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Princípio da saisine

Princípio da saisine

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Os sucessores são legitimados para defender direitos, ações, pretensões e exceções daquele que morreu, antes mesmo de qualquer procedimento relativo ao inventário.

Sumário:1. A Morte como Fato Juridicamente Relevante para o Direito Civil. 2. Princípio da Saisine ou Droit de Saisine. 3. Princípio da Sucessão em Todo. 4. Princípio da Aquisição Eo Ipso. 5. Exceções ao Princípio da Saisine. 6. A Herança e os Interesses Tutelados. 7. Entendimento Jurisprudencial. 8. Conclusão


1. A Morte como Fato Juridicamente Relevante para o Direito Civil

O ser humano está sujeito ao inexorável ciclo vital: nascer, crescer, reproduzir, envelhecer e morrer.[1] Correto: alguns só conhecem os extremos do ciclo, mas, mesmo assim, a Lei Civil não os desampara, protegendo todos indistintamente, quer tenham vivido mais de cem anos ou quer tenham tido apenas um ligeiro lapso de existência. A proteção à pessoa humana e a sua dignidade é uma cláusula central do ordenamento jurídico e isso decorre por influência e incidência do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no inciso III, do artigo 3º da Constituição Federal.

O Código Civil é o diploma normativo que rege a vida das pessoas naturais no aspecto jurídico e social desde sua concepção até para depois da morte, razão pela qual há estudiosos que afirmam ser a Lei mais importante do universo jurídico, pois alcançam todas as pessoas naturais.

Conforme asseverado, alguns doutrinadores falam ser o Código Civil mais importante, inclusive, do que a própria Constituição Federal, pois nascendo e morrendo, consecutivamente, lhe alcançaria a proteção existente no Código Civil. Assim, um natimorto terá adentrado na proteção existente no Código Civil, tais quais: (a) os direitos da personalidade serão intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o sofrer limitação voluntária; (b) exigência judicial – qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau terá legitimidade para pleitear a medida - de que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei;  (c) proibição ato de disposição do próprio corpo, ou, ainda, na hipótese de se contrariar os bons costumes; (d) direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome e que não seja empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória; (e) utilização do nome alheio em propaganda comercial.

Logo no portal do Código Civil brasileiro está estampada a seguinte regra jurídica: “Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. No outro extremo da vida encontramos a morte, a indesejada das gentes (na inigualável linguagem de Machado de Assis), prevista consoante artigo 6º do Código Civil: “Art. 6o A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva. Art. 7o Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: I - se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II - se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento”.

Washington de Barros Monteiro ensina que: “A existência da pessoa natural termina com a morte (Cód. Civil, art. 6º). Verificado esse evento, abre-se-lhe a sucessão. Desde o óbito, sem solução de continuidade, opera-se a transmissão da herança, ainda que os herdeiros ignorem o fato do falecimento. Antes da morte, o titular da relação jurídica é o de cujus; depois dela, passa a ser o herdeiro, legítimo ou testamentário. E é o próprio defunto que investe o sucessor no domínio e posse dos bens hereditários. Esse princípio vem expresso na regra tradicional do direito gaulês le mort saisit le vif. Quer dizer, instantaneamente, independente de qualquer formalidade, logo que se abre a sucessão, investe-se o herdeiro no domínio e posse dos bens constantes do acervo hereditário. Dessa máxima le mort saisit le vif surgiu o termo saisine, e, pois, saesina juris, pelo qual os velhos práticos assinalavam a transmissão da herança”.[2]

O direito reputa importante determinados atos, trazendo-os para a esfera jurídica, com o timbre da ordem jurídica. Nascimento, maioridade, insanidade e morte são algumas das hipóteses que demonstram a relevância dos fenômenos naturais para a esfera jurídica. Marcos Bernardes de Melo dispara:

“Todo fato jurídico em que, na composição do seu suporte fáctico, entram apenas fatos da natureza, independentes de ato humano como dado essencial, denomina-se fato jurídico stricto sensu. O nascimento, a morte, o implemento de idade, a confusão, a produção de frutos, a aluvião, a aluvião, a avulsão, são exemplos de fatos jurídicos stricto sensu”.[3]

