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A (in)existência dos princípios do contraditório e ampla defesa do indiciado do inquérito policial

A (in)existência dos princípios do contraditório e ampla defesa do indiciado do inquérito policial

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O paper em questão trata-se da temática sobre o indiciamento do inquérito policial, e a demonstração da (in)existência dos princípios do contraditório e ampla defesa durante o procedimento. Desta forma, será demonstrado como é o procedimento do indiciamento.

INTRODUÇÃO

Pode-se afirmar que inquérito policial é o ato ou efeito de inquirir, com o fim de procurar informações sobre algo ou sobre um fato, realizado pela polícia judiciária (LOPES JR, 2012). Além disso, possui natureza jurídica de um procedimento administrativo pré-processual e é por esta razão que a interferência do juiz, como garantidor dos direitos fundamentais do acusado inseridos na Constituição, é muito limitada, visto que o perfil ideal do juiz não é como investigador ou instrutor, e sim, como um controlador da legalidade e garantido do respeito dos direitos fundamentais. (LOPES JR., 2012). Tendo em vista ao 

conceito do inquérito policial acima, será abordado como é o funcionamento do procedimento deste, bem como na demonstração dos direitos do indiciado.

Nesta esteira, a partir do art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, são assegurados o contraditório e ampla defesa para os acusados em geral, com os meios e recursos a ela inerentes. A controvérsia acerca da existência e da aplicabilidade destes princípios é bastante latente, tendo em vista que as discussões estão baseadas em dois momentos, quais sejam, no momento anterior e posterior ao indiciamento do réu.

Quanto ao aspecto do momento pré-processual – antes de ser o réu indiciado –, alguns autores alegam que não há o por que de existir o contraditório de uma relação que ainda nem foi instaurada, mesmo no fato de que está se fazendo alusão ao momento de prestações de informações por parte do suspeito (LOPES JR., 2005, p. 245). Quanto ao momento em que a relação jurídico-processual já está instituída, após o indiciamento do réu, parte da doutrina afirma da crise do sistema processual, aduzindo na reclamação por parte dos promotores da falta de "coordenação entre a investigação e as necessidades de quem, em juízo, vai acusar” (LOPES JR., 2012, p. 322), além do fato da demora demasiada nos casos mais complexos, impedindo a aplicabilidade de um processo célere e eficaz.

Como pode-se perceber, a discussão acerca da existência destes princípios no inquérito policial é latente, na qual alguns afirmam que o sistema processual penal encontra-se em crise e em decorrência disto, as garantias fundamentais nas quais deveriam ser providas, não são em sua efetividade. Por outro lado, há quem afirme na potencial aplicabilidade destes princípios baseando-se na autodefesa positiva ou negativa, e pelo fato de poder estar acompanhado por advogado (LOPES JR., 2012, p. 345). Diante disso, restado comprovado a existência da controvérsia acerca da aplicabilidade dos princípios do contraditório e da ampla defesa no indiciamento no processo penal, pretende-se demonstrar a existência dos aludidos princípios, bem como fazendo sugestões de como melhorar a atual crise do processo penal, sobretudo na fase do inquérito policial.

1 RESGATE HISTÓRICO DO INQUÉRITO POLICIAL: EVOLUÇÃO E PREVISÃO NO CPP

A investigação criminal veio a ter sua efetiva participação no Processo Penal a partir do Período Colonial. Nesta época, tinha-se dois tipos de investigação, quais sejam, a querela e a devassa. Enquanto a primeira baseava-se num tipo de inquirição sumária, ou seja, com a indicação prévia da autoria do crime ou dos seus indícios, a segunda se limitava a ser um tipo de inquirição ordinária, ou seja, não havia preliminar indicação de autoria ou ao menos seus indícios, conforme a querela apresentava-se. (MACHADO, 2009)

