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Direito ao estado de filiação e direito à origem genética

uma distinção necessária

Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária

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Na tradição do direito de família brasileiro, o conflito entre a filiação biológica e a filiação socioafetiva sempre se resolveu em benefício da primeira. Em verdade, apenas recentemente a segunda passou a ser cogitada seriamente pelos juristas, como categoria própria, merecedora de construção adequada.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Estados de filiação biológica e não biológica; 3. Estado de filiação derivado de inseminação artificial heteróloga; 4. Posse do estado de filiação; 5. "Adoção à brasileira" e a verdade do registro civil; 6. Afetividade como direito e dever jurídicos; 7. Fundamentação constitucional e no Código Civil; 8. O critério do melhor interesse do filho para solução do conflito entre filiação biológica e não-biológica; 9. Pater is est – redirecionando da legitimidade para o estado de filiação em geral; 10. Sobre a imprescritibilidade do exercício da contestação da paternidade e da impugnação do estado de filiação; 11. Afinal qual é a verdade real da filiação?; 12. Direito à origem genética como direito da personalidade, sem vínculo com o estado de filiação; 13. Conclusão


1. Introdução

Na tradição do direito de família brasileiro, o conflito entre a filiação biológica e a filiação socioafetiva sempre se resolveu em benefício da primeira. Em verdade, apenas recentemente a segunda passou a ser cogitada seriamente pelos juristas, como categoria própria, merecedora de construção adequada. Em outras áreas do conhecimento, que têm a família como objeto de investigação, a exemplo da sociologia, da psicanálise, da antropologia, a relação entre pais e filhos fundada na afetividade sempre foi determinante para sua identificação.

No direito, a verdade biológica converteu-se na "verdade real" da filiação em decorrência de fatores históricos, religiosos e ideológicos que estiveram no cerne da concepção hegemônica da família patriarcal e matrimonializada e da delimitação estabelecida pelo requisito da legitimidade. Legítimo era o filho biológico, nascido de pais unidos pelo matrimônio; os demais seriam ilegítimos. Ao longo do século XX, a legislação brasileira, acompanhando uma linha de tendência ocidental, operou a ampliação dos círculos de inclusão dos filhos ilegítimos, com redução de seu intrínseco quantum despótico, comprimindo o discrime até ao seu desaparecimento, com a Constituição de 1988. Com efeito, se todos os filhos são dotados de iguais direitos e deveres, não mais importando sua origem, perdeu qualquer sentido o conceito de legitimidade nas relações de família, que consistiu no requisito fundamental da maioria dos institutos do direito de família. Por conseqüência, relativizou-se o papel fundador da origem biológica.

Ao mesmo tempo em que o direito de família sofreu tão intensas transformações, em seu núcleo estrutural, consolidou-se a refinada elaboração dos direitos da personalidade, nas últimas décadas, voltados à tutela do que cada pessoa humana tem de mais seu, como atributos inatos e inerentes, alcançando-se o que Pontes de Miranda denominou "um dos cimos da dimensão jurídica". [1] São dois universos distintos, pois o direito de família volta-se aos direitos e deveres das pessoas, hauridos do grupo familiar, e os direitos da personalidade aos que dizem com a pessoa em si, sem relação originária com qualquer outra ou com grupo. A origem genética da pessoa, tendo perdido seu papel legitimador da filiação, máxime na Constituição, migrou para os direitos da personalidade, com finalidades distintas.

O estado de filiação desligou-se da origem biológica e de seu consectário, a legitimidade, para assumir dimensão mais ampla que abranja aquela e qualquer outra origem. Em outras palavras, o estado de filiação é gênero do qual são espécies a filiação biológica e a filiação não biológica. Daí, é de se repelir o entendimento que toma corpo nos tribunais brasileiros de se confundir estado de filiação com origem biológica, em grande medida em virtude do fascínio enganador exercido pelos avanços científicos em torno do DNA. Não há qualquer fundamento jurídico para tal desvio hermenêutico restritivo, pois a Constituição estabelece exatamente o contrário, abrigando generosamente o estado de filiação de qualquer natureza, sem primazia de um sobre outro.

Na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa humana é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos casos. Portanto, não pode haver conflito com outro que ainda não se constituiu.

Os argumentos a seguir expendidos prosseguem na mesma linha traçada em trabalhos anteriores, que publicamos. [2] Nos últimos anos, divisamos dois marcos essenciais para a solução do eventual conflito entre filiação biológica e filiação não biológica: a Constituição de 1988 e a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral da ONU em 20.11.1989, e com força de lei no Brasil mediante o Decreto Legislativo nº 28, de 24.9.1990, e o Decreto Executivo nº 99.710, de 21.11.1990. Da Constituição derivam o estado de filiação biológico e não-biológico e o direito da personalidade ä origem genética e da Convenção a solução do conflito pela aplicação do princípio do melhor interesse do filho, que significou verdadeiro giro de Copérnico, na medida em que a primazia do interesse dos pais foi transferida para o do filho.


2. Estados de filiação biológica e não biológica

Filiação é conceito relacional; é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais é considerada filha da outra (pai ou mãe). O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. O filho é titular do estado de filiação, da mesma forma que o pai e a mãe são titulares dos estados de paternidade e de maternidade, em relação a ele.

Na doutrina, o estado de filiação não tem merecido o tratamento devido, sem embargo de sua evidente essencialidade, salvo quando se cuida do estado de fato, na modalidade de posse de estado, ou do reconhecimento voluntário ou forçado. Todavia, são situações que têm por fito comprovar a existência de estado de filiação, quando este seja objeto de dúvida ou litígio.

