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A repersonalização das relações de família

A repersonalização das relações de família

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A família patriarcal, ao longo do século XX, entrou em crise, culminando com sua derrocada pela Constituição de 1988. Como a crise é sempre perda de fundamentos, a família atual está matrizada em um fundamento que explica sua função atual: a afetividade.

SUMÁRIO: Nota preliminar; 1. Introdução; 2. Função atual da família. Sua evolução; 3. O lugar da família no Estado social; 4/ Limites recíprocos da família e do Estado. 5. A família constitucionalizada; 6. A prevalência dos interesses patrimoniais na legislação brasileira das relações de família; 7. A família atual a partir do censo demográfico de 2000; 8. A repersonalização; 9. Conclusão.


Nota preliminar

Este trabalho foi publicado, pela primeira vez, como capítulo de obra coletiva intitulada O direito de família e a Constituição de 1988, publicada em 1989 (São Paulo: Saraiva), sob a coordenação de Carlos Alberto BITTAR. Por certo, ao menos após a Constituição de 1988, foi o primeiro trabalho a lançar à discussão dos civilistas brasileiros o termo e a idéia de repersonalização das relações civis no âmbito do direito de família, cujos paradigmas foram profundamente alterados pela nova Constituição, que refletiu a força das transformações sociais do fim do século XX. Talvez por esse fato cronológico tenha contado com tantas e honrosas citações dos especialistas.

Nesses quinze anos, o tema do trabalho foi objeto de estudos aprofundados, sob vários ângulos e denominações, seja sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, seja como objeto de estudos da constitucionalização do direito civil, seja como parte das investigações variadas acerca da natureza socioafetiva da família. Destaquem-se as pesquisas realizadas ou orientadas em nível de pós-graduação pelos eminentes civilistas Luiz Edson FACHIN, na UFPR, e Gustavo TEPEDINO, na UERJ, com tantas publicações de escol. A partir de 1997, o direito de família foi enriquecido e renovado com a criação do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM - sob a liderança de Rodrigo Da Cunha PEREIRA e Maria Berenice DIAS - que patrocinou a publicação de obras e da Revista Brasileira de Direito de Família, reunindo especialistas de todo o país, cujos estudos têm privilegiado a pessoa humana como núcleo da aplicação do direito, para além do individualismo liberal e proprietário. São tantos os ilustres autores que sua nominação corre o risco de imperdoável omissão.

Essa produção jurídica rica e variada sobre o tema, após 1989, desaconselharia a atualização do trabalho, que permaneceria situado no tempo de sua elaboração. Fi-lo, todavia, convencido por caros amigos de que a obra originária estava esgotada e suas idéias mereciam ser conhecidas de público mais amplo. Na versão original, tinha utilizado os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE) de 1986 e reflexões críticas sobre os fundamentos do Código de 1916. Na versão a seguir, são apropriados os dados do censo demográfico de 2000 e analisada a pertinência do Código Civil de 2002 com as transformações das relações de família no final do século XX. No mais, manteve-se o texto original.


1. Introdução

A família sofreu, nas últimas décadas, profundas mudanças de função, natureza, composição e, conseqüentemente, de concepção, sobretudo após o advento do Estado social.

O Estado legislador passou a se interessar de forma clara pelas relações de família, em suas variáveis manifestações sociais. Daí a progressiva tutela constitucional, ampliando o âmbito dos interesses protegidos, definindo modelos, nem sempre acompanhados pela rápida evolução social, a qual engendra novos valores e tendências que se concretizam a despeito da lei.

A família atual parte de princípios básicos, de conteúdo mutante segundo as vicissitudes históricas, culturais e políticas: a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a afetividade. Sem eles, é impossível compreendê-la.

A família patriarcal, que nossa legislação civil tomou como modelo, ao longo do século XX, entrou em crise, culminando com sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1988.

Como a crise é sempre perda de fundamentos, a família atual está matrizada em um fundamento que explica sua função atual: a afetividade. Assim enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida não hierarquizada.

Fundada em bases aparentemente tão frágeis, a família atual passou a ter a proteção do Estado, constituindo essa proteção um direito subjetivo público, oponível ao próprio Estado e à sociedade. A proteção do Estado à família é, hoje, princípio universalmente aceito e adotado nas Constituições da maioria dos países, independentemente do sistema político ou ideológico. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, assegura às pessoas humanas o "direito de fundar uma família", estabelecendo o art. 16.3:

A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

Desse dispositivo defluem conclusões evidentes: a) família não é só aquela constituída pelo casamento, tendo direito todas as demais entidades familiares socialmente constituídas [1]; b) a família não é célula do Estado (domínio da política), mas da sociedade civil, não podendo o Estado tratá-la como parte sua; a família é concebida como espaço de realização da dignidade das pessoas humanas.

Direitos novos surgiram e estão a surgir, não só aqueles exercidos pela família, como conjunto, mas por seus membros, entre si ou em face do Estado, da sociedade e das demais pessoas, em todas as situações em que a Constituição e a legislação infraconstitucional tratam a família, direta ou indiretamente, como peculiar sujeito de direitos (ou deveres).

A família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade humana e da dignidade cada um de seus membros, marca o deslocamento da função econômica-política-religiosa-procracional para essa nova função. Essas linhas de tendência enquadram-se no fenômeno jurídico-social denominado repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais. O anacronismo da legislação sobre família revelou-se em plenitude com o despontar dos novos paradigmas das entidades familiares. O advento do Código Civil de 2002 não pôs cobro ao descompasso da legislação, pois várias de suas normas estão fundadas nos paradigmas passados e em desarmonia com os princípios constitucionais referidos.