No entanto, o inquérito policial só fora realmente regulamentado por lei em 1841, com a decretação da Lei nº 261, quando a investigação criminal passou a ser conduzida pela autoridade policial. De acordo com o art. 4º, §9º, da aludida lei, era de competência dos delegados de polícia em remeter, quando assim julgarem, todos os dados, provas ou esclarecimentos que tiverem obtido sobre o crime investigado, fazendo toda a exposição do caso aos juízes competentes para a formação da culpa do acusado. (MACHADO, 2009) Desta forma, abria prerrogativa para os delegados de polícia capacidade de exercerem funções tanto administrativas quanto judiciárias, a partir do momento que poderiam proceder por exemplo, o exame de corpo e delito, expedir mandado de busca e apreensão, etc. (MACHADO, 2009)

Frise-se que esta autoridade – os delegados de polícia – era escolhida e selecionada pelos magistrados da época, conforme preceitua o art. 2º da lei nº 261/1841: "Os Chefes de Polícia serão escolhidos entre os Desembargadores e Juízes de Direito; os Delegados e Subdelegados, dentre quaisquer Juízes e Cidadãos; serão todos amovíveis e obrigados a aceitar”. (DARBAN, 2012)

Essa realidade, todavia, fora modificada com a decretação da Lei 2.033 em 1871. A partir de então, os delegados de polícia não mais participavam na formação da culpa de maneira a sentenciar o acusado, cabendo somente aos magistrados fazerem este tipo de atribuição, conforme assenta o art. 9º da referida lei: "Fica extincta a jurisdicção dos Chefes de Policia, Delegados e Subdelegados no que respeita ao julgamento dos crimes de que trata o art. 12 § 7º do Codigo do Processo Criminal, assim como quanto ao julgamento das infracções dos termos de bem viver e segurança, e das infracções de posturas municipaes”.

Os delegados de polícia, portanto, teriam competência apenas para proceder o inquérito policial de maneira a auxiliar os juízes na formação de culpa nos crimes comuns, fazendo as diligências necessárias para desvendar os fatos criminosos e suas circunstâncias por meio de documento escrito. (DARBAN, 2012)

Esta modificação do inquérito policial da lei de 1841 pela lei de 1871, não foi a toa, tendo em vista  nas discrepâncias realizadas pelos delegados de polícia em decorrência do seu excesso de poder, conforme assenta Antonio Scarance Fernandes apud Augusto Mendes Machado (2009, p. 35):

A estruturação do inquérito em 1871 resultou de uma preocupação garantista, pois teve como objetivo coibir abusos na atuação das autoridades policiais, que, em virtude da Lei de 3 de dezembro de 1841 e do Regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842, detinham excessivos poderes no sistema processual penal brasileiro. Não havia fixação de tempo para a autoridade policial remeter aos juízes os dados e esclarecimentos obtidos, a fim de que se procedesse à formação de culpa. A polícia realizava autênticas devassas. O inquérito policial teve como escopo conter os abusos, fixando-se prazo para o encerramento das investigações; assim, se o investigado estivesse preso, o inquérito deveria ser ultimado em cinco dias.

Nesta esteira, o inquérito policial só viera a ter mudanças em 1941, com a decretação do Decreto-Lei nº 3.689, que suprimiu a competência da autoridade policial em fazer atribuições de culpa e de pronuncia nos crimes comuns, pois tal regulamentação era considerada inconstitucional, de acordo com a Constituição de 1937. (DARBAN, 2012) Em verdade, o inquérito policial fora tido como um instrumento de investigação policial preliminar, conquanto os outros países da Europa, como França, Itália e Alemanha, adotavam a sistemática do juiz de instrução (LOPES JR, 2012).