O estado de filiação constitui-se ope legis ou em razão da posse de estado, por força da convivência familiar (a fortiori, social), consolidada na afetividade. Nesse sentido, a filiação jurídica é sempre de natureza cultural (não necessariamente natural), seja ela biológica ou não biológica.

No direito brasileiro atual, com fundamento no art. 227 da Constituição e nos arts. 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil, consideram-se estados de filiação ope legis:

a)filiação biológica em face de ambos os pais, havida de relação de casamento ou da união estável, ou em face do único pai ou mãe biológicos, na família monoparental;

b)filiação não-biológica em face de ambos pais, oriunda de adoção regular; ou em face do pai ou da mãe que adotou exclusivamente o filho; e

c)filiação não-biológica em face do pai que autorizou a inseminação artificial heteróloga.

Nessas hipóteses, a convivência familiar e a afetividade são presumidas, ainda que de fato não ocorram. Se qualquer forma, a convivência familiar e a afetividade constroem e consolidam diuturnamente os respectivos estados de filiação, passando a ditar-lhes os contornos. Em qualquer dessas hipóteses, o estado de filiação poderá ser substituído, em razão de adoção superveniente do filho por outros pais.

Os estados de filiação não-biológica referidos nas alíneas b e c são irreversíveis e invioláveis, não podendo ser contraditados por investigação de paternidade ou maternidade, com fundamento na origem biológica, que apenas poderá ser objeto de pretensão e ação com fins de tutela de direito da personalidade.


3. Estado de filiação derivado de inseminação artificial heteróloga

A inseminação artificial heteróloga, prevista no art. 1.597, V, do Código Civil, dá-se quando é utilizado sêmen de outro homem, normalmente dador anônimo, e não o do marido, para a fecundação do óvulo da mulher. A lei não exige que o marido seja estéril ou que, por qualquer razão física ou psíquica, não possa procriar. A única exigência é que tenha o marido previamente autorizado a utilização de sêmen estranho ao seu. A lei não exige que haja autorização escrita, apenas que seja "prévia", razão porque pode ser verbal e comprovada em juízo como tal.

Por linhas invertidas, a tutela legal desse tipo de concepção vem fortalecer a natureza fundamentalmente socioafetiva, e não biológica, da filiação e da paternidade. Se o marido autorizou a inseminação artificial heteróloga, não poderá negar a paternidade, em razão da origem genética, nem poderá ser admitida investigação de paternidade, com idêntico fundamento, máxime em se tratando de dadores anônimos.

Nos Estados Unidos, o Uniform Parantage Act, de 1973 e 1987, estabelece que "se, sob a supervisão de um médico habilitado e com o consentimento do marido, a mulher for inseminada artificialmente com sêmen doado por um outro homem, o marido é considerado legalmente como se fosse o pai natural da criança concebida. O consentimento deve ser escrito pelo marido e pela mulher". Toda a documentação relativa à inseminação será mantida pelo médico responsável, sujeita a inspeção judicial. O Uniform Status of Children of Assisted Conception Act, de 1988/1997, estabelece que o dador do sêmen ou do óvulo "não é parente da criança concebida mediante concepção assistida". [3] O art. 311-20 do Código Civil francês estabelece que o consentimento dado em procriação medicamente assistida interdita toda ação de contestação ao estado de filiação decorrente.

Para Maria Helena Diniz, se fosse admitida a impugnação da paternidade, haveria uma paternidade incerta, devido ao segredo profissional médico e ao anonimato do dador do sêmen inoculado na mulher. [4]

A Corte de Cassação italiana já decidiu, nessa linha de entendimento, que "o marido que tinha validamente concordado ou manifestado prévio consentimento à fecundação heteróloga não tem ação para contestar a paternidade da criança nascida em decorrência de tal fecundação". A decisão ressalta a natureza de "pai de direito", afirmando que o favor veritatis não é um valor absoluto, pois não pode comprometer posições dotadas de tutela primária [5].


4. Posse do estado de filiação

A posse do estado de filiação constitui-se quando alguém assume o papel de filho em face daquele ou daqueles que assumem os papéis ou lugares de pai ou mãe ou de pais [6], tendo ou não entre si vínculos biológicos. A posse de estado é a exteriorização da convivência familiar e da afetividade, segundo as características adiante expostas, devendo ser contínua.

Trata-se de conferir à aparência os efeitos de verossimilhança, que o direito considera satisfatória. No direito anterior, a posse do estado de filiação apenas era admitida, para fins de prova e suprimento do registro civil, se os pais convivessem em família constituída pelo casamento, ou seja, para a filiação considerada legítima. Em virtude do art. 226 da Constituição Federal, outras entidades familiares como a união estável e a família monoparental podem servir de fundamento para a posse do estado de filiação.

Ainda que mantenha a redação do Código Civil de 1916, o art. 1.605 do Código Civil de 2002, por seu enunciado genérico, abrange todas as hipóteses existenciais que se apresentam nos arranjos familiares de posse de estado de filiação, ante a falta ou defeito do termo de nascimento. Essa norma não se refere nem poderia se referir à origem biológica, bastando a aparência dos papéis sociais de pais e filho, "quando houver começo de prova por escrito" ou "quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos".

As presunções "veementes" são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato. O Código brasileiro não indica, sequer exemplificadamente, as espécies de presunção, ou a duração, o que nos parece a orientação melhor. Por seu turno, o Código Civil francês, art. 311-2, na atual redação, apresenta as seguintes espécies não taxativas de presunção de estado de filiação, não sendo necessária a reunião delas:

a)quando o indivíduo porta o nome de seus pais;

b)quando os pais o tratam como seu filho, e este àqueles como seus pais;

c)quando os pais provêem sua educação e seu sustento;

d)quando ele é assim reconhecido pela sociedade e pela família;

e)quando a autoridade pública o considere como tal.

