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Farmácias de manipulação: ISS ou ICMS?

Farmácias de manipulação: ISS ou ICMS?

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Variadas são as atividades exercidas pelas farmácias de manipulação, cada qual deflagrando, a título tributário, soluções diversas.

Sumário: 1. Introdução – 2. Das atividades comumente realizadas pela Farmácia de Manipulação – 3. Todas as atividades desenvolvidas pelas Farmácias de Manipulação devem ser consideradas farmacêuticas? - 4. Da incidência tributária nas atividades comumente exercidas pelas Farmácias de Manipulação – 4.1 Os objetos são realizados de forma individualizada ou personalizada, considerando características pessoais do cliente - 4.2 Embora oriundo da manipulação de fórmulas, o objeto desconsidera atributos  pessoais do comprador, que apenas o adquire sem que para isso tenha apresentado qualquer receita individualizando a composição do objeto – 5. Considerações finais – 6.Conclusão. 

Resumo:As atividades exercidas pelas farmácias de manipulação têm gerado inúmeras controvérsias entre os fiscos municipais e estaduais. Entendem os primeiros que referidas atividades são hipóteses de incidência do ISS, dado que representam obrigações de fazer. Já os fiscos estaduais, defendem que deva ao caso concreto ser entendido o fato gerador do ICMS, visto que os medicamentos são, em essência, mercadorias, o que demandaria obrigações de dar, e não de fazer.    

Palavras- Chave: Direito tributário - Farmácias de manipulação – Incidência tributária – ISS - ICMS.


1. Introdução:

O assunto é dos mais controversos. Pelas atividades que realizam, as farmácias de manipulação sempre foram alvo de inúmeros debates acalorados. De um lado, as receitas estaduais, entendendo os objetos manipulados como verdadeiras mercadorias, o que deflagraria, portanto, a incidência do ICMS. Do outro, as receitas municipais, dado que os objetos são preparados de acordo com a necessidade do cliente, de forma individualizada ou personalizada, com base em orientação emitida por profissional autorizado, defendendo a incidência do ISS.

Tanta é a controvérsia sobre o assunto, que o próprio Supremo Tribunal Federal, em 2011, reconheceu a existência de repercussão geral na questão (1).

Este trabalho, portanto, tem por objetivo a contribuição com o debate, analisando as atividades verdadeiramente exercidas pelas Farmácias de Manipulação, para no final opinar, a depender do fato praticado, pela incidência do ICMS ou do imposto municipal. 


2. Das atividades comumente realizadas pelas farmácias de manipulação:

Inicialmente, convém delimitar, minimamente, as atividades exercidas pelas farmácias de manipulação.

Para tanto, devemos analisar quais de fato são as empresas realizadas neste ramo, a fim de considerá-las – ou não – de natureza farmacêutica (2).

Neste sentido, três são as atividades basicamente exercidas pelas farmácias de manipulação, conforme destacamos a seguir:

(i) Os objetos são realizados de forma individualizada ou personalizada, considerando características pessoais do cliente;

(ii) Embora oriundo da manipulação de fórmulas, o objeto desconsidera atributos pessoais do comprador, que apenas o adquire sem que para isso tenha apresentado qualquer orientação individualizando a composição do produto;

(iii) Embora pré-existente, o objeto é manipulado e, só após, novamente direcionado, para, na entrega final, considerar particularidades específicas do cliente. 


3. TODAS As atividades exercidas pelas Farmácias de Manipulação DEVEM ser consideradas farmacêuticAs?

Bom, nos termos do caput do artigo 3° e do inciso II do seu parágrafo único, todos da LEI Nº 13.021, DE 8 DE AGOSTO DE 2014:

 “Artigo 3º Farmácia é uma unidade de prestação de serviços destinada a prestar assistência farmacêutica, assistência à saúde e orientação sanitária individual e coletiva, na qual se processe a manipulação e/ou dispensação de medicamentos magistrais, oficinais, farmacopeicos ou industrializados, cosméticos, insumos farmacêuticos, produtos farmacêuticos e correlatos. Parágrafo único.  As farmácias serão classificadas segundo sua natureza como (...) II - farmácia com manipulação: estabelecimento de manipulação de fórmulas magistrais e oficinais, de comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, compreendendo o de dispensação e o de atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica”.

