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Quando a Democracia pode ser a ditadura da maioria contra a minoria, o Brasil ainda consegue fazer pior.

Ou: Sobre a Democracia II

Quando a Democracia pode ser a ditadura da maioria contra a minoria, o Brasil ainda consegue fazer pior. Ou: Sobre a Democracia II

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Na “democracia à brasileira”, a maioria elege representantes que não a representam, pois formam uma minoria que atua em prol de sua própria ideologia e contra o que pensa e espera a maioria que deveria representar.

 

Em “Fragmentos do que li de Hayek em ‘O caminho da servidão’ (ou Sobre a Democracia I)” [1], tratei brevemente da possibilidade de uma democracia tomar feições de uma ditadura da maioria sobre a minoria. Citando Hayek, apontei que o que vai ditar se o Estado é democrata ou totalitário é o grau de liberdade e igualdade gozado pelo povo. Já nesse ensaio, vou analisar a “democracia à brasileira”, na qual a maioria elege representantes que não a representam, pois formam uma minoria que atua em prol de sua própria ideologia e contra o que pensa e espera a maioria que deveria representar. Difícil? Vamos lá, então.

Antes, porém, vou denunciar uma prática muito comum de utilizar a linguagem como instrumento para manipular (e convencer) o público [2], como o termo democracia nominando países totalitaristas como a República Democrática do Congo e a República Popular Democrática da Coreia (do Norte).

Voltando ao Brasil, como explicar que um povo de maioria conservadora [3] seja manipulado por uma minoria cuja prioridade é imprimir seu padrão ideológico através de ataques frontais aos valores conservadores? Que objetiva implantar um regime de moldes totalitaristas de economia planificada?

A quase totalidade dos políticos atuantes é formada por progressistas de viés esquerdista que agem com astúcia para promover as transformações planejadas por Marx e pensadores de teorias paralelas. Mas, é pouco crível que um adepto consciente da filosofia conservadora, que (i) reconhece os valores das instituições; (ii) entende que tudo o que deu certo até aqui deve ser preservado, e não mudado apenas pela mudança; e (iii) acredita em valores morais, na propriedade e na família, elegeria, “sponte sua”, essas pessoas para cuidarem da educação, da saúde, da segurança, da economia e ditar os rumos do país.

Acontece que eles se aproveitam da ingenuidade e da baixa capacidade crítica de grande parte dos membros da sociedade. Através de propagandas mentirosas (como “precisamos de educação” enquanto sucateiam cada vez mais a educação), apresentam um modelo de mundo utópico, cor-de-rosa, onde “retrógrados e maus” devem ser vencidos por quem prega o bem da humanidade. Esquecem, logicamente, de dizer que há sempre muitos mortos e pessoas escravizadas em países que vivem o processo revolucionário. Anunciando que sabem o que é melhor para o mundo, enquanto querem é ter vidas confortáveis à custa alheia, eles defendem o progresso apenas pelo progresso, e atropelam os sentimentos do povo cuja maioria é conservadora e não está interessada em seu “produto”. Surge, então, um conflito.

O trabalho de convencimento geral requer a execução de um processo de subversão dos valores da sociedade, que começa na ocupação de espaços por intelectuais orgânicos forjados, anos a fio, especialmente nas universidades, a partir da massificação da ideologia marxista, seguindo a diretiva de Gramsci. Ao mesmo tempo, nas camadas mais baixas da sociedade, criam coletivos e fazem a pregação do ódio, instigado pela polarização do debate (o “nós contra eles”), para promover a divisão da sociedade em fatias, seguindo a tática de Sun Tzu (“dividir para conquistar”) [4]. É por esse caminho as ideias de Estado forte e planificação do pensar, do falar, do sentir, do agir, do produzir e do consumir tomaram conta da academia, dos veículos de informação e de entretenimento, e das editoras, com investidas até sobre as religiões.

Sempre à base de muita propaganda ideológica e da asfixia de ideologias contrárias, seguem arrebanhando adeptos na transição do processo revolucionário. Mas, a boa notícia é que essa forma fraudulenta de fazer política e conduzir o destino da nação ainda não conseguiu subverter totalmente a mentalidade do brasileiro, apesar de causar estragos.

Eles ainda contam com mecanismos democráticos que permitem a eleição de adeptos de um pensamento político-filosófico diametralmente oposto ao de seus eleitores. Para Alexandre Borges, há falta de candidatos do espectro político da direita [5]. Porém, esse fato atípico, que caminha “pari passu” com o “paradoxo de Garschagen” (o brasileiro odeia os políticos e entrega o Estado que adora nas mãos desses mesmos políticos odiados para o administrarem [6]), pode ser explicado pelo costume do brasileiro de votar em pessoas, e não em ideias, revelando total desconhecimento da orientação de políticos e dos programas partidários, dispensando, assim, um fator de muito interesse da sociedade. Na ampla maioria das vezes o voto é entregue a qualquer um circunstancialmente conhecido, por quem se nutre empatia ou se deve algum favor. A atuação política do candidato (projetos, votos contrários e favoráveis) é irrelevante.

