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O princípio da igualdade e o Direito do Consumidor

O princípio da igualdade e o Direito do Consumidor

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1.Introdução

Em consonância com uma tendência mundial, o legislador pátrio reconheceu o aspecto de vulnerabilidade do consumidor, haja vista a situação desprotegida deste frente aos fornecedores de produtos e/ou serviços que no intuito de fazer escoar seus bens, utilizam-se de todos os tipos de técnicas para auferir lucros.

A ferocidade do mercado fez surgir os métodos comerciais coercitivos ou desleais, as práticas abusivas, o detrimento da qualidade dos produtos e/ou serviços às vezes até pondo em risco a saúde e a segurança do consumidor, tudo isto aliados a técnicas cada vez mais avançadas de propaganda e marketing que induzem o consumidor a sentir necessidade de obter bens ou serviços muitas vezes supérfluos.

Em função disso, a lei 8.078/90, criou um micro-sistema jurídico, corporificando normas de interesse público, ajustando os desequilíbrios do mercado, oferecendo ao consumidor uma tutela jurídica capaz de protegê-lo e ao mesmo tempo reprimindo os abusos do consumerismo.

Este sentido de proteção ao consumidor encontra respaldo na própria Constituição Federal de 1988, que institui a defesa do consumidor como garantia individual do cidadão e como princípio da ordem econômica. Esta preocupação constitucional com o consumidor revela o reconhecimento do desequilíbrio das relações de consumo e a necessidade de criar um sistema jurídico que vise contrabalançar as condições do consumidor e do fornecedor, igualando-os.

É claro neste contexto a aplicação do princípio da igualdade sobretudo em seu aspecto material, consagrada na Carta Magna de 1988 e inspiradora das normas que tutelam os direitos do consumidor.

Revela-se, portanto, a evolução do princípio da isonomia, que não possui a virtude de igualar somente as relações emanadas do direito público, mas propiciar um alcance exegético mais amplo enfocando as relações de direito privado e trazendo para este ramo um sentido de equilibrar situações desiguais.

De início, cabe ressaltar que o presente trabalho visa esclarecer a sistemática do desenvolvimento do princípio da igualdade em sua noção histórico-evolutiva, abordando as diferentes matizes que lhe foram impostas pela sociedade ocidental.

Após a definição do que seja o princípio da igualdade, faz-se uma distinção do que representa o princípio da isonomia nos campos do direito público e do direito privado, analisando-se o seu desdobramento nas relações privadas, desde os primórdios do modelo da civilização jurídica, até a necessidade de se estabelecer normas que assegurem o princípio em comento.

Por fim, será analisado o princípio da igualdade como fundamento da chamada "defesa do consumidor", e da edição do Código de Proteção e Defesa dos Consumidores – Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, pontuando-se os principais aspectos dessa relação e seus efeitos na sociedade.


2.0 O Princípio da Igualdade

A noção que se deve compreender do princípio da igualdade está voltada para o que a sociedade entenda que ele seja. Assim, seria temerário conceituar de forma simples e unilateral o que seja o princípio jurídico da igualdade sem fazer uma análise histórica para se vislumbrar a sua evolução conceitual dada pelos povos no decorrer da história.

O princípio da isonomia é criação dos homens e, portanto, reflexo de valores das sociedades, tornando, assim, mutável o seu conceito e sua aplicação quer em relação à época, quer em relação à determinada sociedade. Assim, o que se entende como igualdade jurídica no Brasil pode não ser da mesma forma entendida em outro país, e, a isonomia de tempos passados pode não corresponder ao que se entende por igualdade atualmente.

Por outro lado a igualdade obtém contornos próprios dependendo do ramo do direito em análise, pois em um mesmo sistema jurídico pode coexistir tanto a igualdade como a desigualdade, assim em 1916, quando foi instituído o Código Civil, havia notória discriminação da mulher relevada a um papel secundário em relação ao homem dentro da sociedade conjugal, ao passo que, se esta mesma mulher antes de casar fosse celebrar um contrato de compra e venda ela seria tratada de forma igualitária mesmo que do outro lado da relação obrigacional estivesse um homem ou um grupo de homens. Percebe-se por este exemplo que o direito civil codificado nesta época previa tratamento desigual entre homens e mulheres no direito de família e tratamento igual entre os sexos no direito obrigacional.

A contradição existente no início do século XX justificava-se pela sociedade eminentemente patriarcal e pelo liberalismo no direito contratual, corroborando a convivência de igualdade e desigualdade no mesmo ramo do direito.

Há de se entender também que o princípio da igualdade reveste-se de grande importância social, pois em virtude de inúmeras desigualações provenientes de contigências econômicas, culturais, geográficas, políticas e humanas, que se inserem no contexto da sociedade cumpre ao direito utilizar-se amplamente dos critérios encampados da isonomia para se atingir a justiça.

Neste passo revela-se o princípio em estudo seu papel fundamental para a transformação social equilibrando situações injustas e promovendo o bem de toda a coletividade, quer reconhecendo a hipossuficiência de alguns, quer tolhendo privilégios injustificados de outros.

