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A crise da democracia representativa e a necessidade do fortalecimento dos instrumentos de participação popular

A crise da democracia representativa e a necessidade do fortalecimento dos instrumentos de participação popular

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A democracia participativa, em que o povo interfere e contribui com os rumos dos governos, se constitui como alternativa possível à superação da crise do modelo representativo.

A construção do Estado Brasileiro foi iniciada com a Independência ocorrida em 1822 e institucionalizada em 1824 através da primeira Constituição Brasileira, outorgada por Dom Pedro I. O período monárquico durou até 1889 e, após a instalação da República, foi promulgada em 24 de fevereiro de 1891 a primeira Constituição da República. Com efeito, o Estado Federal Brasileiro criado pela Constituição de 1891 foi mantido nas demais Constituições, mesmo durante as experiências antidemocráticas dos regimes ditatoriais que amesquinharam a autonomia dos Estados-Membros.

No final da década de oitenta, o ciclo de transição da Ditadura Militar para o Estado Democrático de Direito concluía-se com a promulgação da Constituição Federal de 1988, influenciada pelo direito alemão e com fincas no constitucionalismo do Estado Social que assinala o primado da Sociedade sobre o Estado e o indivíduo – em oposição ao Estado Liberal, antigoverno e antiestado; de valores individualistas no Direito e absolutistas no Poder.[1]

O novo Estado Brasileiro instituído pela Constituição Federal de 1988 é o que a Ciência Política define como Estado Democrático de Direito, assim entendido como a organização politica em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos em eleições livres e periódicas, por meio do sufrágio universal, direto e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, porém, mais do que isso, considera-se democrático “aquele Estado de Direito que se emprenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e, sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais”[2].

Dalmo de Abreu Dallari[3] explica que, para a existência de um Estado Democrático de Direito onde a democracia não é um ideal, mas a expressão concreta de uma ordem social justa, se faz necessário a presença de alguns pressupostos fundamentais, a saber: uma organização flexível, pois não se pode exigir uma fórmula válida à todos os tempos e lugares;  a assecução permanente da vontade popular e; a igualdade de possibilidades, com liberdade, que significa a igualdade sendo atingida no campo da realidade e não apenas no formalismo da lei.

Também, não se pode conceber um Estado de Direito, que se apresente como Democrático, sem que existam mecanismos de respeito às liberdades e aos valores individuais, através da proteção dos direitos da minoria, pois, do contrário, o Estado Democrático se transmudaria em uma ditadura da maioria.

A Constituição Federal de 1988 se fundou tendo como objetivos “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”  alicerçado nas premissas da “harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias” e estabeleceu como fundamentos do Estado Brasileiro a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político; e ainda, buscou institucionalizar as formas de exercício da democracia direta e de participação popular.

As modalidades explícitas de exercício da democracia direita estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 14, incisos I, II e II; são o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.

Além disso, a participação popular nos governos ocorre por meio de diversos mecanismos Constitucionais, dos quais podemos destacar a) a legitimidade do cidadão para a propositura de ação popular; b) a cooperação das associações representativas no planejamento municipal; c) as formas de participação do usuário na administração pública, mediante reclamações relativas à prestação dos serviços públicos, acesso aos registros administrativos e informações sobre atos de governo e a representação contra o exercício negligente e abusivo de cargo emprego ou função na administração pública; d) a legitimidade do cidadão para formular denúncias de irregularidades e ilegalidades perante o Tribunal de Contas; e) a participação nos Conselhos de fiscalização das ações e serviços públicos; f) a participação na gestão de Fundos; g) a participação no planejamento e execução da política agrícola; i) a iniciativa de ações da sociedade na seguridade social; j) a participação na formulação de políticas e no controle das ações governamentais na área da assistência social; k) a gestão democrática do ensino público; e; l) a participação descentralizada, em regime de colaboração, no Sistema Nacional de Cultura.

