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A natureza fiscal do delito de descaminho e a sua real necessidade de criminalização

A natureza fiscal do delito de descaminho e a sua real necessidade de criminalização

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O Direito Penal não deve punir certas condutas que vão contra a legislação tributária, quando elas não causam repulsa social suficiente para justificar a privação de liberdade do contribuinte infrator. Todavia, tais condutas são tuteladas pelo “direito do terror” como forma intimidativa, já que o pagamento do tributo e seus acessórios é causa de extinção de punibilidade.

SUMÁRIO: RESUMO. Palavras-chave. 1 INTRODUÇÃO. 2 CONCEITO E FINALIDADE DO DIREITO PENAL ECONÔMICO. 3 O CRIME DE DESCAMINHO COMO DELITO FISCAL. 3.1 Evolução histórica legislativa. 3.2 As características do delito de descaminho no contexto atual. 3.3 A natureza jurídica do crime de descaminho contra a ordem tributária. 4 AS IMPLICAÇÕES JURÍDICO-PENAIS DA NATUREZA FISCAL AO DESCAMINHO. 4.1 Necessidade de lançamento definitivo do crédito tributário. 4.2 Extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo iludido. 4.3 Perdimento de bens como causa extintiva da punibilidade. 4.4 Aplicação do princípio da insignificância. 5 DIREITO PENAL COMO ULTIMA RATIO. 6 CONCLUSÃO. 7 REFERÊNCIAS.

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo analisar o delito de descaminho classificado como de natureza fiscal, sob a ótica dos crimes contra a ordem tributária, vez que atenta imediatamente contra o Erário. Em síntese, defende-se que o crime deve ser precedido por algum tipo de fraude, eis que se trata de crime material, exigindo o resultado, ou seja, a falta de pagamento, no todo ou em parte, de imposto devido pela entrada ou saída de mercadoria dentro do território nacional. Nesse sentido é que o Direito Penal, por ser regido pelo Princípio da intervenção mínima, apenas deve intervir no caso de iminente repulsa social. Há condutas que merecem somente reprimendas de ordem financeira, considerando-se que, em muitas situações, outros ramos do Direito podem ser utilizados para sancionar e reprovar as condutas menos lesivas aos bens juridicamente tutelados. A Constituição Federal de 1988, sob a ótica do Princípio da dignidade da pessoa humana, não permite que o Direito Penal puna certas condutas que vão contra a legislação tributária, pois não causam tamanha repulsa social para justificar a privação de liberdade do contribuinte infrator. Todavia, tais condutas são tuteladas pelo “direito do terror” como forma intimidativa, já que o pagamento do tributo e seus acessórios é causa de extinção de punibilidade. O objetivo maior não é evitar a sonegação ou apropriação indébita, mas de aumentar a arrecadação através da coação determinada pelas restrições à liberdade, conforme será defendido.

Palavras-chave: Direito penal econômico. Descaminho. Natureza Fiscal. Crime contra a ordem tributária. Direito penal. Intervenção mínima. Ultima ratio.


1 INTRODUÇÃO

O enorme crescimento do comércio internacional ao longo das últimas décadas estimulou o consumo de mercadorias e a integração, sob as operações de importação e exportação em escala global. Com o aumento da circulação de mercadorias, vários são os motivos pelos quais as obrigações tributárias não são honradas. É nesse contexto que a prática do crime de descaminho ganha destaque frente ao emaranhado número de legislação tributária pertinente a operações comerciais, com uma enorme carga de dúvidas e de impostos crescentes a cada dia.

No presente estudo será analisado o delito de descaminho, classificado como crime contra a ordem tributária, ante aos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, bem como a utilização do direito penal como a ultima ratio para a sua reprimenda.

Nas duas últimas décadas, a criminalização de condutas foi acometida de diversos textos legais, demonstrando que o Estado utiliza o Direito Penal de modo inadequado. Em relação ao Direito Penal Tributário, os novos textos legais demonstram que há mais interesse em aumentar a arrecadação do que punir - ou evitar - as condutas que gerem repulsa social.

O descaminho, inserido no título dos crimes contra a administração pública, tipificado no artigo 334 do Código Penal, tem natureza fiscal, vez que o resultado do delito se dá no fato de iludir, no todo ou em parte, impostos quando da entrada, saída ou consumo de mercadoria, ou seja, assim como os crimes contra a ordem tributária, a infração está em não efetuar o pagamento dos tributos devidos, o que nos coloca diante de uma previsão legal desproporcional e que suscita dúvidas quanto à própria aplicação do Direito Penal.

Objetiva-se demonstrar que a estruturação do tipo de descaminho, o bem jurídico penalmente protegido, bem como a natureza jurídica do ilícito, se assemelham com os crimes contra a ordem tributária, definidos na Lei 8.137/1990. Isto significa dizer que as implicações jurídico-penais dessa comparação também deverão ser aplicadas ao descaminho como, por exemplo, a constituição definitiva do crédito tributário em via administrativa antes da persecução penal, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido e o perdimento de bens, como causa extintiva de punibilidade.