A correlação existente entre o princípio da igualdade e o ideal de justiça é bastante clara. Tal posicionamento é defendido por Cármen Lúcia Antunes Rocha da seguinte forma: "A igualdade no direito é arte do homem. Por isto o princípio jurídico da igualdade é tanto mais legítimo quanto mais próximo estiver o seu conteúdo da idéia de justiça em que a sociedade acredita na pauta da história e do tempo" (ROCHA, 1990, p. 28). Assim sendo, o princípio jurídico da isonomia deve ser entendido como uma ferramenta para se materializar a justiça, norteando tanto aos legisladores quanto aos operadores do direito este critério para a edição e aplicação justa da norma de acordo com a idéia de justiça que possua a sociedade em seu trajeto histórico.

2.1 Evolução Histórico-Conceitual do Princípio da Igualdade

Para se entender a noção exata do princípio da igualdade deve-se, primeiramente, compreender a sua evolução histórica, ressaltando as principais contribuições dos povos que influenciaram a construção deste princípio.

Pode-se dividir em três fases a caminhada evolutiva da isonomia: na primeira tinha-se como regra a desigualdade; na segunda a idéia de que todos eram iguais perante a lei, significando que a lei deve ser aplicada indistintamente aos membros de uma mesma camada social; e na terceira, de que a lei deve ser aplicada respeitando-se as desigualdades dos desiguais ou de forma igual aos iguais.

Cármen Lúcia Antunes Rocha define da seguinte forma esse primeiro momento:

"[...] a sociedade cunhou-se ao influxo de desigualdades artificiais, fundadas, especialmente, nas distinções entre ricos e pobres, sendo patenteada e expressa a diferença e a discriminação. Prevaleceram, então, as timocracias, os regimes despóticos, asseguraram-se os privilégios e sedimentaram-se as diferenças, especificadas em leis. As relações de igualdade eram parcas e as leis não as relevavam, nem resolviam as desigualdades (ROCHA, 1990, p. 35)".

A sociedade então agraciava a desigualdade fundamentando este sistema nas leis, proporcionando para quem mais detivesse poder e riqueza mais privilégios. Às pessoas que não possuíam tais privilégios restava suportar de forma silente os desmandos dos poderosos.

O pensamento filosófico de Platão e Cícero não dissolvia as desigualdades criadas pelas sociedades grega e romana respectivamente. Os privilégios eram aceitos normalmente e a existência da escravidão dos homens não era contestada. A sociedade antiga legitimava a diferenciação entre ricos e pobres e não se preocupava em igualar os desiguais, mas sim em tornar jurídica a desigualdade.

Apesar de ser creditado a Aristóteles a célebre frase "a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais" pouco se fez nos povos antigos para desencadear o processo de igualação das pessoas, podendo ser citado como exceção:

"[...], a Lei das XII das Tábuas, pela qual consagra a igualdade entre patrícios e plebeus, o Edito Perpétuo que estende a igualdade às populações de outras etnias e o Edito de Caracalla ou Constitutio Antoniniana, que concede direito da cidadania de todos os habitantes do império (ROCHA, 1990, p. 30)".

Na idade média a desigualdade atinge o seu clímax, haja vista que a sociedade cada vez mais enrijecia as diferenças e da mesma forma o pensamento filosófico as legitimava. Era o tempo dos suseranos e dos vassalos no qual se utilizava o critério de posses de terras para se distinguir as camadas sociais que formavam o modelo de sociedade estamental. Cláudio Vincentino explica esta sociedade da seguinte forma:

"[...], a sociedade feudal era composta por dois estamentos, ou seja dois grupos sociais com status fixo: os senhores feudais e os servos. Os servos eram constituídos pela maior parte da população camponesa, vivendo como os antigos colonos romanos – presos à terra e sofrendo intensa exploração. Eram obrigados a prestar serviços ao senhor e a pagar-lhe diversos tributos em troca de permissão de uso da terra e proteção militar (VINCENTINO, 1997, p. 109)".

A filosofia nesta época teve grande influência do cristianismo, em função do papel preponderante que exerceu a Igreja na idade média sobre os Estados e sobre a sociedade, ditando as normas, os comportamentos aceitáveis, os valores e a cultura medieval. Giorgio Del Vecchio esclarece o pensamento filosófico:

"A liberdade e a igualdade de todos os homens, a unidade da grande família humana, constitui, sem dúvida o corolário da pregação evangélica. Estas idéias, contudo, não foram diretamente dirigidas contra a ordem política existente. A própria escravatura não combatida, mas respeitada como instituição humana, muito embora se afirmasse a igualdade dos homens perante a lei divina. Os Padres da Igreja chegaram a considerá-la como condição propícia aos servos e aos senhores: aos primeiros, para se exercitarem na paciência e obediência devida aos segundos; a estes, na doçura e benevolência devida àqueles (VECCHIO, 1979, p. 59)".

Em um segundo momento histórico a igualdade ganha terreno e começa a ser reconhecida como uma necessidade para juridicizar as transformações sociais que levaram ao nascimento do Estado moderno. Com efeito, o renascimento comercial proporcionou a volta da moeda como fator de enriquecimento em detrimento da propriedade do sistema feudal, abrandando dessa forma o poder dos suseranos. O sistema feudal entra em declínio, e, no mesmo compasso, surgem as cidades, as grandes monarquias nacionais e uma nova classe social – os burgueses.