A justificativa do legislador fora que o inquérito policial fora regulamentado de acordo com a realidade social da época, tendo em vista que no Brasil existiam grande quantidade de locais remotos e de difícil acesso. Desta forma, ficaria difícil para o juiz de instrução realizar suas diligências quando se tratasse de locais distantes, haja vista que o juiz  levaria dias de viagem, causando prejuízo às outras causas a serem tratadas. (NASCIMENTO, 2012)

Desde 1941 o inquérito policial está sendo regulado pelo Decreto-Lei nº 3.689, sendo previsto nos arts. 4º ao 23 do Código de Processo Penal. Deve-se frisar que, conforme o próprio legislador assentou, tal decreto fora criado de acordo com a realidade brasileira. Esta, no entanto, fora editada em regime ditatorial, no qual se defendia a eficiência da persecução criminal, tratando o imputado como mero objeto da investigação criminal (MACHADO, 2009). A partir disso, pode-se entrar na discussão sobre a crise do sistema de inquérito policial brasileiro, no qual será relatado posteriormente no tópico 3.

2 INQUÉRITO POLICIAL: PROCEDIMENTO E CARACTERÍSTICAS

A finalidade do inquérito policial consiste na apuração da infração penal e seus efeitos, bem como a autoria, objetivando a reunião do maior número de detalhes e informações possíveis, informações essas que serão utilizadas pelo Ministério público, que decidirá com base no que foi investigado, pela denúncia ou arquivamento do inquérito. Ademais, “é comum na doutrina pátria, afirmar que o inquérito policial (...) tem por finalidade apurar a autoria e a materialidade das infrações penais, de modo a auxiliar na formação do convencimento do Ministério público e, excepcionalmente, da vítima” (ZANOTTI e SANTOS, 2013, p. 103). Entretanto, considera que o objetivo “do inquérito seja fornecer justa causa para uma futura ação penal, significa concluir que a Polícia Civil trabalha a serviço do Ministério Público ou da vítima, no sentido de que suas investigações são direcionadas a fornecer autoria e materialidade para uma ação penal” (ZANOTTI e SANTOS, 2013, p. 103).

No que tange as características do inquérito, cabe enfatizar que o mesmo não se trata de um procedimento de natureza judicial, pois “o inquérito policial consiste, na verdade, em um procedimento administrativo, de caráter meramente informativo. Desse modo, como regra, os vícios existentes no inquérito policial não afetam a ação penal” (ZANOTTI e SANTOS, 2013, p. 105). Seguindo nessa esteira, vale ressaltar que consiste em um procedimento escrito, haja vista que “todas as peças do inquérito policial será, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade”, de acordo com a redação prevista no art. 9º do Código de Processo Penal.

Ainda se tratando das características, o art. 20 do CPP pressupõe a sigilosidade das informações colhidas, prevendo que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade” Faz-se mister trazer à baila um trecho do voto do Ministro Celso de Mello, que trata do sigilo no inquérito policial, e que serviria para dar origem a súmula vinculante nº 14: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório, realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”:

No que concerne ao inquérito policial há regra clara no Estatuto do Advogado que assegura o direito aos advogados de, mesmo sem procuração, ter acesso aos autos (art. 7º, inc. XIV) e que não é excepcionada pela disposição constante do par. 1º do mesmo artigo que trata dos casos de sigilo. Certo é que o inciso XIV do art. 7º não fala a respeito dos inquéritos marcados pelos sigilos. Todavia, quando o sigilo tenha sido decretado, basta que se exija o instrumento procuratório para se viabilizar a vista dos autos do procedimento investigatório. Portanto, a presença do advogado no inquérito e, sobretudo, no flagrante não é de caráter afetivo ou emocional. Tem caráter profissional, efetivo, e não meramente simbólico.(MELLO, 2009, p.  49 apud ZANOTTI e SANTOS, 2013, p.106)