O Direito possui interesse na morte, em razão de sua importância não apenas como um rito de passagem ou de um momento de introspecção e reflexão sobre a necessidade de celebração e valorização da vida; a morte desencadeia o sistema penal quando haja sido cometida com intuito criminoso; enfim, a morte faz desencadear uma série de efeitos jurídicos, previstos no sistema legal.  Segundo Pietro Perlingieri: “Mesmo depois da morte do sujeito, o ordenamento considera certos interesses tuteláveis. Alguns requisitos relativos à existência, à personalidade do defunto - por exemplo, a sua honra, a sua dignidade, a interpretação exata da sua história - são de qualquer modo protegidos por um certo período de tempo”  ou seja “enquanto forem relevantes também socialmente”.[4] Algumas pessoas, individuadas pelo ordenamento, serão legitimadas a tutelar os interesses dos sucessores do de cujus. 

Cabe realçar que todo um capítulo existente no Código Civil estabelece regras que necessariamente tocam aqueles aos bens daqueles que já partiram dessa para uma nova realidade. Em matéria sucessória não vigora o preceito de que a morte resolve tudo, estampado no aforisma latino “mors omnia solvit”: a morte não resolve tudo, uma vez que o complexo de relações jurídicas nas quais o decujo tenha figurado como credor, devedor, contratante, contratado, proprietário, possuidor, enfim, necessita ser resolvidas ou extintas, consoante as mais diversas soluções previstas na ordem legal.

 O sujeito que então figurava como uma das partes de uma relação jurídica é reduzido a cadáver. Cadáver não possui personalidade, sentimento ou titulariza quaisquer direitos, conquanto possamos afirmar que o ordenamento jurídico proteja-o em razão de ser objeto de eventual crime de destruição, subtração, ocultação ou vilipêndio de cadáver, como estabelece os artigos 211 e 212 do Código Penal. A pessoa natural, com a morte, deixa de ser titular de direitos e doravante é apenas um finado, extinto ou, como comumente se chama, de cujo.

 A expressão de cujus, utilizada tanto no masculino quanto no feminino, é uma abreviação da "de cujus sucessione agitur” que significa “de cuja sucessão se trata” e é utilizada no lugar do nome do falecido ou extinto, não sofrendo flexão de gênero ou quantidade.


2. Princípio da Saisine ou Droit de Saisine

  Como afirmado acima, talvez uma das mais conhecidas consequências da morte seja a transmissão de direitos, ações, pretensões, exceções e interesses que eram titularizados pelo de cujus e para os seus sucessores, legítimos ou testamentários.

A herança (=acervo patrimonial, isto é, todo o conjunto de créditos e dívidas) é transmitida automaticamente, desde a abertura da sucessão,[5] isto é, desde o momento em que ocorrida a morte. O droit de saisine ou direito de saisine, já possui tradição em nosso ordenamento jurídico. Carlos Maximiliano é direto e objetivo: “Todos os direitos que se incluem na sucessão causa mortis, ficam transferidos ao herdeiro no momento do traspasse ao de cujus; imediatamente o domínio deste se torna domínio daquele, a posse de um posse do outro. Efetua-se a transmissão ipso jure, por efeito da lei, ainda mesmo que o sucessor ignore o fato e o seu direito do mesmo decorrente”.[6]

O princípio da saisine está categoricamente disposto no artigo 1.784 do Código Civil:[7]

“Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”.