Por essa razão, há que se analisar o modo que determinadas condutas praticadas pelos contribuintes comportariam a tutela do Direito Penal. A análise precisa ser elaborada em conformidade com o entendimento da intervenção mínima e da ultima ratio, isto é, nem todas as condutas humanas comportam a tutela penal, especialmente quando os textos legais utilizam, ainda que indiretamente, a possibilidade de restrição à liberdade como meio de coação para o fim aumentar a arrecadação tributária, ao invés de tutelar o Erário propriamente dito, mirando a arrecadação efetiva do tributo que foi iludido.


2 CONCEITO E FINALIDADE DO DIREITO PENAL ECONÔMICO

Como ministra Capez (2008), o Direito Penal como o conjunto de normas jurídicas estruturadas em conformidade com os direitos e garantias fundamentais, tendo por objetivo tutelar as condutas que afrontem os valores sociais dos quais dependem a sustentabilidade da sociedade, aplicando sanções positivadas como meio de evitar e punir a atuação ilícita do agente.

Diante do conceito de Direito Penal, é preciso verificar se as condutas descritas nos artigos 1º e 2º da Lei n.º 8137/1990, os quais tratam dos crimes contra a ordem tributária, bem como o artigo 334 do Código Penal, que tipifica o delito de descaminho, podem ser tutelados por esse ramo jurídico.

A partir do momento em que o Estado começou a intervir na economia, assumindo uma postura mais intervencionista do que liberal, é que se vislumbra a ordem econômica, nascendo um novo bem jurídico a ser tutelado.

Conforme expõe Pimentel (1973, p. 21):

“O Direito penal econômico é um sistema de normas que defende a política econômica do Estado, permitindo que esta encontre os meios para a sua realização. São, portanto, a segurança e a regularidade da realização dessa política que constituem precipuamente o objeto do Direito penal econômico.”

Dentre os ramos do Direito Penal Econômico, encontra-se o chamado Direito Penal Tributário, que visa resguardar a arrecadação dos tributos, objetivando manter a ordem econômica e, assim, proteger o desenvolvimento da sociedade.

Porém, é preciso atentar para a necessidade de coerência por parte do legislador quando se tipifica determinados comportamentos, sem perder de vista que somente as atitudes mais nocivas à sociedade merecem a tutela do Direito Penal.

Existem determinadas situações que não são excessivamente ofensivas, a ponto de justificar tamanha reprovabilidade e insurgir a pena de privação de liberdade. Isso ocorre porque há outros ramos do Direito que se encarregam de punir a conduta ilícita.

Um exemplo é o caso das multas de caráter punitivo aplicadas ao contribuinte quando verificada a ilusão do tributo ante ao fisco, podendo atingir um percentual de 150% (cento e cinquenta por cento) a mais sobre o valor primitivo do tributo devido, o que representa uma forma de obrigar o contribuinte ao recolhimento e evita a sonegação. Logo, já nos parece evidente que o Direito Tributário tem condições de instruir sanções pecuniárias intimidativas para determinar o cumprimento do texto legal.

Ressalta-se que, nos crimes contra a ordem tributária, não se tem por objetivo principal a punição da conduta. Os crimes contra a ordem tributária têm a finalidade de punir o inadimplemento das obrigações fiscais e preservar a arrecadação tributária.

Feitas tais ponderações, com base nos conceitos e fundamentos do Direito Penal e Direito Penal Econômico, já é possível ter a noção de que os crimes contra a ordem tributária previstos na Lei 8.137/1990, bem como o descaminho, tipificado no artigo 334 do Código Penal, diferem-se dos demais crimes pela sua essência arrecadatória, razão pela qual o Direito Penal deve minimamente intervir em tais casos, vez que a infração fiscal precisa ser grave a ponto de causar efetiva lesão ao Erário para justificar a aplicação da tutela penal.

É nesse sentido que será abordado o delito de descaminho, demonstrando que não há preenchimento dos requisitos ínsitos para que os bens jurídicos sejam penalmente tutelados, sob pena de consagrar-se o temido “direito penal do terror”.


3 O CRIME DE DESCAMINHO COMO DELITO FISCAL

3.1 Evolução histórica legislativa

No Brasil Colonial, a legislação que tratava acerca do crime de contrabando e descaminho teve uma forte influência nas Ordenações Manuelinas e das Ordenações Filipinas na época trazidas de Portugal, as quais não eram alicerçadas pelo princípio da reserva legal (JAPIASSÚ, 2000, p. 25).

As Ordenações Filipinas, no seu livro V, Título CXIII, tratava das condutas que poderiam ser consideradas como crime de contrabando e descaminho, na seguinte forma: “que se não tire ouro, nem dinheiro para fora do Reino” (ALMEIDA, 1870, p. 1264).

Desta maneira, quem, naquela época, cometesse tal crime, levando ouro ou dinheiro para fora do reino, sem prévia autorização do Rei, como pena, perderia todos os seus bens móveis e imóveis, sendo a metade entregue para quem achasse ou denunciasse o autor do crime e a outra metade dos bens destinados ao próprio reino.