Apesar de terem ajudado a construir as monarquias absolutistas, a burguesia pouco a pouco foi se insurgindo contra esse modelo estatal que privilegiava os nobres e limitava o seu crescimento social. Cármen Lúcia Antunes Rocha resume de forma brilhante este momento histórico:

"[...], a sociedade estatal ressente-se das desigualdades como espinhosa matéria a ser regulamentada para circunscrever-se a limites que arrimassem as pretensões dos burgueses, novos autores das normas, e forjasse um espaço de segurança contra as investidas dos privilegiados em títulos de nobreza e correlatas regalias no Poder. Não se cogita, entretanto, de uma igualação genericamente assentada, mas da ruptura de uma situação em que prerrogativas pessoais decorrentes de artifícios sociais impõem formas despóticas e acintosamente injustas de desigualação. Estabelece-se, então, um Direito que se afirma fundado no reconhecimento da igualdade dos homens, igualdade em sua dignidade, em sua condição essencial de ser humano. Positiva-se o princípio da igualdade. A lei, diz-se então, será aplicada igualmente a quem sobre ela se encontre submetido. Preceitua-se o princípio da igualdade perante a lei (ROCHA, 1990, p. 35)".

Os filósofos do iluminismo também ressaltavam a idéia da igualdade. Rousseau defendia que os homens eram iguais posto que pertenciam ao gênero do ser humano diferenciando-se apenas pelas condições físicas e psíquicas de cada um, sendo que outros tipos de desigualações deveriam se rejeitadas pela sociedade.

Tais idéias influenciaram sobremaneira às revoluções ocorridas no final do século XVIII, tanto na França como nas colônias inglesas. Em decorrência destes movimentos revolucionários fora normatizado o princípio da igualdade nas diversas Constituições que surgiram neste fim de século. Desse modo, a Constituição de Virgínia de 12 de junho de 1776 consignou em seu art. 1º que "todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes". A Constituição norte-americana elaborada em 1787, no entanto, não definia textualmente o princípio da igualdade somente se inserindo nela com a Emenda XIV, de 1868.

Na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, firmou o princípio da igualdade como base do Estado moderno influenciando todas as constituições modernas. A Constituição Francesa de 1791 também seguiu o modelo da Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, consagrando a idéia de que todos são iguais perante a lei.

Ocorre porém, que este primeiro passo do princípio da igualdade que levou a erigi-lo como norma constitucional, não foi o bastante para satisfazer as necessárias mutações que se sucedem na evolução dos povos. No momento das revoluções do século XVIII estão em voga os ideais do iluminismo e do liberalismo. Este novo Estado que surge com as revoluções revela-se extremamente liberal e não intervencionista e, apesar de definir a igualdade como princípio constitucional, o Estado liberal não se preocupou em efetivar a igualdade, deixou a tarefa para os aplicadores ou operadores do direito, que segundo o que entendessem fariam valer o princípio da igualdade.

Esta igualdade perante a lei surgida com o liberalismo é conhecida na doutrina como igualdade formal, a qual se mostrou incapaz de estabelecer efetivamente a isonomia jurídica, posto que a igualdade era concebida para igualar os membros de uma mesma classe social, subsistindo dessa maneira a desigualdade entre as classes. Cámen Lúcia Antunes Rocha explicita de forma clara a ineficácia dessa igualdade formal:

"Esta interpretação da expressão iguais perante a lei propiciou situações observadas até a muito pouco tempo em que a igualdade jurídica convivia com a separação dos desigualados, vale dizer, havia tratamento igual para os igualados dentro de uma estrutura na qual se separavam os desigualados, inclusive territorial e socialmente. É o que se verificava nos Estados Unidos em que a igualdade não era considerada desrespeitada, até o advento do caso Broen versus Board of Education. Até o julgamento deste caso pela Suprema Corte norte-americana, entendia-se nos Estados Unidos da América que os negros não estavam sendo comprometidos em seu direito ao tratamento jurídico igual se, mantidos em escolas de negros, fossem ali tratados igualmente (ROCHA, 1990, p. 36)".

Esta noção individualista do princípio da igualdade forjada em um Estado liberal não intervencionista restou ineficaz com o surgimento de um novo modelo estatal preocupado em reduzir as desigualdades sociais, econômicas, culturais e outras que signifiquem discriminações injustificadas. O Estado social, que se seguiu ao liberal procurou reduzir desigualdades incrustadas na sociedade. O constitucionalismo com relação ao princípio da igualdade não está limitado à igualdade perante a lei, mais em garantir a cada cidadão iguais oportunidades para a realização dos seus próprios objetivos. Se antes não se vislumbrava como realizar a igualdade, a norma agora desiguala desiguais para atingir a igualdade dando dinamicidade ao princípio da isonomia.

A visão material da igualdade vem complementar a sua visão formal. Não basta, portanto, a lei declarar que todos são iguais, deve propiciar mecanismos eficazes para a consecução da igualdade. José Afonso da Silva (SILVA, 1999, p. 466) leciona o seguinte: "A Constituição procura aproximar os dois tipos de isonomia, na medida em que não se limitara ao simples enunciado da igualdade perante a lei". Ao contrário do modelo formalista o Estado assume um papel fundamental para garantir aos membros da sociedade uma efetivação da isonomia, redimensionando os seus objetivos e os meios para atingi-los.

A igualdade material ou substancial vem, portanto, complementar a igualdade formal, conferindo aos cidadãos além da igualdade em direitos e obrigações, a garantia que o Estado será um ente preocupado em efetivar a isonomia proibindo aos administrados desigualações injustas e sem motivo. Neste sentido é o abalizado entendimento de José Joaquim Gomes Canotilho:

"[...] a obtenção da igualdade substancial, pressupõe um amplo reordenamento das oportunidades: impõe políticas profundas; induz, mais, que o Estado não seja um simples garantidor da ordem assente nos direitos individuais e no título da propriedade, mas um ente de bens coletivos e fornecedor de prestações (CANOTILHO, 1982, p. 306)".