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda ensina que em “francês, saisine é palavra de origem germânica, que significa posse, - mais direito de possuir, ou posse que o direito dá, do que posse no sentido de exercício efetivo. Tão portuguesa, como de outra língua, porque está nos textos do latim cosmopolita: saisina, in saisina. No brocardo francês, le mort saisit le vif, a psique germânico-latina da França bem se retrata: saisir, do germânico, traduz a passagem, por força de direito, da posse do defunto aos herdeiros, isto é, palavra germânica para exprimir conceito germânico”.[8]

O civilista Carlos Roberto Gonçalves, com lastro em conceito do Código Civil Lusitano de 1967, ensina: "O princípio da saisine foi introduzido no direito português” e que “O Código Civil português de 1967, já revogado, dizia no art. 2.011: "A transmissão do domínio e posse da herança para os herdeiros, quer instituídos, quer legítimos, dá-se no momento da morte do autor dela".[9] Maria Berenice Dias informa que a “pedra de toque do direito sucessório é o chamado princípio de saisine, que teve origem na França, como oposição ao regime que vigorava à época do feudalismo. Com o falecimento do servo, o senhor feudal assumia o direito à herança e o herdeiro só a recuperava mediante o pagamento de pesados impostos. Daí a transmissão automática do patrimônio aos herdeiros, ficção para driblar a tributação”.[10] O direito de saisine nada mais representa que uma ficção jurídica, que tem a potencialidade de transferir o acervo patrimonial do falecido a seus sucessores, independente de qualquer formalidade legal. O princípio de saisine, palavra de origem francesa que significa agarrar, prender, apoderar-se.[11]

O jurista Ricardo Fiúza ressalta que: "Com o falecimento do indivíduo, abre-se-lhe a sucessão. O patrimônio do de cujus, com o nome de herança, passa aos seus sucessores. Na França, desde o século XIII, fixou-se o droit de saisine, instituição de origem germânica, pelo qual a propriedade e a posse da herança passam aos herdeiros, com a morte do hereditando - le mort saisit le vif. O Código Civil francês, de 1804 - Code Napoléon -, diz, no art. 724, que os herdeiros legítimos, os herdeiros naturais e o cônjuge sobrevivente recebem de pleno direito (son saisis de plein droit) os bens, direitos e ações do defunto, com a obrigação de cumprir todos os encargos da sucessão. No Código Civil alemão - BGB -, arts. 1.922 e 1.942, seguindo o direito germânico medieval, afirma-se, igualmente, que o patrimônio do de  cujus passa ipso jure, isto é, por efeito direto da lei, ao herdeiro.  O princípio da saisine foi introduzido no direito português pelo Alvará de 9 de novembro de 1754, reafirmado pelo Assento de 16 de fevereiro de 1786. O Código Civil português, de 1867, já revogado, dizia, no art. 2.011: "A transmissão do domínio e posse da herança para os herdeiros, quer instituídos, quer legítimos, dá-se no momento da morte do autor dela". A mesma solução constou no art. 978 da Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas. E o Código Civil de 1916 manteve essa linha, enunciando, no art. 1.572: "Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários". Filiou-se, portanto, ao sistema germânico-francês. O vigente Código Civil português, de 1966, abandonou a antiga tradição afirmando, no art. 2.050, I: "O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente de sua apreensão material". A inspiração veio do art. 459 do Código Civil italiano: "L'eredità si acquista con l'accettazione". Nesses países, portanto, a aquisição da herança não se dá por força da lei, mas depende do ato voluntário da aceitação. Porém, tanto o Código Civil português (art. 2.050, 2) quanto o italiano (art. 459) dispõem que os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão. Pelo art. 1.784, sob comento, terminando a existência da pessoa natural com a morte (art. 6º), extinguindo-se a personalidade civil, que começou do nascimento com vida (art. 2º), abre-se a sucessão, dando-se, no mesmo instante, a transmissão do patrimônio do de cujus".[12]

Ocorrendo a existência de herdeiros, estes são condôminos do acervo e o estado de indivisão apenas cessa com a sentença de partilha, que “no sentido estrito do Direito de Sucessões, é a operação processual pela qual a herança passa do estado de comunhão pro indiviso, estabelecido pela morte e pela transmissão por força de lei, ao estado de quotas completamente separadas, ou ao estado de comunhão pro indiviso ou pro diviso, "por força da sentença".”[13]

Na sucessão legítima ou testamentária, os sucessores recebem com a simples ocorrência da morte do de cujus a integralidade de propriedades e a posses de bens que compõem todo o patrimônio hereditário, também denominado de acervo sucessório ou acervo hereditário.