Após a Proclamação da Independência, em 1830, fora editado o Código Criminal do Império do Brazil, tendo em seu bojo um capítulo específico para abordar os crimes de contrabando e de descaminho que atentavam contra o tesouro e a propriedade pública, até então tratados indistintamente como contrabando, conforme disposto no seu artigo 177, in verbis: “Importar, ou exportar generos, ou mercadorias prohibidas; ou não pagar os direitos dos que são permittidos, na sua importação, ou exportação. Penas - perda das mercadorias ou generos, e de multa igual á metade do valor delles” (BRASIL, 1830).

A primeira parte do caput do artigo 177 do Código do Império do Brazil se referia ao contrabando, enquanto a segunda tratava do descaminho. Mister ressaltar que, da análise do diploma legal vigente naquela época, tem-se que a sanção era meramente de cunho financeiro, como perda das mercadorias e aplicação de multa, não existindo penas privativas de liberdade.

Em 11 de outubro de 1890, foi promulgado o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, no qual passou a existir a possibilidade de privação da liberdade de 1 (um) a 4 (quatro) anos, além das penas fiscais (BRASIL, 1890), in verbis:

“Art. 265. Importar ou exportar, generos ou mercadorias prohibidas; evitar no todo ou em parte o pagamento dos direitos e impostos estabelecidos sobre a entrada, sahida e consumo de mercadorias e por qualquer modo illudir ou defraudar esse pagamento: Pena - de prisão cellular por um a quatro annos, além das fiscaes.”

Meio século depois, com o advento do Código Penal Brasileiro, em 1940, o legislador continuou a tipificar a prática dos crimes de contrabando e descaminho em um único tipo penal, atribuindo-se pena idêntica de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos para ambos os crimes. A doutrina e a jurisprudência, mais tarde, encarregaram-se de distingui-los, pois são fatos diversos, que não se confundem.

Por último, a mais nova, e não mais ponderada, redação do crime de descaminho, veio com a promulgação da Lei 13.008/2014. Com a nova redação, os tipos penais foram separados em artigos próprios, sendo que o descaminho passou a ser tipificado pelo artigo 334, enquanto o contrabando no 334-A, sendo que ambos acabaram por receber penalidades diversas e ainda mais severas, principalmente no segundo caso.

Como o objeto do presente estudo tem foco principal voltado apenas ao descaminho, passa-se tão somente a analisá-lo, tendo como sua redação vigente, o disposto no artigo 334 do Código Penal – CP (BRASIL, 1940):

“Art. 334.  Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria 

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. 

§ 1º  Incorre na mesma pena quem:  

I - pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei;  

II - pratica fato assimilado, em lei especial, a descaminho;  

III - vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; 

IV - adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos.

§ 2º Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. 

§ 3º A pena aplica-se em dobro se o crime de descaminho é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial.”

Pelo exposto, é possível perceber que o descaminho foi o primeiro ilícito penal contra o fisco, uma vez que já fazia parte do Código do Império. Por muito tempo, apenas o descaminho tipificou o não recolhimento de tributos, até que a sonegação fiscal surgiu ao ordenamento jurídico com a edição da Lei 4.729/1965.

3.2 As características do delito de descaminho no contexto atual

O descaminho está tipificado no artigo 334 do Código Penal, enfim separado do crime de contrabando pelo Legislador, com a edição da Lei 13.008/2014.

Há uma distinção enorme entre os crimes que foram cindidos recentemente. Enquanto o contrabando configura a importação e exportação de mercadorias proibidas, o descaminho consiste iminentemente em uma fraude fiscal, isto é, na ilusão total ou parcial do pagamento do imposto devido em razão da entrada, saída ou consumo da mercadoria no Brasil.

Pagliaro (2006, p. 208) sustenta que o Legislador jamais poderia ter dito contrabando ou descaminho como se fossem equivalentes, sendo que são nitidamente diversos. O descaminho configura ilícito de natureza tributária, onde se apresenta uma relação fisco-contribuinte, não verificável no contrabando.

Assim, o bem jurídico tutelado pela norma no crime de descaminho é a Administração Pública, em especial o Erário, uma vez que deixa de arrecadar os pagamentos dos impostos de importação, exportação ou consumo (CAPEZ, 2011, p.585).

O sujeito passivo é o Estado, tendo em vista a lesão ao Erário, pois é titular do interesse penalmente protegido pela norma e o real prejudicado pela falta de recolhimento dos tributos.

Quanto ao sujeito ativo, poderá ser qualquer pessoa, considerando-se que o tipo penal de descaminho não exige nenhuma qualidade ou condição especial, a não ser no caso em que o sujeito ativo é funcionário público. Entretanto, neste caso em específico, o agente público incorrerá no crime de facilitação de contrabando ou descaminho, tipificado pelo artigo 318 do Código Penal.

Quanto à execução, pode se dar quando a mercadoria ingressa ou deixa o território nacional legalmente, passando despercebida pelos órgãos de controles aduaneiros, tais como as delegacias, inspetorias e alfândegas da Receita Federal do Brasil instaladas nas fronteiras, portos e aeroportos.

