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Prisão temporária

uma interpretação conforme a Constituição da República

Prisão temporária: uma interpretação conforme a Constituição da República

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SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Doutrina da "lei e ordem". 3. A prisão temporária no Direito brasileiro. 4. Presunção de inocência e prisão temporária. 5. Devido processo legal e prisão temporária. 6. Princípio da proporcionalidade e prisão temporária. 7. Conclusões. 8. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO.

O instituto da prisão temporária foi introduzido no direito brasileiro pela lei 7960 de 21 de dezembro de 1989, mediante conversão da Medida Provisória n.111 de 24 de novembro de 1989, seguindo uma tendência político-criminal conhecida como "lei e ordem", de endurecimento de tratamento processual criminal e aumento de pena de diversas figuras delituosas. Atendeu-se aos reclames de uma esfera da sociedade que então vinha sendo vítima de vários delitos contra o patrimônio e contra a vida. Aproximadamente seis meses depois foi editada a lei dos crimes hediondos (lei 8072/90).

Atualmente, a Constituição da República no art. 62, com redação da emenda constitucional n. 32 de 11 de setembro de 2001, que cuida da edição de medidas provisórias, veda expressa e peremptoriamente que nesta espécie legislativa sejam veiculadas matérias que digam respeito a direito penal e processual (& 1º, inciso I do art. 62). Nesta novel sistemática, não pode a Presidência da República inovar nestas matérias via medida provisória como já o fez no passado.

A prisão temporária, de acordo com lições da doutrina processualística, vem compor o quadro das medidas cautelares de natureza pessoal ao lado da prisão em flagrante (art. 301-310 do CPP), da prisão preventiva (arts. 311-316 do CPP), da prisão decorrente de pronúncia (art. 408, &1º do CPP) e da sentença condenatória recorrível (art. 393, I do CPP). Por se tratar de prisão cautelar, segundo este entendimento, que visa a assegurar a utilidade do provimento jurisdicional final, revestem-se das características da instrumentalidade, provisoriedade e acessoriedade.

Instrumental porque serve de meio e modo a alcançar determinada medida principal no processo penal. Provisória, porquanto só dura enquanto não alcançada a finalidade principal e enquanto os requisitos que a autorizaram ainda estiverem presentes. É medida acessória, por fim, pois se vincula a sorte da medida cautelar à da principal, aquela sendo alcançada, esta perde a eficácia. Estas são as lições tradicionais, mas há doutrinadores que dissentem de tal entendimento. Esta forma de prisão atenderia apenas a finalidades investigatórias, já que na conclusão do inquérito, aquele que foi preso temporariamente pode nem mais figurar como indiciado.

Segundo HERÁCLITO ANTONO MOSSIN "à evidência, a prisão temporária, não reúne no seu bojo nenhuma das finalidades apresentadas. Não se presta a qualquer atividade de caráter processual. Serve exclusivamente, e de forma precária, para atender a necessidades de ordem investigatória, com limitação temporal, o que tira de sua natureza jurídica possível condição de caráter cautelar" [1].

Vários setores doutrinários criticam acerbamente a prisão temporária. PAULO RANGEL doutrina que este tipo de prisão é inconstitucional, primeiro por vício de iniciativa, uma vez que matéria de processo penal e direito penal são de iniciativa da União (art. 22, I da CF/88). A inconstitucionalidade seria de ordem formal. Segundo, pois no Estado Democrático de Direito, não pode o Estado inicialmente prender e depois investigar se o imputado é realmente autor do delito [2]. O ínclito mestre TOURINHO FILHO também afirma que sobre o prisma da presunção de não culpabilidade, esta lei "é supinamente inconstitucional" [3], qualifiquando-a de medida odiosa, fulminado ao final de seus comentários acerca da malfada lei: " Ademais, a medida é tão estúpida, que, se realmente não houver necessidade para sua decretação, nem haverá tempo para jugulá-la mercê de um habeas corpus: primeiro porque em face da exigüidade do tempo e, em segundo lugar, porque em sede de habeas corpus, normalmente, não se faz um exame analítico das provas... [4](itálico nosso). No entanto, como se sabe, esta espécie legislativa vem sendo aplicada normalmente pelos operadores jurídicos.

