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Estado de Direito revolucionário

Estado de Direito revolucionário

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Certa vez, escrevi que considerar a prática política e jurídica (legítima) do Estado de Direito no Brasil seria um procedimento revolucionário. Ainda hoje, sem soçobrar à ingenuidade de pensar que a lei promova milagres materiais na arena política, penso de forma semelhante. Digo isso porque, se a lei não muda nada por si mesma, a vontade de aplicar-se este conjunto legal à realidade sócio-econômica seria o estampido da mudança social - justamente por envolver a ação política de transformação necessária à própria aplicação de um Direito Justo. Ou, mais simplesmente, só uma vontade política nova pode ser aplicada a um direito novo – a prática do Estado de Direito, para nós, seria um direito novo, especialmente nos rincões e sertões, mas também nos grandes centros urbanos. Para esta definição, vou utilizar-me de Carré de Malberg, um francês chocado com a Primeira Guerra e pondo-se a defender a lei contra a violência. Diz Malberg (2001) [1]:

"Por Estado de Direito se deve entender um Estado que, em suas relações com seus súditos e para a garantia do estatuto individual, submete-se ele mesmo a um regime de direito, porquanto encadeia sua ação em respeito a eles, por um conjunto de regras, das quais umas determinam os direitos outorgados aos cidadãos e outras estabelecem previamente as vias e os meios que poderão se empregar com o objetivo de realizar os fins estatais: duas classes de regras que têm por efeito comum limitar o poder do Estado subordinando-o à ordem jurídica que consagram".

"Uma característica do regime do Estado de Direito consiste precisamente em que, com respeito aos administrados, a autoridade administrativa somente pode empregar meios autorizados pela ordem jurídica vigente, especialmente pelas leis. Isto implica duas coisas: por um lado, quando entra em relação com os administrados, a autoridade administrativa não pode ir contra as leis existentes, nem se apartar delas, ela está obrigada a respeitar a lei. Por outro lado, no Estado de Direito em que se tenha alcançado seu completo desenvolvimento, a autoridade administrativa não pode impor nada aos administrados se não for em virtude da lei, e não pode aplicar, com respeito a eles, senão as medidas previstas explicitamente pelas leis ou ao menos implicitamente autorizadas por elas; o administrador que exige de um cidadão um feito ou uma abstenção deve começar por mostrar-lhe o texto da lei de onde toma o poder para dirigir-lhe esse mandamento".

"Por conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das habilitações legais. Finalmente, o regime do Estado de Direito implica essencialmente que as regras limitantes que o Estado impôs a si mesmo, em interesse de seus súditos, poderão ser alegadas por estes da mesma maneira que se alega o direito, já que somente com esta condição terão de constituir, para o súdito, verdadeiro direito".

"O Estado de Direito é então aquele que, ao mesmo tempo, formula prescrições relativas ao exercício do seu poder administrativo, e assegura aos administrados, como sanção de ditas regras, um poder jurídico de atuar ante uma autoridade jurisdicional com o objetivo de obter a anulação, a reforma ou pelo menos a não aplicação dos atos administrativos que as tiveram infringido. Portanto, o regime do Estado de Direito se estabelece em interesse dos cidadãos e tem por fim especial preservá-los e defendê-los contra a arbitrariedade das autoridades estatais".

"O regime do Estado de Direito significa que não poderão impor-se aos cidadãos outras medidas administrativas, que não sejam aquelas que estejam autorizadas pela ordem jurídica vigente, e, por conseguinte, exige-se a subordinação da administração tanto aos regulamentos administrativos quanto às leis. Não se pode confundir, entretanto, esta fórmula governamental com aquela que se conhece habitualmente sob o nome de governo convencional".

"Ademais, o desenvolvimento natural do princípio sobre o qual descansa o Estado de Direito, implicaria que o próprio legislador não pode, mediante leis feitas a título particular, derrogar as regras gerais consagradas pela legislação existente. Estaria igualmente de acordo com o espírito de dito regime que a Constituição determinasse princípios e normas superiores, e garantisse aos cidadãos aqueles direitos individuais que devem permanecer fora do alcance do legislador" (cláusulas pétreas). "O regime do Estado de Direito é um sistema de limitação, não somente das autoridades administrativas, senão também do corpo legislativo".