É interessante mencionar a característica da oficialidade no inquérito policial, cuja competência é privativa de órgãos oficiais, quais sejam as Polícias civis e federais e o Delegado de Polícia, que é o agente responsável em conduzir o inquérito. Outra peculiaridade referente ao inquérito policial que merece ser mencionada é a oficiosidade, que “consiste em um dever legal imposto ao Delegado de Polícia, no sentido de que todo o procedimento é feito de ofício e com o objetivo de colher elementos de autoria e prova da materialidade, desde a instauração do inquérito policial até o relatório final” (ZANOTTI e SANTOS, 2013, p.113). Adiante, temos o atributo da indisponibilidade, que determina que uma vez instaurado o inquérito, a autoridade judicial não poderá arquivá-lo, tal disposição pode ser encontrada no art. 17 do CPP: “A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito”. Por fim e não menos importante, temos que o inquérito policial é dispensável, pois caso o Ministério Público entenda que já exista informações necessárias para a propositura da ação, não será necessário à instauração de um inquérito.

No que diz respeito ao procedimento do inquérito policial, seu início se dá por meio da comunicação de um fato à autoridade competente, que geralmente se dá por meio do boletim de ocorrência, diante disso segue-se o disposto no art. 6º do CPP, onde deve a autoridade policial se locomover ao local do crime, agindo cautelosamente para garantir a conservação das possíveis evidências; colher todas as provas que possam servir pra esclarecimento do fato; ouvir o ofendido; interrogar o indiciado; iniciar o recolhimento de pessoas e coisas e a acareações; determinar ou não que se realize o exame de corpo delito; ordenar a juntada aos autos da folha de antecedentes do indiciado, analisar os antecedentes criminais do mesmo, sua condição econômica, suas atitudes e estado de animo antes, durante e após o crime, e qualquer outro elemento que ajude para apreciação de seu temperamento e caráter.

3 CRISE NO SISTEMA BRASILEIRO: (IN)EFICÁCIA E MODELO IDEAL DO INQUÉRITO POLICIAL

Sabe-se que para que o suspeito da autoria de um crime seja indiciado, dever-se-á ter provas suficientes de que aquela pessoa teve uma autoria provável do crime em questão. (LOPES JR, 2012).

Assim sendo, Aury Lopes Jr. (2012) aponta que um dos maiores problemas no indiciamento seria justamente a falta de um indiciamento formal, com momento e forma estabelecidos em lei, sendo uma carga para o sujeito passivo de maneira a ensejar o nascimento de direitos como por exemplo, o direito de defesa. Não há, portanto, possibilidade da pessoa aparecer como testemunha e receber a surpresa de que é o principal suspeito da autoria de um crime. No entanto, o aludido autor critica o indiciamento do inquérito policial, afirmando que aquele como ato em si mesmo não existe. E por esta razão, foi substituído pelo interrogatório e um formulário destinado à qualificar um sujeito.

Não obstante, conforme falado anteriormente, a lei que regula o inquérito policial fora decretada em 1941, de acordo com a realidade social e econômica que a população estava submetida à época. Esta foi a justificativa dada pelo legislador para não adotar o sistema de inquérito policial baseado no juiz de instrução, visto que o Brasil apresentava várias cidades com acessos remotos.

As regras advindas desta realidade social de 1941, no entanto, estão regulando até os dias de hoje o Processo Penal, sobretudo no que se concerne ao indiciamento do inquérito policial, e este por si só. Mesmo após as releituras e adequações constitucionais e infraconstituicionais pós decretação da Constituição Federal de 1988, tais fatos ainda não foram capaz de adotar um sistema dotado de eficiência e objetividade (ANDRADE, GLEICK, 2010). Vinícius de Andrade e Gleick Meira explicam de forma bem resumida a controvérsia principal da atual crise do sistema brasileiro quanto à ineficácia do inquérito policial:

Todavia, a investigação preliminar brasileira baseada majoritariamente nesse instrumento, passa por crise profunda, devido as grandes transformações da sociedade (criminalidade organizada, intensificação e facilidade das comunicações, massificação de serviços, globalização, crimes cibernéticos, fraudes contábeis de alto impacto econômico) e as mudanças nos papéis e procedimentos no interior do sistema acusatório. (2010, p. 100)