2. Função atual da família. Sua evolução

Sempre se atribuiu à família, ao longo da história, funções variadas, de acordo com a evolução que sofreu, a saber, religiosa, política, econômica e procracional. Sua estrutura era patriarcal, legitimando o exercício dos poderes masculinos sobre a mulher - poder marital - e sobre os filhos - pátrio poder. As funções religiosa e política praticamente não deixaram traços na família atual, mantendo apenas interesse histórico [2], na medida em que a rígida estrutura hierárquica era substituída pela coordenação e comunhão de interesses e de vida.

A família atual busca sua identificação na solidariedade (art. 3º, I, da Constituição), como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos dois últimos séculos, ainda que não retome o papel predominante que exerceu no mundo antigo. Na expressão de um conhecido autor do século XIX: "Pode-se expressar o contraste de uma maneira mais clara dizendo que a unidade da antiga sociedade era a família como a da sociedade moderna é o indivíduo". [3]

Por seu turno, a função econômica perdeu o sentido, pois a família – para o que era necessário o maior número de membros, principalmente filhos - não é mais unidade produtiva nem seguro contra a velhice, cuja atribuição foi transferida para a previdência social. Contribuiu para a perda dessa função as progressivas emancipações econômica, social e jurídica femininas [4] e a drástica redução do número médio de filhos das entidades familiares. Ao final do Século XX, o censo do IBGE indicava a média de 3,5 membros por família, no Brasil.

A função procracional, fortemente influenciada pela tradição religiosa, também foi desmentida pelo grande número de casais sem filhos, por livre escolha, ou em razão da primazia da vida profissional, ou em razão de infertilidade, ou pela nova união da mulher madura. O direito contempla essas uniões familiares, para as quais a procriação não é essencial. O favorecimento constitucional da adoção fortalece a natureza socioafetiva da família, para a qual a procriação não é imprescindível. Nessa direção encaminha-se a crescente aceitação da natureza familiar das uniões homossexuais.

As milhares de sugestões populares e de entidades voltadas à problemática da família, recolhidas pela Assembléia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição de 1988, voltaram-se muito mais para os aspectos pessoais do que para os patrimoniais das relações de família, refletindo as transformações por que passa. Das 5.517 sugestões recebidas, destacam-se os temas relativos a: fortalecimento da família como união de afetos, igualdade entre homem e mulher, guarda de filhos, proteção da privacidade da família, proteção estatal das famílias carentes, aborto, controle de natalidade, paternidade responsável, liberdade quanto ao controle de natalidade, integridade física e moral dos membros da família, vida comunitária, regime legal das uniões estáveis, igualdade dos filhos de qualquer origem, responsabilidade social e moral pelos menores abandonados, facilidade legal para adoção. [5]


3. O lugar da família no Estado social

O Estado liberal, hegemônico no século XIX no mundo ocidental, caracterizava-se pela limitação do poder político e pela não intervenção nas relações privadas e no poder econômico. Concretizou o ideário iluminista da liberdade e igualdade dos indivíduos. Todavia, a liberdade era voltada à aquisição, domínio e transmissão da propriedade e a igualdade ateve-se ao aspecto formal, ou seja, da igualdade de sujeitos de direito abstraídos de suas condições materiais ou existenciais. Mas a família, nas grandes codificações liberais, permaneceu no obscurantismo pré-iluminista, não se lhe aplicando os princípios da liberdade ou da igualdade, porque, para a ideologia liberal burguesa, ela era concebida como unidade de sustentação do status quo, desconsiderando as pessoas humanas que a integravam.

O exemplo paradigmático foi o Código Civil francês de 1804. No direito de família a igualdade era reduzida aos pais de família proprietários entre si, suficiente para a paix bourgeoise. A família, tida como unidade política e econômica, comandada por um chefe patriarcal, era uma "pequena pátria", segundo a imagem e ao serviço da grande pátria. Marcadamente anti-feminista, o Code via com suspeição o divórcio, a adoção, o filho natural – considerado verdadeiro paria – pois significavam ameaças à ordem social assim estabelecida [6].

O Estado social desenvolveu-se ao longo do século XX, caracterizando-se pela intervenção nas relações privadas e no controle dos poderes econômicos, tendo por fito a proteção dos mais fracos. Sua nota dominante é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo também alcança a família, com o intuito de redução do quantum despótico dos poderes domésticos, da inclusão e equalização de seus membros, e na compreensão de seu espaço para a promoção da dignidade humana. No Brasil, desde a primeira Constituição social, em 1934, até à Constituição de 1988, a família é destinatária de normas crescentemente tutelares, que assegurem a liberdade e a igualdade materiais, inserindo-a no projeto da modernidade.

É tão notável a influência do Estado na família que se cogitou da substituição da autoridade paterna pela estatal. O Estado social assumiria, também a função de pai. [7] Há um certo exagero nessa perspectiva. O sentido de intervenção que o Estado assumiu foi antes de proteção do espaço familiar, de sua garantia, mais do que sua substituição. Até porque a afetividade não é subsumível à impessoalidade da res publica.


4. Limites recíprocos da família e do Estado

A Constituição de 1988 proclama que a família é a base da sociedade. Aí reside a principal limitação ao Estado. A família não pode ser impunemente violada pelo Estado, porque seria atingida a base da sociedade a que serve o próprio Estado.