Doutra maneira, a execução também se convalida quando a mercadoria lícita entra ou sai do território nacional, em locais onde não exista fiscalização por parte da Receita Federal. In casu, não há despacho aduaneiro, uma vez que o sujeito ativo do crime usa de subterfúgios para ingressar ou sair com a mercadoria do país sorrateiramente, sem pagar os tributos devidos pela operação, hipótese em que o crime se consumará quando houver a ultrapassagem da fronteira.

O elemento subjetivo exigido pelo tipo penal é o dolo, consistindo na vontade livre e consciente de iludir, no todo ou em parte, o pagamento do tributo devido pela entrada, saída ou pelo consumo da mercadoria. Isto significa dizer que, se o agente não tem intenção de iludir a fiscalização, nem suprimir o tributo, não há crime de descaminho configurado, pois a conduta deve ser dolosa.

Nesse sentido, Capez (2009, p. 531) explana que:

“Não basta a entrada ou saída de mercadoria sem o recolhimento do imposto devido, sendo necessário o emprego de algum meio, fraudulento ou não, destinado a iludir, que significa enganar, frustrar, lograr, burlar, não sendo suficiente a mera omissão no recolhimento do tributo.”

Segundo a percepção de Greco (2011, p. 520), não há previsão para modalidade de natureza culposa, sendo que a ação penal é pública incondicionada, de competência da Justiça Federal.

A pena do delito está prevista no caput do artigo 334, qual seja, de 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão. Não obstante isso, chama-se atenção ao disposto no §3º da norma penal após a reforma legislativa ocorrida no ano de 2014, isto porque passou a prever pena em dobro não somente quando o delito é praticado por meio de transporte aéreo, mas também por via marítima ou fluvial.

Nesse viés, é possível que um delito de descaminho marítimo, a partir da novatio legis, seja apenado com reprimenda que variará entre 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão, permitindo a conclusão de que, partindo-se de uma análise do grau de reprovabilidade da conduta e da natureza do delito praticado, facilmente se constata a desproporcionalidade na aplicação do direito penal ao caso concreto, com tal reprimenda estipulada.

Ora, nesse contexto, é possível verificar que a pena do descaminho marítimo é maior do que a do crime de violação sexual mediante fralde ou, ainda, de pena máxima superior à pena mínima de um homicídio doloso.

Tais exemplos demonstram a necessidade de se tratar o descaminho como crime material, essencialmente tributário, dotado de um regime jurídico especial e distinto dos demais crimes constantes no Código Penal.

3.3 A natureza jurídica do crime de descaminho contra a ordem tributária

No direito penal brasileiro, a exportação ou a importação de mercadoria que lesa os cofres públicos pelo não pagamento dos encargos aduaneiros consiste em ato ilícito enquadrado no Código Penal, classificado como crime contra a Administração Pública.

Há quem diga que a classificação adotada pelo ordenamento penal pátrio é o mais apropriado, pois o bem jurídico tutelado pelo descaminho seria pluriofensivo, protegendo diversos bens jurídicos, tais como a livre concorrência, a indústria nacional, dentre outros.

Todavia, levando-se em consideração que, com a prática do delito de descaminho, o Estado deixará de receber os tributos incidentes na importação e exportação, por exemplo, tem-se que o resultado é idêntico ao dos crimes contra a ordem tributária, previstos no artigo 1º da Lei 8.137/1990.

Capez (2011) afirma que o descaminho configura uma modalidade especial de crime contra a ordem tributária, adequando-se a definição contida no artigo 1º da Lei 8.137/1990, sendo que não há como dar tratamento diferenciado a condutas tão semelhantes, sob pena de afronta ao princípio constitucional da proporcionalidade.

Bitencourt (2013) defende a natureza patrimonialista do bem jurídico nos crimes tributários, sendo que a receita incorpora o patrimônio da Fazenda Pública como Erário e arrecadação tributária.

É o mesmo pensamento de Pagliaro (2006), lecionando que o descaminho é essencialmente um ilícito de natureza fiscal, atentando apenas contra o Erário.

Por fim, no mesmo sentido, Baltazar Junior (2010, p. 197) salienta que o descaminho é modalidade específica de crime contra a ordem tributária, tendo por objeto tributos externos.

Como se depreende do exposto, o descaminho é crime material por prever um resultado que ocorre de forma destacada da conduta, da qual decorre por nexo de causalidade, que resulta na sua real concretização.

Ademais, embora arrolado no Código Penal, entre os crimes contra a administração pública, o delito atenta verdadeiramente contra a ordem tributária, uma vez que configura ilusão do direito ou imposto devido pela mercadoria descaminhada, configurando uma infração penal tributária aduaneira.

Diante de todo o exposto, fica evidente o real objetivo do tipo de descaminho, que é tutelar o Erário.

