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O princípio da coculpabilidade

a responsabilidade conjunta do Estado nos delitos praticados pelos cidadãos marginalizados

O princípio da coculpabilidade: a responsabilidade conjunta do Estado nos delitos praticados pelos cidadãos marginalizados

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Levando em consideração que o meio social influencia na autodeterminação do indivíduo e estando o infrator inserido em um estado de miséria, este não pode ser julgado com o mesmo grau de reprovabilidade daqueles que tiveram todas as oportunidades e direitos preservados.

RESUMO: Partindo dos fundamentos de culpabilidade e dos deveres do Estado no campo social, o presente artigo busca conceituar o princípio da coculpabilidade com o intuito de se estudar o nexo causal entre a violação de um dever de agir do Estado - resultado de sua omissão em promover a todos a igualdade social por meio da garantia dos direitos fundamentais - e o delito praticado por seus cidadãos. Levando em consideração que o meio social influencia na autodeterminação do indivíduo e estando o infrator inserido em um estado de miséria, este não pode ser julgado com o mesmo grau de reprovabilidade daqueles que tiveram todas as oportunidades e direitos preservados. Diante dessas proposições, procura-se destacar a importância da individualização da pena e a efetivação do princípio da isonomia no momento do julgamento do transgressor da norma, reconhecendo a parcela de responsabilidade do Estado no delito cometido.

Palavras-chave: Princípio da Coculpabilidade; Culpabilidade; Igualdade Social; Autodeterminação. 


1 INTRODUÇÃO

O Estado Brasileiro, configurado na Constituição Federal de 1988 como Democrático e Social de Direito, possui o dever de promover a igualdade material de seus cidadãos, por meio garantia dos direitos fundamentais. Dessa forma, quando essas obrigações não são cumpridas e os seres humanos são privados dos seus direitos mais básicos de subsistência, questiona-se o poder de punir um indivíduo marginalizado socialmente, que ousou infringir as normas positivadas impostas, não obstante o próprio Estado ter descumprido àquelas que lhe eram devidas.  

Inicialmente, antes de avaliar a responsabilidade do Estado nos delitos praticados pelos cidadãos marginalizados, é imperiosa a análise do instituto da culpabilidade, destacando-se a importância da apreciação detalhada desse quesito na fixação da pena, na medida em que, diante da desigualdade que impera na sociedade, cada indivíduo deve ser julgado de acordo com suas singularidades, impondo-se a cada um, diferentes graus de culpabilidade. 

Em decorrência da desigualdade social proporcionada pelo Estado omisso, o infrator marginalizado não age com total liberdade de escolha. Partindo dessas constatações, se passará à análise do princípio da coculpabilidade, levando em consideração o juízo de reprovação, que é a essência da culpabilidade, a concreta experiência social dos réus, as oportunidades que com as quais se depararam e a assistência que lhes foi ministrada, momento no qual será correlacionando sua própria responsabilidade a uma responsabilidade geral do Estado que vai impor-lhe a pena (BATISTA, 1990). 

O intuito principal com este artigo é estabelecer a parcela de responsabilidade do Estado, na medida em que este não cumpre seu papel de garantidor dos direitos fundamentais, no caso da prática de determinados ilícitos cometidos por indivíduos que tiveram suprimidas suas possibilidades de inserção social. 

A execução deste trabalho foi baseada em pesquisa bibliográfica, consistindo no estudo de doutrinas, artigos jurídicos, legislação e jurisprudência. O tipo de pesquisa empregado é o descritivo e exploratório, tendo em vista que visa um aprofundamento teórico sobre o tema por meio da análise e observação dos fatos, sem manipulá-los. 

No decorrer do trabalho, objetivando analisar a aplicação concreta do princípio, investiga-se a possibilidade de consideração da coculpabilidade para a redução da pena, amortizando-se o juízo de reprovação dos cidadãos marginalizados perante a sociedade, a partir da utilização concreta dos dispositivos legais já existentes. Por fim, são elaboradas considerações sobre as propostas de positivação da coculpabilidade, haja vista que todas as previsões legais sobre o princípio estão implícitas nas normas, carecendo de uma disposição expressa em lei. 