Na experiência brasileira, configuram posse de estado de filiação a adoção de fato, em que muitas vezes se converte a guarda, os filhos de criação e a chamada "adoção à brasileira".

Essa reconfiguração da posse do estado de filiação, no sentido do "nascimento da verdade sociológica" (dizemos socioafetiva), de um conteúdo afetivo e social profundo, cuja ruptura prejudicaria o interesse do filho, foi bem destacada na doutrina estrangeira:

Ninguém estranharia que o conceito de posse de estado ganhasse um conteúdo particular e dirigido à finalidade de que se trata. Em vez de um índice de filiação biológica ela serviria para consolidar um vínculo meramente afectivo, sociológico, para exprimir a criação de uma família cuja estabilidade a lei resolveria proteger no interesso do filho e no interesse social. [7]


5. "Adoção à brasileira" e a verdade do registro civil

Questão delicada diz respeito ao que se convencionou chamar de "adoção à brasileira". Dá-se com declaração falsa e consciente de paternidade e maternidade de criança nascida de outra mulher, casada ou não, sem observância das exigências legais para adoção. O declarante ou declarantes são movidos por intuito generoso e elevado de integrar a criança à sua família, como se a tivessem gerado. Contrariamente à lei, a sociedade não repele tal conduta; exalça-a. Nessas hipóteses, ainda que de forma ilegal, atende-se ao mandamento contido no art. 227 da Constituição, de ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito "à convivência familiar", com "absoluta prioridade", devendo tal circunstância ser levado em conta pelo aplicador, ante o conflito entre valores normativos (de um lado o atendimento à regra matriz de prioridade da convivência familiar, de outro lado os procedimentos legais para que tal se dê, que não foram atendidos). Outrossim, a invalidade do registro assim obtido não pode ser considerada quando atingir o estado de filiação, por longos anos estabilizado na convivência familiar.

Alerta João Baptista Villela que se o registro diz que B é filho de A e A não é efetivamente o procriador genético de B, o registro não conteria necessariamente uma falsidade, pois ele é o espelho das relações sociais de parentesco. Na Constituição se colheriam o compromisso da República Federativa do Brasil com a solidariedade, a fraternidade, o bem-estar, a segurança, a liberdade, etc, estando essas opções axiológicas muito mais para uma idéia da paternidade fundada no amor e o no serviço do que para a sua submissão aos determinismos biológicos.

Verdade e falsidade no registro civil e na biologia têm parâmetros diferentes. Um registro é sempre verdadeiro se estiver conciliado com o fato jurídico que lhe deu origem. E é sempre falso na condição contrária. A chamada verdade biológica, se for o caso de invocá-la ou fazê-la prevalecer, tem um diverso teatro de operações: o das definições judiciais ou extrajudiciais. Para que chegue ao registro tem de converter-se em fato jurídico, o que, no tocante à natureza da filiação, supõe sempre um ato de vontade – pessoa, se for do declarante; política, se for da autoridade – e, portanto, um exercício de liberdade. Um cidadão que comparece espontaneamente a um cartório e registra, como seu filho, uma vida nova que veio ao mundo, não necessita qualquer comprovação genética para ter sua declaração admitida [8].


6. Afetividade como direito e dever jurídicos

A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, no mundo do ter liberal burguês, reencontrou-se no fundamento da afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que se constitui entre um pai ou uma mãe e seus filhos. A afetividade, cuidada inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou nas cogitações dos juristas, que buscam explicar as relações familiares contemporâneas.

O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar e não do sangue. A história do direito à filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado à consangüinidade legítima. Por isso, é a história da lenta emancipação dos filhos, da redução progressiva das desigualdades e da redução do quantum despótico, na medida da redução da patrimonialização dessas relações.

O desafio que se coloca aos juristas, principalmente aos que lidam com o direito de família, é a capacidade de ver as pessoas em toda sua dimensão ontológica, a ela subordinando as considerações de caráter biológico ou patrimonial. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade social e aos fundamentos constitucionais.

Como diz Eduardo de Oliveira Leite,

as indagações doutrinárias mais recentes têm insistido, de forma cada vez mais freqüente e firme, que a filiação não é somente fundada sobre os laços de sangue; o vínculo sangüíneo determina, para a grande maioria dos pais, um laço fundado sobre a vontade da aceitação dos filhos. Logo, a vontade individual é a seqüência ou o complemento necessário do vínculo biológico. [9]

Homenageando a filiação socioafetiva, em promissora linha de tendência da jurisprudência brasileira, assim decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná:

1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula nº 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva, decorrente da denominada ''adoção à brasileira'' (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular ''adoção à brasileira'', não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado [10].


7. Fundamentação constitucional e no Código Civil

Encontram-se na Constituição brasileira vários fundamentos do estado de filiação geral, que não se resume à filiação biológica:

a)Todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º);

b)A adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º);

c)A comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); não é relevante a origem ou existência de outro pai (genitor)

d)O direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e o do adolescente (art. 227, caput).

e)Impõe-se a todos os membros da família o dever de solidariedade, uns com os outros, dos pais para os filhos, dos filhos para os pais, e todos com relação aos idosos (arts. 229 e 230).

Em suma, a Constituição não oferece qualquer fundamento para a primazia da filiação biológica, pois amplo é seu alcance. A primazia não está na Constituição, mas na interpretação equivocada que tem feito fortuna, como se o paradigma da filiação não tivesse sido transformado. Até mesmo no direito anterior, a filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares.