Há situações, entretanto, que são subtraídas da decisão exclusiva da família, quando entra em jogo o interesse social ou público. Nesses casos, o aumento das funções do Estado é imprescindível. Como exemplos, têm-se:

a)é social a obra de higiene, de profilaxia, de educação, de preparação profissional, militar e cívica;

b)é de interesse social que as crianças sejam alfabetizadas e tenha educação básica, obrigatoriamente;

c)é de interesse público a política populacional do Estado, cabendo a este estimular a prole mais ou menos numerosa. O planejamento familiar é livre, pela Constituição, mas o Estado não está impedido de realizar um planejamento global;

d)é de interesse social que se vede aos pais a fixação do sexo dos filhos, mediante manipulação genética;

e)é de interesse social que se assegure a ajuda recíproca entre pais e filhos e idosos e que o abandono familiar seja punido;

f)é de interesse público que seja eliminada a repressão e a violência dentro da família.


5. A família constitucionalizada

As constituições modernas, quando trataram da família, partiram sempre do modelo preferencial da entidade matrimonializada. Não é comum a tutela explícita das demais entidades familiares. Sem embargo, a legislação infraconstitucional de vários países ocidentais têm avançado, desde as duas últimas décadas do século XX, no sentido de atribuir efeitos jurídicos próprios de direito de família às demais entidades socioafetivas, incluindo as uniões homossexuais. A Constituição brasileira inovou, reconhecendo não apenas a entidade matrimonializada mas outras duas explicitamente, além de permitir a interpretação extensiva, de modo a incluir as demais entidades implícitas. [8]

As constituições brasileiras reproduzem as fases históricas que o país viveu, em relação à família, no trânsito do Estado liberal para o Estado social. As constituições de 1824 e 1891 são marcadamente liberais e individualistas, não tutelando as relações familiares. Na Constituição de 1891 há um único dispositivo (art. 72, § 4º) com o seguinte enunciado: "A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita". Compreende-se a exclusividade do casamento civil, pois os republicanos desejavam concretizar a política de secularização da vida privada, mantida sob controle da igreja oficial e do direito canônico durante a colônia e o Império.

Em contrapartida, as constituições do Estado social brasileiro (de 1934 a 1988) democrático ou autoritário destinaram à família normas explícitas. A Constituição democrática de 1934 dedica todo um capítulo à família, aparecendo pela primeira vez a referência expressa à proteção especial do Estado, que será repetida nas constituições subseqüentes. Na Constituição autoritária de 1937 a educação surge como dever dos pais, os filhos naturais são equiparados aos legítimos e o Estado assume a tutela das crianças em caso de abandono pelos pais. A Constituição democrática de 1946 estimula a prole numerosa e assegura assistência à maternidade, à infância e à adolescência.

A Constituição de 1988 expande a proteção do Estado à família, promovendo a mais profunda transformação que se tem notícia, entre as Constituições mais recentes de outros países. Alguns aspectos merecem ser salientados:

a)a proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições, explicita ou implicitamente tutelada pela Constituição;

b)a família, entendida como entidade, assume claramente a posição de sujeito de direitos e obrigações;

c)os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, recebem primazia sobre os interesses patrimonializantes;

d)a natureza socioafetiva da filiação prevalece sobre a origem exclusivamente biológica;

e)consuma-se a igualdade entre os gêneros e entre os filhos;

f)reafirma-se a liberdade de constituir, manter e extinguir entidade familiar e a liberdade de planejamento familiar, sem imposição estatal;

g)a família configura-se no espaço de realização pessoal e da dignidade humana de seus membros.

Caio Mário da Silva PEREIRA adverte para o novo sistema de interpretação do direito de família, em que "destacam-se os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, os quais se impõem aos interesses particulares, prevalecendo a constitucionalização do direito civil", muito mais exigente com o advento do Código Civil de 2002. Segundo o autor,

Ao mesmo tempo que os direitos fundamentais passaram a ser dotados do mesmo sentido nas relações públicas e privadas, os princípios constitucionais sobrepuseram-se à posição anteriormente adotada pelos Princípios Gerais do Direito". [9]


6. A prevalência dos interesses patrimoniais na legislação brasileira das relações de família

Os autores sempre afirmaram que o direito de família disciplina direitos de três ordens, a saber, pessoais, patrimoniais e assistenciais, ou, ainda, matrimoniais, parentais e protectivos. Sempre se afirmou, igualmente, que esses direitos e situações são plasmados em relações de caráter eminentemente pessoais, não sendo os interesses patrimoniais predominantes. Seria o direito de família o mais pessoal dos direitos civis. As normas de direito das coisas e de direitos das obrigações não seriam subsidiárias do direito de família.

Entretanto, os códigos civis da maioria dos povos ocidentais desmentem essa recorrente afirmação. Editados sob inspiração do individualismo liberal, alçaram a propriedade e os interesses patrimoniais a pressuposto nuclear de todos os direitos privados, inclusive o direito de família. Segundo PORTALIS, um dos autores dos trabalhos preparatórios do Código Civil francês de 1804, "o corpo inteiro do Código Civil é consagrado a definir tudo aquilo que possa assegurar o direito de propriedade; direito fundamental sob o qual todas as instituições sociais repousam". [10] O que as codificações liberais sistematizaram já se encontrava na raiz histórica do próprio conceito de família. Lembra PONTES DE MIRANDA [11] que a palavra família, aplicada aos indivíduos, empregava-se no direito romano em acepções diversas. Era também usada em relação às coisas, para designar o conjunto do patrimônio, ou a totalidade dos escravos pertencentes a um senhor.