Não obstante, não fora apenas as grandes transformações da sociedade que formaram a crise do sistema brasileiro, senão vejamos. Os juízes se encontram muito desconfiados com as pesquisas feitas durante o inquérito policial, apontando na demora e na pouca confiabilidade nos atos ali apurados. Deve-se frisar que tal desconfiança não é à toa, tendo em vista que não fazem menos de duas décadas em que a obtenção dos dados acerca da apuração da autoria de um crime se dava por base na tortura. (ANDRADE, GLEICK, 2010). É neste sentido que afirma Rômulo Pereira de Andrade:

O atual código continua com os vícios de 60 anos atrás, maculando em muitos dos seus dispositivos o sistema acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado, olvidando-se da vítima, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos. MOREIRA, Rômulo de Andrade. A reforma do Código de Processo Penal.

Nesta feita, é muito comum que um inquérito policial dure mais de 5 anos, tendo em vista à falta de comprometimento das autoridades policiais, juntamente com a falta de regulamentação pelo Código de Processo Penal sobre algumas circunstancias recentes. Um exemplo bastante regular é quando inquérito fica em efeito “pingue-pongue” entre a autoridade policial e o Ministério Público (DARBAN, 2012). Em regra, o inquérito policial deverá durar 30 dias, se o indiciado estiver solto, e 10 dias, se este estiver preso (AURY JR, 2012).

Caso o inquérito não tiver sido concluído dentro do prazo supra, pode a autoridade policial solicitar a prorrogação do prazo para realização de diligências. Ocorre que o policial encarregado do inquérito policial não termina dentro do prazo determinado as diligências necessárias para a conclusão deste, e mesmo após enviado para o Ministério Público, o Promotor acaba por não ler – segundo os policiais – o que fora desenvolvido pelo policial, de modo que os autos retornem à delegacia com a concessão de novos prazos. (DARBAN, 2012). Neste sentido:

Muitos inquéritos existem há mais de cinco anos, permanecendo na inércia do chamado pingue-pongue entre delegacia e o MP, até que resultem em pedido de arquivamento ou, raramente, de denúncia. Um dos motivos mais habituais pelos quais os inquéritos ficam indo e vindo entre a delegacia e o MP é a convicção dos policiais de que este não resultará em uma denúncia. (MISSE apud DARBAN, 2012, p. 30)

Andrade e Gleick (2010) apontam outro defeito no inquérito policial, que, diga-se de passagem, bastante relevante quando à inobsevância dos princípios constitucionais, sobretudo ao da presunção de inocência. Estes apontam que diversas vezes o Ministério Público acaba por fazer peças de acusação genéricas, sem explicitar os detalhes nos quais são relevantes para a imputação da autoria de um crime ao acusado. Posto isso, explica:

Quando em dúvida a acusação se quem praticou o delito foi “A” ou “B”, ofereceria a denúncia ou queixa contra um ou outro, na esperança que a instrução processual revele quem realmente cometeu o crime (imputação alternativa subjetiva) e em outro caso quando a dúvida recai sobre qual foi o delito praticado (imputação alternativa objetiva).

A explicação para haver este amontoado de irregularidades entre as atividades do Ministério Público e da autoridade policial é bastante simples: embora a relação entre estas entidades tenham evoluído consideravelmente pela cooperação e interação no exercício de suas atividades, os choques de competência são inevitáveis por disputarem um espaço de poder semelhante, qual seja, o controle das investigações criminais. (ANDRADE, GLEICK, 2010).

Não é a toa que Aury Lopes Jr. (2012) propõe uma série de mudanças no inquérito policial, e consequentemente, no indiciamento, de maneira a alcançar um modelo ideal que possa compatibilizar a garantia de direitos fundamentais, bem como a eficácia da investigação preliminar.