O Código Civil reproduziu, em seu art. 1.596, a regra matriz do § 6º do art. 227 da Constituição, relativamente à igualdade entre filhos de qualquer natureza, superando o paradigma discriminatório da legitimidade, fundado na consangüinidade e na matrimonialidade. Outra norma geral superadora e inclusiva é o art. 1.593, que refere ao parentesco natural ou de "outra origem". [11] Uma das regras especiais mais incisivas, no rumo da superação da consangüinidade, foi o inciso V do art. 1.597, destinado à inseminação heteróloga, antes referida.


8. O critério do melhor interesse do filho para solução do conflito entre filiação biológica e não-biológica

No que concerne ao estado de filiação, deve-se ter presente que, além do mandamento constitucional de absoluta prioridade dos direitos da criança e do adolescente (art. 227), a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, da ONU, de 1989, passou a integrar o direito interno brasileiro desde 1990. O art. 3.1 da Convenção estabelece que todas as ações relativas aos menores devem considerar, primordialmente, "o interesse maior da criança", abrangente do que a lei brasileira (ECA) considera adolescente. Por força da convenção deve ser garantida uma ampla proteção ao menor, constituindo a conclusão de esforços, em escala mundial, no sentido de fortalecimento de sua situação jurídica, eliminando as diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos (art. 18) e atribuindo aos pais, conjuntamente, a tarefa de cuidar da educação e do desenvolvimento.

O princípio não é uma recomendação ética, mas diretriz determinante nas relações da criança e do adolescente com seus pais, com sua família, com a sociedade e com o Estado. A aplicação da lei deve sempre realizar o princípio, consagrado, segundo Luiz Edson Fachin como "critério significativo na decisão e na aplicação da lei", tutelando-se os filhos como seres prioritários [12]. O desafio é converter a população infanto-juvenil em sujeitos de direito, "deixar de ser tratada como objeto passivo, passando a ser, como os adultos, titular de direitos juridicamente protegidos". [13] O princípio está consagrado nos arts. 4° e 6° da Lei n. 8.069, de 1990 (ECA).

O princípio é um reflexo do caráter integral da doutrina dos direitos da criança e da estreita relação com a doutrina dos direitos humanos em geral. Assim, segundo a natureza dos princípios, não há supremacia de um sobre outro ou outros, devendo a eventual colisão resolver-se pelo balanceamento dos interesses, no caso concreto. Nesse sentido, diz Miguel Cillero Brruñol que sendo as crianças partes da humanidade, "e seus direitos não se exerçam separada ou contrariamente ao de outras pessoas, o princípio não está formulado em termos absolutos, mas que o interesse superior da criança é considerado como uma ‘consideração primordial’. O princípio é de prioridade e não de exclusão de outros direitos ou interesses". De outro ângulo, além de servir de regra de interpretação e de resolução de conflitos entre direitos, deve-se ressaltar que "nem o interesse dos pais, nem o do Estado pode se considerado o único interesse relevante para a satisfação dos direitos da criança" [14].

Valerio Pocar e Paola Ronfani [15] utilizam interessante figura de imagem para ilustrar a transformação do papel do filho na família: em lugar da construção piramidal e hierárquica, na qual o menor ocupava a escala mais baixa, tem-se a imagem de círculo, em cujo centro foi colocado o filho, e cuja circunferência é desenhada pelas recíprocas relações com seus genitores, que giram em torno daquele centro. Nos anos mais recentes, parece que uma outra configuração de família relacional está se delineando, em forma estelar, que tem ao centro o menor, sobre o qual convergem relações tanto de tipo biológico quanto de tipo social, com os seus dois genitores em conjunto ou separadamente, inclusive nas crises e separações conjugais.

O princípio inverte a ordem de prioridade: antes no conflito entre a filiação biológica e a não-biológica ou socioafetiva, resultante de posse de estado de filiação, a prática do direito tendia para a primeira, enxergando o interesse dos pais biológicos como determinantes, e raramente contemplando os do filho. De certa forma, condizia com a idéia de poder dos pais sobre os filhos e da hegemonia da consangüinidade-legitimidade. Menos que sujeito, o filho era objeto da disputa. O princípio impõe a predominância do interesse do filho, que norteará o julgador, o qual, ante o caso concreto, decidirá se a realização pessoal do menor estará assegurada entre os pais biológicos ou entre os pais não-biológicos. De toda forma, deve ser ponderada a convivência familiar, constitutiva da posse do estado de filiação, pois ela é prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227, da Constituição Federal).


9. Pater is est – redirecionando da legitimidade para o estado de filiação em geral

A mudança do direito de família, da legitimidade para o plano da afetividade, redireciona a função tradicional da presunção pater is est. Destarte, sua função deixa de ser a de presumir a legitimidade do filho, em razão da origem matrimonial, para a de presumir a paternidade em razão do estado de filiação, independentemente de sua origem ou de sua concepção. A presunção da concepção relaciona-se ao nascimento, devendo este prevalecer.

Essa é a orientação adotada em legislações que recentemente alteraram o direito de filiação, privilegiando o nascimento em detrimento da concepção, como a da Alemanha (1997), segundo a qual

se um homem for casado com a mãe no momento do nascimento da criança, então ele é pai da criança sem que deva haver outros requisitos. Deixaram de existir as presunções de coabitação e concepção. É decisiva somente a época de nascimento da criança. O homem casado com a mãe na época do nascimento é o pai mesmo que a criança tenha nascido durante a união conjugal, mas sido gerada antes do casamento. Ao contrário do § 1.591 al. 1 frase 2 BGB aF, ele é pai até mesmo se, conforme as circunstâncias, seja obviamente impossível que a mulher tenha concebido dele [16].