2 A AFERIÇÃO DA CULPABILIDADE NA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

A problemática propulsora desta pesquisa pode ser facilmente resumida na indagação suscitada pelo doutrinador francês Jean-Paul Marat (1780, p. 34) : “De dois homens que cometeram o mesmo crime, em que proporção é menos culpado aquele que mal tinha o necessário com relação àquele a quem sobrava o supérfluo?”

No centro desse debate se encontra um dos pontos mais controvertidos pelas teorias do delito: a culpa. O próprio Código Penal Brasileiro, em seu artigo 59, autoriza o julgador no momento de fixação da pena ao caso concreto, medir o grau de culpabilidade do infrator da norma. No entanto, ao elaborar a dosimetria da pena, na maioria dos casos, não é atribuído a esse quesito a atenção e importância que ele necessita. 

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. (BRASIL, 1940, grifo nosso). 

Júlio Mirabete (2007, p. 299) ressalta uma importante característica trazida no código penal acerca das considerações a serem feitas pelo juiz para a fixação da pena: "Menciona-se no art. 59, em primeiro lugar, a culpabilidade do agente, tida na reforma penal como o fundamento e a medida da responsabilidade penal". 

Percebe-se, no entanto, que a culpabilidade é o primeiro e mais importante quesito a ser observado pelo magistrado. Antes de analisar todas as outras circunstâncias judiciais que envolvem o delito, o juiz deve, primeiramente, aferir a culpabilidade do agente como ponto de partida para a fixação da pena.  

O conceito de culpabilidade enseja inúmeras discussões na esfera jurídico-penal, sendo que existem diversas teorias e linhas doutrinárias que se divergem sobre a definição do que é culpável ou não.  Para fins de análise, será adotado o chamado conceito normativo de culpabilidade, que se fundamenta na aferição a qual o agente, no momento do fato, podia ter feito algo distinto do que fez, e que, naquelas circunstâncias, lhe era exigível que o fizesse. 

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2011) conceituam culpabilidade normativa como sendo a reprovabilidade do injusto ao autor. Um injusto, isto é, uma conduta típica e antijurídica, é culpável quando é reprovável ao autor a realização desta conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível nas circunstâncias em que agiu que nela se motivasse. Ao não se ter motivado na norma quando podia e lhe era exigível que o fizesse o autor mostra uma disposição interna contrária ao direito.  

Ainda que seja um dos quesitos mais complexos a ser analisado pelo juiz no momento da dosimetria da pena, a culpabilidade vem sendo abordada de maneira incorreta nas sentenças. Na maioria dos casos, o julgador apenas verifica a imputabilidade ou a inimputabilidade do agente, a fim de decretar sua culpa. Contudo, dentro da concepção normativa, a culpabilidade é graduável, admitindo graus de reprovabilidade. Logo, não basta constatar o fato de uma conduta ser reprovável. É imperioso que, para a individualização da pena e aplicação de uma sanção justa, deve-se aferir o ‘quanto’ era exigível do agente uma conduta diversa e não apenas se algo era exigível. 

Jean-Paul Marat (1780 apud MATTE, 2008, p. 33), um dos princípais doutrinadores sobre o tema, deixou grandes ensinamentos sobre como deve ser enxergada a culpabilidade. Segundo ele, uma lei que determina que a um mesmo delito deva inflingir-se igual castigo a todo delinquente, somente seria justa num Estado fundado sobre a igualdade, e cujos membros gozassem mais ou menos das mesmas vantagens.

Todavia, essa não é a realidade. Nas relações sociais, a lei mostra-se cada vez mais distante dos casos concretos. Isso porque, para fazer valer o direito, não se depende apenas de regras matemáticas e mecanismos de aplicação. Em um país como o Brasil, diante das inúmeras e complexas realidades socioeconômicas, o emprego frio da lei nem sempre é sinônimo de Justiça. 