ENGELS [12] esclarece que a palavra família não pode mesmo ser aplicada, em princípio, aos próprios romanos, ao casal e aos filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo e família era o conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem. Ainda no tempo de Caio, a família id est patrimonium (quer dizer, parte da herança) era transmitida testamentariamente. Segundo esse autor, a expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social cujo chefe tinha sob suas ordens a mulher, os filhos e um certo número de escravos, submetidos ao poder paterno romano, com direito de vida e morte sobre todos eles. Essa família seria baseada no domínio do homem, com expressa finalidade de procriar filhos de paternidade inconstestável, inclusive para fins de sucessão. Foi a primeira forma de família fundada sobre condições não naturais, mas econômicas, resultando no triunfo da propriedade individual sobre a compropriedade espontânea primitiva.

É na origem e evolução histórica da família patriarcal e no predomínio da concepção do homem livre proprietário que foram assentadas as bases da legislação sobre a família, inclusive no Brasil. No Código Civil de 1916, dos 290 artigos da parte destinada ao direito de família, 151 tratavam de relações patrimoniais e 139 de relações pessoais. A partir da década de setenta do século XX essas bases começaram a ser abaladas com o advento de nova legislação emancipadora das relações familiares, que desmontaram as estruturas centenárias ou milenares do patriarcalismo.

No que se refere à filiação, a assimetria do tratamento legal aos filhos, em razão da origem e do pesado discrime causado pelo princípio da legitimidade, não era inspirada na proteção da família, mas na proteção do patrimônio familiar. A caminhada progressiva da legislação rumo à completa equalização do filho dito ilegítimo foi delimitada ou contida pelos interesses patrimoniais em jogo, sendo obtida a conta-gotas: primeiro, o direito a alimentos, depois, a participação em ¼ da herança, mais adiante, a participação em 50% da herança.

O Código Civil de 2002, apesar da apregoada mudança de paradigma, do individualismo para a solidariedade social, manteve forte presença dos interesses patrimoniais sobre os pessoais, em variados institutos do Livro IV, dedicado ao direito de família, desprezando-se o móvel da affectio, inclusive no Título I destinado ao "direito pessoal". Assim, as causas suspensivas do casamento, referidas no art. 1.523, são quase todas voltadas aos interesses patrimoniais (principalmente, em relação a partilha de bens). Da forma como permanece no Código, a autorização do pai, tutor ou curador para que se casem os que lhe estão sujeitos não se volta à tutela da pessoa, mas ao patrimônio dos que desejam casar; a razão da viúva estar impedida de casar antes de dez meses depois da gravidez não é a proteção da pessoa humana do nascituro, ou a da certeza da paternidade, mas a proteção de seus eventuais direitos sucessórios; o tutor, o curador, o juiz, o escrivão estão impedidos de casar com as pessoas sujeitas a sua autoridade, porque aqueles, segundo a presunção da lei seriam movidos por interesses econômicos. No Capítulo destinado à dissolução da sociedade conjugal e do casamento ressaltam os interesses patrimoniais, sublimados nos processos judiciais, agravados com o fortalecimento do papel da culpa na separação judicial, na contramão da evolução do direito de família. Contrariando a orientação jurisprudencial dominante, o art. 1.575 enuncia que a sentença importa partilha dos bens. A confusa redação dos preceitos relativos à filiação (principalmente a imprescritibilidade prevista no art. 1.601) estimula que a impugnação ou o reconhecimento judicial da paternidade tenham como móvel interesse econômico (principalmente herança), ainda que ao custo da negação da história de vida construída na convivência familiar. Quando cuida dos regimes de bens entre os cônjuges, o Código (art. 1.641) impõe, com natureza de sanção, o regime de separação de bens aos que contraírem casamento com inobservância das causas suspensivas e ao maior de sessenta anos, regra esta de discutível constitucionalidade, pois agressiva da dignidade da pessoa humana, cuja afetividade é desconsiderada em favor de interesses de futuros herdeiros [13]. As normas destinadas à tutela e à curatela estão muito mais voltadas ao patrimônio do que às pessoas dos tutelados e curatelados. Na curatela do pródigo, a proteção patrimonial chega ao paroxismo, pois a prodigalidade é negada e a avareza premiada.

Em termos quantitativos, como vimos, o Código Civil de 1916 destinava a maioria dos artigos relativos ao direito de família aos interesses patrimoniais ou econômicos. Comparativamente, o Código Civil de 2002, de um total de 273 artigos, reserva 112 aos interesses patrimoniais. Assim, ao menos em relação à proporção de artigos voltados predominantemente às pessoas humanas integrantes das relações familiares, o Código de 2002 contemplaria mais a diretriz da repersonalização. Para efeito de análise, destaque-se a exclusão dos 20 artigos que disciplinavam de modo desigual os direitos e deveres do marido e da mulher e a transferência para a Parte Geral dos 18 artigos que tratam da ausência, todos de fundo patrimonializante. Em contrapartida, o bem de família que, no Código de 1916, era disciplinado na Parte Geral em 4 artigos, passou a ser parte do Direito Patrimonial do Livro IV do Código de 2002, com 12 artigos.

Em resumo, a distribuição dos artigos predominantemente patrimonializantes do Livro IV do Código Civil de 2002, assim se apresenta (na ordem do Código) [14]:

a) Casamento: 3 (de 80);

b) Parentesco (incluindo filiação): nenhum (de 48);

c) Regime de bens: 50 (de 50);

d) Usufruto e administração dos bens dos filhos menores: 5 (de 5);

e) Alimentos: 17 (de 17);

f) Bem de família: 12 (de 12);

g) União estável: 1 (de 5);

h) Tutela e curatela: 24 (de 56).

