34581, Relator(a):  Min. CÂNDIDO MOTTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/10/1957, DJ 05-12-1957 PP-***** EMENT VOL-00325-01 PP-00246.

[9] STF, RE 75908, Relator(a):  Min. OSWALDO TRIGUEIRO, Primeira Turma, julgado em 08/06/1973, DJ 10-08-1973 PP-05613 EMENT VOL-00916-02 PP-00547.

[10] PISCITELLI, Tathiane. Direito financeiro esquematizado. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2014, pág. 58.

[11] PASCOAL, Valdecir Fernandes. Direito financeiro e controle externo. 9ª Ed. São Paulo: Método, 2015, pág. 22.

[12] SCAFF, Facury Fernando. Surge o orçamento impositivo à brasileira pela Emenda Constitucional 86. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mar-24/contas-vista-surge-orcamento-impositivo-brasileira-ec-86. Acessado em: 29 de janeiro de 2016.

[13] Idem.


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FREIRE, André Vieira. Natureza impositiva do orçamento público e EC 86/2015. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4642, 17 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47316. Acesso em: 4 maio 2024.