Tomando-se a Constituição da República Federativa do Brasil encontra-se claramente os conceitos de igualdade formal e material. Ao dizer que "todos são iguais perante a lei", no caput do seu art. 5º, consagra a idéia de igualdade formal na qual a lei deve ser aplicada a todos indistintamente. Se a Carta Magna brasileira se limitasse somente ao disposto no caput do art. 5º acerca do princípio de igualdade, teríamos uma sociedade retrógrada que entende que a igualdade dos homens seria apenas a declaração na lei sem qualquer garantia efetiva de que este princípio fosse realizado.

Acontece porém, que a Constituição Federal de 1988, demonstra clara preocupação com o princípio da isonomia desde o seu Preâmbulo, no qual os representantes do povo brasileiro reunidos em Assembléia Nacional Constituinte ao instituir um Estado Democrático que seja destinado a assegurar a igualdade e a justiça como valores supremos da República Brasileira.

A materialidade da isonomia encontra eco no art. 3º da Lei Maior ao se instituir como objetivo da República Federativa do Brasil, a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como redução das desigualdades sociais e regionais, além do disposto no inciso IV do mesmo artigo que determina também como objetivo "promover o bem de todos sem preconceitos, de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Há inúmeras formas de manifestação da igualdade material tais como o art. 5º, I, XXXII, LXXIV, o art. 7º, XXX e XXXI, o art. 170, VII, art. 193, art. 196, art. 205 etc.

Há de se entender que o princípio jurídico da igualdade está voltado tanto para os cidadãos destinatários da norma, como para o legislador. Assim, não cabe ao Poder Legislativo Federal ou Estadual promulgar normas que não estejam em consonância com os ditames da igualdade. O legislador ao elaborar uma norma não pode criar situações que discriminem sem motivo, devendo o princípio da igualdade ser respeitado no nascedouro sob pena de se criar uma norma inconstitucional.

Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que:

"Há ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando:

I – A norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura indeterminada.

II – A norma adota como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator tempo – que não descansa no objeto – como critério diferencial.

III – A norma atribui tratamento jurídicos diferentes em atenção ao fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados.

IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses protegidos constitucionalmente.

V – A interpretação da norma extrai dela distinções, discrímens, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implícita (MELLO, 2002, p. 47)".

Estes critérios estabelecidos por Celso Antônio Bandeira de Mello devem ser respeitados, segundo este doutrinador, tanto na elaboração da norma como para se identificar se há ou não inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da igualdade após a promulgação da norma. Torna-se claro, então, que coexistem no nosso sistema constitucional tanto a igualdade perante a lei como a igualdade na lei, ou seja, o princípio deve ser compreendido para o aplicador da norma bem como para o legislador.

Segundo José Afonso da Silva, essa distinção no nosso sistema constitucional é desnecessária posto que:

"[...] a doutrina como a jurisprudência já firmaram, há muito, a orientação de que a igualdade perante a lei tem o sentido que, no exterior, se dá à expressão igualdade na lei, ou seja: o princípio tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores da lei (SILVA, 1999, p. 218)".

Esse entendimento constitui sobremaneira um avanço para a efetivação do princípio da igualdade pois ao se limitar o Poder Legislativo ao princípio da isonomia na elaboração das normas, tem-se para o ordenamento jurídico brasileiro a garantia de que as leis não poderão criar privilégios injustificados ou produzir situações discriminatórias sem qualquer fundamento.

Tal interpretação, no entanto, ainda não é completa. O princípio da isonomia não se limita somente ao postulado de que todos são iguais perante a lei podendo haver tratamento desigual para os desiguais na medida em que se desigualam. Cármen Lúcia Antunes Rocha descreve o estágio atual de interpretação constitucional do princípio da igualdade:

"O que se pretende, então, é que a igualdade perante a lei signifique igualdade por meio da lei, vale dizer, que seja a lei o instrumento criador das igualdades possíveis e necessárias ao florescimento das relações justas e equilibradas entre as pessoas. Há se desbastarem, pois, as desigualdades encontradas na sociedade por desvirtuamento sócio-econômico, o que impõe, por vezes, a desigualação de iguais sob o enfoque tradicional (ROCHA, 1990, p. 39)".

Dessa maneira, para cada situação encontrada na sociedade como injusta e discriminatória, deve o Direito, por meio da lei, promover a equiparação dos desiguais atendendo dessa forma o princípio constitucional da igualdade. Percebe-se que o princípio da isonomia se veste de total dinamicidade, pois não se limita à forma estática de outrora, agora é aplicado e elaborado para transformar a sociedade, para promover o bem de todos visando a consecução dos ideais de justiça que permeiam a sociedade.


3.0 Distinção do Princípio da Isonomia no Direito Público e no Direito Privado.

Com efeito, o princípio da isonomia se comporta de forma distinta quando se analisa sua incidência no direito público e no direito privado. Historicamente, a luta travada para se atingir a igualdade no direito público foi muito mais lenta do que no direito privado, principalmente no campo do direito obrigacional.

Para se chegar ao estágio atual de entendimento jurídico do princípio da igualdade no direito público a humanidade passou por sensíveis modificações em sua estrutura inclusive por meio de revoluções e conflitos que geraram um enorme derramamento de sangue. Se hoje o pobre e o rico devem ser tratados de forma igual, ou, a depender do caso, esta relação deve ser desigualada para atingir um equilíbrio, é porque houve uma constante evolução conceitual no seio da sociedade, inclusive com mudança de valores incrustados nas mentes humanas, para se obter a igualdade.