O sistema de eleições proporcionais, utilizado na escolha de representantes do Legislativo nos cargos de deputado federal, estadual e distrital e de vereador (todos responsáveis por elaborar e votar as leis, e adstritos ao âmbito em que foram eleitos), permite que candidatos que não alcançaram a votação mínima para conquistar o cargo possam assumi-lo.

Segundo o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de Santa Catarina [7], o sistema proporcional foi criado para que o eleitor, ao votar num candidato, informe que se sente representado pela ideologia de sua legenda (composta pelo partido ou coligação). Os votos serão submetidos ao cálculo de quociente eleitoral, que é obtido a partir da “divisão do número de ‘votos válidos’ [de toda a eleição] pelo de ‘vagas a serem preenchidas’”. Encontrado o “número mágico”, será feita a soma total de votos da legenda e o número achado será dividido pelo “número mágico”, estipulando quantas cadeiras cada legenda ocupará. Os cargos serão distribuídos pelos candidatos mais votados, segundo o número de cadeiras da legenda, tenham eles, individualmente, alcançado ou não o “número mágico”, pois as sobras dos colegas de legenda poderão ser computadas a seu favor.

Ficção maior impossível. Mormente porque é comum que os políticos atuem contrariamente à plataforma de seu partido, tenham convicções distintas das dos seus correligionários e vez por outra abandonem o partido, transitando na extrema-esquerda, na centro-esquerda ou no centro [8]. Sem contar as dificuldades do eleitor em assimilar esse sistema.

Como prova desse absurdo, em 2014, apenas 35 dos 513 deputados federais, o equivalente a 6,8%, alcançaram votos necessários para ocuparem a cadeira [9], enquanto 478 deputados (a grande maioria) foram guindados aos cargos através desse sistema. Significa dizer que, não fosse o antidemocrático mecanismo do quociente eleitoral, não estariam eles autorizados a tomar medidas que vão de encontro à vontade e à visão de mundo do eleitor, conspirando contra ele, pois sequer se preocupam em criar partidos para atender ao pensamento corrente entre a maioria do povo, de quem o poder emana. Tanto que, dos 35 partidos existentes atualmente, o único autodeclarado do espectro da direita, e mesmo assim apenas liberal, é o Partido Novo.

Ora, se a democracia é um sistema político que dá voz à maioria, no Brasil não há democracia, uma vez que: (i) há pouquíssimos políticos conservadores, o que é inversamente proporcional ao percentual de adeptos dessa filosofia entre o povo; (ii) não possui um único partido genuinamente conservador; e (iii) pelo sistema proporcional, vários candidatos ocupam cadeiras sem terem sido escolhidos diretamente, mas por força de mecanismos legais.

Essas circunstâncias admitem a conspiração contra o pensamento majoritário. E isso é fato, pois os progressistas de viés esquerdista vêm amoldando o ordenamento jurídico a seu talante, como fez FHC e continuaram Lula e Dilma.

Voltando ao domínio da linguagem, o que mais se lê e ouve por aí é que a elite conservadora, coxinha, fascista e golpista é reacionária porque não adere às ideias progressistas que esses seres iluminados pretendem impor à maioria. Como já foi explicado, embora representem a minoria, estrategicamente são maioria na política. E eles não aceitam somente ser a maioria na política. Para levarem a cabo o projeto totalitarista típico dos regimes desse jaez, lutam pela total hegemonia, nem que para isso seja preciso desqualificar grupos e pessoas, criar cismas, destruir reputações.

A última coisa que passa pela cabeça dessas pessoas é honrar os votos que lhes foram confiados, e para exemplificar a falta de sintonia entre representantes e representados, temos o Estatuto do Desarmamento e a inimputabilidade penal de menores. Embora o povo tenha demonstrado inúmeras vezes seu amplo e total descontentamento com a atual legislação, cobrando medidas para que se promova a alteração, continuam impondo-a goela abaixo da sociedade.

Finalmente, cumpre indagar: Que raios de democracia é essa a praticada no Brasil, se nem a vontade da maioria prevalece?

Respondo. É aquela que admite a falta de compromisso com a promessa de campanha, o desconhecimento da orientação filosófica e da atuação política dos candidatos e dos objetivos dos partidos, seja por preguiça, pela falta de divulgação ou por incapacidade crítica; aquela que sofre com o quociente eleitoral que “põe pra dentro” candidatos não eleitos diretamente pelo povo, e convive com a venda ou troca de votos por tijolos, sacos de cimento etc. Mas, acima de tudo, vale repetir, é aquela que convive com o excesso de poderes que a elite dirigente não se cansa de avocar para si, e em porções cada vez maiores, criando situações esdrúxulas como a eleição de representantes que não representam os representados porque, ao contrário do pensamento que norteia esses últimos, os primeiros se preocupam em transformar um Estado cujo povo é conservador num Estado totalitário socialista, que retira a liberdade e paulatinamente encaminha à escravidão todo aquele que viver em seu território.