Com a ocorrência da morte e incidência do princípio da saisine, sendo uma fundação instituída por testamento pelo de cujo, por ato de última vontade, a propriedade dos bens dotados e especializados a determinado fim é desde logo transferida desde logo para o cumprimento das finalidades institucionais da fundação, operando a partilha efeito declaratório e não possuindo o registro do formal de partilha natureza constitutiva do direito real imobiliário[14]; doutro lado, nos atos jurídicos causa mortis a aquisição da propriedade e de outros direitos reais sobre imóveis independe do registro, quando ocorrente a usucapião; na sucessão os herdeiros adquirem a titularidade da propriedade e posse dos bens móveis e imóveis do de cujus, no exato momento da ocorrência da morte (droit de saisine). [15]

Com o advento da morte todo universo patrimonial do falecido é transmitido aos herdeiros, os quais passam a agir como titulares do domínio por força do princípio da saisine e porque o Direito não quer que todo o patrimônio do extinto fique um segundo sequer sem titularidade. Todos os direitos, ações, pretensões e exceções do extinto passam, automaticamente, para os sucessores, legítimos ou testamentários. Washington de Barros Monteiro remata: “Do disposto no citado art. 1.784 decorre que, aberta a sucessão, a herança se transmite imediatamente aos herdeiros, que se tornam, assim, titulares de direitos adquiridos. Tal situação, definitivamente constituída, não pode ser afetada ou comprometida por fato novo, ou por lei nova, ex vi do estatuído no art. 5º, n. XXXVI, da Constituição Federal de 1988 e no art. 2.041 do Código Civil de 2002. Em matéria de vocação hereditária não se legisla para alcançar o passado, mas apenas para reger o futuro. A lei do dia da morte rege todo o direito sucessório, quer se trate de fixar a vocação hereditária, quer de determinar a extensão da quota hereditária. Não pode a lei nova disciplinar sucessão aberta na vigência da lei anterior”.[16]

Pontes de Miranda alerta que o princípio da saisine vigora de dois princípios distintos: (a) princípio da sucessão em todo; (b) princípio da aquisição eo ipso.


3. Princípio da Sucessão em Todo

Quis a Lei que toda a herança passasse com indivisibilidade aos sucessores. Poderia a lei prever que fosse transmitida, apenas, parte determinada do acervo patrimonial, como, por exemplo, direitos imobiliários ou determinados direitos pessoais. Entretanto, a Lei, por questões de política legislativa, praticidade na administração do acervo hereditário e segurança jurídica, preferiu que a sucessão fosse transmitida in totum. Segundo Pontes de Miranda, “a herança passa aos herdeiros como todo, indo, como unidade (ativo e passivo, domínio, nuas propriedades, domínio útil, direitos reais, créditos), aos que são chamados e que recolhem”.


4. Princípio da Aquisição Eo Ipso

Para a transmissão da herança aos sucessores é dispensável qualquer prática de ato ou negócio jurídico, isto é, a transmissão decorre automaticamente em razão do óbito do autor do acervo. O princípio da aquisição eo ipso, em decorrência da influência tedesca, também é conhecido como Prinzip des ‘eo ipso Erwerbes’.

Assim, os bens que compõem a herança do de cujus passam aos herdeiros sem a necessidade de prática de qualquer ato e sem necessidade de qualquer manifestação de vontade. Aberta a sucessão, isto é, ocorrida a morte, a transmissão do acervo hereditário decorre ex vi legis, é automática, desprezando-se qualquer elemento volitivo dos sucessores ou interessados. A doutrina germânica mais uma vez influenciou o direito brasileiro, pois o princípio da aquisição eo ispo  é retrato do Der Tote erbt den Lebendigen, le mort saisit le vil, a saisina de direito, saisina iuris.[17]


5. Exceções ao Princípio da Saisine

Conquanto a regra seja a da incidência do princípio da saisine, isto é, que aos sucessores seja transmitido todo o acervo hereditário imediatamente, há exceções a tal proceder.