O argumento de que a elevação ou redução dos impostos de importação e exportação, com o intuito de proteger a indústria nacional, não pode ser suficiente para se fundamentar a distinção do descaminho frente aos demais crimes tributários. Logo, é certo que se equipara aos demais crimes fiscais.

Uma das consequências dessa equiparação é a aplicação de regras extrapenais para a repressão da conduta do agente, tais como a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido e a necessidade de esgotamento da via administrativa para o início da persecução penal, buscando a aplicação do direito penal como a ultima ratio.

 Os delitos da Lei de crimes contra a ordem tributária (Lei 8137/1990) e o descaminho possuem características comuns, observando-se que o bem jurídico tutelado pela norma é os cofres públicos e suas derivadas formas de arrecadação, sendo o Estado o sujeito passivo dos crimes e, na maior das hipóteses, havendo fraude na consecução desses delitos.

Conclui-se, portanto, pela equiparação das condutas ora discutidas, destarte, pode-se afirmar que o tipo do artigo 334 do Código Penal configura-se espécie de crime tributário, não restando motivos para dar tratamento diferenciado aos demais crimes do gênero.


4 AS IMPLICAÇÕES JURÍDICO-PENAIS DA NATUREZA FISCAL AO DESCAMINHO

4.1 Necessidade de lançamento definitivo do crédito tributário

Como resta claramente demonstrado, o descaminho e os crimes contra a ordem tributária, além de protegerem o mesmo bem jurídico, assemelham-se quanto ao tipo penal, devendo a ambos, por lógica e senso de justiça, idêntico tratamento.

Logo, o descaminho, consistindo em crime material de natureza tributária, pressupõe que a autoridade administrativa somente poderá exigir o crédito tributário do contribuinte, da mesma forma que somente poderá haver representação fiscal para fins penais, se houver instaurado, preliminarmente, processo administrativo que respeite o direito de contraditório e ampla defesa, nos moldes do art. 83 da Lei 9.430/1996.

Ademais, a necessidade de se aguardar a conclusão do processo administrativo fiscal para que se inicie a persecução penal também encontra previsão na súmula vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal, in verbis: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1o, incisos I a IV, da Lei no 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo” (BRASIL, 2009). 

O lançamento do crédito tributário é indispensável, pois é o ato da Administração Tributária que quantifica o prejuízo imposto ao Erário pelo contribuinte, antes do recebimento da denúncia, e que pode afastar a punibilidade do ato praticado pelo sonegador, com a decisão definitiva de constituição do crédito, consistindo em valor ínfimo ou de pena de perdimento, por exemplo, resolvendo o ilícito na esfera administrativa.

Tal como nos crimes contra a ordem tributária, o início da persecução penal no delito de descaminho pressente o esgotamento da via administrativa, com a constituição definitiva do crédito tributário, sendo imprescindível para a resolução efetiva, objetivando a aplicação do direito penal como ultima ratio.

4.2 Extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo iludido

Em que pese não esteja previsto no rol das causas extintivas da punibilidade do art. 107 do Código Penal, o pagamento do tributo foi introduzido através da Lei 4.729/1965 no ordenamento jurídico pátrio, mirando estimular o contribuinte a pagar o tributo sonegado, sendo a extinção da punibilidade uma maneira do Estado premiar o contribuinte que agir dentro dos rigores da lei tributária.

Com o passar dos anos, o artigo 2º da Lei 4.729/1965 foi revogado e, após várias outras reformas legislativas e jurisprudências, ocorreu a edição do artigo 9º da Lei 10.684/2003, o qual assevera que o pagamento integral do débito fiscal realizado pelo contribuinte é causa de extinção de punibilidade.

Corroborando com a previsão legal vigente foi que, em 2011, sucedeu a promulgação da Lei nº 12.382, a qual alterou o artigo 83 da Lei nº 9.430/1996, e passou a dispor sobre os efeitos do parcelamento dos créditos tributários no processo penal.

Entretanto, a questão da extinção da punibilidade pela quitação integral do débito fiscal, no que se refere ao descaminho, ainda não é pacífica. A controvérsia reside, mais uma vez, na natureza do delito de descaminho, como crime material contra a ordem tributária, vez que a extinção da punibilidade com o pagamento do tributo não faz referência ao descaminho.

No entanto, passou-se a discutir a aplicação deste instituto utilizando-se da analogia in bonam partem, pois, se permitida extinguir a punibilidade pelo pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia nos crimes de sonegação fiscal, não haveria razão para negar tratamento igualitário ao delito de descaminho, onde somente há a ilusão do fisco, com o intuito de sonegar tributos.

Nesse ponto de vista, a jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2013) entendia que as disposições dessas leis, a fim de extinguir a punibilidade do contribuinte, quando do pagamento dos tributos e multas devidas, deveriam ser aplicadas por analogia.  

Contudo, recentemente, mudou-se o entendimento naquela corte mais uma vez. Segundo posição atual do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2015), o pagamento do tributo devido não extingue a punibilidade do crime de descaminho, uma vez que é equiparado como crime formal e não mais como crime material contra a ordem tributária.  