"Mas, por outro, não se há elevado o Estado de Direito até a perfeição, pois, se bem se assegura aos administrados uma proteção eficaz contra as autoridades executivas, não se obriga o legislador a um princípio de respeito do direito individual que deva impor-se a ele de um modo absoluto. Para que o Estado de Direito se encontre realizado, é indispensável, em efeito, que os cidadãos estejam providos de uma ação de justiça, que lhes permita atacar aos atos estatais viciosos que lesionem seu direito individual" (Garantias Institucionais e remédios jurídicos).

"A Constituição não somente exige que o administrador atue intra legem, senão que lhe manda atuar secundum legem, no sentido de que todo ato administrativo deve fundar-se em leis que lhe autorizem, ou nas quais busque a execução. Neste sentido está certo afirmar, sem forçar o alcance natural das palavras, que a administração é somente um poder de ordem executiva. A expressão função executiva traduz unicamente a idéia de que a atividade das autoridades, diferente do legislador, apenas pode exercer-se em virtude das leis; mas não existe nenhuma categoria particular de atos que sejam, pela sua mesma natureza, atos executivos".

"Em síntese: 1º O Estado de Direito se estabelece simples e unicamente em interesse e para a salvaguarda dos cidadãos: só tende a assegurar a proteção do seu direito ou do seu estatuto individual; 2º O sistema do Estado de Direito se encontra estabelecido atualmente na maior parte dos Estados, pelo menos no que se refere ao poder administrativo; 3º O sistema do Estado de Direito, por mais que tenha um alcance menos absoluto que o do sistema do Estado legal, enquanto a extensão do poder administrativo, possui, em outros aspectos, um alcance maior que este último".

É como se dissesse que o Estado de Direito no Brasil seria revolucionário por transformar-se em "legitimidade política" e assim rogar-nos alguma "legalidade administrativa".


Estado de Direito Inconstitucional? [2]

Ainda de acordo com os preceitos teóricos do Estado de Direito, mas agora em torno de algumas questões não meramente formais, pois que posicionaríamos o artigo num debate mais concreto, também histórico, podemos formular novas indagações. Por exemplo: todo Estado de Direito será um Estado Constitucional? Essa questão é importante para entendermos o Brasil de hoje e parte da história da constituição republicana?

Inicialmente, a tendência é dizer sim à pergunta. Vejamos: mesmo que um determinado Estado (sendo de Direito) não tenha uma Constituição formal, escrita, mais ou menos solidificada (como é o caso patente da Inglaterra), este mesmo Estado deverá possuir um Direito Constitucional e uma hermenêutica jurídica que se chamaria de constitucional, uma vez que os julgados do Poder Judiciário (ao menos teoricamente) não deveriam ferir os valores, os costumes, as tradições que constituíram esta sociedade em questão e seu Estado. Estas interpretações acerca do alcance e da aplicação da lei constituiriam a base do Direito Constitucional, da mesma forma como a história constitucional retrata a história do Estado.

Uma outra questão, decorrente, é saber se no Estado de Direito podem estar ausentes dados ou elementos constitutivos do Estado Constitucional. A este problema diríamos que a resposta é mais elaborada ou menos simples e objetiva. Assim, de fato, o Estado de Direito pode não conter ou reunir um ou alguns elementos que conformam o Estado Constitucional – esses elementos seriam: iluminismo, contratualismo, individualismo.

É claro como o Estado de Direito em que se aprofunde a miséria de seu povo, que solape rotineiramente a democracia, que se atenha mais às formalidades do que à busca da justiça, que não alimente devidamente as finalidades públicas do Estado, não é um Estado Público. Este Estado de Direito não se coaduna com os ideais do Iluminismo (ou da Ilustração), pois é fácil notar que aí as pessoas estão divididas em faixas ou níveis diferentes de cidadania, isto é, sem esta igualdade mínima ou elementar não podemos falar em liberdade. Também não há emancipação, maioridade política, consciência crítica e participação responsável, e sem a consciência da necessidade da emancipação do povo não há que se falar em cidadania: liberdade, igualdade e dignidade. Em suma, neste tipo de Estado de Direito respiram somente as estruturas sociais que oficializam a relação senhor-escravo.