Ora, a identificação do direito com a lei mostra-se cada vez mais inadequada, quer pela pluralidade das realidades sociais, quer pelos diferentes mecanismos que intermedeiam a aplicação dessa mesma lei. (...) Quer dizer, na medida em que a lei se apresenta insuficiente, o que antes era garantia maior do respeito aos direitos dos cidadãos (a lei) passa a ser algo aberto, com infinitas possibilidades e variantes, que a torna dependente não apenas de uma regra matemática ou silogística de aplicação, mas condicionada a inúmeros fatores integrantes das relações de poder e mando naturalmente existentes em uma sociedade permeada por formas de poder disciplinar. (...) Cumpre questionar, por conseguinte, se a lei estando atualmente em posição de inferioridade em relação ao cotidiano, em relação à complexidade da realidade, tem condições de portar o monopólio jurídico para o regramento a sociedade; ou se apenas não representa mais uma forma de controle da sociedade por inércia. (LOURENÇO, 2009, p.62).

Percebe-se, que diante de uma sociedade desigual, não se pode julgar a todos com o mesmo grau de reprovação. Não basta apenas analisar as circunstâncias judiciais do delito em si. No momento de aferir a culpabilidade do agente, o juiz deve se considerar também as circunstâncias do indivíduo, tais como seu grau de instrução, de oportunidade e, principalmente, o contexto social em que está inserido.

A natureza estabeleceu grandes diferenças entre os homens e a fortuna as estabeleceu muito mais. Quem não vê que a justiça deve levar sempre em consideração as circunstâncias em que o culpado se encontra, circunstâncias que podem agravar ou atenuar o crime? (MARAT, 1780 apud MATTE, 2008, p. 33).

Não há como se falar em justiça na aplicação de uma lei fixa a pessoas tão diferentes entre si. Não se pode analisar a prática de um furto praticado por um sujeito marginalizado socialmente, o qual não tem seus direitos mais básicos e fundamentais garantidos pelo Estado, com igual grau de reprovabilidade de um crime cometido por aquele que possui todas as oportunidades na vida. 

Michel Foucault (1987) destaca a necessidade de uma individualização das penas, em conformidade com as características singulares de cada indivíduo. O pensador faz um paralelo entre as modulações da pena que se encontravam na jurisprudência antiga, as quais se pautavam nas circunstâncias e intenções, com as que começaram a se esboçar no direito penal moderno, cujas modulações se referem ao próprio infrator, à sua natureza, a seu modo de vida e de pensar, a seu passado. 

Vivemos em uma sociedade notadamente desigual, onde os privilégios são distribuídos desigualmente e os direitos sociais que deveriam ser garantidos a todos os cidadãos pelo Estado contemplam apenas parte da sociedade. Desse modo, não se pode esperar que um mesmo padrão moral e comportamental atinja igualmente a todos, considerando as enormes disparidades de suas condições de vida, educação, trabalho e saúde.

Portanto, ao adotar o conceito de culpabilidade como sendo "um juízo de reprovação sobre determinada pessoa pela prática de determinada conduta" (BONFIN; CAPEZ, 2004, p. 530) e levando em consideração as características notadamente individuais da análise de culpa de cada agente, é preciso observar as particularidades de cada indivíduo, o qual possui sua própria identidade, personalidade e história pessoal. 

[...] punições não podem e não devem ser iguais para as pessoas, ainda que cometi¬do o mesmo delito, devendo, com o fim maior de alcance da justiça e da liberda¬de, serem aplicadas as penas, quando necessário, fundamentadas nas particu¬laridades que cercam o caso concreto, nas circunstâncias específicas que o en¬volvem, ou seja, na natureza das coisas. (GUIMARÃES, 2010, p. 36).

Desse modo, a aferição da culpabilidade deverá recair exclusivamente sobre o agente, o qual necessita ser tratado como um indivíduo singular merecedor de uma pena individualizada, tendo em vista inúmeros fatores, internos e externos, utilizados para definir se, diante do momento e circunstâncias do fato, era exigível do agente uma conduta diversa.