Destarte, a controvérsia permanece sob qual a classificação do crime de descaminho, isto é, se consiste em crime formal ou material. No presente trabalho, defende-se que o descaminho constitui iminentemente um crime material, sendo devida a aplicação, por analogia, da extinção da punibilidade do contribuinte fraudador, pela quitação do tributo iludido.

4.3 Perdimento de bens como causa extintiva da punibilidade

Com a aplicação deste instituto em decisão administrativa pelo órgão fazendário, via de consequência, acarretaria o afastamento da incidência do tributo, não se podendo falar em ilusão do pagamento de imposto ou direito. Logo, não se realizaria o núcleo fático do tipo penal do artigo 334 do Código Penal.

Forçoso reconhecer como inviável tal interpretação somente pelo fato do descaminho não estar, textualmente, presente no rol de crimes contra a ordem tributária, ou até mesmo porque o artigo 9º da Lei 10.684/2003 limitou a incidência do benefício apenas aos contribuintes infratores dos artigos 1º e 2º da Lei 8.137/1990.

Sob a ótica do princípio da isonomia, como garantia fundamental assegurada pela Constituição Federal, há de se questionar a própria constitucionalidade dessa interpretação literal e restritiva conferida ao texto legal, eis que o legislador não poderia valer-se de política criminal que absolva uns e condene outros numa mesma situação fática.

Mister ressaltar que o perdimento obsta a própria constituição de crédito tributário, dispensando posterior pagamento, ou seja, decretado o perdimento do bem, não há mais o que se pagar e é exatamente nesse ponto que reside a aparência justificadora do emprego da analogia no campo criminal.

A legislação aduaneira trata o perdimento de bens como uma medida reparatória de danos ao Erário, sendo que, na maioria das vezes, o valor da mercadoria apreendida é superior ao montante do tributo devido, em caso de importação ou exportação regular, o qual já seria suficiente para cobrir os danos causados à Administração Pública.

Em contrapartida, caso o valor do bem seja inferior ao valor do tributo e acessórios devidos, o perdimento como medida punitiva e o pagamento integral do quantum devido também oportunizaria a efetiva resolução do conflito, dando solução à causa em via administrativa.

Por todo o exposto, a exegese aqui defendida se impõe quando o contribuinte logra êxito na esfera administrativa ou judicial para efetuar o pagamento do montante equivalente ao tributo e acessórios, nos casos em que a decretação de perdimento se revele uma medida proporcional de resolução efetiva do crime, evitando-se aplicar a tutela penal como meio de resolução do descaminho, em respeito ao princípio da intervenção mínima.

4.4 Aplicação do princípio da insignificância

A base da teoria bagatelar do resultado crime reside na ratio essendi do Direito Penal, ou seja, no reconhecimento da necessidade de tutela a lesões substanciais a bens jurídicos, excluindo-se da esfera de proteção as ínfimas ofensas, afastando-se desde logo a tipicidade material da conduta irrelevante faticamente.

Em outras palavras, o entendimento explanado se refere ao agente que realiza uma conduta típica, porém não ofende o bem jurídico protegido pela norma, não restando presente o desvalor necessário para que se fale em tipicidade da conduta e necessidade dos rigores da lei penal, momento em que se evidencia a natureza fiscal do delito de descaminho.

Nesse sentido, se os tributos descaminhados pelo contribuinte consistirem em valor ínfimo, isto é, de pequena monta à Administração Pública, a Procuradoria da Fazenda Nacional deverá deixar de promover o ajuizamento de ações de execução por dívidas ativas da União.

Esse argumento se funda na Lei 10.522/2002, que disciplinou a Fazenda Nacional em adotar o limite mínimo de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para considerar a cobrança executável. Mais tarde, em 2012, por meio da Portaria do Ministério da Fazenda n° 75, aumentou-se o limite para R$ 20.000,00 (vinte mil reais), por entender que não é economicamente vantajoso para o erário ajuizar demanda, cujo valor seja inferior, ao final, a esse parâmetro.

Gomes (2012) pondera que, uma vez alterado o quantum correspondente ao ajuizamento da execução fiscal, não resta nenhuma razão para se modificar também a incidência do princípio da insignificância no âmbito dos crimes tributários e de descaminho.

Com esse raciocínio foi que a matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal, ocasião em que os Ministros passaram a julgar em favor da absolvição sumária do contribuinte acusado de descaminho quando o valor dos impostos sonegados não ultrapassasse o limite adotado pela Fazenda Nacional para desencadear a execução da dívida, conforme defendido na seguinte ementa do julgamento do Habeas Corpus n.º 121692/RS (BRASIL, 2014):