Sendo assim, do conceito legal já se extrai que, farmácia é unidade que processa a manipulação e/ou dispensação de, entre outros, medicamentos e cosméticos. Medicamento (3), neste sentido, é produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico, e cosméticos (4) são produtos constituídos por substâncias naturais ou sintéticas usadas na higienização pessoal, proteção, odorização ou embelezamento.

Outrossim, nos termos da redação do artigo 5o da lei mencionada, no âmbito da assistência farmacêutica, as farmácias de qualquer natureza requerem, obrigatoriamente, para seu funcionamento, a responsabilidade e a assistência técnica de farmacêutico habilitado na forma da lei.

Deve-se frisar: a regra, ao mencionar um âmbito de assistência farmacêutica, sugere, contrario senso, a existência de uma zona não farmacêutica, permitindo a comercialização de produtos não correlatos com as atividades informadas no artigo 3º. É o caso, por exemplo, da venda de papeis higiênicos.

Deste modo, o que se vê, é que mesmo a farmácia de manipulação, não está adstrita à comercialização de objetos meramente farmacêuticos, conquanto na prática, até mesmo pelo regramento sanitário rigoroso qual estão submetidas, seja pouco usual que comercializem material diverso do previsto no caput do artigo 3º da LEI Nº 13.021/2014.

Para que seja, assim, considerada farmacêutica, deve na atividade haver manipulação e/ou dispensação de medicamentos magistrais, oficinais, farmacopeicos ou industrializados, de cosméticos, insumos farmacêuticos, produtos farmacêuticos e correlatos, bem como ser realizada por ou sob a supervisão de um farmacêutico.

Nestes termos, a comercialização, por exemplo, de chinelos, refrigerantes, etc., não pode ser considerada de natureza farmacêutica, o que não serão objeto deste estudo.


4. Da incidência tributária nas atividades comumente exercidas pelas farmácias de manipulação: 

4.1 Os objetos são realizados de forma individualizada ou personalizada, considerando características pessoais do cliente:

No que se refere ao item (i), parece não haver dúvida tratar-se de prestação de serviço, e ainda, de natureza farmacêutica. A farmácia de manipulação é contratada para, através de esforço humano, realizar a manipulação de medicamentos com a entrega de um resultado, ora em benefício de outrem, materializado, na maioria das vezes, em cápsulas ou líquido.

Há, portanto, realização de serviço tributável, no feliz conceito do professor Aires F. Barreto (5):

“(...) já se pode conceituar serviço tributável pelo Município como sendo o desempenho de atividade economicamente apreciável, sem subordinação, produtiva de utilidade para outrem, sob regime de direito privado, com fito de remuneração, não compreendido na competência de outra esfera de governo”.   

Igualmente, no exame da hipótese de incidência do ISS, manifestou-se a Professora Mizabel Abreu Machado Derzi, em comentários à Obra do Professor Aliomar Baleeiro (6):

“A doutrina e a jurisprudência extraem da Constituição as seguintes características da hipótese de incidência do tributo: 1. a prestação de serviços configura uma utilidade (material ou imaterial), como execução de obrigação de fazer e não de dar coisa; 2. deve ser prestada a terceiro, excluindo-se os serviços que a pessoa executa em seu próprio benefício, como o transporte de mercadoria de um estabelecimento a outro da mesma pessoa; 3. executada sem vinculação de subordinação jurídica, mas em caráter independente, razão pela qual se excluem os serviços prestados pelos empregados a seus empregadores e pelos servidores públicos; 4. assim como deve ser objeto de circulação econômica, excluindo-se os serviços gratuitos ou de cortesia, beneficentes ou a preços baixos, como alimentação servida a empregados gratuitamente ou a preço de custo; 5. finalmente, o serviço deve ser prestado em regime de direito privado (por pessoa física ou jurídica, empresa pública ou sociedade de economia mista como atividade econômica); se público o serviço, ainda que prestado por empresa pública, haverá imunidade, exceto para aquele serviço dado em concessão ou permissão a terceiros”.       