Neste caso, também é fácil perceber como o indivíduo, as pessoas, os cidadãos, são tratados como um nada, como um vazio de sentidos, vontades ou desejos individuais (e, obviamente, negando-se veementemente os próprios direitos individuais). E assim, relega-se e se afronta diretamente o que se chamou de individualismo ou liberalismo – um Estado, portanto, que não admite espaço para seus indivíduos ou cidadãos desenvolverem suas potencialidades e individualidades.

No mesmo ritmo, talvez nem se vejam, ou só se percebam timidamente, as concepções ou ideologias apregoadas pelo chamado contratualismo – pensemos num contratualismo-constitucional, pois que o contrato sócio-político estaria expresso na Constituição. Ao menos formalmente, neste Estado de Direito, a Constituição simbolizaria pactos ou acordos de não-agressão ou violência voluntária entre Estado, nação e povo. Não me refiro aqui às lutas de classes, mas devemos nos lembrar de que neste caso – em que predominam e prosperam as formas mais cruéis de violência [3] - os defensores dos direitos humanos e das penas humanitárias acabam tratados como inimigos do Estado [4]. Enfim, o fato é que, em muitos dos Estados atuais, esses preceitos iluministas, liberais, humanistas ou humanitários, não são declarados nem mesmo formalmente e, por isso, é evidente que são descumpridos cotidianamente. Porém, tal como a democracia e a justiça, o Estado de Direito deveria ser regular?

De certa forma, isto ocorre porque o Estado Constitucional é um fenômeno histórico, um resultado prático, efetivo, concreto de dois processos revolucionários: Revolução Francesa e Americana. Ao passo que, contraditoriamente, o Estado de Direito é um conceito, uma elaboração acadêmica e teórica, uma abstração jurídica. Então, formalmente, o Estado de Direito pode não conter, reunir ou expressar o contexto histórico (visionário) que estruturou e organizou a base institucional do Estado Constitucional. Isto é, sem a marca histórica e cultural e sem a consciência política necessária, não há Constituição para valer – e ainda que o Estado continue produzindo cada vez mais leis. Assim, resumindo essa tradição mais histórica, e definindo o Estado de Direito no plano meramente conceitual, dirá Miranda que:

Robert Von Mohl, considerado o autor que lançou o conceito, dizia que a idéia em que se fundamentava o Estado de Direito se resumia nisto: o desenvolvimento o mais humano possível de todas as forças humanas em cada um dos indivíduos (Polizei, 1841, Concepto de policia y Estado de Derecho, in Liberalismo aleman em el siglo XIX – 1815-1848, coletânea de estudos, trad., Madrid, 1987, p. 141). E acrescentava: <Ninguém pode ser sacrificado como um meio ou como uma vítima à idéia de todo> (pág. 142); <nenhum direito deve ficar sem proteção, (mesmo que) seja demasiado insignificante para o Estado> (pág. 143); <Estado de Direito exige proteção jurídica> (pág. 144) (Miranda, p. 86).

Em outra definição, bastante pessoal, diríamos que Estado de Direito é o sistema e a estrutura política em que o poder público é definido/limitado/controlado por uma Constituição. Portanto, há uma maior jurisdicização do poder político.

Nestas condições, se a teoria não se encontra com a prática, caberia dizer que isso ocorre porque a defesa e a instigação a respeito dos preceitos e dos princípios constitucionais, o moderno constitucionalismo, não encontra matéria-prima para se enraizar. Por fim, devemos ressaltar que nem todo Estado de Direito que não apresente uma Constituição formal, escrita, rígida, duradoura, constitui-se em Estado Inconstitucional. Como veremos, o caso específico do Estado de Direito Inconstitucional, na forma de um Estado inexistente ou inóspito para uma parcela muito significativa do povo, origina-se de um quadro social e jurídico ainda mais dramático.


Estado de Direito?

Portanto, pensando de modo concreto, cotidiano, histórico, será que no Brasil realmente há Estado de Direito? É fácil demonstrar que a coisa se complica se pensarmos na eficiência e na legitimidade desse Estado e do seu Direito, e não apenas na formalidade e na legalidade.

Basta-nos pensar que, sem as desculpas ou conveniências de quem milita na advocacia, até agora já são 42 emendas constitucionais, que são reformas na constituição de formatos diferentes, de todos os calibres, impactos e alcances diversos, abrangendo temas variadíssimos. Portanto, antes da era Lula.