A contestação ou impugnação da paternidade são direitos personalíssimos, que radicam exclusivamente na iniciativa do marido da mãe. Ninguém, nem mesmo o filho ou a mãe, poderá impugnar a paternidade. O art. 1.601 do Código Civil, assim lido em conformidade com a Constituição, desloca a paternidade da origem biológica para o estado de filiação, de qualquer origem. Note-se que o artigo equivalente do Código Civil de 1916 referia-se à contestação da legitimidade dos filhos e não da paternidade, em si. Por sua vez, a legitimidade dos filhos fundava-se em dois fatores conjuntos, a saber, na família constituída pelo casamento (matrimonializada) e em terem-se originado biologicamente do marido da mãe.

A presunção pater is est reconfigura-se no estado de filiação, que decorre da construção progressiva da relação afetiva, na convivência familiar. Antes, presumia-se pai biológico o marido da mãe. Segundo Anne Lefebvre Teillard, citada por João Baptista Villela, o adágio pater is est atuou, por séculos, mantendo fortemente amarrado "o biológico ao institucional", além de estar ancorado no pressuposto da fidelidade da mulher. Hoje, presume-se pai o marido da mãe que age e se apresenta como pai, independentemente de ter sido ou não o procriador. Como ressalta Villela [17],

no processo de refinamento cultural do matrimônio constitui traço fundamental o encapsulamento da vida íntima na esfera interna da família. Assim, atribuir a paternidade ao marido da mulher não significa proclamar uma derivação biológica. (...) A família não tem deveres de exatidão biológica perante a sociedade, pelo que, se a mulher prevarica e pare um filho que não foi gerado pelo seu marido, isso, tendencialmente, é matéria da economia interna da família. Pode ser um grave problema para o casal. Como pode não ser problema.

O pai biológico não tem ação contra o pai não-biológico, marido da mãe, para impugnar sua paternidade. Apenas o marido pode impugnar a paternidade quando a constatação da origem genética diferente da sua provocar a ruptura da relação paternidade-filiação. Se, apesar desse fato, forem mais fortes a paternidade afetiva e o melhor interesse do filho, enquanto menor, nenhuma pessoa ou mesmo o Estado poderão impugná-la para fazer valer a paternidade biológica, sem quebra da ordem constitucional e do sistema do Código Civil.


10. Sobre a imprescritibilidade do exercício da contestação da paternidade e da impugnação do estado de filiação

O Código Civil de 1916 estabelecia prazos prescritíveis curtos para que o marido da mãe pudesse contestar a paternidade, sendo de dois meses a partir do parto, se estivesse presente, e de três meses, se esteve ausente. A finalidade da lei era afirmar a presunção pater is est, no sentido de tutelar a família legítima, pois apenas admitia essa exceção para impugná-la, desde que a pretensão se exercesse em prazo curto. Sustentou-se na doutrina e na jurisprudência que tais prazos eram decadenciais ou preclusivos, atingindo não apenas a pretensão mas o próprio direito, e não apenas prescritíveis. O Código Civil de 2002 adotou orientação totalmente oposta e problemática, optando pela imprescritibilidade.

O marido da mãe, e somente ele, poderá a qualquer tempo impugnar a paternidade derivada da presunção pater is est. Provavelmente, o que motivou o legislador foi a orientação adotada no direito brasileiro de serem imprescritíveis as pretensões relativas ao estado das pessoas. Todavia, ainda que imprescritível, a pretensão de impugnação não poderá ser exercida se fundada apenas na origem genética, em aberto conflito com o estado de filiação já constituído. Em outras palavras, para que possa ser impugnada a paternidade, independentemente do tempo de seu exercício, terá o marido da mãe que provar não ser o genitor, no sentido biológico (por exemplo, com resultado de exame de DNA) e, por esta razão, não ter sido constituído o estado de filiação, de natureza socioafetiva; e se foi o próprio declarante perante o registro de nascimento, comprovar que teria agido induzido em erro ou em razão de dolo ou coação.

A família, seja ela de que origem for, é protegida pelo Estado e por sua ordem jurídica (art. 226 da Constituição). Se a exclusividade da prova de inexistência de origem biológica pudesse ser considerada suficiente para o exercício da impugnação da paternidade, anos ou décadas depois de esta ser realizada e não questionada, na consolidação dos recíprocos laços de afetividade, com a inevitável implosão da família assim constituída, estar-se-ia negando a norma constitucional de proteção da família, para atender impulsos, alterações de sentimentos ou decisões arbitrárias do pai.

Pelos fundamentos jurídicos que informam o atual regime brasileiro da paternidade, o exercício imprescritível da impugnação pelo marido da mãe depende da demonstração, além da inexistência da origem biológica, de que nunca tenha sido constituído o estado de filiação.

O argumento, tantas vezes manejado, da possível derrogação do art 362 do Código Civil de 1916 (estabelecia prazo decadencial de quatro anos para o filho impugnar o reconhecimento da paternidade, quando atingisse a maioridade), pelo art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA [18], perdeu a consistência, pois o Código Civil de 2002 repetiu o mesmo conteúdo normativo anterior. [19] Em verdade, as duas normas são harmônicas, cuidando de matérias distintas. O art. 27 do ECA assegura o caráter de direito personalíssimo "ao reconhecimento do estado de filiação" dos filhos havidos fora do casamento, qualquer que seja a origem (art. 26), ou seja, daqueles que ainda não tenham sido reconhecidos por ambos ou por um dos pais. O art. 1.614 do Código Civil de 2002, ao contrário, disciplina a preservação do estado de filiação dos que já foram reconhecidos, conforme consta do registro. Portanto, o art. 27 do ECA nunca permitiu a impugnação do estado de filiação dos que já se encontravam reconhecidos, contra o qual só pode haver impugnação do próprio pai (art. 1.601) ou do filho, no prazo de quatro anos após a maioridade (art. 1.614).