No Direito Privado, no entanto, o negócio jurídico sempre foi permeado por uma noção de igualdade das partes. As pessoas quando negociavam partiam do pressuposto de que com relação ao ato civil que praticavam estavam no mesmo patamar sendo assim iguais em direitos e obrigações.

A professora Cármen Lúcia Antunes Rocha abaliza tal entendimento da seguinte forma:

"É de se registrar, ainda, que do exame de documentos legais constata-se que a igualdade no Direito Civil foi mais rapidamente alcançado que na esfera do Direito Público, especialmente no que concerne aos direitos políticos, às chamadas liberdades públicas, que muito mais dificilmente se impuseram igualmente para os indivíduos (ROCHA, 1990, p.35)".

É claro que mesmo no Direito Civil nem sempre as pessoas se achavam em pé de igualdade. No Direito de Família por exemplo, a figura do homem, sempre foi mais ressaltada que a figura da mulher, sendo esta colocada a um papel secundário nas relações familiares, havendo para o marido o direito de tomar as decisões mais relevantes direcionando o rumo que a sua família deveria tomar. À mulher restava cuidar dos filhos e administrar a casa.

Atualmente esta distinção entre homens e mulheres no Direito de Família não existe, ambos são iguais em direitos e obrigações resultantes das relações familiares. É claro que esta situação de igualdade no Direito de Família foi fruto da influência da luta travada pelas mulheres no século XX para sua equiparação aos homens. Tal embate, notadamente quanto aos direitos políticos influenciou, em decorrência, o Direito Privado, haja visto que seria ilógico conceber que homens e mulheres fossem iguais em direitos na esfera pública e ainda remanescessem as discriminações do Direito de Família.

No campo, porém, do Direito das Obrigações, não se discutia a distinção entre homens e mulheres. A mulher solteira ou viúva poderia contratar livremente somente havendo restrições se fosse casada. Nota-se portanto que nas relações jurídicas obrigacionais as partes (devedor e credor) mantinham uma condição equânime reciprocamente, a igualdade das partes era pressuposto para o fiel cumprimento do contrato.

Com relação a igualdade no Direito Privado, especificamente no Direito Obrigacional, pode se afirmar que existem três estágios. No primeiro, o homem contratava para suprir as suas necessidades básicas e, para tanto, tratava diretamente com o comerciante a quantidade, qualidade e o preço do bem a ser comprado. O consumidor e o fornecedor de produtos e serviços se conheciam, facilitando a barganha, as formas de pagamento, os prazos etc. Este primeiro estágio tem como característica a igualdade das partes para poderem contratar como quiserem. Com efeito, os homens mantinham suas desigualdades nos diversos campos inerentes às liberdades públicas, mas com relação ao Direito Privado havia uma certa igualdade nas relações obrigacionais.

Em Roma, o contrato se resumia à fórmula a acordo de vontade e respeito às solenidades inerentes à celebração do contrato. A igualdade das partes residia quando elas discutiam as cláusulas do negócio, estabelecendo dessa forma os direitos e obrigações inerentes a cada contratante que iriam reger suas relações durante a vigência do contrato. Apesar de existirem inúmeras desigualdades sociais, políticas e econômicas, quando contratavam, as partes se tornavam iguais com relação ao negócio estipulado entre elas.

Esta igualdade contratual teve seu clímax justamente quando historicamente a burguesia ascendia ao poder. O Estado liberal preocupado em não intervir na economia e nos mercados deixou para o contrato o papel de fazer lei entre as partes com relação às obrigações civis. A igualdade das partes era um primado que regia a relações negociais oportunizando que o contrato fosse considerado a lei civil que vinculava as partes ao negócio pactuado.

Note-se, que justamente, por essa igualdade das partes é que se tinha a idéia de que o contrato não deveria ser descumprido, haja vista que os contratantes firmaram as cláusulas contratuais de forma equânime.

O segundo estágio, pelo qual passou a isonomia no Direito Privado teve como ponto de partida a Revolução Industrial. Houve uma mudança brutal no comportamento do mercado com o surgimento da produção em larga escala, com as manufaturas, com a mecanização das indústrias têxtil e metalúrgica, com o incremento do sistema bancário, com o êxodo rural proporcionando o aumento populacional das cidades e conseqüentemente uma mão-de-obra barata, além da descoberta do vapor como força motriz impulsionando os setores industrial, de transportes e de comunicação.

Havia necessidade de conquistar novos mercados e de vender toda a produção fazendo com que as práticas abusivas se difundissem. Ademais, o fabricante não estava preocupado com a qualidade de seus produtos, objetivava a venda para continuar mantendo a sua linha de produção e aumentar cada vez mais o seu lucro.

Por outro lado, as relações negociais deixaram de ser pessoais e passaram a ser impessoais, as condições do negócio eram pré-determinadas pelo fabricante e o consumidor passou cada vez mais a não ter acesso aos meios de produção.

Aliado a este processo, o Estado continuava impregnado aos ideais do liberalismo, e de acordo com uma política de não intervenção, impedia, dessa forma, que se promulgassem normas regulamentando os abusos cometidos no mercado de consumo pela falsa idéia de que o mercado se auto-regulamentava.