Em primeiro lugar, ao poder público não é extensível o princípio da saisine. Maria Berenice Dias assevera que inexistindo “herdeiros - nem obrigatórios, nem facultativos ou testamentários -, não ocorre a abertura da sucessão. Na falta de sucessores os bens são arrecadados como herança jacente, ou seja, herança que não tem dono. Concluído o processo de declaração de vacância, os bens passam ao domínio do ente público do município onde se encontram situados. A pessoa jurídica de direito público não se beneficia do princípio de saisine. A ele não se transmite o domínio e a posse da herança, mesmo que o falecido não tenha herdeiros. A aquisição da titularidade da herança ocorre por meio da sentença que dispõe de eficácia constitutiva”.[18]  Em sentido similar vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça: STJ, 4ª Turma, REsp 164.196/RJ, Relator: Ministro Barros Monteiro, julgado em 3/9/1998, DJ 4/10/1999, p. 59.[19]

Em segundo lugar, o Decreto-Lei 3.438/1941, veda a sucessão de cônjuge estrangeiro em terrenos de marinha.[20]

Em terceiro lugar, o Decreto-Lei 3.182/1941, proíbe a sucessão de estrangeiros em ações ou quotas de bancos de depósito.

Em quarto lugar, o Decreto-lei 2.063/1940, determina, quanto às ações de companhias de seguros, sejam elas vendidas em bolsa, não havendo cônjuge, herdeiros ou legatários brasileiros a quem se faça a transferência.

Em quinto lugar, carece de manifestação favorável do Conselho Nacional de Segurança a transmissão inter vivos ou causa mortis de terras fronteiriças, consoante dispõe o artigo 205 do Decreto-Lei 9.760/1946.

Em sexto lugar, vem o Decreto-Lei 227/1967, dispondo que a autorização da pesquisa mineral só é transmissível a herdeiros necessários ou cônjuge sobrevivente.

Em sétimo lugar, o Decreto-Lei 5.384/1943, preceitua que, na falta de beneficiário nomeado, pagar-se-á o seguro de vida metade à mulher e metade aos herdeiros do segurado, o mesmo acontecendo no tocante aos pecúlios deixados em Institutos de Previdência que, na falta de designação especial de beneficiários, se deferem aos herdeiros e cônjuge supérstite.

Em oitavo lugar, a Lei de Direitos Autorais, número 9.610/1998, dispõe que cairá em domínio público as obras de autores falecidos que não tenham deixado sucessores, bem como acrescer-se-ão aos dos sobreviventes os direitos do coautor que falecer sem sucessores.

Em nono lugar, o artigo 692, inciso III do Código Civil de 1916, em vigor por força do artigo 2.038 do Código Civil de 2002, determina que, no que atine à enfiteuse, que ela se extingue se falece o enfiteuta, sem herdeiros, salvo o direito dos credores.


6. A Herança e os Interesses Tutelados

Não pode ser esquecida que a disposição do artigo 5º inciso XXX da Constituição Federal, no sentido de ser “garantido o direito de herança” não dispensa o pagamento de todo o passivo do de cujus, razão pela qual as forças da herança poderão ser exauridas com o pagamento de obrigações ou dívidas do extinto autor do espólio, mas os sucessores não ficarão obrigados pelo pagamento de eventuais dívidas ou obrigações que superem os valores auferidos pelo recebimento do acervo patrimonial, de maneira legal ou testamentária.

Importante regra legal traz as disposições finais do Código Civil de 2002. Com a finalidade de não ser atingida a propriedade e os demais direitos reais eventualmente aperfeiçoados com sucessão aberta ainda na vigência do Código Civil de 1916 (como eventualmente o direito de propriedade dos herdeiros e o de usufruto dos cônjuges supérstites), estabeleceu o artigo 2.041 do Código Civil de 2002 sua aplicação ex nunc, pois:

“A norma em tela é consequência da aplicação do princípio da saisine, vislumbrando no art. 1.784 do Código Civil. Com o óbito automaticamente há a transmissão do patrimônio do de cujus aos seus herdeiros, sem solução de continuidade. [...]