11. Afinal qual é a verdade real da filiação?

A verdade biológica nem sempre é a verdade real da filiação. O direito deu um salto à frente do dado da natureza, construindo a filiação jurídica com outros elementos. A verdade real da filiação surge na dimensão cultural, social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente constituído. Como já vimos, tanto o estado de filiação ope legis quanto a posse de estado de filiação podem ter origem biológica ou não.

Para o registro do filho, o declarante não precisa fazer prova da origem biológica; nem seria obrigado a fazê-lo pois impediria a filiação de outra natureza. O registro produz uma presunção de filiação quase absoluta, pois apenas pode ser invalidado se se provar que houve erro ou falsidade (art. 1.604 do Código Civil). A declaração do nascimento do filho, feita pelo pai, é irrevogável. Ao pai cabe apenas o direito de contestar a paternidade, se provar, conjuntamente, que esta não se constituiu por não ter sido o genitor biológico e não ter havido estado de filiação estável.

Como diz Gerard Cornu, a verdade biológica não reina absoluta sobre o direito da filiação, porque esta incorpora, necessariamente, um conjunto de outros interesses e valores. Para ele, confundir verdade real da filiação com verdade biológica, é um entendimento "reducionista, cego, demagógico e decepcionante", engendrando "um direito biológico totalitário, além de um pseudo-direito subjetivo ilusório e nefasto". [20]

Esclarece João Baptista Villela que o registro não exprime um evento biológico, pois compete ao oficial recolher uma manifestação de vontade. Ele exprime um acontecimento jurídico.

A qualificação da paternidade ou a omissão dela dependerá, de um modo ou de outro, de um fato do direito: estar ou não casada a mãe, sentença que estabeleça ou desconstitua a paternidade, reconhecimento voluntário, etc. Ao registro não interessa a história natural das pessoas, senão apenas sua história jurídica. Mesmo que a história jurídica tenha sido condicionada pela história natural, o que revela o registro é aquela e não esta [21].

Na Jornada de Direito Civil, levada a efeito no Superior Tribunal de Justiça, nos dias 11 a 13 de junho de 2002, aprovou-se proposição no sentido de que "no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea e também a socioafetiva".

Não pode o autor da declaração falsa vindicar a invalidade do registro do nascimento, conscientemente assumida, porque violaria o princípio assentado em nosso sistema jurídico de venire contra factum proprium nulli conceditur. Sem razão o Tribunal de Justiça de São Paulo (AC 130.334-4 – Marília – 1ª CDPriv – Rel. Des. Guimarães e Souza – 14.12.1999), ao decidir que a existência de vício do ato jurídico pode ser alegada a qualquer tempo até mesmo pelo autor da falsidade. A contestação, nesse caso, terá de estar fundada em hipótese de invalidade dos atos jurídicos, que o direito acolhe, tais como erro, dolo, coação. Na dúvida deve prevalecer o estado de filiação socioafetiva, consolidada na convivência familiar, considerada prioridade absoluta em favor da criança pelo art. 227 da Constituição Federal.

No contexto atual, em conformidade com a Constituição Federal, o art. 1.604 do Código Civil reforça a primazia do estado de filiação sobre a origem genética. Nesse sentido, a norma deve ser interpretada em consonância com os artigos 1.596, 1.597, 1.601 e 1.614, todos do Código Civil. É quase absoluta a presunção da filiação derivada do registro do nascimento, pois apenas é afastada nas hipóteses de erro ou falsidade, não sendo admissível qualquer outro fundamento. O registro do nascimento é a prova capital do nascimento e da filiação materna e paterna. No caso do pai, reforça a presunção pater is est. Não é totalmente absoluta porque pode ser retificada, por decisão judicial, ou invalidada em virtude de prova de erro ou falsidade. A norma é cogente ao proclamar que ninguém poderá vindicar estado contrário ao que resulta do registro do nascimento. Refere ao estado de filiação e aos decorrentes estados de paternidade e maternidade. A vedação alcança qualquer pessoa, incluindo o registrado e as pessoas que constam como seus pais. No Código Civil de 1916 a norma equivalente (art. 348) tinha por fito a proteção da família legítima, que não deveria ser perturbada com dúvidas sobre a paternidade atribuída ao marido da mãe. A norma atual, no contexto legal inaugurado pela Constituição Federal, contempla a proteção do estado de filiação e paternidade, retratada no registro.


12. Direito à origem genética como direito da personalidade, sem vínculo com o estado de filiação

O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram.

Para garantir a tutela do direito da personalidade não há necessidade de investigar a paternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por dador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga. São exemplos como esses que demonstram o equivoco em que laboram decisões que confundem investigação da paternidade com direito à origem genética.

Em contrapartida, toda pessoa humana tem direito inalienável ao estado de filiação, quando não o tenha. Apenas nessa hipótese, a origem biológica desempenha papel relevante no campo do direito de família, como fundamento do reconhecimento da paternidade ou da maternidade, cujos laços não se tenham constituído de outro modo (adoção, inseminação artificial heteróloga ou posse de estado). É inadmissível que sirva de base para vindicar novo estado de filiação, contrariando o já existente.