Finalmente, outro dado que confirma a efetivação de um serviço, é a personificação do conteúdo do bem manipulado, realizado com vistas à especificidade do cliente. Não servindo a nenhuma outra pessoa do que senão ao comprador, não há o que se falar em obrigação de dar ou de uma mercadoria, mas de fazer, consubstanciando-se em serviço que, muito embora materializado num objeto, não é a sua própria essência. Em outras palavras, o bem corpóreo representa somente a externalização do resultado da prestação de um serviço, e não sua nota essencial.   Embora tratando de objeto diverso do estudado neste trabalho, são os ensinamentos do Mestre Aires F. Barreto (7):

“Diferentemente, há situações outras em que a atividade implica introduzir alguma individualização ou personalização, de sorte que no cartão bruto e portanto não identificável inserem-se, mediante atividade de gráfica, as características requeridas pelo destinatário, que é aquele que a encomenda (o nome da empresa, a logomarca, a cor, determinados dados e símbolos). Se assim for, tem-se que aquele que se dedica às artes gráficas assumiu obrigação de fazer para o seu cliente (e tomador do serviço), porquanto só a ele serve o cartão. Aquele que confecciona cartões (sejam de débito, de crédito, de telefone e outros da espécie) é sempre e só o prestador de serviço. Assim, se o prestador o faz, por exemplo, para a Telefônica, não pode ele levá-los a qualquer prateleira. Podê-lo-á a Telefônica, posteriormente, mas em outro e diverso negócio jurídico, destiná-lo à venda. Mas, nunca isso poderá ser feito pelo prestador do serviço. Para este, o serviço é sempre personalizado. Colhendo exatamente essa circunstância o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a confecção de cartões magnético e de crédito é serviço de composição gráfica sujeito ao ISS”.

Todavia, é necessário acrescer também o elemento funcionalidade do objeto, para classificá-lo serviço ou mercadoria.

É que o elemento supra deve ser considerado, segundo o STF, quando da intelecção de cada caso concreto. Em situações específicas, a confecção de determinado objeto o é mais para garantir uma melhor rentabilidade técnica do bem, do que propriamente uma obrigação de fazer.

Sendo assim, se dada empresa, por exemplo, passa a produzir chocolate em formato de coelho de páscoa, e a embalagem necessária para realização deste é confeccionada de modo a otimizar a venda do item, e ainda com características suficientes à torna-lo imprestável à outra encomendante, senão àquele do produto realizado, tem-se que o elemento serviço é destacadamente mais presente que o núcleo obrigação de dar.

De outra feita, ainda que de certa forma imprestável a outros encomendantes, se o objeto é realizado com intuito funcional ao produto final, melhor acondicionando-o, aumentando sua durabilidade, facilitando seu manejo, etc., tem-se que o elemento “dar” é absolutamente predominante, atraindo a incidência do ICMS. Neste sentido, manifestou-se o STF (8):