3 O PRINCÍPIO DA COCULPABILIDADE

O Estado, detentor do ius puniendi , possui a obrigação de proporcionar a cada cidadão os direito e garantias fundamentais elencados no artigo 5º da Constituição Federal. Dentre os deveres estatais, percebe-se que, como ponto de partida, encontra-se a necessidade de promover a igualdade: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (BRASIL, 1988) ”. 

Portanto, para que o Estado possa exercer seu poder de punir de forma justa e legítima, é requisito indispensável que tenha proporcionado a todos os cidadãos as mesmas oportunidades. O Estado, por meio do sistema penal, só pode exigir o cumprimento de suas leis, com alto grau de reprovabilidade, a partir do momento em que o próprio Poder Público tiver cumprido com suas obrigações perante o indivíduo que será julgado.   

[...] Se para manter a sociedade é necessário obrigar a respeitar a ordem estabelecida, antes de tudo, deve satisfazer-se às suas necessidades. A sociedade deve assegurar a subsistência, em abrigo conveniente, inteira proteção, socorro em suas enfermidades e cuidados em sua velhice, porque não podem renunciar aos direitos naturais, contanto que a sociedade não prefira um estado de natureza. (MARAT, 1780 apud MATTE, 2008, p. 32).

É de fundamental importância que se reconheça que todos os cidadãos, sem exceção, possuem o direito de ter na estrutura familiar o acesso garantido, desde o início da vida, à moradia, saúde, ali¬mentação, educação e trabalho, os quais são di-reitos humanos fundamentais que devem ter ao alcance em todas as fases da vida, para que a igualdade dos pontos de partida seja preservada e, desse modo, o Estado pos¬sa exigir os respectivos deveres de quem teve garantidos tais direitos. Em síntese, enquanto não forem efetivamente incorporados os direitos sociais básicos que garantam aos cida¬dãos a igualdade, o Estado está impedido de exercer o jus puniendi, como forma de compensação pela supressão de direitos. (GUIMARÃES, 2010). 

A realidade, porém, passa longe dessa perspectiva. Não obstante a legitimidade do poder de punir esteja diretamente ligada ao cumprimento das obrigações pelo próprio Estado, a promoção da igualdade na esfera social é praticamente uma utopia. Em grande parte dos setores sociais, o cidadão passa sua vida toda sem que o Poder Público tenha lhe garantido sequer os direitos mais básicos, tendo seu primeiro contado com o Estado apenas por meio da esfera punitiva. 

Embora tenha sido omisso em inúmeras obrigações, no primeiro deslize do indivíduo, o Estado está pronto para exigir-lhe o cumprimento das normas positivadas. O Poder Público sempre tem justificativas para o descumprimento de seus deveres sociais, dentre as quais, a mais utilizada é a falta de verbas para grandes investimentos. Contudo, impõe-se à sociedade a rigorosa observância da lei, seja qual for a situação socioeconômica do réu.    

Diante de um cidadão com poucas ou até ainda nenhuma oportunidade, não se pode dizer que este escolha livremente os seus atos. A igualdade social é a verdadeira garantia da liberdade de opção de um indivíduo. Essa livre decisão de agir diante das circunstâncias é denominada autodeterminação, que pode ser entendida como a autonomia do ser humano de eleger seus próprios caminhos. 

Entretanto, em uma sociedade, por mais organizada que seja, nunca haverá a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Consequentemente, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado por causas sociais. Assim, não será possível atribuir essas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011).

Foi a partir desses conceitos, e influenciado pelas ideias de Jean-Paul Marat (1780), que o doutrinador Eugênio Raul Zaffaroni (2011) desenvolveu a chamada “coculpabilidade”, com a qual o Estado e a própria sociedade devem compartilhar a culpabilidade daqueles que se encontram marginalizados socialmente, os quais não possuem seus direitos fundamentais garantidos.  