Na perspectiva qualitativa, todavia, o quadro se altera pois muitos dispositivos do Código Civil de 2002, que formalmente tutelam direitos pessoais, mascaram os interesses patrimoniais prevalecentes. Tomem-se quatro exemplos: o casamento, a culpa, a contestação da paternidade e a natureza da filiação: a) o Código mantém a primazia do casamento (dos 273 artigos, 80 são relativos ao casamento), sem referência às demais entidades familiares, em seus múltiplos arranjos, na parte destinada aos direitos pessoais. A organização da família em torno do casamento resulta ainda da concepção individualista liberal da unidade política e econômica de preservação do patrimônio familiar, mas que não corresponde aos princípios de liberdade, igualdade e, acima de tudo, de ampla garantia da dignidade de seus membros; b) a impressionante revalorização do papel da culpa, promovida pelo Código de 2002, desconsidera as tendências doutrinárias, legislativas e de sentimento popular, no Brasil e nos países ocidentais, com forte impacto nas separações judiciais, nos alimentos e nas sucessões. Por trás da imputação da culpa estão os interesses patrimoniais [15]; outro exemplo, não menos impressionante, é o da imprescritibilidade da contestação da paternidade (art. 1.601), cuja interpretação literal conduz à negação do estado de paternidade e de filiação que se tenha constituído na convivência familiar, desestruturando laços afetivos, quando os interesses patrimoniais se fizerem determinantes; d) do mesmo modo, a primazia da origem biológica, estimulada pelo Código de 2002, contrariando o estado de filiação socioafetiva, favorece a prevalência dos interesses patrimoniais, como se estes fossem a finalidade do direito de família. É, portanto, resistente o paradigma patrimonializante individualista-liberal em nossa legislação infraconstitucional, indiferente ao postulado fundamental da dignidade da pessoa humana proclamado na Constituição de 1988.

O censo demográfico relativo à última década do século XX, organizado pelo IBGE, demonstra que a pirâmide da perversa distribuição de renda no Brasil exclui a grande maioria da população da incidência das normas da legislação civil voltadas à tutela do patrimônio [16]. A realidade palpável é a de o Código Civil permanecer impermeável - inclusive no que concerne às relações de família - aos interesses da maioria da população brasileira que não tem acesso às riquezas materiais.

Evidentemente, as relações de família também têm natureza patrimonial. Sempre terão. Todavia, quando os interesses patrimoniais passam a ser determinantes, desnaturam a função da família, como espaço de realização da dignidade da pessoa humana na convivência e na solidariedade afetiva.


7. A família atual a partir do censo demográfico de 2000

A família brasileira transformou-se intensamente no final do século XX, não apenas quanto aos valores, mas à sua composição, como revelam os dados do censo demográfico do IBGE de 2000 [17], e bem assim da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio divulgada anualmente, necessários e preciosos para análise dos juristas. Constata-se a existência de uma população avassaladoramente urbana (81,25%, vivendo em menos de 5% do território brasileiro) [18], completamente diferente do predomínio rural, cuja família serviu de modelo para o Código Civil de 1916.

Este é o quadro espelhado no censo de 2000:

a)a média de membros por família caiu para 3,5;

b)o padrão de casal com filhos (incluindo as uniões estáveis) caiu de 60% no início da década de noventa para 55%;

c)em contrapartida, o percentual de entidades monoparentais compostas por mulheres e seus filhos ampliou de 22% no início da década de noventa para 26%. Na cidade de Belém esse percentual subiu para impressionantes 40,5%, o que mereceria estudo mais aprofundado de suas razões;

d)45 % dos domicílios organizam-se de forma nas quais, no mínimo, um dos pais ou ambos estão ausentes, incluindo-se os que vivem sós, ou avós ou tios criando netos ou sobrinhos, irmãos ou grupo de amigos que vivem juntos;

e)os casais sem filhos constituíam 13,8%

f)os solitários (solteiros ou remanescentes de entidades familiares) subiram de 7,3% para 8,6%;

g)o decréscimo da taxa de fecundidade por mãe é notável, passando de 5,8 filhos na década de setenta para 2,3 filhos [19];

h)os mais velhos estão vivendo mais, demandando atenção das famílias, atingindo a média de 64,6 anos. 13% da população brasileira era constituída de aposentados (23 milhões);

i)a população é mais feminina, havendo 97,2 homens para cada grupo de 100 mulheres;

j)o brasileiro está casando menos e mais tarde; dados do PNAD de 2002 indicam que a idade média do homem ao casar subiu para 30,3 anos e a da mulher para 26,7 anos. Mas a taxa de conjugalidade tem caído: foram 743,4 mil em 1991 e 715,1 mil em 2002. A taxa de divórcio em 2002 foi de 1,2 por mil habitantes, tendo crescido 59,6% em relação a 1991.

Esses dados de realidade estão a demonstrar que o anterior paradigma da família, radicado na estrutura patrimonial e biológica, está a desaparecer. A família está se adaptando às novas circunstâncias, assumindo um papel mais concentrado na qualidade das relações entre as pessoas e no desejo de cada uma. A família constitui-se por múltiplos arranjos, sem a rejeição legal e social que enfrentavam no passado; é menor, nuclear, menos hierarquizada; contempla mais a dignidade profissional da mulher. A redução da taxa de fecundidade tem sido justificada pelo interesse das famílias em maior dedicação aos filhos [20]. Se a família perdeu sua função de unidade econômica, se seus membros são vistos uns em relação aos outros muito mais em suas dimensões pessoais e em comunhão de afetos, e também em razão dessa mudança dos fatos, então não faz sentido que os interesses patrimoniais permaneçam à frente na aplicação do direito de família.