Como já tivemos oportunidade de afirmar alhures [22], a evolução do direito conduz à distinção, que já se impõe, entre pai e genitor ou procriador. Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Ao ser humano, concebido fora da comunhão familiar dos pais socioafetivos, e que já desfruta do estado de filiação, deve ser assegurado o conhecimento de sua origem genética, ou da própria ascendência, como direito geral da personalidade, como decidiu o Tribunal Constitucional alemão em 1997, mas sem relação de parentesco ou efeitos de direito de família tout court [23]. Nesse sentido, dispõe a lei francesa nº 2002-93, de 22 de janeiro de 2002, sobre o acesso às origens das pessoas adotadas e dos "pupilos do Estado" (filhos de pais desconhecidos ou que perderam o poder familiar, enquanto aguardam inserção em família substituta). A lei francesa tem por fito a necessidade das informações sobre a sanidade, identidade e as condições genéticas básicas, no interesse dos menores, para que possam utilizá-los, principalmente quando adquirirem a maioridade, ou de seus descendentes, para fins de saúde pública e dos próprios, sem qualquer finalidade de parentesco legal. O Direito espanhol, ao admitir excepcionalmente a revelação da identidade do doador do material fecundante, expressamente exclui qualquer tipo de direito alimentar ou sucessório entre o indivíduo concebido e o genitor biológico.

Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, personalíssimo, não dependendo de ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação da paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente da origem (biológica ou não). O avanço da biotecnologia permite, por exemplo, a inseminação artificial heteróloga, autorizada pelo marido (art. 1.597, V, do Código Civil), o que reforça a tese de não depender a filiação da relação genética do filho e do pai. Nesse caso, o filho pode vindicar os dados genéticos de dador anônimo de sêmen que constem dos arquivos da instituição que o armazenou, para fins de direito da personalidade, mas não poderá fazê-lo com escopo de atribuição de paternidade. Conseqüentemente, é inadequado o uso da ação de investigação de paternidade, para tal fim.

Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não determina a paternidade jurídica. O biodireito depara-se com as conseqüências da dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética, apontam para atribuir a paternidade aos que fazem dação anônima de sêmen aos chamados bancos de sêmen de instituições especializadas ou hospitalares. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.

O Supremo Tribunal Federal firmou orientação polêmica, fundada sobretudo no princípio da dignidade da pessoa humana, garantindo ao réu o direito de recusa ao exame de DNA, mas negando ao outro o direito de conhecer sua origem genética. A ementa do acórdão, no HC-71.373-RS (DJ de 22.11.96), sendo relator o Ministro Marco Aurélio, expressa bem esse entendimento:

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE – EXAME DE DNA – CONDUÇÃO DO RÉU "DEBAIXO DE VARA". Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, "debaixo de vara", para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos.

Já o Superior Tribunal de Justiça orientou-se em sentido contrário. A Quarta Turma do Tribunal, por unanimidade, sendo relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, no Recurso Especial n.º 140.665-MG (DJ de 03.11.98), decidiu que "na fase atual da evolução do Direto de Família, não se justifica inacolher a produção de prova genética pelo DNA, que a Ciência tem proclamado idônea e eficaz", em caso envolvendo reconhecimento judicial de paternidade.

A divergência jurisprudencial reflete a confusão que se faz entre direito da personalidade, inerente e inato à pessoa, em seu âmbito individual e personalíssimo, e o reconhecimento ou contestação do estado de filiação, que pode ou não ter origem biológica. O STF fundamentou-se em garantias constitucionais do indivíduo (princípios e direitos da personalidade), para imunizá-lo do exame de DNA, determinado por ordem judicial. Porém, seria lesivo à dignidade da pessoa humana e invasivo da intimidade, submeter alguém ao exame, extraindo-lhe uma gota de sangue, um cabelo ou um fragmento de unha? A orientação do STF é correta quanto ao impedimento que provoca da utilização equivocada da origem genética para negar o estado de filiação já constituído. Todavia, seu amplo alcance pode comprometer o conhecimento da origem genética com intuito exclusivo de tutela do direito da personalidade do interessado, fundado no mesmo princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que não produza efeitos de negar o estado de filiação de origem não biológica comprovadamente constituído na convivência familiar duradoura. Se houver colisão de direitos, com base no mesmo princípio constitucional, os critérios hermenêuticos do balanceamento ou ponderação dos interesses não recomendam que um seja previamente sacrificado em benefício do outro. Em tese, negar o direito ao conhecimento da origem genética é tão lesivo ao princípio da dignidade da pessoa humana quanto a submissão compulsória a exame. Apenas o caso concreto indicará quando um deverá prevalecer sobre o outro.


13. Conclusão

O direito à filiação não é somente um direito da verdade. É, também, em parte, um direito da vida, do interesse da criança, da paz das famílias, das afeições, dos sentimentos morais, da ordem estabelecida, do tempo que passa (...) [24]

No estágio em que se encontram as relações familiares no Brasil, ante a evolução do direito, do conhecimento científico e cultural e dos valores sociais, não se pode confundir estado de filiação e origem biológica. Esta não mais determina aquele, pois desapareceram os pressupostos que a fundamentavam, a saber, a exclusividade da família matrimonializada, a legitimidade da filiação, o interesse prevalecente dos pais, a paz doméstica e as repercussões patrimoniais.

O estado de filiação é gênero, do qual são espécies a filiação biológica e a filiação não biológica. Ainda que ele derive, na grande maioria dos casos, do fato biológico, por força da natureza humana, outros fatos o determinam, a saber, a adoção, a posse do estado de filiação e a inseminação artificial heteróloga. Assim, para abranger todo o universo de situações existenciais reconhecidas pelo direito, o estado de filiação tem necessariamente natureza cultural (ou socioafetiva).

A origem biológica presume o estado de filiação, ainda não constituído, independentemente de comprovação de convivência familiar. Neste sentido, a investigação da origem biológica exerce papel fundamental para atribuição da paternidade ou maternidade e, a fortiori, do estado de filiação, quando ainda não constituído. Todavia, na hipótese de estado de filiação não biológica já constituído na convivência familiar duradoura, comprovado no caso concreto, a origem biológica não prevalecerá. Em outras palavras, a origem biológica não se poderá contrapor ao estado de filiação já constituído por outras causas e consolidado na convivência familiar (Constituição, art. 227).