“(...) Aires F. Barreto conceitua prestação de serviço como o esforço humano concretamente desenvolvido em benefício de outrem, com habitualidade, utilidade produtiva e finalidade lucrativa e sem subordinação funcional ou trabalhista. A jurisprudência desta Corte segue linha semelhante, ao entender não incidir o ISS sobre a locação de bens móveis, sobre a atividade realizada em benefício próprio (“autoserviço”), ao passo em que a exação é cobrada no arrendamento mercantil (leasing) (...) Para o aparente conflito entre o ISS e o ICMS nos serviços gráficos, nenhuma qualidade intrínseca da produção de embalagens resolverá o impasse. A solução está no papel que essa atividade tem no ciclo produtivo. Conforme se depreende dos autos, as embalagens têm função técnica na industrialização, ao permitirem a conservação das propriedades físicoquímicas dos produtos, bem como o transporte, o manuseio e o armazenamento dos produtos. Por força da legislação, tais embalagens podem ainda exibir informações relevantes aos consumidores e a quaisquer pessoas que com ela terão contato. Trata-se de típico insumo. Neste momento de juízo inicial, tenho como densamente plausível a caracterização desse tipo de atividade como circulação de mercadorias (“venda”), ainda que fabricadas as embalagens de acordo com especificações do cliente, e não como a contratação de serviço. Aliás, a ênfase na encomenda da industrialização parece-me insuficiente para contrariar a tese oposta. Diante da sempre crescente complexidade técnica das atividades econômicas e da legislação regulatória, não é razoável esperar que todos os tipos de invólucro sejam produzidos de antemão e postos, indistintamente, à disposição das partes interessadas para eventual aquisição. Nem é adequado pretender que as atividades econômicas passem a ser verticalizadas, de modo a levar os agentes de mercado a absorver todas as etapas do ciclo produtivo. Assim, não há como equiparar a produção gráfica personalizada e encomendada para uso pontual, pessoal ou empresarial, e a produção personalizada e encomendada para fazer parte de complexo processo produtivo destinado a por bens em comércio”.

O STJ, inclusive, alinhando-se ao entendimento supra comentado, assim ementou:

“AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.392.811 - SP (2013/0210713-7) RELATOR: MINISTRO HUMBERTO MARTINS AGRAVANTE: FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO PROCURADOR: CLÁUDIA CAVALLARI FERREIRA MARQUES AGRAVADO: INDÚSTRIA GRÁFICA DOMUS LTDA ADVOGADOS: FERNANDO FERRACCIOLI DE QUEIROZ E OUTRO(S) LYGIA HELENA CARRAMENHA BRUCE EMENTATRIBUTÁRIO. ICMS E ISS. SERVIÇOS DE COMPOSIÇÃO GRÁFICA. SÚMULA 156 DO STJ. ADEQUAÇÃO AO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4389-MC. 1. A Primeira Seção do STJ, em 11.3.2009, no julgamento do REsp 1.092.206/SP, de relatoria do Min. Teori Albino Zavascki, submetido ao rito dos recursos repetitivos nos termos do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ, consolidou entendimento segundo o qual "as operações de composição gráfica, como no caso de impressos personalizados e sob encomenda, são de natureza mista, sendo que os serviços a elas agregados estão incluídos na Lista Anexa ao Decreto-Lei 406/68 (item 77) e à LC 116/03 (item 13.05).Consequentemente, tais operações estão sujeitas à incidência de ISSQN (e não de ICMS), Confirma-se o entendimento da Súmula 156/STJ: "A prestação de serviço de composição gráfica, personalizada e sob encomenda, ainda que envolva fornecimento de mercadorias, está sujeita, apenas, ao ISS". 2. Contudo, em 13.4.2011, o Pleno do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Medida Cautelar na ADI 4389, Rel. Min. Joaquim Barbosa, reconheceu que não incide ISS sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subsequente de industrialização ou de circulação de mercadoria. 3. Ante a possibilidade de julgamento imediato dos feitos que versem sobre a mesma controvérsia decidida pelo Plenário do STF em juízo precário, é necessária a readequação do entendimento desta Corte ao que ficou consolidado pelo STF no julgamento da ADI 4389-MC. 4. Hipótese em que o Tribunal de origem manifestou-se no mesmo sentido do entendimento exarado pelo STF, não merecendo reforma o acórdão estadual. Agravo regimental provido”.

Por esta razão, quando em situações como a delineada no item (i), não há dúvidas quanto a hipótese de incidência do ISS, visto se tratar de serviço oneroso, sem qualquer subordinação jurídica, produzido em benefício de outrem, através de esforço humano, e considerando as especificidades do cliente. Ademais, é realizado sob regime de direito privado, objetivando percepção remuneratória, e, embora materializado em forma de objeto, não consubstanciando insumo, o que deve, portanto, ser tributado na esfera municipal, nos termos do artigo 3º da LC 116/2003. 