 


NOTAS

[1] Peixoto, Fernando César Borges. Fragmentos do que li de Hayek em “O caminho da servidão” (ou Sobre a Democracia I). Blog Impressões e confissões expressas, 03/03/2016. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/47058/fragmentos-do-que-li-de-hayek-em-o-caminho-da-servidao>. Acesso em 03/03/2016;

[2] Excelente texto sobre o tema é o de Quintás, do qual podemos retirar alguns excertos: “Numa democracia as coisas não são fáceis para o tirano. Ele quer dominar o povo, e deve fazê-lo de forma dolosa para que o povo não perceba, pois, numa democracia, o que os governantes prometem é, antes de tudo, liberdade. Nas ditaduras se promete eficácia à custa das liberdades. Nas democracias se prometem níveis nunca alcançados de liberdade ainda que à custa da eficácia. Que meios um tirano tem à sua disposição para submeter o povo enquanto o convence de que é mais livre do que nunca? Esse meio é a linguagem. A linguagem é o maior dom que o homem possui, mas também, o mais arriscado. É ambivalente: a linguagem pode ser terna ou cruel, amável ou displicente, difusora da verdade ou propagadora da mentira. A linguagem oferece possibilidades para, em comum, descobrir a verdade, e proporciona recursos para tergiversar as coisas e semear a confusão. Basta conhecer tais recursos e manejá-los habilmente, e uma pessoa pouco preparada mas astuta pode dominar facilmente as pessoas e povos inteiros se estes não estiverem de sobreaviso”. E o autor ainda lembra Stalin: “De todos os monopólios de que desfruta o Estado, nenhum será tão crucial como seu monopólio sobre a definição das palavras. A arma essencial para o controle político será o dicionário”. (Quintás, Alfonso López. A Manipulação do Homem através da Linguagem. Disponível em <http://www.hottopos.com/mp2/alfonso.htm#>. Acesso em 23/07/2015);

[3] ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007;

[4] TZU, Sun. A arte da guerra. Porto Alegre: L&PM, 2014;

[5] “É perfeitamente possível aceitar que mais de 70% dos brasileiros estão ideologicamente no centro, centro-direita e direita. Na matéria, o jornal ainda comete o absurdo de dizer que ideologia ‘não se traduz em voto’ porque o brasileiro, mesmo sendo de direita, não vota em candidatos de direita. O jornal só deixa de mencionar mais explicitamente que o Brasil não tem candidatos de direita, o que invalida a conclusão. (...) O povo hoje só não vota na direita porque não tem alternativa. A política brasileira é a negação do livre mercado até nisso: os ‘consumidores’ gritando por um produto e todos os vendedores oferecendo outro, completamente diferente, e que só uma minoria engole com prazer”. (BORGES, Alexandre. A verdadeira cabeça do brasileiro. Reaçonaria, 30/10/2013. Disponível em <http://reaconaria.org/colunas/alexandreborges/a-verdadeira-cabeca-do-brasileiro/>. Acesso em 07/03/2016);

[6] GARSCHAGEN, Bruno. Pare de acreditar no governo... Rio de Janeiro: Record, 2015;

[7] TRE-SC. Eleições majoritárias e proporcionais. Disponível em <http://www.tre-sc.jus.br/site/eleicoes/eleicoes-majoritarias-e-proporcionais/>. Acesso em 25/02/2016;

[8] Nessa linha de sempre algo pior pode surgir. O PSD, refundado por Gilberto Kassab, assim se remeteu à ideologia do partido: “Ele não será de direita, não será de esquerda, nem de centro... Nem contra, nem a favor, muito menos pelo contrário” (http://noblat.oglobo.globo.com/editoriais/noticia/2011/04/psd-golpe-na-fidelidade-partidaria-373918.html, acesso em 29/02/2016). A contradição também é demonstrada em sua página, já que, ao falar de princípios e valores, o partido se diz defensor da iniciativa e da propriedade privadas e da economia de mercado, enquanto contraditoriamente é defensor de um Estado forte (http://psd.org.br/principios-e-valores/, acesso em 29/02/2016). A desfaçatez é tamanha que Kassab, logo após refundar o PSD, cujo objetivo era diminuir o DEM – oposição ao PT (situação à época) –, tentou refundar outro partido, o PL, agora com o intuito de diminuir o PMDB, empreitada que ainda não logrou êxito (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1607874-kassab-nega-articular-criacao-de-nova-sigla-mas-nao-descarta-fusao-com-psd.shtml, acesso em 29/02/2016 );

[9] SARDINHA, Edson. Só 35 deputados se elegeram com a própria votação. Congresso em Foco, 06/10/2014. Disponível em <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/so-35-deputados-se-elegeram-com-a-propria-votacao/>. Acesso em 29/02/2016.

 


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEIXOTO, Fernando César Borges. Quando a Democracia pode ser a ditadura da maioria contra a minoria, o Brasil ainda consegue fazer pior. Ou: Sobre a Democracia II. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4646, 21 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47449. Acesso em: 28 mar. 2024.