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A paz pelo Direito sob a ótica do Direito Internacional Público

A paz pelo Direito sob a ótica do Direito Internacional Público

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Interpretação da obra de Hans Kelsen a partir de sua proposta para a estrutura da ordem jurídica internacional no pós Segunda Guerra Mundial. Papel atribuído pelo autor ao Direito Internacional Público. Compreensão da proposta dentro dos modelos de DIP.

Hans Kelsen (1881-1973) escreveu a obra “A Paz Pelo Direito” no ano de 1944, época em que a Segunda Guerra Mundial estava em seus momentos finais e que o mundo estava fortemente abalado pelas desgraças causadas por ela, além de sofrer a carência de um diálogo entre os Estados que não resultasse em disputas de soberania, mortes e destruição.    
             O título “A Paz Pelo Direito” deixa claro que o objetivo do autor ao escrever a obra é o alcance da paz internacional através do direito. Kelsen propõe a estrutura da norma jurídica internacional no pós Segunda Guerra Mundial. A ideia principal do autor quanto à nova ordem jurídica a ser criada é o alcance da almejada paz, fundamentada em uma organização que regule as relações entre os Estados, sendo possível através da existência de um direito internacional.
             Necessária para este processo, Kelsen sugere a criação de um Estado mundial (KELSEN, 2011, p.4). Em contrapartida, aparece como problema a essa proposta o fato de que ao se tornar membro de um Estado mundial, os Estados teriam que abrir mão completamente da sua independência (KELSEN, 2011, p.9), ocorreria limitação do direito de autodeterminação (KELSEN, 2011, p.10), além das diferenças culturais que, a princípio, são bem difíceis de serem equalizadas (KELSEN, 2011, p.11). Ademais, essa união dos Estados foge do princípio jusnaturalista da formação do Estado Nacional, tendo em vista que este se formou através do domínio forçado e contradiz com a finalidade da paz mundial no plano internacional (KELSEN, 2011, p.8). Portanto, tal organização deve ser limitada a determinado grau de centralização. Dentre esses contratempos, o autor ainda encontra dificuldade na questão do judiciário internacional, onde não existe uma autoridade reconhecida geral e competente para resolver os conflitos internacionais, ou seja, responder com imparcialidade (KELSEN, 2011, p.12).
             Diante desse cenário, Kelsen chega a sua proposta principal baseada na união internacional de Estados através de tratados internacionais (KELSEN, 2011, p.12) com o maior número de Estados possível, abrangendo tanto os vencidos quanto os derrotados, estes após desarmados e controlados militarmente e politicamente pelas Nações Unidas. Assim, com a finalidade de criar um tribunal internacional composto de jurisdição compulsória e, ainda, obrigando seus membros a renunciar à guerra e às retaliações como meio de solução de conflitos.
             Em caso de conflitos entre os Estados, estes podem ser levados ao tribunal para ser apresentado a uma comissão de conciliação que tem como objetivo evitar guerras utilizando o argumento que não existem questões que caibam apenas a uma jurisdição interna de um Estado. Essa questão da conciliação também só poderá funcionar quando os Estados signatários do organismo internacional, mesmo tendo todos uma certa “igualdade soberana”, que é consequência da igualdade dos Estados, estiverem “submetidos” às normas da organização internacional, a qual cria responsabilidade aos Estados através de um conjunto de normas e também de sanções (KELSEN, 2011, p.30-31-32).
             Sendo assim, o estabelecimento de um órgão internacional judiciário é o caminho mais adequado devido ao sentimento nacionalista e o princípio da soberania, além da dificuldade de se instituir um executivo e um legislativo (KELSEN, 2011, p.18). A utilização deste órgão internacional judiciário traz vantagens como a utilização do voto da maioria (procedimento dos tribunais internacionais), o que facilita e agiliza as decisões judiciais, e ainda, a história do direito local, que teve seu processo de centralização caracterizado pela criação de uma estrutura judiciária precedente às estruturas legislativas e executivas do Estado e a utilização de costumes para a tomada de decisões (KELSEN, 2011, p.19).
             Com relação à abordagem do conflito econômico, Kelsen foca justamente no problema entre capitalismo e socialismo, que muitos veem como o motivo para o início de tantas guerras. Considera que a abordagem jurídica é mais importante que a econômica. Em seu ponto de vista, a economia não é a principal causa da guerra. Inclusive, a guerra, ou sua iminência, ou até mesmo o receio de que ela ocorra (medo da guerra) são os principais causadores de problemas econômicos. Mesmo considerando que os interesses econômicos podem influenciar os Estados a buscar soluções de conflitos por meio de guerras, é necessário atentar-se ao fato de que essas influências não são fortes o suficiente para serem consideradas causadoras delas. Esses e outros conflitos poderiam ser reduzidos caso houvesse uma política de direito internacional aceita e respeitada pelos Estados signatários, que dificultasse a propagação de guerras e promovesse meios alternativos de resolução de conflitos. (KELSEN, 2011, p.15-16)