Dentre as melhorias, o referido autor afirma que deveria ser definida a função do juiz na investigação, não para atuar como juiz inquisitor ou investigador. Pelo contrário, a função dada para o juiz seria estritamente para garantir os direitos fundamentais do imputado, sempre pronto para, mediante invocação da defesa, fazer cessar ou impor limites ao abuso do poder investigatório seja do Ministério Público ou da autoridade policial.

Não obstante, Aury Lopes Jr. (2012) indica que a prevenção do juiz deveria ser repensada, tendo em vista que o fato do juiz da fase pré-processual for o mesmo juiz a julgar a causa do imputado, acabaria por haver uma contaminação do juiz prevento, não devendo este jamais julgar causas nestas circunstâncias. Além disso, aduz que jamais deverá se admitir que as medidas restritivas de direitos, como prisão cautelar e busca e apreensão sejam empregadas pelo investigador sem autorização judicial para tanto.

Deverá se definir, também, um prazo razoável e máximo para o término da investigação preliminar, sob pena de inutilidade dos atos praticados fora do prazo legal. (LOPES JR, 2012). Isto impede que ocorra o efeito “pingue-pongue” relatado anteriormente, dando efetividade às atividades exercidas tanto pelo Ministério Público quanto pela Autoridade Policial.

4 ANÁLISE DA EXISTÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA NO INDICIAMENTO DO INQUÉRITO

A priori, mostra-se adequado que se discorra sobre os princípios do contraditório e da ampla defesa, primeiro o contraditório que se “reflete um diálogo uma alternância bilateral da manifestação das partes conforme a fase do processo e a decisão final. A eficiência do contraditório depende que seja sopesada a dialética processual.” (BACELLAR FILHO. 2008 p.91). Em seguida temos a ampla defesa, que “impõe à autoridade o dever de observância das normas processuais e de todos os princípios incidentes sobre o processo” (BACELLAR FILHO. 2008 p.91). Os referidos princípios guardam guarida constitucional, à medida que estão previstos expressamente no art 5º, inciso LV da Constituição Federal: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Correlacionando tais princípios com o processo penal, temos o posicionamento do doutrinador Eugênio Pacelli Oliveira:

O contraditório, portanto, junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental de todo processo e, particularmente, do processo penal. E assim é porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e equitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal.(2008, p.28)

Iniciando uma abordagem crítica sobre a temática central, é indispensável elencar os argumentos contrários, ou seja, pela inexistência do contraditório e ampla defesa durante o inquérito policial. Seguindo nessa linha de raciocínio, o mestre Alexandre de Moraes (1998, p. 256) ressalta que “o contraditório nos procedimentos penais não se aplica aos inquéritos policiais, pois a fase investigatória é preparatória da acusação, inexistindo, ainda, acusado, constituindo, pois, mero procedimento administrativo”. Ademais o doutrinador Renato Brasileiro de Lima (2011. p. 21) sustenta a tese no sentido de que não há que se falar em contraditório, ou seja, como “o inquérito policial é tido como um procedimento administrativo destinado à colheita de elementos de informação quanto à existência do crime e quanto à autoria ou participação, não há observância do contraditório na fase preliminar de investigações”.

Dando continuidade a esta corrente doutrinária, José Frederico Marques (2008 p. 46), assevera que o inquérito policial é genuínamente inquisitivo e critica alegando que a prática forense é vítima de recorrentes erros nesse sentido: “Infelizmente, a demagogia forense tem procurado adulterar, a todo custo, o caráter inquisitivo da investigação, o que consegue sempre que encontra autoridades fracas e pusilânimes”.