8. A repersonalização

A excessiva preocupação com os interesses patrimoniais que matizaram o direito de família tradicional não encontra eco na família atual, vincada por outros interesses de cunho pessoal ou humano, tipificados por um elemento aglutinador e nuclear distinto: a afetividade. Esse elemento nuclear define o suporte fático da família tutela pela Constituição, conduzindo ao fenômeno que denominamos repersonalização [21].

É necessário delimitar o sentido que desejamos emprestar ao terno, nesta exposição. Não se está propugnando um retorno ao individualismo liberal. O liberalismo tinha, como valor necessário da realização da pessoa, a propriedade, em torno da qual gravitavam os demais interesses privados. [22] A família, nessa concepção de vida, deveria ser referencial necessário para a perpetuação das relações de produção existentes, inclusive e sobretudo mediante regras formais de sucessão de bens, de unidade em torno do chefe, de filiação certa.

Os trabalhos preparatórios do Código Civil francês de 1804, cuja ideologia atravessou a codificação brasileira, são cheios de declarações que afirmam o primado da propriedade, ponto nevrálgico em torno do qual se articulou o direito civil. "Até mesmo as pessoas são consideradas segundo o ângulo de sujeitos potenciais de direito de propriedade". [23] O maior jurista brasileiro do século dezenove, Teixeira de Freitas [24], repeliu a idéia de direitos de personalidade, justamente porque não poderiam ser traduzidos em valores pecuniários. O espírito da época não podia admitir que o direito pudesse ter por objeto valores ou bens não patrimoniais, e que a tutela da pessoa, em si, fosse bastante.

O desafio que se coloca ao jurista e ao direito é a capacidade de ver a pessoa humana em todo sua dimensão ontológica e não como simples e abstrato sujeito de relação jurídica. A pessoa humana deve ser colocada como centro das destinações jurídicas, valorando-se o ser e não o ter, isto é, sendo medida da propriedade, que passa a ter função complementar.

ORLANDO DE CARVALHO julga oportuna a repersonalização de todo o direito civil – seja qual for o envólucro em que esse direito se contenha – isto é, a acentuação de sua raiz antropocêntrica, de sua ligação visceral com a pessoa e seus direitos. É essa valorização do poder jurisgênico do homem comum, é essa centralização em torno do homem e dos interesses imediatos que faz do direito civil o foyer da pessoa, do cidadão mediano, do cidadão puro e simples. [25]

A restauração da primazia da pessoa, nas relações de família, na garantia da realização da afetividade e de sua dignidade, é a condição primeira de adequação do direito à realidade. Essa mudança de rumos é inevitável.

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989, adotada pela Assembléia das Nações Unidas, e internalizada no direito brasileiro, com força de lei em 1990 [26], preconiza a proteção especial da criança mediante o princípio do melhor interesse, em suas dimensões pessoais. Para cumprir o princípio do melhor interesse, a criança deve ser posta no centro das relações familiares, devendo ser considerada segundo o "espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade". Tais valores não são compatíveis com razões prefeencialmente patrimoniais.

A família tradicional aparecia através do direito patrimonial e, após as codificações liberais, pela multiplicidade de laços inidividuais, como sujeitos atomizados. Agora, é fundada na solidariedade, na cooperação, no respeito à dignidade de cada um de seus membros, que se obrigam mutuamente em uma comunidade de vida. A família atual é apenas compreensível como espaço de realização pessoal afetiva, no qual os interesses patrimoniais perderam seu papel de principal protagonista. A repersonalização de suas relações revitaliza as entidades familiares, em seus variados tipos ou arranjos.

Por outro ângulo, o interesse a ser tutelado não é mais o do grupo organizado como esteio do Estado e o das relações de produção existentes. A subsunção da família no Estado, uma condicionando o outro, estava pacificamente assente na doutrina jurídica tradicional. SAVIGNY afirmava que na família se teria o germe do Estado, e o Estado, uma vez formado, teria por elemento imediato a família e não as pessoas. [27]

As relações de consangüinidade, na prática social, são menos importantes que as oriundas de laços de afetividade e da convivência familiar, constituintes do estado de filiação, que deve prevalecer quando houver conflito com o dado biológico, salvo se o princípio do melhor interesse da criança ou o princípio da dignidade da pessoa humana indicarem outra orientação, não devendo ser confundido o direito àquele estado com o direito à origem genética, como demonstramos alhures. [28] A adoção foi alçada pela Constituição à mesma dignidade da filiação natural, confundindo-se com esta e revelando a primazia dos interesses existenciais e personalizantes. Até mesmo a adoção de fato, denominada de "adoção à brasileira", fundada no "crime nobre" da falsificação do registro de nascimento é um fato social amplamente aprovado, por suas razões solidárias (salvo quando oriundo de rapto), tendo Antonio CHAVES intitulado um trabalho sobre o assunto com a instigante indagação: pode a sociedade punir um ato cuja nobreza exalça? [29]

Nenhum princípio da Constituição provocou tão profunda transformação do direito de família quanto o da igualdade entre homem e mulher e entre os filhos. Todos os fundamentos jurídicos da família tradicional restaram destroçados, principalmente os da legitimidade, verdadeira summa divisio entre sujeitos e sub-sujeitos de direito, segundo os interesses patrimoniais subjacentes que protegiam, ainda que razões éticas e religiosas fossem as justificativas ostensivas. O princípio da igualdade de gêneros foi igualmente elevado ao status de direito fundamental oponível aos poderes políticos e privados (art. 5º, I, da Constituição).