Jean-Paul Marat (1780 apud MATTE, 2008) deixou como herança, importantes questionamentos sobre a sociedade desigual e a reprovabilidade da conduta daqueles desamparados pelo Estado:

Numa terra em que tudo é possessão de outro e na qual não se pode apropriar-se de nada, resta apenas morrer de fome. Então, não conhecendo a sociedade, a não ser por suas desvantagens, estarão obrigados a respeitar a lei? Não, sem dúvida. Se a sociedade os abandona, voltam ao estado natural e quando reclamam à força direitos dos quais não podem prescindir senão para proporcionar-lhes melhorias, toda autoridade que se oponha é tirânica e o juiz que os condena à morte não é mais que um vil assassino. (MARAT, 1780 apud MATTE, 2008, p. 32).

Não há como afirmar que um indivíduo, privado de seus direitos básicos, vivendo em um setor social totalmente desprezado pelo Poder Público e convivendo diariamente com a miséria e a segregação, possui o mesmo nível de liberdade de ação daqueles que se veem rodeados de privilégios e oportunidades, recebendo do Estado todo tipo de proteção e garantia de direitos.

Diante da falta de oportunidades, a capacidade de decisão e a liberdade de ação são drasticamente reduzidas. Assim, uma vez que culpabilidade e a autodeterminação estão intimamente ligadas, quanto menos o poder de escolha do ser humano, menor a exigibilidade de conduta diversa e, consequentemente, mínimo é o grau de reprovabilidade.

Existe no direito atual inúmeras correntes doutrinárias no sentido de que o homem não possui tanta liberdade de escolha, mas que seria fortemente influenciado por fatores externos e internos que o levariam a agir. Por conseguinte, o valor da herança, da educação, do meio físico e social em que o agente cresce e vive, é elemento poderosamente responsável pela formação de seu caráter e temperamento, proporcionando-lhe ideias e sentimentos que certamente guiarão sua conduta no seio da sociedade (ARAGÃO, apud GRECO, 2005).

Conclui-se então, que o indivíduo marginalizado socialmente não está totalmente livre para escolher seus caminhos e que o meio social influencia na prática de determinadas infrações penais. Nesse sentido, toma-se como base o dizer de Leonardo Boff (2004, p. 09):

A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.

Ao reconhecer que alguns indivíduos que cometem um ilícito, somente o praticam em decorrência da falta de oportunidades e que sua liberdade de escolha foi mitigada pelo Poder Público, o qual possuía a obrigação constitucional de garantir-lhe uma realidade diversa, porém foi omisso, não há como negar que o mesmo Estado que irá puni-lo carrega responsabilidade no crime praticado por esse cidadão marginalizado. Destarte, nessas circunstâncias, fala-se em culpabilidade compartilhada ou coculpabilidade do Estado.  

O princípio da coculpabilidade é um princípio constitucional implícito que reconhece a corresponsabilidade do Estado no cometimento de determinados delitos, praticados por cidadãos que possuem menor âmbito de autodeterminação diante das circunstâncias do caso concreto, principalmente no que se refere às condições sociais e econômicas do agente, o que enseja menor reprovação social, gerando consequências práticas não só na aplicação e execução da pena, mas também, no processo penal. (MOURA, 2006, p. 36-37).

Em suma, a coculpabilidade é a promoção de uma valoração da culpabilidade do infrator da norma, promovendo a compensação da carga de responsabilidade que é infligida àqueles que se encontram em condições sociais desfavoráveis, dividindo o encargo com o Estado, que não lhe promoveu oportunidades de praticar uma conduta diversa.

Essa culpabilidade deve ser compartilhada entre o agente, o Estado e a sociedade, pois no exercício do direito de punir, o Poder Público deve reconhecer e inserir também na dosimetria suas próprias falhas e omissões enquanto sociedade politicamente organizada, por não proporcionar a seus cidadãos, alternativas e perspectivas para que não escolhessem o caminho da criminalidade (JOENCK, 2011). 

Assim, esses cidadãos descritos na pesquisa, inseridos em classes sociais baixas, tendo como fator desencadeador para a prática de seus delitos a ausência condições mínimas de subsistência para uma vida digna e - dentro de suas limitadas opções de sobrevivência - foram influenciados ou compelidos a cometerem uma infração penal, não podem ser responsabilizados exclusivamente pelos seus atos, considerando que não são os únicos responsáveis por eles. O Poder Público e a própria sociedade possuem sua parcela de contribuição.