Neste ensaio pretendemos analisar os dispositivos da lei 7960/89 à luz de uma interpretação conforme a Constituição da República. Não pretendemos, nesta sede repetir os dizeres deste diploma legal. Nosso intento é proceder a uma crítica desta lei, confrontando-a com os princípios da proporcionalidade, da presunção de inocência e do devido processo legal. Com efeito, todos os valores e preconceitos do intérprete-aplicador do direito influenciam na construção da norma jurídica a ser extraída desta lei. Esta pré-compreensão, este juízo de valor inicial que o texto legal nos causa, nos dizeres autorizados de KARL LARENZ, "é o entendimento inicial da coisa objecto de interpretação, ainda que provisório, que proporciona uma orientação inicial que põe em marcha o processo de compreender e que continua a impulsionar... [5].

O intérprete-aplicador da lei é condicionado por suas crenças políticas e filosóficas, sua cultura jurídica e sua inserção sócio-econômica no seio da sociedade. Todas estas circunstâncias prosperam no sentido de" colocar o intérprete em posição preconceituosa (de pré-conceito ideológico, seu) perante a norma a interpretar, esta também veiculante de uma mensagem ideológica ", de acordo com ensinamentos de EROS ROBERTO GRAU [6]. Por certo, se o aplicador da norma é partidário da doutrina da "lei e ordem", o questionamento da constitucionalidade deste diploma a ser comentado é uma hipótese descartada, uma vez que tal filosofia costuma desprezar com uma certa freqüência os direitos e garantias fundamentais elencadas nas constituições dos povos civilizados.


2. DOUTRINA DA "LEI E ORDEM".

JULIO FABBRINI MIRABETE noticia que na exposição de motivos da lei sob comento consta: "o clima de pânico que se estabelece em nossas cidades, a certeza da impunidade que campeia célere na consciência do nosso povo, formando novos criminosos, exigem medidas firmes e decididas, entre elas a da prisão temporária" [7]. Num primeiro lançar de olhos percebo que a mens legislatoris era claramente de antecipar punição para determinados crimes, determinando o encarceramento, ainda que provisório e por curta temporada, do suspeito de cometimento de infração penal. Mais um faceta da legislação simbólica, "lei para impressionar o público e lei para inglês ver" [8]. Edita-se, via Medida Provisória, um comando normativo duro, viabilizando que supostos criminosos sejam presos por alguns dias, e assim acalmar os ânimos sociais exaltados por determinados delitos. O legislador tenta passar a impressão de que está "tomando providências", que está fazendo algo para conter a escalada da criminalidade. Para tanto, usa e abusa de seu poder legiferante para inflacionar a ordem jurídica de leis casuísticas e destoantes dos princípios constitucionais que imperam num estado de direito democrático, como se pretende ser o nosso (CF art. 1º).

Todos sabemos que as raízes do problema da criminalidade crescente numa sociedade de desiguais, apartados por um abismo, residem em outras searas que não os das leis duras, especialmente confeccionadas para alguns (os etiquetados) membros da coletividade. Ainda bem que por um princípio elementar de hermenêutica jurídica, este critério subjetivo da mens legislatoris, foi abandonado em favor da mens legis, na qual a intenção do legislador pouco importa para aplicação da lei. Um vez promulgada a norma jurídica esta adquire foros de entidade autônoma, caracterizando a corrente objetivista ou dinâmica da interpretação do direito que "vêem o texto como uma entidade a se estante, autónoma, prolem sine mater creatam, ou no mínimo, uma obra que encontrou a auto-subsistência no momento em que seu(s) autor (es) a moldaram na forma escrita. A partir daí, o autor deve calar-se e dar lugar às personagens, que verdadeiramente têm existência própria, mesmo eventualmente contra vontade declarada do seu criador" [9]. Entedemos que assim deve se pautar o intérprete-aplicador deste comando normativo analisado: dar-lhe uma interpretação conforme os princípios constitucionais que regem o moderno processo penal.