4.2 Embora oriundo da manipulação de fórmulas, o objeto desconsidera atributos pessoais do comprador, que apenas o adquire sem que para isso tenha apresentado qualquer receita individualizando a composição do medicamento:

Neste caso, entendemos, quando da realização da hipótese, pela incidência do ICMS.

Conquanto realizado por esforço humano, com fito remuneratório e sob regime de direito privado, não o é em benefício de outrem a priori identificável.

Na verdade, trata-se do que se convencionou nominar produto de prateleira, dado qualquer pessoa, independente da qualidade pessoal que possui, poder adquiri-lo.

Entretanto, deve-se frisar que não é o fato de posto em prateleira, e sem qualquer resultado remuneratório imediato (venda do produto), que tornaria a hipótese indene ao ISS.   É o que leciona o professor José Eduardo Soares de Melo (9):

“Em se tratando de ISS, impõe-se a irrestrita obediência a seu aspecto material (“prestação de serviços”) nada interessando os aspectos meramente negociais ou documentais.  Somente com a efetiva realização (conclusão ou medição por etapas) dos serviços é que ocorre o respectivo fato gerador tributário com a verificação do seu aspecto temporal (...) Os recebimentos antecipados de valores contratuais também não constituem obrigação tributária, porque signo presuntivo de riqueza (capacidade econômica) não guarda correspondência com a efetiva prestação de serviços (...) Entretanto, a circunstância de o prestador de serviço não receber o pagamento do preço não significa que esteja desonerado do ISS se a sua atividade fora integralmente cumprida. O ISS tem como fato gerador a prestação do serviço e não o recebimento de valores (...)”.

O elemento, portanto, afastador do tributo municipal, é a inexistência de obrigação de fazer, dado que embora realizado com esforço humano, economicamente apreciável, sem subordinação, sob regime de direito privado, e com fito de remuneração, ignora o destinatário do produto, servindo, sim, de utilidade produtiva para outrem, no entanto apenas mediatamente, desconsiderando qualquer característica específica do destinatário final          

4.3 Embora pré-existente, o objeto é manipulado e, só após, novamente direcionado, para, na entrega final, considerar particularidades específicas do cliente:

Em dadas hipóteses, o que acontece maioria das vezes na produção de cosméticos, o objeto é manipulado e, neste estado, similarmente ao que analisado no item anterior, posto em prateleira para venda ao destinatário final. Todavia, possui a possibilidade de ser adequado a certa característica do cliente, gerando, na hipótese, duas situações que, a nosso juízo, produzem soluções distintas.

Na primeira, o objeto é adequado ao cliente, mas com a inserção de material pré-determinado, apenas redimensionado de acordo com o destinatário final. É, por exemplo, o creme capilar que, a despeito de ser destinado ao público de cabelos lisos, é acrescido de elemento manipulado, apenas para melhor adequá-lo ao cabelo liso e oleoso, contudo sem qualquer escolha de quantidade ou qualidade pelo consumidor. No caso, embora de certa forma sejam consideradas qualidades especiais do cliente, em havendo, i.e, outro consumidor com cabelos lisos e oleosos, o objeto não se alterará, o que lhe será fornecido o produto com as mesmas especificações do destinatário anterior. Ele só não é posto em prateleira com a intenção de também atender cabelos lisos, mas sendo o caso de fazê-lo, será idêntico em todas as situações. A obrigação, neste caso, conclui-se, permanece sendo de dar, sem a ingerência, por esta razão, do tributo municipal.

Quanto a segunda, a manipulação é também posterior ao objeto posto em prateleira, todavia, em fórmula específica e dedicada a certo cliente, tornando o produto, pelo menos a piori, imprestável a qualquer outro do que senão àquele destinatário final. Diz-se a priori, pois, nada impede que alguma outra pessoa se valha do produto, por sua conta e risco. Nesta hipótese, deflagrado o fato gerador, a hipótese é de incidência do ISS, visto a realização de obrigação de fazer.