“Decisão: Ementa: Habeas corpus. Descaminho. Atipicidade da conduta. Valor do tributo sonegado inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Precedentes. Ordem concedida. 1. Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado contra acórdão assim ementado: “PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. MERCADORIAS IMPORTADAS. INSIGNIFICÂNCIA. PARÂMETRO. DÉBITO TRIBUTÁRIO SUPERIOR A DEZ MIL REAIS. NÃO APLICAÇÃO DA PORTARIA N. 75/2012 DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. [...] 8. No caso, a autoridade impetrada afastou a aplicação do princípio da insignificância pelo fundamento de que o valor de R$ 12.477,39 (doze mil, quatrocentos e setenta e sete reais e trinta e nove centavos) ultrapassaria aquele estabelecido pela legislação de regência para o arquivamento da execução fiscal (R$ 10.000,00). Ocorre que, por meio da Portaria 75, do Ministério da Fazendo, definiu-se o valor de R$ 20.000,00 como novo parâmetro para a atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional e para o arquivamento das pretensões de natureza fiscal. 9. Nessas condições, consideradas as diretrizes até então utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal na análise da tipicidade de condutas que envolvem a importação irregular de mercadorias, não há como deixar de reconhecer a atipicidade dos fatos imputados ao paciente. Notadamente se se considerar que eventual desconforto com a via utilizada pelo Estado-Administração para regular a sua atuação fiscal não é razão para a exacerbação do poder punitivo. Nesse mesmo sentido foram julgados pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, dentre outros, o HC 120617, Rel.ª Min.ª Rosa Weber, e o HC 120096, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. 10. Diante do exposto, com fundamento do art. 192 do RI/STF, concedo a ordem para restabelecer a sentença que absolveu sumariamente o paciente. Publique-se. Intime-se. Brasília, 04 de abril de 2014. Ministro Luís Roberto Barroso Relator Documento assinado digitalmente.”

 Destarte, fica evidente a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho, uma vez que, se a própria União demonstra desinteresse em cobrar os referidos valores pela via judicial, não cabe ao órgão acusatório fazê-lo.

Noutras palavras, se a lesão é irrelevante em sede administrativa, mais ainda o será em relação ao Direito Penal, uma vez que, pautando-se pelo princípio da intervenção mínima, deve ser aplicado apenas em casos relevantes.


5 DIREITO PENAL COMO ULTIMA RATIO

Como já visto, o Direito Penal representa o mais rígido dos controles existentes, eis que é de natureza formal e tem por objetivo a aplicação de penas que, em sua maioria, tendem a privar a liberdade do sujeito afetado.

Em outros termos, a tutela penal aplicada na prática baseia-se na interferência do Estado na vida do cidadão através de uma afronta ao seu direito fundamental, que é a liberdade.

É por essa razão que as regras tributárias, quando não forem cumpridas, isto é, quando ocorrer o inadimplemento do tributo por meio de ilusão contra o fisco, é preciso indagar se há, realmente, necessidade de interferência do Direito Penal para se garantir a arrecadação tributária.

Se por diversos modos é possível sancionar o inadimplemento tributário, ou seja, arrecadar o dinheiro que foi descaminhado, então há que ser feito do modo menos agressivo ao infrator. Logo, o Direito Penal, o qual tem a finalidade de punir, não pode ser utilizado para obrigar o cumprimento de todos os textos legais, pois é estruturado pelo princípio basilar da intervenção mínima.

Tal princípio é constituído por dois subprincípios, sendo eles a Fragmentariedade e a Subsidiariedade do Direito Penal.

O princípio da Fragmentariedade, por essência, traduz que somente o fato e as condutas mais graves e mais perigosas, intentadas contra os bens jurídicos mais relevantes, necessitam dos rigores da Lei Penal.

Nessa perspectiva é que Greco (2006, p. 63) conclui que “nem todas as lesões a bens jurídicos justificam a proteção e punição do Direito Penal”.

Roborando o assunto, conclui Toledo (1994, p. 133) que o Direito Penal não deve se preocupar com bagatelas e ressalta que “ao considerar atípicas condutas que ocasionem insignificante prejuízo ao bem protegido, o crime bagatelar será disciplinado em outra área do Direito que não a penal”.

Com essa lógica é que se chega à máxima da Subsidiariedade do Direito Penal, pois sempre que outros ramos do Direito possam ser utilizados para compelir o cidadão ao cumprimento da regra, então o Direito Penal não poderá intervir, sob pena de direta afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.  

Sobre o tema, vale considerar a doutrina de Roxin (1998, p. 28), o qual assevera que:

“O Direto Penal é de natureza subsidiária. Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito administrativo, o Direito Penal deve retirar-se [...] consequentemente, e por ser a reação mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar.”

Deste modo, resta claro que as condutas previstas nos crimes contra a ordem tributária – incluindo o descaminho constante no artigo 334 do Código Penal – estão intimamente vinculadas ao não cumprimento de obrigações tributárias, as quais podem ser de dar, fazer ou não fazer, intimamente interligadas ao Estado e à prestação de contas ao fisco.

O próprio Direito Tributário prevê, em seu sistema positivado, uma série de sanções, através de multas pecuniárias e restrições de direitos, algumas delas consistindo na redução do capital social da pessoa jurídica, alteração do quadro societário e até o encerramento das atividades sociais, dentre outras.