Compartilhando de tal posicionamento, surge o penalista Guilherme de Sousa Nucci (2008, p. 167), expondo que o inquérito, por se tratar de um procedimento inquisitivo, deixa de lado a idéia de defesa:

O inquérito é, por sua própria natureza, inquisitivo, ou seja, não permite ao indiciado ou suspeito à ampla oportunidade de defesa, produzindo e indicando provas, oferecendo recursos, apresentado alegações, entre outras atividades que, como regra, possui durante a instrução judicial. Não fosse assim e teríamos duas intruções idênticas: uma realizada sob a presidência do delegado; outra, sob a presidência do juiz. Tal não se dá e é, realmente, desnecessário. O inquérito destina-se, fundamentalmente, ao órgão acusatório, para formar a sua convicção acerca da materialidade e autoria da infração penal, motivo pelo qual não necessita ser contraditório e com ampla garantia de defesa eficiente. Esta se desenvolverá, posteriormente, se for o caso, em juízo.

Diante da fragilidade do argumento de que o inquérito policial carece de contraditório e ampla defesa, pelo simples fato do mesmo possuir natureza inquisitiva ou se tratar de um procedimento administrativo, passou a surgir opiniões intermediárias sobre o assunto, como por exemplo, o entendimento de Scarance Fernandes, defendendo que “só exige a observância do contraditório, no processo penal, na fase processual, não na fase investigatória” (2002. p. 64). Ou seja, começa-se a aceitar a presença de tais princípios no inquérito, haja vista a “necessidade de se admitir a atuação da defesa na investigação, ainda que não exija o contraditório, ou seja, ainda que não se imponha a necessidade de prévia intimação dos atos a serem realizados” (FERNANDES, 2002. p. 64).

No que diz respeito à ampla defesa, o processualista Aury Lopes Jr. (2012, p. 346) critica que:

É lugar-comum na doutrina a afirmação genérica e infundada de que não existe direito de defesa e contraditório no inquérito policial. Está errada a afirmação, pecando por reducionismo. Basta citar a possibilidade de o indiciado exercer no interrogatório policial sua autodefesa positiva (dando sua versão aos fatos); ou negativa (usando seu direito de silêncio). Também poderá fazer-se acompanhar de advogado (defesa técnica) que poderá agora intervir no final do interrogatório. Poderá, ainda, postular diligências e juntar documentos (art. 14 do CPP). Por fim, poderá exercer a defesa exógena, através do habeas corpus e do mandado de segurança. Então não existe direito de defesa? Claro que sim.

Sintetizando a questão sobre a possibilidade fática dos princípios do contraditório e ampla defesa no inquérito, temos o argumento do doutrinador Tourinho Filho, explicitando que “a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições”.(2009, p. 22).

CONCLUSÃO

Sem dúvidas, os princípios do contraditório e ampla defesa, possuem um papel crucial na garantia dos direitos daquele que está sendo acusado. É perceptível, a evolução da efetivação dos referidos princípios a partir da fase de inquérito, apesar de estarmos mergulhados num sistema processual penal que ainda conserva características inquisitórias, às vezes se mostra árdua (apesar de louvável) a tarefa de ir contra a ideia conservadora e frágil de desconsiderar a presença de tais princípios no decorrer do inquérito policial, principalmente na práxis forense, pois mesmo a sustentação em uma doutrina inovadora que defende a tese da existência do contraditório e ampla defesa no inquérito, ainda está arraigado no meio policial, nítidas tendências inquisitivas, consequência direta da formação histórica de tais instituições no país.

Diante disso, a tarefa de buscar a verdade deve ser efetuada de forma proporcional e justa, desde o início do inquérito até o seu fim e, portanto, é dever que se impõe aos profissionais que atuam na carreira de polícia judiciária, amadurecer a sensibilidade e o respeito aos princípios explícitos ou implícitos no ordenamento jurídico, em específico, os do contraditório e ampla defesa. Portanto, apesar de plausíveis, os argumentos levantados por parcela da doutrina no que concerne à ausência dos aludidos princípios no inquérito, os mesmos são frágeis e passíveis de desconstrução, tal como sugere outra parte da doutrina que defende a existência de tais princípios

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