5. Considerações Finais:

Antes de se concluir o presente trabalho, deve-se imiscuir em questão de grande relevo para o ensaio.

Pois bem, conhece-se da tese do Supremo Tribunal Federal, qual decide, em síntese, pela taxatividade da Lista anexa à LC 116/2003. É o julgamento:

"EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO QUE CONSIDEROU LEGÍTIMA A EXIGÊNCIA DO TRIBUTO NA OPERAÇÃO DE FORNECIMENTO DE ALIMENTOS E BEBIDAS CONSUMIDAS NO PRÓPRIO ESTABELECIMENTO DO CONTRIBUINTE, DE CONFORMIDADE COM A LEI N° 6.374, de 1. DE MARÇO DE 1989. ALEGADA AFRONTA AOS ARTS. 34, §§ 5 e 8., DO ADCT/88; 146, lll; 150, 1;155,1 B E § 2.,lX e XII; E 156, IV, DO TEXTO PERMANENTE DA CARTA DE 1988. Alegações improcedentes. Os dispositivos do inc. I, b e do par.2., inc.IX, do art. 155 da CF/88 delimitam o campo de incidência do ICMS: operações relativas a circulação de mercadorias, como tais também consideradas aquelas em que mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios (caso em que o tributo incidirá sobre o valor total da operação). Já o art. 156, IV, reservou a competência dos Municípios o Imposto Sobre Serviços de qualquer natureza (ISS), não compreendidos no art. 155, I, b, definidos em lei complementar. Consequentemente, o ISS incidira tão somente sobre serviços de qualquer natureza que estejam relacionados na lei complementar, ao passo que o ICMS, além dos serviços de transporte, interestadual e intermunicipal, e de comunicações, terá por objeto operações relativas a circulação de mercadorias, ainda que as mercadorias sejam acompanhadas de prestação de serviço, salvo quando o serviço esteja relacionado em lei complementar como sujeito a ISS. Critério de separação de competências que não apresenta inovação, porquanto já se achava consagrado no art. 8., §§ 1 e 2., do Decreto-lei n. 406/68. Precedente da 20 Turma, no RE 129.877-4-SP”. (Itálico não consta do original).

O posicionamento, inclusive, é criticado por diversos doutrinadores de escol, dos quais destacamos a Professora Misabel Abreu Machado Derzi (10), e o Professor Aires F. Barreto (11), que respectivamente disseram:

“em resumo, nenhuma lei complementar é exaustiva da competência municipal, pois a constituição não outorgou aos Municípios competência para tributar os serviços previsto em lista, mas, ao contrário, os serviços de qualquer natureza; assim como não outorgou competência à União para tributar, por meio do IPI, as operações industriais, descritas em lei complementar taxativa, nem tampouco outorgou aos Estados Federados, competência para impor o ICMS sobre operações mercantis, taxativamente enumeradas em lei complementar (...) É inegável que a lei complementar não poderá limitar, reduzir e controlar a competência dos Municípios. Por isso mesmo, a ‘taxatividade da lista’ resume-se às hipóteses de conflito de competência, mas a lei complementar não exaure o âmbito da competência municipal, razão pela qual qualquer serviço, estranho à lista, que não configure um aspecto misto de fornecimento de mercadorias mais prestação de serviços, é tributável pelo Município. Nem se suponha que sessa seja uma discussão desnecessária ou inútil. O comércio eletrônico abriga um leque de atividades mal exploradas e mal definidas, que virtualmente podem expandir o alcance das leis tributárias impositivas municipais”.  