Vem a calhar o ensinamento de ANDERSON LUIZ ALMEIDA ANDRADE quando aborda a razão de ser da prisão provisória. Para este autor existe um descompasso entre a doutrina processual e construção legislativa dos institutos jurídicos, quando destina a estes institutos finalidades não-processuais. Diz o autor: "Em verdade, as forças políticas brasileiras tendem a uma simplificação demagógica do problema, criando uma resposta aos anseios de segurança da sociedade a conversão do processo penal em uma gravosa, desnecessária e inadequada sanção, dando ao instituto da prisão provisória a deletéria capacidade de sancionar o homem, privando-lhe da liberdade, em nome da eficácia do processo penal, eficácia ideologicamente relacionada como eficaz remédio contra criminalidade" [10](destaque nosso). Banalizam-se as restrições cautelares de liberdade como uma caixa de pandora de onde emanasse a solução para todos os problemas da criminalidade da sociedade brasileira. Transforma-se uma medida cautelar excepcional na regra para lidar com determinados fenômenos criminosos. Mas a história é implacável, demonstrando de forma cabal e irrefutável, que apesar de todo endurecimento penal, os índices de violência continuam assustando o país.


3. A PRISÃO TEMPORÁRIA NO DIREITO BRASILEIRO.

Consoante a prescrição do art. 1º da lei 7960 caberá prisão temporária: I-quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II - quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários de sua identificação; III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação nos seguintes crimes: homicídio doloso, seqüestro ou cárcere privado, roubo, extorsão, extorsão mediante seqüestro, estupro, atentado violento ao pudor, rapto violento, epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráfico de drogas (art. 12 da lei 6368/76) e crimes contra o sistema financeiro (Lei 7492/86).

Uma primeira ordem de indagações se impõe: haveria legitimidade numa restrição do direito de liberdade para alcançar fins investigativos? Tal providência não se afasta dos fins legítimos das medidas cautelares do processo penal? Os incisos deste artigo 1ºdevem ser combinados entre si ou aplicam-se de forma autônoma? Creio que aqui o legislador de forma sorrateira e ardilosa "legalizou as prisões para averiguações" trazendo uma áurea de legitimidade quando no art.2º reza que o juiz determinará a prisão temporária atendendo representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público. A prisão se dará por cinco dias, prorrogáveis por igual período (art. 2º, caput.).

Consoante aludimos acima, a medida cautelar há de ter uma finalidade constitucionalmente legítima, que a doutrina considera como: conjurar o risco de fuga do indiciado ou acusado, evitar que este obstrua a instrução probatória e assegurar a presença do imputado nos atos processuais, bem como evitar o cometimento de outros delitos. Se no caso em concreto tais situações existem que se pugne pela prisão preventiva do imputado! O que parece é que se prendendo temporariamente por cinco dias, prorrogáveis por igual período, à sociedade seria dada uma satisfação, seria evidenciado que as autoridades agiram de pronto prendendo o criminoso e tudo está resolvido, mesmo que ao final destes cinco dias o suposto delinqüente "seja posto imediatamente em liberdade" (art. 2º, & 7º).

Não se nos afigura constitucionalmente legítima neste ponto a lei no art. 1º quando preconiza a prisão para efetivar procedimentos investigatórios. Mesmo na investigação criminal deve-se respeito aos direitos e garantias fundamentais encartadas na Constituição, do contrário o estado se converte no violador da ordem constitucional. Antecipar pena, mitigar o alarido social provocado pelo delito, encarcerar objetivando declarações auto-incriminatórias ou apenas para identificar alguém não são fins constitucionalmente legítimos a autorizar uma prisão cautelar como sói acontecer com a prisão temporária. Todas estas providencias são compatíveis com estados totalitários como o nosso país em tempos de ditadura militar.