Neste sentido, esclarece Wender Silva (2011, p. 14) que o Estado não pode ser culpado por um crime cometido pelo infrator, todavia, pode ser responsabilizado em virtude de sua ausência prévia quando não forneceu condições para que aquele indivíduo tomasse outro rumo que não o estreito caminho da conduta ilícita.

Cumpre destacar, que a coculpabilidade não significa transmitir para o Estado toda a responsabilidade pela prática da infração penal, mas sim, que se reconheça no momento da aplicação da pena, a parcela de culpabilidade do Poder Público no delito cometido e, consequentemente, diminua o grau de reprovabilidade e a punição que será imposta pelo sistema penal. 


4 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A CONSIDERAÇÃO DA COCULPABILIDADE NA DOSIMETRIA DA PENA

A consideração da coculpabilidade na dosimetria da pena, com o propósito de reduzir o grau de reprovação que será imposto ao indivíduo pelo Estado, possui inúmeros fundamentos legais e principiológicos que autorizam o Poder Judiciário a atribuir ao Poder Público, a culpa compartilhada no momento da individualização da pena.

Um dos mais importantes princípios que pautam as relações jurídicas e sociais é o princípio da isonomia. O célebre jurista Rui Barbosa, em seu discurso Oração aos Moços, proferido na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1920, estabeleceu considerações sobre o princípio da igualdade, as quais se fixaram com a definição exata de isonomia judicial:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. [...] Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. (BARBOSA, 2003, p.19)

Finalmente, o princípio da igualdade consiste em tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Na atualidade, baseado no princípio da isonomia, o Poder Judiciário tem promovido importantes mudanças no meio social, como a implantação das cotas raciais em universidades públicas e a emblemática Lei Maria da Penha.

Apesar disso, o princípio da igualdade não vem sendo observado quando essa desigualdade se refere ao meio social. Diante da incapacidade do Estado em promover a igualdade social, cumpre ao Poder Judiciário tomar como base os dizeres de Rui Barbosa, julgando aqueles que tiveram oportunidades de vida desiguais de maneira desigual, a fim de promover verdadeira igualdade. 

É justamente nesse ponto que se ressalta a necessidade de uma individualização da pena voltada para observar que nenhum réu é igual a outro. Quanto ao julgamento de indivíduos inseridos em classes sociais baixas, deve-se levar em consideração que a eles não foram disponibilizadas oportunidades e, diante de suas escassas escolhas, se viram compelidos a praticar os delitos. Se o Estado não cumpriu com sua obrigação de promotor da igualdade de condições, a fim de que tivessem uma livre escolha, cabe ao Poder Judiciário no momento de aplicar o juízo de reprovação de suas condutas, atribui-lhes um menor grau de culpabilidade. 

Frederico Lourenço (2009) destaca a extrema importância da atuação estatal, por meio do Estado-Juiz (judiciário) para recompor o desequilíbrio apresentado concretamente pela violação da norma. Somente por intermédio do Poder Judiciário o cidadão pode se assegurar de que o direito está sendo observado e respeitado, o que pode lhe proporcionar uma sensação de igualdade e de ser integrante da comunidade política.

Ao valorizar a culpabilidade de um cidadão marginalizado de forma igualitária, ou também conferir exclusivamente ao infrator toda a culpa e responsabilidade por seus atos – ainda que consciente que suas escolhas foram drasticamente limitadas pela omissão do próprio Estado - o Judiciário não estará promovendo a verdadeira Justiça.   

Indubitavelmente, essa igualdade real está ligada à ideia de coculpabilidade, tendo-se em vista que o individuo socialmente desfavorecido deve ter sua conduta valorada de forma diferente do juízo de reprovação dirigido àquele que sempre teve uma posição social privilegiada, contando constantemente com benesses da vida, educação e saúde dignas, dentre outros deveres estatais negados às camadas sociais inferiores. Caso sejam apenados os dois – o desfavorecido e o privilegiado - com o juízo de reprovação na mesma intensidade, não há que se falar em igualdade material, mas tão somente em isonomia formal. (DA SILVA; GOMES, 2009, p. 10). 