“Diante das dificuldades de traçar critérios gerais sobre conflitos, adotou o legislador formulação casuística e arbitrária. Quis simplifica um problema necessariamente complexo e terminou por incidir em inúmeras inconstitucionalidades. Seja na doutrina, seja na jurisprudência, em ambas têm prevalecido intepretação que vê as listas de serviços como taxativas. Tem-se entendido que a lei municipal é vinculada por estas listas. Essa exegese, data vênia, é contrária à Constituição, em suas mais fundamentais exigências. Abreviadamente, cabe assinalar que ela importa: a) supor superioridade formal da União sobre o Município; b) supor hierarquia entre lei complementar e lei ordinária; c) entender que o Município não é autônomo, nem que o art. 30, da Constituição encerra um magno princípio constitucional; d) reputar não escrito o preceito do inciso III, do art. 30 do Texto Constitucional; e) entender que a Constituição tem preceitos que atribuem e outros que depois retiram o que foi atribuído; invalidando outorgas por ela mesma dadas; f) negar coerência e lógica ao sistema constitucional; g) admitir que a Constituição é flexível e pode ser alterada por Lei Complementar; h) entender que as competências tributárias, constitucionalmente estabelecidas, podem ser ampliadas, reduzidas e até mesmo anuladas pela Lei Complementar; i) admitir que o Congresso pode suprimir (por omissão) a competência dos Municípios para criar o ISS”. 

Neste sentido, importa advertir que as atividades das Farmácias de Manipulação não devem apresentar simplória solução, na razão de incluir no item 4.07 da Lista Anexa à Lei Complementar nº 116/2003, qual seja, serviços farmacêuticos, uma série de situações que, nem de longe, são obrigações de fazer. Deve-se, enfim, fazer valer os ensinamentos do Professor Aires F. Barreto, que sobre o tema dispõe (12):

“A expressão definidos em lei complementar não autoriza conceituar como serviço o que serviço não é. Admitir que o possa equivale a supor que, a qualquer momento a lei complementar possa dizer que é serviço a operação mercantil, a industrialização, a operação financeira, a venda civil, a cessão de direitos. Em outras palavras, que a lei complementar possa, a seu talante, modificar a CF; que a limitação posta pela CF à competência municipal para só tributar atividades configuradoras de serviço, não tem a menor relevância; que pode ser desobedecida pela lei complementar”.

Desta feita, não se pode ignorar que na empresa da Farmácia de Manipulação, coexistam atividades conceituáveis como obrigações de fazer, e obrigações de dar, não sendo correto inseri-las em um só bolo, em nome do princípio da praticidade, alijando tanto o fisco estadual, quanto o fisco municipal, de riquezas tributáveis. Vale lembrar, inclusive, que recentemente o princípio foi afastado, quando da apreciação do tema 201 – Leading Case RE 593849, pelo Supremo Tribunal Federal, qual referia-se a restituição da diferença de ICMS pago a mais no regime de substituição tributária. Afastou-se referido princípio, para possibilitar que o contribuinte do ICMS pago a maior, pudesse restituí-lo, caso o valor pago a título de ICMS não se consolidasse a posteriori, mas não só em virtude da inexistência da venda, como também quando realizada em quantia inferior a declarada para a substituição tributária.

É que a Constituição deve ser considerada, independentemente da prática – ou da facilidade prática – determinada nas relações sociais. Ela não deve, de certo, sob pena de não efetividade, ignorar a realidade social a qual inserida, mas não deve, da mesma forma, somente conformá-la, como se não possuísse qualquer força normativa. Em obra singular, traduzida pelo Professor Gilmar Ferreira Mendes, o Professor Konrad Hesse, entre inúmeros outros acertos, dispõe (13):

“Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwartt). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontadede Constituição (Wille zur Verfassung)”.   

Sendo assim, se a Constituição Federal, nos termos do artigo 156, III, determina que compete aos Municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não pode o legislador, tão pouco o poder judiciário, ampliar o escopo da norma para fazer inserir na riqueza tributária municipal, obrigação que não seja de fazer, ou oferecer ao fisco estadual, obrigação que não seja a de dar, em nome de eventual praticidade. Não é o fato da regra mencionada, em sua segunda parte, informar que os serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, seriam definidos em lei complementar, que encontra-se autorizada a realização do materialmente impossível, em verdadeira ficção jurídica, definindo como serviço aquilo que é obrigação de dar, e como produto aquilo que é obrigação de fazer, mirando-se a facilidade da procedimentalização da arrecadação.