A lei de toda e qualquer sucessão é a lei da data do óbito. Assim, todos os óbitos verificados antes de 11.01.2003 seguem as regras sucessórias do Código Civil de 1916, mesmo que a partilha seja ultimada tempos depois da vigência da nova lei civil. O registro da sentença que ultima o inventário é ato meramente declaratório de uma aquisição que já se deu de pleno iure com o óbito. A lei nova não pode retroagir para capturar as sucessões anteriores ao Código Civil de 2002 - mesmo no período de vacatio legis - sob pena de malferir a garantia fundamental dos sucessores ao direito adquirido e incorporado ao seu patrimônio ao tempo da legislação revogada.

Enfim, o aspecto temporal é fundamental na sucessão, sobremaneira diante das severas modificações da ordem de vocação hereditária no Código Civil de 2002 em favor do cônjuge (art. 1.829 c/c o art. 1.845 do CC)”.[21]

Nesse contexto, existe o dever anexo de prestação de contas do outorgado em relação aos sucessores (herdeiros ou testamentários) do falecido outorgante, ainda que se alegue que a morte do mandante extingue o mandato. Assim, o dever de prestação de contas, o ajuizamento da respectiva ação de prestação de contas tem início após a realização da finalidade do contrato de mandato, persistindo após o término da relação contratual encetada.

Em decorrência do direito de saisine, existe obrigação de prestação de contas em relação aos sucessores (testamentários ou herdeiros) do de cujus, pois os herdeiros ficam automaticamente investidos na titularidade de todo o patrimônio (ativo e passivo) do de cujus.


7. Entendimento Jurisprudencial

O Superior Tribunal de Justiça entende assistir legitimidade aos sucessores para pleitearem direitos transmitidos pelo de cujus antes mesmo de inaugurado o processo de inventário, consoante precedentes (STJ, MS 20365/DF, Relator: Ministro Sérgio Kukina, julgamento 9/4/2014).

Também entende o Superior Tribunal de Justiça a manutenção e necessidade do dever de prestação de contas de mandatário aos sucessores do de cujus. Destarte, ainda que tenha se operado intuito personae a celebração do contrato de mandato e a outorga de procuração, consoante inteligência do artigo 668 do Código Civil indispensável o acerto de contas, salvo, se existia expressa e voluntária previsão de dispensa no momento da celebração do contrato de mandato e outorga de instrumento procuração, geralmente sob a expressão “isento da prestação de contas”.  Confira-se: STJ, 3ª Turma, REsp 1122589/MG, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 10/4/2012, DJe 19/4/2012.

 O momento da morte também impede que o apetite do fisco tribute aquilo que não esteja na concepção do elemento temporal do fato gerador. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se consolidou até que tomou forma a Súmula 112, no sentido de que “O Imposto de Transmissão causa mortis é devido pela alíquota vigente ao tempo da abertura da sucessão”. Afinado com tal entendimento, decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “Arrolamento. Imposto de transmissão causa mortis. Fato gerador localizado na transmissão de bens em decorrência do óbito. Alíquota incidente sobre o valor dos bens à data da abertura da sucessão. Inaplicabilidade da lei tributária posterior (art. 144 do CTN e Súmula n. 112 do STF). Recurso improvido.” TJSP, AI. 231.533-4/7-00, Relator: Desembargador Carlos Roberto Gonçalves, j. 29/1/2002. Doutra banda, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, decidiu a temática:

“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. DIREITO INTERTEMPORAL. DIREITO DE SAISINE. ÓBITO. APLICAÇÃO DA LEI VIGENTE. LEI 7.713/88. BENS ADQUIRIDOS POR HERANÇA. ISENTOS DE IMPOSTO DE RENDA. TRANSFERÊNCIAS CAUSA MORTIS. EXCLUSÃO DO GANHO DE CAPITAL DOS HERDEIROS E LEGATÁRIOS. LEGISLAÇÃO POSTERIOR. MODIFICAÇÃO DE TRATAMENTO. INAPLICABILIDADE. 1. A solução da controvérsia trazida à colação está em fixar o momento da transmissão da herança e, partindo deste, em aplicar o princípio da irretroatividade da lei tributária. 2. O artigo 1.572 do antigo Código Civil, em vigor ao tempo do falecimento do autor da herança, transmitiam-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários, no que encontra correspondência no artigo 1.784 do novo Código Civil. 3. Adotou-se o princípio originário do droit de saisine, que dá à sentença de partilha caráter meramente declaratório, haja vista que a transmissão dos bens aos herdeiros e legatários se dá no momento do óbito do transmitente. 4. As regras a serem observadas na transmissão da herança serão aquelas em vigor ao tempo do óbito do de cujus que, no caso em tela, e no que tange à incidência do Imposto de Renda, encontravam-se na Lei 7.713/88. 5. Dispunha o citado diploma legal, no inciso XIV, do artigo 8º, e no inciso III, do artigo 22, que o valor dos bens adquiridos por herança serão isentos do imposto de renda e que as transferências causa mortis serão excluídas do ganho de capital dos herdeiros e legatários. 6. A tese defendida pela recorrida, de que o fato gerador do imposto na espécie, a ensejar o recolhimento do imposto, é o acréscimo patrimonial decorrente da reavaliação patrimonial dos bens constantes da última declaração do de cujus, há de ser refutada, haja vista que faz incidir ao caso em comento sistemática criada por lei posterior à transmissão dos bens deixados pelo transmitente, que se deu sob a égide da Lei 7.713/1998, com consequente violação do princípio da irretroatividade das leis tributárias. 7. Por unanimidade, deu-se provimento à apelação em Mandado de segurança.” TRF, 2ª Região, 5ª Turma, AMS 50702/RJ, Relator: Desembargador Federal Alberto Nogueira, DJ 29/6/2004, p. 129.

O Superior Tribunal de Justiça acertadamente não destoou de tal interpretação: STJ, 2ª Turma, REsp 829.932/RS, Relator: Ministro Castro Meira, julgado em 10/4/2012, DJe 23/4/2012. Também decidiu o o Superior Tribunal de Justiça que penhora realizada em imóvel cuja titularidade é do de cujus, mostra-se viável o ajuizamento de embargos de terceiro pelo herdeiro necessário, a fim de defender o acervo dos atos de expropriação judicial. STJ, 1ª Turma, AgRgREsp 1404889/PE, Relator: Ministro Benedito Gonçalves, julgado em 23/6/2015, DJe 5/8/2015.


8. Conclusão

Decorrência dos princípios jurídicos da sucessão em todo e da aquisição eo ipso, o princípio da saisine ou droit de saisine é relevante para que inexista vácuo na titularidade e para imprimir proteção ao acervo patrimonial oriundo do de cujus que, por razões de ordem jurídica e econômica, não devem ficar um segundo sequer sem titularidade. Assim, os sucessores serão legitimados a defenderem os direitos, ações, pretensões e exceções daquele que foi extinto pela morte, denominado de cujus.

 Há exceções, entretanto, ao princípio da saisine, conforme interesses públicos relevantes e normativos aplicáveis à espécie.


BIBLIOGRAFIA

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Notas

[1] “Assim, a morte é fato e a morte conhecida é suporte fáctico.” MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico - Plano de Existência. 7ª edição, atualizada. São Paulo/SP : Editora Saraiva, 1995, p. 49.

[2] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito das Sucessões. Atualizado por: Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto. São Paulo/SP : Editora Saraiva, 2003, p. 14.

[3][3] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico - Plano de Existência. 7ª edição, atualizada. São Paulo/SP : Editora Saraiva, 1995, p.  107.

[4] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3ª edição. Rio de Janeiro/RJ : Editora Renovar, 2007, p. 111.