Para fundamentar seu pedido de prisão temporária, a autoridade policial ou do Ministério público, deverá demonstrar em sua petição que há elementos probatórios razoáveis a indicar autoria e participação naqueles delitos taxativamente previstos no inciso III da lei comentada. Não basta uma referência genérica a "imprescindibilidade para investigações", "dada à natureza grave do delito, requer-se a prisão temporária de fulano de tal... etc". Tal pedido é inepto e há de ser repudiado pela autoridade judiciária. Deve ser demonstrado, de um lado, que existe um periculum libertais, ou seja, existe um risco demonstrável em concreto de que o individuo, se não for preso, subtrair-se-á à administração da justiça penal.

O decreto de prisão temporária haverá de ser fundamentado (art. 2º, &2º da lei 7960/89), como uma garantia de que o juiz quando determinou uma restrição de um direito fundamental do individuo, expôs as razões de sua decisão. É uma garantia de tutela judicial efetiva em conformidade com o mandamento constitucional. Na jurisprudência do STJ encontramos esta decisão:

"PENAL. PROCESSO PENAL. TENTATIVA DE ROUBO. PRISÃO PROVISÓRIA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. 1. Para decretação da prisão provisória, sob argumento de imprescindibilidade para as investigações do inquérito, impõe-se a efetiva demonstração do periculum libertatis mediante exposição de motivos concretos sendo insuficiente para tanta meras conjecturas. 2. Recurso ordinário provido, para revogar decreto de prisão provisória contra o paciente, por ausência de fundamentação. (RHC 11992/RJ. DJ 18/03/2002. Rel. Edson Vidigal)".

Claro que uma opção político legislativa foi feita quando no inciso III enumera de forma taxativa as infrações penais sujeitas à prisão temporária. Causa estranheza como delitos contra a Administração pública e contra a responsabilidade fiscal não se encontram encartados naquele rol delitos do inciso III. Corrupção, peculato, concussão, desvio de verbas podem ser mais lesivos à sociedade como um todo do que certos delitos ali elencados.

Inaceitável que a gravidade do delito de per si autorize a prisão temporária, fazendo-se necessário a presença dos outros requisitos do art. 1º da lei 7960/89. O STJ também já se manifestou:

"PROCESSO PENAL PRISÃO TEMPORÁRIA. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. CONFIGURAÇÃO. 1. a decisão que decreta a prisão temporária lastreando-se apenas na gravidade do delito encontra-se sem a devida fundamentação. Tal medida é de natureza excepcional e deve conter elementos concretos que ensejem sua adoção.2. Ordem concedida para que seja revogada a prisão temporária decretada.(HC 13669/RJ. DJ 20/08/2001. Rel. Jorge Scartezzini)".

Entendemos que a superior corte deixou consignada com estes decisórios, que devem ser repudiados pedidos de prisão temporária lastreados apenas na gravidade do delito ou carentes de demonstração da necessidade da medida para os procedimentos investigatórios. Em havendo outros meios de prova para completar as investigações, a prisão se torna desnecessária. Não devemos esquecer que "por se tratar de providência excepcional, as normas que a regulam devem ser interpretadas restritivamente e não podem ser aplicadas por analogia, a não ser in bonam partem, isto é quando sigam a regra (liberdade) e nunca quando consagrem a exceção (prisão provisória) [11].


4. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E PRISÃO TEMPORÁRIA.

Acima fizemos breves referências à constitucionalidade da lei 7960/89. Neste passo ensejamos uma perfunctória análise deste diploma legal com o princípio da presunção de inocência consagrado nas diversas cartas de direitos fundamentais, encontrado abrigo na Constituição Federal no seu art. 5º, inciso LVII assim redigido: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (grifo nosso). A Constituição consagra aqui um estado natural de inocência de todos os cidadãos. Os doutos converteram este estado de inocência em presunção militante a favor do acusado. A presunção de inocência não é absoluta, e sim juris tantum, podendo ser relativizada, dando abertura a restrições cautelares da liberdade de ir e vir do indivíduo. O pretório excelso, neste sentido, já se manifestou:

"É inquestionável que a antecipação cautelar da prisão - qualquer que seja a modalidade autorizada pelo ordenamento jurídico positivo (prisão temporária, preventiva ou prisão decorrente de sentença de pronúncia)- não se revela incompatível com o princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade. (...). Impõe-se advertir, no entanto, que a prisão cautelar - que não se confunde com a prisão penal (carcer ad poenam)- não objetiva inflingir punição à pessoa que sofre a sua decretação. Não traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade a que se destina, qualquer idéia de sanção. Constitui, ao contrário, instrumento destinado a atuar ‘em benefício da atividade desenvolvida no processo penal’ (HC 80719. Informativo STF 221. Rel. Celso de Mello)(grifei).

Havendo elementos probatórios razoáveis que indiquem autoria ou participação num daqueles delitos elencados no art. 1º, inciso III da lei 7960/89, e demais requisitos da medida cautelar, não há incompatibilidade com a presunção de inocência, desde que a restrição da liberdade atue "em benefício da atividade desenvolvida no processo penal", conforme o aresto acima. Mas que processo, se ainda estamos em fase de investigação? Não estaria o homem sendo "coisificado" pelo Estado, quando este o trata como "objeto de investigação?". Não seria atentar contra a dignidade humana prender para reunir provas de um suposto fato delituoso? Se a prisão é necessária na fase investigatória, que se pugne pela prisão preventiva e seus requisitos mais rigorosos. A malícia do legislador é de clareza solar quando dispõe no art. 2, & 7º desta odiosa lei que comentamos: "Decorrido o prazo de cinco dias de detenção, o preso deverá ser posto imediatamente em liberdade, salvo se já tiver sido decretada sua prisão preventiva" (grifei). Pesquisando a jurisprudência do STJ, verificamos que o julgamento de vários Hábeas corpus fora prejudicado, pois o título jurídico a legitimar a prisão já não era mais a prisão temporária e sim a preventiva!

A presunção de inocência opera ao mesmo tempo no processo penal como uma regra de juízo e como regra de tratamento: regra de juízo, porquanto os indícios de autoria ou participação haverão de ser fortes o suficiente a amparar a medida cautela restritiva de liberdade (fumus bonis iuri ou fumus comissi delicti). O juízo de valor positivo acerca da autoria do imputado deverá ser maior que o juízo negativo correspondente. Regra de tratamento, pois não perderá o detido suas garantias processuais penais, nem atenderá a restrição cautelar da liberdade a finalidades retributivas antecipando a pena. Tais limites infranqueáveis se impõem a todos, tanto ao poder executivo através da ação da Polícia judiciária quanto ao Poder Judiciário.


5. DEVIDO PROCESSO LEGAL E PRISÃO TEMPORÁRIA.

O devido processo legal tem sua origem no direito anglo-saxônico do século XIII com a Magna carta do Rei João sem terra. Os direitos de liberdade, propriedade e à vida dos barões ingleses só poderiam sofrer limitações consoante a law of the land, de acordo com os costumes da terra e sedimentado nos precedentes jurisprudenciais. Mais tarde a locução law of the land foi substituída pelo due process of law. Assumindo uma face adjetiva, este devido processo legal encerra as garantias do réu com exigência de um procedimento regular, contraditório, ampla defesa, da representação por advogado, entre outros [12].

Neste ponto reside um dos pontos nevrálgicos do debate que ora travamos. Se, como diz a Carta Magna de 1988 no inciso LIV do art. 5º que: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal", a priori a prisão temporária de alguém se apresenta manifestamente inconstitucional. No inquérito policial, entendimento dominante da doutrina e jurisprudência, não há assento para o contraditório, porquanto se trata de procedimento administrativo destinado apurar autoria e materialidade de infração penal, não havendo acusação formal contra quem quer que seja. Se a prisão temporária só é cabível no curso de investigações policiais, o encarceramento sob este título afrontaria o disposto no art. 5º, inciso LIV da CF/88. Não houve atendimento ao devido processo legal para efetivação da privação da liberdade.