O princípio da liberdade na família está contemplado, na Constituição, de maneira difusa, tendo duas vertentes: liberdade da entidade familiar, diante do Estado e da sociedade; e liberdade de cada membro diante dos outros membros e diante da própria entidade familiar. A liberdade se realiza na constituição, manutenção e extinção da entidade familiar; no planejamento familiar; na garantia contra a violência, exploração e opressão no seio familiar; na organização familiar mais democrática, participativa e solidária.

A família como sujeito de direitos e deveres retoma a velha e sempre instigante questão de sua personalidade jurídica. No direito estrangeiro, SAVATIER [30] foi quem melhor defendeu essa tese, partindo de uma concepção matizada da personalidade moral ou natural, essencial à vida humana, que existiria antes de qualquer construção jurídica. No Brasil, José Lamartine Corrêa de OLIVEIRA [31], em trabalho específico e pioneiro, tem a mesma convicção, reconhecendo a aptidão do grupo familiar a ser reconhecido como pessoa jurídica, por ter desta as mesmas características ontológicas e estruturais. Entendemos que não haja necessidade do recurso à personalidade jurídica, pois o direito tem admitido com freqüência a existência de tipos variados de sujeitos de direito, dotados de capacidade e legitimidade para cujo exercício é dispensado o enquadramento como pessoa jurídica, a exemplo de outras entidades (dentre outras, a massa falida, condomínio de edifícios, consórcios, espólio, e as sociedades em comum e em conta de participação, estas duas disciplinadas nos arts. 986 a 996 do Código Civil de 2002).


9. Conclusão

A realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Suas antigas funções econômica, política, religiosa e procracional feneceram, desapareceram ou desempenham papel secundário.Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua.

A família, na sociedade de massas contemporânea, sofreu as vicissitudes da urbanização acelerada ao longo do século XX, como ocorreu no Brasil. Por outro lado, a emancipação feminina, principalmente econômica e profissional, modificou substancialmente o papel que era destinado à mulher no âmbito doméstico e remodelou a família. São esses os dois principais fatores do desaparecimento da família patriarcal.

Reinventando-se socialmente, reencontrou sua unidade na affectio, antiga função desvirtuada por outras destinações nela vertidas, ao longo de sua história. A afetividade, assim, desponta como elemento nuclear e definidor da união familiar, aproximando a instituição jurídica da instituição social.

A repersonalização das relações jurídicas de família é um processo que avança, notável em todos os povos ocidentais, revalorizando a dignidade humana, e tendo a pessoa como centro da tutela jurídica, antes obscurecida pela primazia dos interesses patrimoniais, nomeadamente durante a hegemonia da individualismo liberal proprietário, que determinou o conteúdo das grandes codificações.

Com bastante lucidez, a doutrina vem revelando esse aspecto pouco investigado dos fundamentos do direito de família, a saber, o predomínio da patrimonial, que converte a pessoa humana em mero homo economicus.

Luís DIEZ-PICAZO [32] demonstra que essa patrimonialização do direito civil admite dois graus, dois matizes distintos: solapado ou encoberto em um; claro, aberto e decidido em outro. Já houve autores que abertamente propuseram reduzir o direito civil a regulação da vida econômica, no qual a pessoa, seu estado e sua esfera jurídica desapareceriam do sistema. Ora, a finalidade e função do direito civil não é outra que a defesa da pessoa e de seus fins.

A criança, o adolescente, o idoso, o homem e a mulher são protagonistas dessa radical transformação ética, na plena realização do princípio estruturante da dignidade da pessoa humana, que a Constituição elevou a fundamento da organização social, política, jurídica e econômica.

A repersonalização, posta nesses termos, não significa um retorno ao vago humanismo da fase liberal, ao individualismo, mas é a afirmação da finalidade mais relevante da família: a realização da dignidade de seus membros como pessoas humanas concretas, em suma, do humanismo que só se constrói na solidariedade, com o outro.


Notas

1 A concepção abrangente da família já era aludida pela doutrina. PONTES DE MIRANDA (Tratado de direito privado, Rio de Janeiro:Borsoi, 1971, v. 7, p. 174, 175, 179, 192, 193), referindo-se à Constituição de 1946, diz que o legislador constituinte, com intuito ético-político, não pretendeu defender só a instituição jurídica, mas a família como instituição social, na multiplicidade de sua expressão.

2 Sobre a religião como norma constitutiva da família antiga, cf. Fustel de COULANGES (A cidade antiga, trad. Jonas Camargo e Eduardo Fonseca, Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p.29), para quem a família antiga era mais "uma associação religiosa do que uma associação natural". Ainda segundo o autor, "o princípio da família não o encontramos tão-pouco no afeto natural".

3 Cf. Henry Sumner MAINE, El derecho antiguo, trad. A. Guerra, Madrid: Alfredo Alonso, 1893, p. 89.

4 Cerca de 70% da pequenas empresas brasileiras são administradas por mulheres. A emancipação não eliminou as desigualdades, pois, segundo o IBGE, em todas as classes sociais, as mulheres ganham 40% a menos que os homens, em cargos idênticos. Cf. SUPERINTERESSANTE, jan. 2004. p. 77.

5 BRASIL, Assembléia Nacional Constituinte, Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, Relatório e Anteprojeto de Norma Constitucional, Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1987, p. 3-13.