É hora de admitir a complexidade das relações humanas, bem como das negociais, evitando soluções de aplicabilidade prática constatada, mas de rigor jurídico questionável. A Constituição possui força normativa!


6. Conclusão:

De tudo exposto, o que se pode notar é que variadas são as atividades exercidas pelas Farmácias de Manipulação, cada qual deflagrando, a título tributário, soluções diversas.

Vimos que, do conceito do artigo 3º da LEI Nº 13.021, DE 8 DE AGOSTO DE 2014, há uma zona não farmacêutica que pode, obviamente respeitando-se conceitos de postura e sanitários relacionados a atividade desenvolvida, ser explorada pelas Farmácias de Manipulação.

Ademais, extremamos as atividades realizadas por este tipo de negócio, para identificá-las em três vertentes. A primeira, com a manipulação resultando em objeto cuja característica é destinada a certo cliente, não podendo ser aproveitada por nenhum outro do que senão aquele. A segunda, quando o objeto é posto em prateleira e, embora manipulado, desconsidere a qualidade especial do adquirente. A terceira, quando posto em prateleira, podendo ser posteriormente manipulado. Vimos ainda que esta última hipótese admite a possibilidade de posterior manipulação, levando-se em conta a característica única do destinatário final, ou ainda, característica padrão de certo nicho de consumidores.

Resumidamente, assim, defendemos que a primeira e a terceira (esta no caso do objeto posteriormente manipulado só servir a determinado destinatário), são hipóteses de cabimento do ISS. E a segunda e a terceira (esta quando o bem é manipulado considerando certa parcela de consumidores, e não um em especial), do ICMS.


Referências:

1 Tema 379 - Imposto a incidir em operações mistas realizadas por farmácias de manipulação. Leading Case: RE 605552.

2 A técnica de estremar atividades, para que não se esconda a influência, e ainda, para que se renda a devida homenagem, foi amplamente utilizada pelo professor Aires F. Barreto em sua obra, ISS na Constituição e na Lei (3ª Edição, Editora Dialética, 2009. São Paulo).  

3 http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/conceito.htm#1.2 acesso em 14 de setembro de 2016.

4 http://www.saude.rs.gov.br/upload/1334257904_DVS%20-%20cosmeticos.pdf acesso em 14 de setembro de 2016.

5 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo. P - 35

6 Direito tributário brasileiro. Atualizada por Mizabel Abreu Machado Derzi. 13ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P - 734

7 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo. P – 277.

8 MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.389 - RELATOR MIN. JOAQUIM BARBOSA.

9 MELO, José Eduardo Soares de. ISS – Aspectos teóricos e práticos. 5ª Edição. Editora Dialética, São Paulo, 2008. P – 180 e 181.

10 Baleeiro, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Atualizada por Mizabel Abreu Machado Derzi. 13ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P - 764 e 765.

11 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo. P -117.

12 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo. P - 110 e 11.  Itálicos no original. 

13 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft Der Verfassung. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Título em português: A força normativa da Constituição. Edição em português por Sergio                          Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991. P - 19. 


BIBLIOGRAFIA:

BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo.

 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Atualizada por Mizabel Abreu Machado Derzi. 13ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015

HESSE, Konrad. Die Normative Kraft Der Verfassung. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Título em português: A força normativa da Constituição. Edição em português por                   Sergio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991.

MELO, José Eduardo Soares de. ISS – Aspectos teóricos e práticos. 5ª Edição. Editora Dialética, São Paulo, 2008.

MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.389 - RELATOR MIN. JOAQUIM BARBOSA.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEUS, Fernando Barroso de. Farmácias de manipulação: ISS ou ICMS?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4893, 23 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53230. Acesso em: 27 abr. 2024.