Com isso, pode-se perguntar, sem ironia, cinismo ou hipocrisia, hoje, há alguma coisa da Constituição de 1988? Depois que se desmembra, recorta, distorce o processo original, constituinte, de relevo popular, ainda se é fiel aos princípios? De forma bem mais simples, mas sempre no plano teórico e honestamente, será que ainda restou algum nexo ao nosso Estado de Direito Constitucional?

Tome-se o propalado artigo 5º - aliás, um dos textos mais célebres, universais e humanistas que nosso Direito já produziu. Ora, sem que se respeite o direito adquirido de trabalhadores ou de aposentados, será válido dizer que o tal artigo 5º está em vigor? Quando se vêem, infelizmente de forma regular, que pessoas são presas ou detidas por furtarem (não disse roubarem!) galinhas, isso se dará na vigência do Estado de Direito e estará de acordo com o artigo 5º? Quando um prefeito resolve construir um estádio de futebol em vez de escolas primárias (havendo falta crônica de vagas escolares), estará seguindo e servindo o "espírito constituinte do Estado de Direito" e do artigo 5º?

O Estado de Direito no Brasil não existe – no fundo, só há (como sempre houve) coerção para os pobres: um Estado de Direito Injusto. Neste sentido, portanto, efetivar os preceitos do Estado de Direito no Brasil seria um procedimento/processo revolucionário porque, neste caso, a lei teria algum significado, alcance, validade ou eficácia universal, geral, global, e não a cínica declaração de que – mesmo incrustando/condenando milhares à miséria absoluta – "todos são iguais perante a lei". Porém, ainda se pode indagar: neste Estado de Direito, é correto dizer/afirmar que o direito à liberdade concede ao mendigo/inválido ou desvalido/miserável escolher a ponte que melhor lhe aprouver para se abrigar?

Alguém diria que sim, alegando que o Estado de Direito concedeu este direito ao andarilho, e outros regimes não o fariam em hipótese alguma. Para esta convicção, cabe uma última questão: por que, diante desses casos ou quadros sociais de total pilhéria do ser humano, o seu Estado de Direito irá acusar/condenar o morador das pontes baseado na alegação de que ali se comete o "crime de vadiagem"?

Neste Estado de Direito os pobres podem ser condenados por serem pobres? Lembremo-nos de que não é de hoje que a miséria e a pobreza são definidas como "questão de polícia" e não de política. Somente para a classe média é fundamental existir esse Estado de Direito. Historicamente, as elites sempre fizeram uso da coerção do Estado de Polícia (entre os inimigos sociais) e da atual arbitragem (para adversários comerciais).

Este é um Estado de Direito Indireto: nem há fumaça de bom direito. Enfim, parece-me que é um caso exemplar em que o Direito precisa de realidade.


Referência bibliográfica

MALBERG, R. Carré de. Teoría general del Estado. 2ª reimpressão. México : Facultad de Derecho/UNAM : Fondo de Cultura Económica, 2001, pp. 449-461.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. 3ª ed. Coimbra-Portugal : Coimbra Editora, 2000.


Notas

1 As citações a seguir, sempre entre aspas, são parte de uma tradução livre e constituem um breve resumo de Malberg (2001) organizado para este texto, e compreende o período entre as páginas 449 a 461. Portanto, é uma tradução com inerferência direta deste autor – também devo dizer que o texto foi produzido como recurso didático para o ensino da disciplina Teoria Geral do Estado.

2 Esta parte do texto é resultado direto de uma aula de revisão de conteúdos, plantão tira-dúvidas realizado na Fundação no dia 07 de abril de 2004. E devo a reflexão a uma das questões suscitadas durante esta uma hora em que estivemos reunidos democraticamente e com as mentes abertas – por isso, o texto é coletivo.

3 Não é difícil de se perceber a barbárie econômica em que se transformaram a maioria das economias nacionais fracas, e é óbvio como esse quadro sócio-econômico se reflete na violência urbana e rural (do crime organizado e do Estado).

4 De forma semelhante, os Estados Autoritários transformam os adversários políticos em inimigos públicos, e com isso acionam (sem romper os ditames do Estado de Direito?) os aparelhos repressivos do Estado para perseguirem seus encalços – como a Receita Federal, a polícia secreta ou Federal e outros.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Direito revolucionário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 312, 15 maio 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5252. Acesso em: 28 mar. 2024.