No início da sociedade de consumo o fornecedor passou a determinar as regras do mercado, ditando os preços e a qualidade dos produtos. A professora Maria Cecília Nunes Amarante com maestria nos ensina a realidade dessa época:

"A questão da qualidade foi sufocada pela questão quantidade, evidenciando-se na predominância do princípio da produção máxima, afirmando no quanto mais produzimos, tanto melhor, em detrimento da qualidade de vida.

E nessa sociedade de massas, fragilizada e impotente diante do poder econômico, posiciona-se como vítima da ganância desmedida e do desequilíbrio em todo o sistema, gerados pelo acelerado desenvolvimento econômico, o consumidor, reconhecidamente vulnerável, sensivelmente prejudicado pela massificação social (AMARANTE, 1998, p.13)".

Tem-se então, uma situação de desigualdade, haja vista, que o fornecedor/produtor é quem estabelece as regras dos contratos e também quem determina o preço e a qualidade do produto, ao passo que a lei ainda postulava uma situação de igualdade das partes no campo obrigacional. Esta contradição entre o que a lei determina e a situação fática desenhada pela sociedade de consumo somente fizeram prejudicar o pólo mais fraco desta relação jurídica posto que a presunção de igualdade das partes fazia valer o princípio de que os contratos deveriam ser cumpridos haja o que houver.

Nesse sentido é a lição dos autores do anteprojeto do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor:

"Se antes fornecedor e consumidor encontravam-se em uma situação de relativo equilíbrio de poder de barganha (até porque se conheciam), agora é o fornecedor (fabricante, produtor, construtor, importador ou comerciante) que, inegavelmente, assume a posição de força na relação de consumo e que, por isso mesmo, dita as regras. E o Direito não pode ficar alheio a tal fenômeno (GRINOVER et al., 2001, p.07)".

A igualdade perdida nas relações de consumo vem sendo resgatada no terceiro estágio pelo qual percorre o princípio da igualdade. Com efeito, a noção de igualdade material desenvolvida no Estado social influi não somente no Direito Público, mas também no Direito Privado, proporcionando ao homem uma proteção contra todos os tipos de privilégios e situações injustas que se apresentam na sua vida.

Esta necessidade de equiparar o consumidor e o fornecedor de produtos ou serviços restaurando a igualdade perdida com o advento da Revolução Industrial fez com que diversos países no século XX iniciassem um sistema de proteção através de leis. Dessa forma, foi editada a Carta do Consumidor pelo Conselho da Europa, em 1973; no México, surgiu a Lei Federal de Protección al Consumidor, de 05/02/1976; em Portugal, a Lei n.º29, de 22 de agosto de 1981; na Espanha, a Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuários – Lei n.º26/1984; e no âmbito da Organização das Nações Unidas, a Resolução n.º39/248, de 09 de abril de 1985, promulgada pela Assembléia Geral.

Apesar da distinção existente do princípio da igualdade no Direito Público e no Direito Privado ao longo dos séculos, haja vista que naquele, primeiramente, a regra era a desigualdade, passou à igualdade formal e se aperfeiçoou com a igualdade material, neste a igualdade entre as partes era a regra, passou a uma situação fática de desigualdade apesar da lei considerar os partícipes do negócio como iguais e, no atual estágio, o sistema jurídico reconhece a desigualdade fática das partes, indubitavelmente, nas relações de consumo e, por meio de leis, cria mecanismos para a equiparação justa dos desiguais na medida em que se desigualam. Clara é a lição de Carlos Alberto Bittar:

"Essa desigualdade não encontra, nos sistemas jurídicos oriundos do liberalismo, reposta eficiente para a solução de problemas que decorrem das crises de relacionamento e de lesionamentos vários que sofrem os consumidores, pois os Códigos se estruturaram com base em uma noção de paridade entre as partes, de cunho abstrato. Teceram-se, sob o prisma patrimonial, com fulcro nos princípios do respeito à propriedade privada e da identificação da figura do contrato como instrumento para a circulação jurídica de bens e de serviços, com os limites postos em seu regramento, e sob a égide da iniciativa privada como fator de propulsão da economia.

Assim, em uma posição de horizontalidade, mantiveram sob sua textura todas as relações negociais privadas, não levando em conta as desigualdades que, na vida real, separam as pessoas na economia dentro das funções de produção e de consumo (BITTAR, 1990, p. 2)".

É de se notar a influência do conceito da igualdade material no campo do direito privado. Pensado para reduzir as desigualdades entre as pessoas de forma eficaz e, inicialmente, com relação aos direitos políticos e sociais, a sua interpretação descambou em abarcar qualquer forma de desigualdade existente na sociedade. A fórmula utilizada para equiparar os consumidores aos fornecedores de produtos ou serviços é notadamente a interpretação da igualdade material no campo do direito privado, pois constatado o total desequilíbrio existente, o direito criou leis visando igualá-los dando-lhes inúmeros mecanismos para a consecução do princípio da isonomia.

Tal entendimento é ratificado pela professora Cármen Lúcia Antunes Rocha:

"Pode-se verificar que o princípio jurídico da igualdade não apenas trata igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida que se desigualam, mas que deve erradicar as desigualdades criadas pela própria sociedade, cuidando de estabelecer até onde e em que condições as desigualdades podem ser acompanhadas por tratamentos desiguais sem que isto constitua a abertura de uma fenda legal maior e uma desigualação mais injusta (ROCHA, 1990, p. 34)".