A desigualdade de oportunidades enseja a desigualdade perante a lei. Como essa equidade não foi alcançada no meio social, cabe ao Poder Judiciário, instituição guardiã e provedora da Justiça, garantir que o princípio da isonomia seja respeitado no momento de julgar o infrator da norma, tratando aqueles que são iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na medida de suas desigualdades. 

O juiz deixará de ser mero espectador da realidade desigual que aflige o cenário brasileiro e passará, portanto, a atuar de modo efetivo com fins de peritir que o almejado princípio da igualdade norteie à aplicação da pena. Assim sendo, o princípio da coculpabilidade constituirá o meio pelo qual o juiz atingirá o princípio da igualdade e, na verdade, a própria justiça. (MARÇAL; SOARES FILHO, 2011, p. 11).

Saindo do campo dos princípios e adentrando no campo das leis positivadas, a primeira previsão legal que abre espaço para a efetivação concreta da teoria da coculpabilidade consta no artigo 59 do Código Penal, que autoriza o magistrado medir a culpabilidade do agente no momento da fixação da pena.

Nesse momento, o juiz, se atentando para a culpabilidade compartilhada entre o infrator, o Estado e a sociedade, reduziria a pena a ser aplicada ao caso concreto, fixando a pena base no mínimo legal. Inclusive, a inserção da coculpabilidade como circunstância judicial é proposta no anteprojeto de reforma do código penal, apesar de que não seja defendida com grande afinco. 

A lei penal também abre espaço para a consideração da coculpabilidade para diminuição da condenação, ao determinar no artigo 66 do Código Penal que: “a pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei (BRASIL, 1940)”.

Dessa forma, o magistrado poderá considerar como circunstâncias relevantes para atenuar a pena, as condições sociais do infrator e a influência do meio social na autodeterminação do indivíduo, comprometendo sua capacidade de escolha diante de suas oportunidades reduzidas. A positivação da coculpabilidade como circunstância atenuante também vem sendo considerada pelos juristas, mediante sua inserção no artigo 65 do Código Penal como atenuante genérica da pena. Para Grégore Moura (2006), essa é uma proposta mais audaz, uma vez que a previsão expressa da coculpabilidade como atenuante genérica reforçaria a necessidade de sua aplicação, bem como limitaria o poder de deliberação e interpretação do juiz, sendo mais ampla caso a previsão constasse no art. 59 do mesmo diploma legal. Porém, ainda que o legislador fizesse a opção ora mencionada, segundo a maior parte da doutrina e da jurisprudência, até assim, não poderia trazer pena aquém do mínimo legal.

Outra hipótese muito mais audaciosa consistiria em incluir no artigo 29 do Código Penal uma previsão para que, dependendo das condições sociais e econômicas do agente, caso este se encontrasse em estado de miséria, sua pena seria diminuída de um a dois terços (1/3 a 2/3), desde que tais circunstâncias o tivessem influenciado e fossem compatíveis com o delito praticado. A partir dessa previsão, quanto maior a coculpabilidade do Estado, ou seja, quanto pior as condições socioeconômicas do infrator, menor seria sua pena.

 De acordo com Grégore Moura (2006), essa é a melhor hipótese para a positivação da coculpabilidade, uma vez que permite uma maior individualização da pena aplicada, além de permitir a redução da condenação aquém do mínimo legal. Posicionamentos mais radicais defendem a existência de uma quarta hipótese de positivação, na qual a coculpabilidade seria elencada como uma das causas extintivas da punibilidade. Entretanto, tal previsão foge dos conceitos embrionários do princípio, qual seja o compartilhamento da responsabilidade entre o infrator e o Estado, transferindo como consequência, toda a culpabilidade para o Poder Público, o que não seria correto. 

Embora o infrator esteja inserido em um estado de miserabilidade, sua autodeterminação não se encontra completamente anulada, mas sim reduzida. Compactuar com a extinção de punibilidade, nesses casos, seria uma forma de incentivo à criminalidade, tendo em vista que inúmeros cidadãos encontram-se em situações de miséria e, até assim, não optam pela criminalidade.