O entendimento não poderia ser tão simples quanto prima facie parece, pois a mesma lei magna excepciona o mandamento quando cuida dos casos de prisão em flagrante ou por ordem de autoridade judiciária competente (art. 5º, inciso LXI). A privação da liberdade de forma provisória ainda no curso da informatio delicti também pode se afigurar legítima e constitucional, desde que encontre amparo nos interesses superiores da higidez da coletividade. Desde que encontre amparo no bem comum a ser preservado. Faz parte das restrições a direitos individuais que ao Estado é lícito adotar, quando sua finalidade primária é a tutela do interesse público. Desta forma compreende-se que havendo periculum libertatis, com risco efetivo de frustração da aquisição de provas causada pelo suposto infrator, o direito de liberdade do cidadão deve ceder ao interesse punitivo do corpo social. Se este cidadão ameaçado em sua liberdade tem em seu desfavor elementos probatórios que o indique como provável autor ou partícipe daquelas infrações referidas no inciso III do art. 1º da lei 7960/89 (fumus comissi delicti), não havendo à disposição da autoridade outros meios de provas aptos a impulsionar as investigações, havendo recusa do imputado em fornecer elementos de sua identificação e residência, esta prisão, em tese, é constitucional. O pedido de prisão temporária deverá estar fundamentado e demonstrar da real necessidade da medida. Note-se que cogito da fundamentação do pedido e não exclusivamente do decreto prisional. Só o juiz criminal poderá decretar tal prisão. Não há afronta ao due process of law, em tese, por se tratar de exceção contemplada pela própria lei magna do país.


6. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E PRISÃO TEMPORÁRIA.

Cuidaremos doravante de outro aspecto sensível da prisão temporária quando cotejamos com o princípio da proporcionalidade (ou da razoabilidade). PAULO BONAVIDES ensina que este princípio deita raízes na doutrina administrativista, encontrando abrigo nas modernas constituições [13]. Para este douto professor a proporcionalidade está implícita no texto constitucional de 1988 [14]. A doutrina identifica no princípio da proporcionalidade três elementos, adiante resumidos: o da adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu. A adequação, tem conhecida como pertinência ou aptidão, nos deve dizer se determinada medida tomada pelo poder público representa o meio certo para concretização de um fim de interesse público, se existe adequação entre o meio e o fim colimado pelo Estado [15]. O segundo elemento é o da necessidade, pois por este subprincípio, "a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja" [16]. Se existem outros meios de alcançar o objetivo pretendido pelo poder público, devem ser utilizados os menos gravosos para os cidadãos, os que menos restringem a esfera dos direitos individuais. Por fim a proporcionalidade em sentido estrito no qual "a escolha recai sobre o meio ou conjunto de meios que, no caso específico, levarem mais em conta o conjunto dos interesses em jogo" [17].

Se a prisão de alguém é um meio de que o Estado lança mão para investigação dos delitos, evidente que esta prisão deve atender ao princípio da proporcionalidade no caso concreto. Mister se faz aferir se esta prisão é o meio investigatório idôneo para instrução do inquérito (adequação), se é o meio menos gravoso de que dispõe autoridade para conduzir suas investigações (necessidade) e se no conjunto dos interesses em jogo esta prisão é a medida proporcional a atender fins de interesse público. Uma resposta negativa a esta indagações inquina de inconstitucionalidade a prisão temporária, por se afigurar medida excessiva, injustificável que "não cabe na moldura da proporcionalidade" [18].

Vale salientar com o magistério do ministro do STF GILMAR MENDES que "na prática, adequação e necessidade não tem o mesmo peso ou relevância no juízo de ponderação" Adiante, fulcrado em lições de Pieroth e Schlink arremata: "a prova da necessidade tem maior relevância do que o teste da adequação. Positivo o teste da necessidade, não há de ser negativo o teste da adequação. Por outro lado, se o teste quanto à necessidade revelar-se negativo, o resultado positivo do teste da adequação não mais poderá afetar o resultado definitivo ou final [19].