4.0 Princípio da Isonomia e a Defesa do Consumidor no Brasil

Com efeito, o princípio da igualdade em sua atual fase conceitual inspirou a necessidade de se criar um sistema legislativo que tivesse o poder de proteger o consumidor reduzindo as desigualdades sociais, culturais e econômicas deste com relação aos poderosos conglomerados empresariais.

O sistema corporificado do direito obrigacional inspirado no modelo francês do final do século XVIII, não detinha mais capacidade para a proteção efetiva do consumidor. Pelo contrário, mantinha uma situação pela qual o contrato fazia lei entre as partes devido à presunção de igualdade que se revestiam as partes no momento da celebração do contrato.

O avanço da produção em larga escala e dos meios para escoar a produção foram fatores determinantes para os desequilíbrios das relações negociais, tendo em vista a alta competitividade do mundo empresarial e a conseqüente falta de ética no mercado ultimada por métodos comerciais coercitivos e desleais.

A falta de preocupação com a qualidade dos produtos e serviços, muitas das vezes, fez com que o consumidor se tornasse vulnerável frente aos produtos que lhe eram impostos no mercado inclusive com a periclitação de sua saúde e segurança, haja vista, a pouca preocupação dos empresários na qualidade dos bens que produziam para a sociedade.

Ao lado das práticas comerciais abusivas, insere-se no contexto consumerista a propaganda e o marketing como ferramentas para fazer escoar a produtividade das empresas com técnicas elaboradas de persuasão, ditando o comportamento do consumidor com inúmeros modismos criados para fazer o homem consumir até o que não necessita.

A mídia eletrônica representada pela televisão, pelo rádio e pela internet insere-se na quase totalidade das residências fazendo com que o fornecedor de produtos e serviços sempre tenha acesso rápido ao consumidor inundando-o a cada momento com inúmeros produtos e serviços, através da propaganda e do marketing, expostos por ídolos nacionais ou com bastante criatividade fazendo despertar no consumidor a necessidade de adquirir determinado produto ou marca.

Por outro lado, o consumidor figura de forma extremamente passiva no mercado, posto que, em raríssimos casos lhe é dada a oportunidade de discutir as condições de um contrato de consumo. Ora, o ser humano realiza diariamente inúmeros contratos, haja vista que a cada momento realiza uma compra ou anui a um serviço. O pão do café da manhã é fruto de uma compra e venda, o automóvel com que se desloca para o trabalho foi proveniente de um contrato, o fornecimento de água, luz, e telefone são provenientes de uma prestação de serviços. O ser humano contrata quase sem perceber, e pela falta de hábito de se certificar das condições do negócio, de discutir o preço, qualidade, prazos de garantia, formas de ressarcimento por eventuais danos, se torna um autômato quando se vê diante de um contrato, limitando a sua manifestação de vontade a simplesmente assinar o instrumento contratual.

Esta situação de desigualdade, como já visto, fez com que os países que enfrentam o problema da sociedade de consumo, promulgassem um sistema protetivo seja através de leis esparsas, seja através de Códigos, haja vista que o modelo do Estado social visa equiparar ou reduzir as desigualdades.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 consagra amplamente a idéia de igualdade material e, no âmbito das relações de consumo preceitua em seu art. 5º, XXXII que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Note-se que tal norma é localizada no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, constituído no núcleo intangível da Constituição segundo o disposto no art. 60, § 4º, IV. Este aspecto revela a importância dada à defesa do consumidor na sociedade brasileira pela Carta Magna de 1988, posto que tal garantia somente desaparecerá se houver a abolição do texto constitucional em vigor por outra Constituição.

Por outro lado, o fato da Lei Maior enunciar o vocábulo "promover" e "defesa" no art. 5º, XXXII, reconhece a aplicação do conceito da igualdade material no campo das relações de consumo. Quando se escreve defesa do consumidor, a norma vislumbra a situação injusta que se encontra os consumidores e ao mesmo tempo atina ao fato de promover mecanismos para que estes possam se defender dos abusos cometidos no mercado.

Outras disposições se encontram no texto constitucional nos arts. 24, VIII, 170, V e 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Este último comanda a elaboração de um Código de defesa do consumidor pelo Congresso Nacional dentro de cento e vinte dias contados da data da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Apesar de não ter sido elaborado dentro do prazo previsto na Constituição Federal, quase dois anos após sua promulgação, em 11 de setembro de 1990, o Brasil normatizou a proteção ao consumidor através de um Código – Lei nº 8.078/90. Insta salientar que a promulgação do CDC fez surgir uma revolução de idéias, de quebras de paradigmas e da criação de novos institutos jurídicos a serem aplicados na defesa do consumidor.

Carlos Alberto Bittar, leciona sobre o espírito do Código de Proteção ao Consumidor da seguinte forma:

"Surge a lei com um regime estruturado em consonância com os avanços obtidos no exterior, em especial nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, o qual se baseia, fundamentalmente, na técnica do direito social de proteção ao economicamente mais fraco, mediante normas de reforço à sua posição jurídica, na busca do justo equilíbrio de forças.

Com isso, são explicitados os direitos do consumidor; os bens jurídicos protegidos; o sistema institucional de controle e de fiscalização; o sistema privado de defesa; os mecanismos individuais e coletivos de reações possíveis e meios processuais mais adequados para a obtenção de um pronunciamento judicial mais célere e eficaz e a satisfação imediata dos interesses dos consumidores (BITTAR, 1990, p. 22)".