O conflito entre pais biológicos e pais não biológicos do filho menor, não mais se resolve pela primazia dos primeiros ou dos segundos. A solução do conflito mudou o foco dos interesses, dos pais para os filhos. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989, com força de lei ordinária no Brasil, desde 1990, estabelece que todas as ações relativas às crianças devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança, em face dos interesses dos pais. Essa norma, inteiramente conforme com a Constituição, foi absorvida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Civil de 2002.

Questão relevante diz respeito ao estado de filiação constituído a partir de fatos ilícitos (por exemplo, seqüestro de criança, falsidade documental, troca consciente de recém-nascidos). Também nessas situações, não haverá automático predomínio da origem biológica, quando o estado de filiação perdurar no tempo. A solução adequada considerará o caso concreto, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança que, apesar da repulsa ao fato originário, poderá não coincidir com os dos pais biológicos.

Por fim, o direito ao conhecimento da origem genética não significa necessariamente direito à filiação. Sua natureza é de direito da personalidade, de que é titular cada ser humano. A origem genética apenas poderá interferir nas relações de família como meio de prova para reconhecer judicialmente a paternidade ou maternidade, ou para contestá-la, se não houver estado de filiação constituído, nunca para negá-lo.


Notas

01. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, tomo 7, p. 6.

02. A repersonalização das relações de família. In: BITTAR: Carlos Alberto (Org.). O direito de família na Constituição de 1988. São Paulo, Ed. Saraiva, 1989, p. 53-82; O Exame de DNA e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, ano I, nº 1, p. 67-78, abr./jun. 1999; Princípio jurídico da afetividade na filiação. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família: A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: OAB-MG/IBDFAM, 2000, p. 245-54; Código Civil Comentado:Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (Org.). Código Civil Comentado., São Paulo: Atlas, 2003, vol. XVI.

03. Cf. transcrição de WADLINGTON, Walter; O’BRIEN. Family law statutes, international conventions and uniform laws. New York: Foundation Press, 2000, p.135 e 148.

04. Cf. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 5, p. 380.

05. Cf. POCAR, Valerio; RONFANI, Paola. La famiglia e il diritto. Roma: Laterza, 2001, p. 206-7.

06. Sobre o conceito de lugar, como importante contribuição da psicanálise, cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Família, Direitos Humanos, Psicanálise e inclusão social. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, n. 16, p. 5-11, jan./mar. 2003, p. 8): "A partir de LACAN e LÉVI-STRAUSS, podemos dizer que família é uma estruturação psíquica em que cada membro ocupa um lugar, uma função. Lugar de pai, lugar da mãe, lugar dos filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente. Tanto é assim, uma questão de lugar, que um indivíduo pode ocupar o lugar de pai e mãe, sem que seja o pai ou a mãe biológicos."

07. Cf. OLIVEIRA, Guilherme de. Critério Jurídico da Paternidade. Coimbra: Almedina, 2003, p.445.

08. O modelo constitucional da filiação: verdade e superstições. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, nº 2, jul./set. 1999, p. 138-9.

09. Cf. LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 203.

10. AC 108.417-9 - 2ª C.Civ. - Ac. 20.110 - Rel. Des. Accácio Cambi - unân. - J. 12.12.2001.

11. Para FACHIN, Luiz Edson, "o teor desse novo dispositivo consagra situações jurídicas conhecidas e também abre espaço para novas formulações já em construção, especialmente a socioafetiva cabível em ‘outra origem’" (Comentários ao Novo Código Civil: Do direito de família. Do direito pessoal. Das relações de parentesco. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Comentários ao Novo Código Civil. Rio: Forense, 2003, Vol. XVIII. p.17).

12. FACHIN, Luiz Edson, Da paternidade: relação biológica e afetiva, Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p.125.

13. PEREIRA, Tânia da Silva. O princípio do "melhor interesse da criança": da teoria à prática. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, n. 6, p. 31-49, jul/set. 2000, p.36.

14. BRUÑOL, Miguel Cillero, Infância, autonomía y derechos: una cuestión de principios. Infancia: Boletin del Instituto Interamericano del Niño – OEA, n. 234, p. 1-13, oct. 1997, p.8.

15. POCAR; RONFANI, 2001, op.cit., p. 207.

16. Cf. SCHLÜTER, Wilfried. Código Civil Alemão: Direito de Família.Trad. Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 343.

17. VILLELA, João Baptista. O modelo constitucional da filiação: verdade e superstições. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, nº 2, p. 121-142, jul./set. 1999, p. 128.

18. Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça.

19. No STJ, as 3ª e 4ª Turmas, após divergências havidas entre elas, convergiram para o entendimento de somente incidir o prazo decadencial previsto no CC-1916, se, quando da vigência do art. 27 do ECA, o filho já não havia decaído de seu direito (4 anos posteriores à maioridade) à impugnação. Todavia, a Seção de Direito Privado do STJ mudou essa orientação decidindo que o "direito do filho de obter a declaração de sua real filiação é insuscetível de decadência", inclusive para as situações anteriores ao advento do art.27/ECA, e por força deste e da Constituição (neste caso, sem dizer qual a norma). Como se vê, confunde "real filiação" com origem biológica. Cf. Resp 208.788/SP, DJU 22.04.2003, p. 232.

20. CORNU, Gerard. Droit Civil: La Famille. 8e. édition. Paris, Montchrestien, 2003, p. 324-6.

21. VILLELA, 1999, op. cit., p. 140.

22. LÔBO, O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana, 1999, p. 72.

23. Cf. SCHLÜTER, 2002, op. cit., p. 342.

24. CORNU, 2003, op. cit., p. 325.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4752. Acesso em: 28 mar. 2024.