[5] Nesse sentido: “Sucessão é a transmissão de direitos. Pode efetuar-se entre pessoas vivas ou por motivo de óbito: inter vivos ou causa mortis. É desta sucessão, em sentido estrito ou propriamente dita, que este livro se ocupa. Divide-se em legítima, quando decorre da lei, e testamentária, oriunda de disposições de última vontade. Pode ser atribuída a título universal, ou singular: no primeiro caso, à pessoa beneficiada cabe o acervo hereditário em conjunto ou fracionado em partes ideais (metade, um terço, um quarto, etc, do monte partível); no segundo, recebe determinados bens; em uma hipótese, o titular do direito se denomina herdeiro; na outra, legatário. Direito das Sucessões, em sentido objetivo, é o conjunto das normas reguladoras da transmissão dos bens e obrigações de um indivíduo em consequência da sua morte. No sentido subjetivo, mais propriamente se diria — direito de suceder, isto é, de receber o acervo hereditário de um defunto. Das próprias definições supra já se deduz não se transmitirem direitos públicos, nem de família”.” MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões. Tomo I. Rio de Janeiro/RJ : Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 19.

[6] MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões. Tomo I. Rio de Janeiro/RJ : Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 55.

[7] O artigo transcrito tinha correspondência no Código Civil de 1916 em seu artigo 1.572.  FUJITA, Jorge Shiguemitsu relaciona os seguintes dispositivos no Direito Comparado: Na Alemanha: Código Civil, art 1.922; Argentina: Código Civil, artigos 3.262-3.289; Chile: Código Civil, artigos 951-960; Colômbia: Código Civil, artigos 1.008-1.017; Espanha: Código Civil, artigos 657-661; França: Código Civil, artigos 718-724; Itália: Código Civil, artigos 456-461; Japão: Código Civil, artigos 882-885; Peru: Código Civil, artigos 660-663; Portugal: Código Civil, artigos 2.024°-2.030°; Quebec: Código Civil, artigos 613-616 e Suíça: Código Civil, artigos 537-550.

[8] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Direito das Sucessões: sucessão testamentária. Testamentos em geral. Disposições testamentárias em geral. Herança e Legado. Tomo LVI. São Paulo/SP : Editora Revista dos Tribunais, 1984, pp. 26-27.

[9] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Volume VII. 2ª Edição. São Paulo/SP : Editora Saraiva, 2008, p. 5.

[10] DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2ª edição: revista, atualizada e ampliada. São Paulo/SP : Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 28.

[11] DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2ª edição: revista, atualizada e ampliada. São Paulo/SP : Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 107.

[12] FIUZA, Ricardo. Código Civil Comentado. 8ª Edição. São Paulo/SP : Editora Saraiva, pp. 1.950-1.951.

[13] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Direito das Sucessões: Testamenteiro. Inventário e Partilha. Tomo LX. 3ª edição, 2ª reimpressão. São Paulo/SP : Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 223.

[14] Nesse sentido: LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. 3ª edição. São Paulo/SP : Editora Gen Método, 2012, p. 184.

[15] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. 3ª edição. São Paulo/SP : Editora Gen Método, 2012, pp. 264-265.

[16] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito das Sucessões. Atualizado por: Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto. São Paulo/SP : Editora Saraiva, 2003, p. 18.

[17] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Direito das Sucessões: sucessão testamentária. Testamentos em geral. Disposições testamentárias em geral. Herança e Legado. Tomo LVI. São Paulo/SP : Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 20.

[18] DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2ª edição: revista, atualizada e ampliada. São Paulo/SP : Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 103.

[19] Julgamento similar foi realizado pela 4ª Turma, REsp 100.290/SP, Relator: Ministro Barros Monteiro, julgado em 14/05/2002, DJ 26/8/2002, p. 220.

[20] As hipóteses de exceção ao princípio da saisine  foram colhidas na obra: MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito das Sucessões. Atualizado por: Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto. São Paulo/SP : Editora Saraiva, 2003, p. 21.

[21] ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado. Coordenador: PELUSO, Cezar. 2ª edição. Barueri/SP: Editora Manole, 2008, p. 2.153.


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VALE, Horácio Eduardo Gomes. Princípio da saisine. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4765, 18 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50401. Acesso em: 27 abr. 2024.