Se nos afigura inconstitucional, neste particular, por afrontar a razoabilidade, o art. 2º, &3º da lei 8072/90 que preconiza a duração de 30 dias para a prisão temporária naqueles delitos, prorrogáveis por mais trinta dias! Lembremos que a prisão temporária tem cunho investigatório e sessenta dias para alcançar tal intento é excessiva e gravosa demais. Imagine se o cidadão em nada contribuiu para aquele fato criminoso. Até o julgamento do hábeas corpus, o vexame e a humilhação já restaram consolidados.

HÉLIO TORNAGHI quando formula orientações em matéria de prisão provisória não poderia ser mais lúcido: "O Juiz deve ser prudente e mesmo avaro na decretação. Há alguns perigos contra os quais deveriam premunir-se todos o juízes, ao menos os de bem: o perigo do calo profissional, que insensibiliza. De tanto mandar prender, há juízes que terminam esquecendo os inconvenientes da prisão. Fazem aquilo como ato de rotina... o perigo da precipitação, do açodamento, que impede o exame maduro das circunstâncias e conduz a erros". A lei 7960/90 incentiva a precipitação, quando fixa o prazo de 24 horas para o juiz decidir do pedido, após oitiva do Ministério Público, se este não requereu a medida (art. 2º, & 2º). Continua o ilustre mestre TORNAGHI em suas lições advertindo de outro perigo: "o perigo do exagero, que conduz o juiz a ver fantasmas, a temer danos imaginários, a transformar suspeitas vagas em indícios veementes, a supor que é zelo o que na verdade é exarcebação do escrúpulo [20]"(destaques nossos). Vale dizer, quando se trata de julgar acerca da liberdade alheia a precipitação e o exagero devem ser cuidadosamente avaliados.


7. CONCLUSÕES.

Todo ato normativo que emana do estado tem o privilégio de presumir-se constitucional, até que os órgãos do Poder Judiciário se pronunciem no sentido diverso. Em inúmeras ocasiões os tribunais superiores pátrios foram chamados a decidir conflitos que envolviam aplicação da lei temporária. Até onde sabemos, em nenhuma destas ocasiões, cogitou-se do vício de inconstitucionalidade a macular a lei sob nossos comentários. Para se contornar vários dos percalços envolvidos na aplicação da lei 7960/90, há que se fazer uma interpretação conforme à constituição. Na doutrina autorizada de GOMES CANOTILHO este princípio de controle visa assegurar a constitucionalidade da interpretação de normas jurídicas que comportam vários significados, assegurando, destarte, o princípio da prevalência da constituição sobre demais normas que compõe o ordenamento jurídico [21].

Há que se aferir da aplicabilidade desta lei ponderando-a com o princípio da proporcionalidade (razoabilidade) implícito no texto constitucional como entende a doutrina. Preserva-se o texto da lei da prisão temporária, dando-lhe uma interpretação compatível com os princípios constitucionais.

Neste mister, de relevante importância é a figura do juiz criminal garantista pronto para realizar o direito no caso concreto, levando em conta os princípios constitucionais que regem as leis do processo penal. Estes princípios extraem sua normatividade do próprio texto constitucional e se destinam a todos quanto compõem os órgãos do Estado. Vale dizer, na pena mais nobre de JORGE MIRANDA: "Se a constituição é o fundamento da ordem jurídica, o fundamento da validade de todos os actos do estado, direitos fundamentais são os direitos que, por isso mesmo, se impõe a todas as entidades públicas e privadas e que incorporam os valores básicos da sociedade" [22]. Os princípios não se dirigem apenas aos órgãos do Poder Executivo e do Judiciário, uma vez que restringem também a "liberdade de conformação do legislador". Recorro mais uma ao Ministro GILMAR MENDES: "a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade [23](destaque no original).