A democracia semidireta é formada pela conjugação dos modelos de democracia direta e de democracia representativa, com o predomínio desta. Na democracia representativa “tudo se passa como se o povo realmente governasse” havendo, portanto, uma presunção ficta de que “a vontade representativa é a mesma vontade popular, ou seja, aquilo que os representantes querem vem a ser legitimamente aquilo que o povo haveria de querer, se pudesse governar pessoalmente, materialmente, com as próprias mãos”[4]. Quanto à democracia direta – forma através da qual o cidadão pode exercer a soberania popular dentro dos governos – os instrumentos existentes para o seu exercício no sistema semidireto brasileiro são, como dito alhures, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.

Ocorre que o modelo de democracia representativa contido no sistema semidireto se tornou incapaz de fornecer respostas a todos os anseios e pretensões de uma sociedade cada vez mais complexa e heterogênea, conduzida por um corpo político – tanto no Poder Legislativo, quanto no Poder Executivo – com baixos níveis de legitimidade, resultado de um sistema eleitoral distorcido e de modelos de burocracia estatal que possuem seus fins em si mesmos.

A incapacidade do atual modelo de democracia representativa em atender aos anseios sociais gerou o que se denomina crise política de representação, que conduz o modelo de democracia representativa à três caminhos: a) tentativas de esvaziá-la como o foro adequado do jogo político; b) apatia política do cidadão e a percepção da desnecessidade do processo eleitoral e; c) construção de novos caminhos democráticos que façam frente à perda de sentido da democracia representativa.[5]

Com propriedade, Paulo Bonavides[6] adverte para o fato de que é necessário repolitizar a democracia [=restaurar], desmembrá-la da legalidade a qual na sua essência já não existe “porque o povo perdeu a crença e a confiança na república das medidas provisórias e na lei dos corpos representativos, cada vez mais em desarmonia com a sua vontade, suas aspirações e seus interesses existenciais” e fundar uma nova legitimidade, através da restauração do conceito de democracia, que só é possível “se inserirmos a democracia participativa na moldura do regime, da maneira concreta mais ampla, porquanto ao direito constitucional positivo ela já pertence”.

Daí que podemos concluir que as fórmulas da chamada democracia participativa, onde o povo interfere e contribui com os rumos dos governos, se constituem como alternativas possíveis de “rearticulação de espaços públicos que constituam uma fonte de autoridade cuja legitimidade ultrapasse até mesmo os esquemas procedimentais característicos da democracia representativa”[7], de modo que as estruturas de governo possam se refundar, através da legitimação participativa da sociedade.


NOTAS

[1] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 19ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

[3] Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 2ª ed., atualizada. São Paulo: Saraiva, 1998.

[4] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 27ª ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012.

[5] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolsan. Ciência Política e Teoria do Estado. 8ª ed. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2014.

[6] BONAVIDES, Paulo. A Democracia Participativa como Alternativa Constitucional ao Presidencialismo e ao Parlamentarismo. Revista Esmafe: Escola de Magistratura Federal da 5ª Região, nº 3, mar. 2002.

[7] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolsan. Ciência Política e Teoria do Estado. 8ª ed. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2014.


Autor

  • Leandro Roberto de Paula Reis

    Advogado. Foi Assessor Jurídico e Procurador-Geral do Município de Pouso Alegre, MG (2009-2016). Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MINAS). Especialista em Gestão Pública Municipal pela Faculdade de Políticas Públicas da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Autor dos livros "Eleições 2016 - O que mudou com as minirreformas eleitorais de 2013 e 2015" e "Eleições 2018 - O que mudou com as minirreformas eleitorais de 2013, 2015 e 2017". Coordenador da Plataforma de cursos à distância Curso Eleitoral (www.cursoeleitoral.com.br) onde ministra o curso Eleições 2020, O que mudou com as últimas reformas eleitorais e o curso de Prática Processual Eleitoral. Recentemente indicado pelo TJMG para compor a Lista Tríplice de Juiz Substituto do TRE-MG.

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REIS, Leandro Roberto de Paula. A crise da democracia representativa e a necessidade do fortalecimento dos instrumentos de participação popular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4652, 27 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47605. Acesso em: 29 mar. 2024.