             Nessa linha de pensamento, com relação aos conflitos políticos e jurídicos, Kelsen discorda com os Tratados de Locarno de 1925 (KELSEN, 2011, p.26), que dizem que a diferença das disputas são materiais, sendo conflitos jurídicos aqueles que apenas se atrelam aos direitos jurídicos. Com isso, a diferença proposta por ele entre os conflitos políticos e jurídicos é de caráter subjetivo, pois, enquanto nos jurídicos todas as partes envolvidas baseiam-se no direito internacional para as suas respectivas reinvindicações e rejeições, os conflitos políticos surgem quando uma das partes não fundamenta suas ações no direito internacional, mas em algum princípio ou até mesmo em princípio nenhum (KELSEN, 2011, p.26).
             Segundo o autor, a total distinção entre os conflitos políticos e jurídicos não é eficiente, de maneira que faria com que os Estados em guerra admitissem apenas o conflito político e, assim, evitariam sempre que possível o julgamento pelo Tribunal Internacional (KELSEN, 2011, p.28). Na verdade, para Kelsen, não há uma nítida distinção entre os tipos de conflitos, porque todos estão vinculados e a guerra nunca eclodirá por um único motivo, seja econômico, político ou jurídico, mas sim pela união desses diversos fatores (KELSEN, 2011, p.22). O que acontece é que sempre um desses conflitos terá certo destaque sobre os outros, os três tipos sempre estarão envolvidos uns com os outros, como já dito. Kelsen, por ser extremamente positivista, crê que todas as disputas ferem os direitos das pessoas e que podem ser resolvidas com o Direito no Tribunal Internacional, pois esse nunca falha (KELSEN, 2011, p.27), sendo este o objetivo principal do Direito Internacional Público. Portanto, o conflito jurídico predomina sobre os demais na motivação da guerra.
             Ainda com relação à garantia da paz internacional e a sua não violação, o autor discorre a respeito da responsabilidade de guerras, deixando claro que qualquer discussão no âmbito internacional passará pela questão da responsabilidade, que busca maneiras de reparar o dano causado, na tentativa de restaurar a situação anterior à violação do direito. Tal responsabilidade pode ser entendida como delituosa ou contratual, a primeira resulta de um ato delituoso, a outra de infração contra obrigação anteriormente contraída. A guerra, por sua vez, não deveria ser entendida como instrumento de responsabilização, mas ainda é permitida como reação a uma violação sofrida (KELSEN, 2011, p.62).
             A proposta apresentada por Kelsen em “A Paz Pelo Direito” tem íntima ligação com alguns dos modelos de Direito Internacional Público. Pode-se dizer que o modelo de Estado – Coexistência (clássico/moderno) pode ser compreendido dentro da proposta do autor já que diz respeito ao fato de o Direito Internacional Público ser moldado para e pelos Estados, o chamado bilateralismo, formado a partir de sociedades independentes e soberanas, que não se submeteriam a um poder que seria superior. Porém essa submissão a um poder estranho às suas soberanias pode ocorrer se vier a partir do consentimento entre os Estados. Sendo, dessa maneira, produto de relações diplomáticas desenvolvidas de forma interestatal, fundamentado na vontade dos Estados e garantindo a soberania e igualdade entre todos. Além disso, esse modelo tem normas negativas que regulam o que os Estados não podem fazer um contra os outros que, uma vez signatários dessa diplomacia, os pactos nesta desenvolvidos passam a ser obrigatórios, obedecendo ao princípio do Pacta Sunt Servanda, reforçando sua relação com a proposta de Kelsen, que busca a paz internacional regulando as relações entre os Estados.
             Outro modelo a ser compreendido dentro da proposta do autor é o Estado - Cooperação (organizações internacionais/moderno e pós-moderno), que tem uma escala correspondente ao Estado nacional somado ao intergovernamental. Possui normas negativas e positivas e, ainda, possui relações diplomáticas e técnica, de preocupações transfronteiriças, garantindo o interesse comum, o que mais uma vez coincide com a proposta da busca de Kelsen pela organização dos Estados no plano internacional e como consequência, a paz mundial.
             O modelo Ser Humano – DIDH (Direito Internacional dos Direitos Humanos), âmbito internacional e interno, assim como as ideias de Kelsen, surge como resposta às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Tem preocupação com a tutela de proteção dos direitos humanos, não apenas no âmbito nacional, como também no âmbito internacional. Segundo tal modelo, o Estado deve assegurar essa proteção, caso contrário o Direito Internacional Público o fará, com consentimento ou não do Estado.
             Kelsen foi um jurista que procurou excluir do campo do Direito qualquer matéria que não fosse propriamente jurídica, como a Sociologia e a Filosofia, pois, segundo ele, normas são o bastante para resolver quaisquer conflitos. Essa sua visão de extremo positivismo desenvolvida em sua mais famosa obra (Teoria Pura do Direito, 1934) é evidenciada no texto trabalhado, já que a solução encontrada por ele para por fim às guerras é baseada na criação de normas jurídicas internacionais e institutos que atuem na mesma esfera que estas, como o Tribunal Internacional, que as impõe e, caso algum Estado venha a descumpri-las, também têm o papel de aplicar punição.   


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