Embora tenha em seu favor a presunção de constitucionalidade, não podemos olvidar que "os actos normativos só estarão conformes à constituição quando não violem o sistema formal, constitucionalmente estabelecido, da produção desses actos, e quando não contrariem, positiva ou negativamente, os parâmetros materiais plasmados nas regras e ou princípios constitucionais" [24]. A inconstitucionalidade a macular a norma jurídica pode ser apenas de ordem material. Como um recurso legítimo a preservar o ato normativo, LUIZ ROBERTO BARROSO informa que a razoabilidade oferece uma alternativa de atuação construtiva do judiciário para a produção do melhor resultado, ainda quando este não seja o único possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação acrítica da lei [25].

Para HUMBRETO BERMANN ÁVILA há casos em que a constitucionalidade de uma medida é aferida tendo conta não apenas uma relação meio-fim, mas com base na situação pessoal do sujeito envolvido, para este autor "trata-se de um exame concreto-individual dos bens jurídicos envolvidos, não em função da medida em relação a um fim, mas em razão da particularidade ou excepcionalidade do caso individual. (...). A razoabilidade (...) determina que as condições pessoais e individuais dos sujeitos envolvidos sejam consideradas na decisão [26](itálicos no original). Na apreciação desta situação particular é que se insere o papel do juiz criminal garantista a aferir da razoabilidade da prisão temporária de alguém. Não podemos olvidar que no Estado Democrático de Direito, a liberdade não pode ser exceção e sim a regra geral, o princípio absoluto. Tudo o mais é sofisma, já dizia o sumo PIMENTA BUENO [27].


NOTAS.

1 MOSSIN, Heráclito Antonio. Curso de Processo Penal. Vol. 2. São Paulo: Atlas, 1998. Pág. 423.

2 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen júris, 2004. Pág. 643.

3 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 3º volume. 23. ed. rev. atual. e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2001. Pág. 463.

4 Idem. Op. Cit. Pág. 469.

5 KARL LARENZ. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Caleuste Guebenkian, 1997. Pág. 293

6 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002. Pág. 98.

7 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003. Pág. 392.

8 SEBASTIAN SCHEREER prefaciando livro de PAULO QUEIROZ: Do caráter subsidiário do Direito penal. Lineamentos para um Direito penal mínimo. 1ª. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. Pág. 15.

9 CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito. Porto: Rés-editora. Pág. 412.

10 ANDRADE, Anderson Luiz Almeida. A Razão da prisão provisória: uma incursão pela ontologia do instituto. Revista do TRF 1ª Região, Brasília, n 2 março de 2002.

11 TORNAGHI, Hélio. Compêndio de Processo Penal. Tomo III. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. Pág. 1092.

12 BROCHARDO, Maria. O princípio da proporcionalidade e o devido processo legal. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 39 n.155 jul/set. 2002. Pág. 128.

13 BONAVIDES, PAULO. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. Pág. 362.

14 Idem, Op. cit. Pág. 395.

15 Idem,Op. Cit. pág. 360.

16 Idem, Op. Cit. pág. 360.

17 Idem, Op. Cit. Pág. 361.

18 Idem, Op. Cit. pág. 361.

19 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires ; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e Direitos fundamentais. Brasília: Brasília jurídica, 2000. Pág. 250.

20 TORNAGHI, Hélio. Op. Cit. Págs. 1080-1081.

21 GOMES CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almeidina, 1997. Págs. 1210-1211.

22 JORGE MIRANDA. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 3. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra eds, 2000. Pág. 52.

23 Op. Cit. Pág. 250.

24 GOMES CANOTILHO.Op. cit. Pág. 862.

25 BARROSO Luiz Roberto. Princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. In: Estudos de Direito constitucional em homenagem a Paulo Bonavides. Jose Ronald Cavalcante Soares (coordenador). São Paulo: Ltr, 2001. Pág. 342

26 ÁVILA, HUMBERTO BERGMANN Apud GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. Pág. 168.

27 PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito Público Brasileiro e análise da Constituição do Império. Brasília: Senado Federal, 1978. Pág. 384


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SILVA JÚNIOR, Antoniel Souza Ribeiro da. Prisão temporária: uma interpretação conforme a Constituição da República. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 311, 14 maio 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5199. Acesso em: 29 mar. 2024.