Enfim, independentemente se a coculpabilidade será positivada ou se o magistrado, utilizando-se de sua discricionariedade, irá aplicá-la a partir das disposições legais já existentes, o importante é que se reconheça que diante da desigualdade social, os homens não podem ser julgados como iguais, devendo as desigualdades ser descontadas na hora de medir o grau de reprovabilidade. 

Reduzir a criminalização de sujeitos penalizados permanentemente pelas condições de vida é realizar de fato uma justiça mais justa, porque considera desigualmente sujeitos concretamente desiguais: que o direito realmente iguale os que considerem desigualmente indivíduos concretamente desiguais. (SANTOS, 1985, p. 214).

Se o sujeito se torna devedor do Estado ao infringir a norma, por outro lado, é também credor, tendo em vista que o Poder Público deixou de cumprir com seus deveres em relação a ele. Então, devemos entender que o Poder Judiciário, atuando como Estado-Juiz deve descontar da pena a ser aplicada, a sua parcela de responsabilidade no delito cometido, por não cumprir o seu papel de propiciar condições de vida digna a todos. 


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um momento em que a inserção positivada da coculpabilidade ainda é objeto de luta de muitos juristas, é imperioso que os magistrados tomem consciência da existência da culpabilidade compartilhada, bem como da parcela de responsabilidade do Estado nos delitos cometidos por aqueles que foram desamparados pelo Poder Público.

A culpabilidade sobre a conduta não pode recair exclusivamente sobre o infrator da norma, sem se atentar que o Estado, como sujeito de deveres, descumpre inúmeras obrigações estimuladas constitucionalmente, sem que tenha maiores consequências. Entretanto, basta o mínimo deslize de um cidadão para que este seja punido sem se analisar se nas circunstâncias sociais em que estava inserido, uma conduta diversa teria tamanha exigibilidade. 

O conceito de legalidade e o conceito de justiça não são idênticos, tampouco inteiramente diferentes. Há inúmeros casos em que a legalidade está de acordo com a justiça – no sentido de uma justiça melhor, que diga respeito a uma sociedade melhor – então, nesses casos, deve-se seguir e obedecer à lei, mas também obrigar o Estado a obedecer à lei, e obrigar as grandes corporações a obedecerem à lei, e obrigar a polícia a obedecer à lei. E, naqueles pontos em que o sistema legal não expressa uma justiça melhor, então, um ser humano razoável deve desconsiderá-las e opor-se a elas (CHOMSKY, 2014). 

Nesses casos em particular, ainda que o infrator tenha descumprido a lei, o reconhecimento da coculpabilidade se refere a uma questão de justiça. Não é justo que o Estado exija, com amplo grau de reprovabilidade, que o cidadão cumpra as normas legais, quando ele próprio não as cumpriu, desamparando-o à própria sorte, não lhe garantindo meios para que, de forma legal e lícita, sustentasse uma vida digna.

Certamente nunca será possível a criação de um sistema de justiça ideal, assim como a criação uma sociedade ideal. Isso porque os seres humanos são muito limitados e demasiadamente tendenciosos, além de uma série de outros fatores. Mas são capazes – e devem agir como seres humanos sensíveis e responsáveis a partir dessa capacidade – de imaginar e de agir visando à criação de uma sociedade melhor (CHOMSKY, 2014). 

Só existe justiça em um julgamento igualitário quando impera igualdade na sociedade, sendo a lei cumprida por todos os cidadãos, inclusive pelo próprio Estado. Contudo, diante da imperativa desigualdade social existente, a luta pelo reconhecimento da coculpabilidade representa a luta por uma sociedade mais justa.


REFERÊNCIAS

 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Martin Claret: São Paulo, 2003.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DAVID, Rebeca Paula de Almeida. O princípio da coculpabilidade: a responsabilidade conjunta do Estado nos delitos praticados pelos cidadãos marginalizados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4657, 1 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47845. Acesso em: 2 maio 2024.