Engana-se quem acha que a legislação tributária não é rígida o bastante para impor um temor financeiro ao agente que não cumprir suas obrigações fiscais, sem contar que, também, não deve conhecer a multa punitiva que pode chegar a atingir um percentual de até 150% (cento e cinquenta por cento) sobre o valor dos tributos sonegados, conforme prevê o artigo 44 da Lei nº 9.430/1996.

Além das sanções pecuniárias e as restritivas de certos Direitos, o legislador entende que a não observância das obrigações tributárias pode incidir em reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, ou de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa, para os crimes dos artigos 1º e 2º da Lei 8137/1990, respectivamente, bem como ao crime de descaminho, constante no artigo 334 do Código Penal, cuja pena base fica estipulada de 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, podendo ser cominada em dobro caso seja praticado por meio de transporte aéreo, marítimo ou fluvial, como já visto.

Indubitável é a desproporcionalidade da pena aplicada ao crime de descaminho, o qual tutela o Erário e tem sua natureza jurídica embasada contra a ordem tributária, podendo ser aplicada ao caso concreto a reprimenda de privação de liberdade superior à pena mínima de um homicídio doloso.  

A celeuma que envolve a desproporcionalidade da aplicação do rigor penal para delitos contra a ordem tributária, os quais já têm severas sanções, encontra amparo no artigo 68 da Lei 11.941/2009, o qual prevê a extinção da punibilidade dos referidos crimes, diante do pagamento do tributo e acréscimos legais, isto é, multas.

Tendo como parâmetro tal argumento, convém, então, indagar qual seria o objetivo de se tipificar condutas que têm excluídas a punibilidade, por exemplo, com o simples adimplemento financeiro?

Já foi objeto de abordagem neste estudo a ideia de que, com o pagamento do valor total de tributos devidos mais acréscimos legais (juros e multas), caracterizando sanções de natureza tributária, a legislação expressamente entende devidamente adimplida a obrigação tributária, ocasionando até mesmo a extinção da punibilidade na seara criminal. É por essa razão que se deve entender que os tipos penais externados na Lei 8.137/1990, bem como o descaminho, são incompatíveis com o texto constitucional, por afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Em primoroso estudo sobre o assunto, Prado (2010, p. 145) aduz que o princípio da dignidade da pessoa humana se irradia por todo ordenamento jurídico, servindo como alicerce para todos os demais princípios penais fundamentais, sendo que a afronta ao princípio da legalidade também se considera uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Conforme tem sido enfatizado, a tutela penal proveniente do descumprimento das obrigações tributárias entra em conflito direto com o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.

O objetivo dos tipos penais tributários é, indubitavelmente, a coerção para que a obrigação financeira seja cumprida. Desse modo, deve o legislador, e se este não o fizer, incumbe ao judiciário, observar os critérios legais e proporcionais, tanto da conduta, quando da pena cominada ao descaminho, sob pena de se consagrar o “Direito Penal do Terror”.


6 CONCLUSÃO

A partir do estudo ora explanado, chega-se à conclusão de que o bem jurídico tutelado no delito de descaminho é, prioritariamente, o mesmo dos demais crimes fiscais, isto é, a ordem tributária em seu sentido lato, consubstanciada no interesse da Administração Pública em arrecadar tributos para fazer frente às necessidades coletivas, bem como em aspectos extrafiscais.

Resta evidente que o descaminho é tipificado e classificado como sendo um crime contra a Administração Pública apenas por opção política-criminal do legislador, já que, quando da primeira edição do tipo, ainda no Código do Império, não existia nenhuma norma que tratasse especificamente dos crimes fiscais.

O objetivo dos dispositivos penais da Lei 8.137/1990 e do delito de descaminho é tutelar o Erário, através da coerção imposta ao cumprimento das obrigações tributárias.

A sanção penal nesses casos é totalmente descabida, vez que o descumprimento das obrigações fiscais acarreta sanções de graves proporções na esfera tributária, tais como multas elevadas e restrições de diversos direitos. Ademais, além da punição, a legislação tributária é estruturada de modo a permitir que os danos sejam reparados através da incidência de juros de mora e atualização monetária, o que significa acautelar o poder de compra da moeda, mirando a efetiva arrecadação dos tributos iludidos.

O maior fundamento que prevê a limitação do Direito Penal e a tutela das condutas tributárias é de que o pagamento dos tributos e acréscimos legais extingue a punibilidade, tornando-se a forma mais tradicional e efetiva de extinção da obrigação tributária, através de sua própria natureza arrecadatória.

Assim sendo, o Direito Penal Econômico, quando tipifica condutas como os crimes contra a ordem tributária, qual seja, o descaminho, é utilizado de modo flagrantemente inconstitucional, por afronta à dignidade da pessoa humana, já que atua com cunho meramente intimidativo a fim de viabilizar o aumento da arrecadação tributária, criando exageradamente figuras penais, caracterizando a instituição do “Direito Penal do Terror”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DORIGON, Alessandro; TEIXEIRA, Luiz Henrique. A natureza fiscal do delito de descaminho e a sua real necessidade de criminalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4646, 21 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47392. Acesso em: 26 abr. 2024.