O art. 4º, I, da Lei 8.078/90 reconhece de forma clara a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo e no art. 5º e incisos está disciplinado os instrumentos de atuação do Poder Público para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, notadamente com a criação de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, Delegacias de Polícia especializadas nas infrações penais de consumo, incentivo à criação de Associações de Defesa do Consumidor e a manutenção de assistência jurídica integral e gratuita ao consumidor carente.

Ao lado destes preceitos, exala a igualdade material quando o Código institui como regra a responsabilidade civil objetiva no âmbito das relações de consumo. Ora, antes do CDC, o consumidor que quisesse haver os danos sofridos por determinado produto ou serviço defeituoso deveria provar a culpa do fornecedor, conforme as disposições atinentes no direito das obrigações do Código de 1916. Dessa forma, ficaria o consumidor que é economicamente, culturalmente e socialmente mais fraco com a árdua responsabilidade de provar a lesão ao seu direito e os prejuízos que lhe foram causados.

Além de a regra ser agora a responsabilidade civil objetiva, processualmente o consumidor foi agraciado com a possibilidade de inversão do ônus da prova a seu favor, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente segundo as regras ordinárias de experiência.

Sobre este instituto e sua correlação com o princípio da igualdade escreveu Nelson Nery Junior:

"O art. 4.º, n. I, do CDC reconhece o consumidor como a parte mais fraca na relação de consumo. Portanto, para que se tenha a isonomia real entre o consumidor e o fornecedor, é preciso que sejam adotados mecanismos como o da inversão do ônus da prova, estatuído no art. 6.º, n. VIII, do CDC, como direito básico do consumidor. Este artigo não é inconstitucional, na medida em que trata desigualmente os desiguais, desigualdades essa reconhecida pela própria lei (NERY JUNIOR, 1997, p. 40)".

O CDC é a plena expressão do princípio da igualdade material, haja vista que reconhece a desigualdade dos consumidores em relação aos fornecedores de produtos ou serviços, institui o plano de políticas públicas de responsabilidade do Estado visando a igualdade nas relações de consumo e, ainda, dispõe de mecanismos jurídicos de ordem de direito material e processual que visem a defesa do consumidor.


5.0 Conclusão

A partir de uma análise histórica do princípio da igualdade, pôde-se vislumbrar o sentido que os povos deram a ele. Assim, em um primeiro momento, a desigualdade impregnava as relações entre as pessoas, e o direito, desta época não se preocupava em igualar tais situações, pelo contrário, tornava jurídica a desigualdade.

Em um segundo momento, a sociedade transformada pelo nascimento de uma nova camada social, deu um novo sentido ao princípio da igualdade, declarando-se, então, que todos devem ser iguais perante a lei, ou, a que a lei deve ser aplicada a todos indistintamente. Esta concepção favoreceu, sobremaneira, os interesses da burguesia, pois com a constitucionalização do princípio da isonomia, os privilégios dos monarcas foram limitados e não se poderia utilizar o poder inerente à monarquia para poder minorar a ascensão da burguesia.

O terceiro momento demonstra a ineficácia da concepção da igualdade formal construída na época das revoluções do final do século XVIII, pois era uma igualdade que não se preocupava em proporcionar igualdade de condições a todos os membros da sociedade, mas sim tratar de forma igual os membros de uma mesma camada social. O Estado social, apresentando-se como intervencionista, diferentemente do Estado liberal não intervencionista, fez desenvolver a idéia de reduzir as desigualdades engendradas na sociedade.

Assim, o princípio da isonomia ganha um novo aspecto, o de igualar situações desiguais, abrangendo inclusive o direito privado, haja vista, o fato de que desde a Revolução Industrial as relações entre o consumidor e o fornecedor de produtos e/ou serviços foram se desigualando.

Assim sendo, com o agravamento das práticas comerciais abusivas, com o estímulo do marketing, com a perda da qualidade dos produtos, com o crescimento dos contratos de adesão e com a dificuldade encontrada pelo consumidor em haver os prejuízos sofridos em um processo judicial, é que a sociedade civil começou a se organizar para alcançar formas protetivas de tais abusos. Este movimento consumerista, que se tornou um movimento com respaldo em vários países, fez com que o Estado social, intervisse no mercado por meio de leis para efetivar uma tutela jurídica protetiva do consumidor.

Assim, surgiram os diversos diplomas legais no mundo que visam a proteção aos consumidores. No Brasil, esta tendência foi constitucionalizada no art. 5º, XXXII, como garantia individual do cidadão a defesa do consumidor e, também, no art. 170, V, como princípio da ordem econômica e financeira. O código de proteção e defesa do consumidor, promulgado a 11 de setembro de 1990, veio corroborar os preceitos estabelecidos na Constituição Federal de 1988, consistindo em uma lei formada por normas de interesse público e reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.

O CDC consiste, portanto, em um micro-sistema jurídico posto à disposição do consumidor e da sociedade em geral para ser utilizado contra os abusos do mercado, efetivando uma tutela não somente civil, mas também, administrativa e penal.


Desse modo, o CDC criou direitos, revisou institutos, minorou regras clássicas há muito incrustadas no sistema jurídico, e, também instituiu uma novo sistema processual aplicável somente ao consumidor que enfrenta uma lide para ser reparado dos danos sofridos.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMOS, José Alexandre Silva. O princípio da igualdade e o Direito do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 306, 9 maio 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5172. Acesso em: 28 mar. 2024.