6 Cf. HAPÉRIN, Jean-Louis, Histoire du droit privé français depuis 1804, Paris: Quadrige/PUF, 2001, p. 23.

7 Cf. Caio Mário Da Silva PEREIRA, Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1972, v. 5, p.27.

8 Sobre os argumentos que autorizam a interpretação extensiva, Cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto Lôbo, Entidade familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus, in Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, n. 12, p. 40-55, jan./mar. 2002.

9 Apresentação a Direito de Família e o novo Código Civil, 3ª edição, Maria Berenice DIAS e Rodrigo da Cunha PEREIRA (Orgs.), Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. VI.

10 Apud HALPÉRIN, cit., p. 25.

11 Tratado de direito privado, cit., v. 7, p. 172.

12 A origem da família, da propriedade privada e do Estado, trad. Abgnar Bastos, Rio de Janeiro: Ed. Calvino, 1944, p. 80-5.

13 João Baptista VILLELA considera a proibição de casar aos maiores de sessenta anos um reflexo agudo da postura patrimonialista do Código Civil e constitui mais um dos ultrajes gratuitos que nossa cultura inflige à terceira idade. E arremata: a afetividade enquanto tal não é um atributo da idade jovem. Liberdade e Família, Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 1980, p. 35-6.

14 Na totalização dos artigos considerou-se a predominância do conteúdo, mesmo que eventualmente um artigo tratasse do interesse oposto (patrimonial ou pessoal).

15 A culpa está disseminada no Código de 2002, especialmente nos artigos 1.564, 1.572, 1.573, 1.577, 1.578, 1.580, 1.694, 1.702, 1.704, 1.830.

16 O Censo de 2000 confirma a nação de desiguais: em 1960 os 10% mais ricos detinham renda 34 vezes maior que os 10% mais pobres; em 2000 a concentração de renda tinha aumentado: os 10% mais ricos detinham renda equivalente a 47 vezes à dos 10 mais pobres. De um total de 46.306.278 famílias brasileiras, apenas 2.754.437 (5,9%) ganhavam mais de 20 salários mínimos..

17 Cf. BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Anuário estatístico do Brasil, v. 61, Rio de Janeiro: IBGE, 2003, passim.

18 O IBGE considera urbana toda a população residente nas sedes dos municípios e demais áreas definidas pela legislação municipal.

19 Entre as mulheres mais pobres (até ¼ de salário mínimo) a média é de 5,3 filhos; entre as mais ricas (mais de 5 salários mínimos), 1,1 filhos, menor que a média européia de 1,5 filhos. A queda da natalidade terá conseqüências na projeção da população brasileira. Em relatório divulgado, em 9 de dezembro de 2003, pela Divisão de do Departamento de Economia e Assuntos Sociais da ONU, projeta-se a queda populacional do Brasil da quinta para a oitava posição entre os países mais populosos do mundo, em 2050.

20 Cf. VEJA, 18 fev. 2004, p. 92-5.

21 Em obra pioneira no Brasil (Contribuição ao personalismo jurídico, Belo Horizonte:Del Rey, 1999, cuja primeira edição data de 1953) Edgar de Godoi da MATA-MACHADO denominou de personalismo jurídico a revalorização da pessoa humana concreta, como titular de direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos, cujo marco foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que rechaçou o conceito abstrato de indivíduo isolado. O bem comum "a ser assegurado pelo direito é um bem de todo e de cada uma das partes – um bem comum de pessoas humanas" para realização de faculdades "que tocam aspirações mais concretas e vitais, pois derivam do próprio modo de existência do homem como participante da comunidade" (p. 234).

22 KELSEN, em sua Teoria Pura do Direito (São Paulo: Martins Fontes, 1987, nota 23, p. 183), demonstra como é significativa, nesse aspecto, a filosofia jurídica de Hegel, para quem a esfera exterior da liberdade é a propriedade: "(...) aquilo que nós chamamos pessoa, quer dizer, o sujeito que é livre, livre para si e se dá nas coisas uma existência". "Só na propriedade a pessoa é como razão".

23 Cf. HALPÉRIN, cit., p. 25.

24 Na Introdução que escreveu à terceira edição da Consolidação das Leis Civis, 1896, p. CVII, disse-o explicitamente: "Se no sentido mais philosophico os direitos da personalidade forem considerados de propriedade, seguir-se há faze-los entrar na orbita da Legislação Civil".

25 Cf. A teoria geral da relação jurídica, Coimbra: Centelha, 1981, p. 90-2.

26 Decreto Legislativo nº 28, de 24.09.1990, e Decreto Executivo nº 99.710, de 21.11.1990. Para a Convenção criança é o ser humano até dezoito anos de idade.

27 Sistema del diritto romano attuale, trad. Vittorio Scialoja, Torino: UTET, 1886, v. 1, p. 345.

28 Cf. Paulo Luiz Netto LÔBO, Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária, Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, n. 19, p. 133-156, ago./set. 2003.

29 Falsidade ideológica decorrente do registro de filhos alheios como próprios: pode a sociedade punir um ato cuja nobreza exalça?, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 72(2), p. 87-105, 1977.

30 René SAVATIER, Lês métamorphoses économiques et sociales du droit civil d’aujourd’hui, Paris: Dalloz, 1964, v. 1, p. 153-82.

31 Cf. A personalidade jurídica da família, Jurídica, Rio de Janeiro: IAA, n. 90, p. 416-41.

32 Sistema de drecho civil, Madrid: Technos, 1978, v. 1, p. 55-7.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. A repersonalização das relações de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 307, 10 maio 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5201. Acesso em: 29 mar. 2024.