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Sobre o escopo jurídico do processo

o problema da tutela dos direitos

Sobre o escopo jurídico do processo: o problema da tutela dos direitos

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O presente ensaio suscita, em oposição ao que pensa respeitável parcela da doutrina processual, a importância da postura que identifica na tutela dos direitos o principal dos escopos jurídicos do processo.

O presente ensaio suscita, em oposição ao que pensa respeitável parcela da doutrina processual, a importância da postura que identifica na tutela dos direitos o principal dos escopos jurídicos do processo. Nesta linha, defende que a predisposição de meios capazes de tornar o processo mais efetivo pressupõe a admissão da idéia de que a tutela dos direitos constitui o mais importante escopo do processo civil.

Segundo Cândido Dinamarco, o processo civil vive um terceiro momento metodológico, caracterizado pela "consciência da instrumentalidade" [1]. Na obra que dedicou ao tema, o ilustre processualista foi muito além desta afirmação e chamou a atenção para um ponto do qual normalmente a doutrina se descuida:

"É vaga e pouco acrescenta ao conhecimento do processo a usual afirmação de que ele é um instrumento, enquanto não acompanhada da indicação dos objetivos a serem alcançados mediante o seu emprego. Todo instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se destina. O raciocínio teleológico há de incluir então, necessariamente, a fixação dos escopos do processo, ou seja, dos propósitos norteadores da sua instituição e das condutas dos agentes estatais que o utilizam. Assim é que se poderá conferir um conteúdo substancial a essa usual assertiva da doutrina, mediante a investigação do escopo, ou escopos em razão dos quais toda ordem jurídica inclui um sistema processual" [2].

Partindo dessas considerações fundamentais, Dinamarco identificou os escopos sociais, políticos e jurídico (este último no singular mesmo) da jurisdição [3]. Quanto à técnica processual, não descuidou de outra importante premissa, da qual não podemos, face ao alerta, nos olvidar:

"Tem-se por técnica a predisposição ordenada de meios destinados a obter certos resultados. Toda técnica, por isso, é eminentemente instrumental, no sentido de que só se justifica em razão da existência de alguma finalidade a cumprir e de que deve ser instituída e praticada com vistas à plena consecução da finalidade. Daí a idéia de que todo objetivo traçado sem o aporte de uma técnica destinada a proporcionar sua consecução é estéril; e é cega toda técnica construída sem a visão clara dos objetivos a serem atuados" [4].

Assim, o problema dos escopos do processo há de ser enfrentado e resolvido por quem pretenda avaliar qualquer espécie de técnica processual. Processualista algum pode deixar de assumir posição acerca do tema dos escopos do processo e da jurisdição. Está certo Dinamarco ao submeter as técnicas a uma revisão apenas quando já delineados os fins do processo. Aliás, o próprio estudo dos meios de tutela só poderá justificar-se quando estes mostrem-se importantes para a realização dos mencionados escopos.

Quanto aos escopos do processo, o problema do escopo jurídico parece-nos merecer especial atenção. Ao passo que toda a doutrina processual tende atualmente a ressaltar o caráter instrumental do processo, considerando fundamental que dedique-se a tutelar adequadamente os direitos de quem mereça tutela, parcela considerável dos processualistas insiste em recusar que a tutela dos direitos possa figurar dentre os escopos do processo. Referimo-nos particularmente à postura adotada por Dinamarco, que em sua obra fundamental dedicou-se a negar a possibilidade de incluir a tutela dos direitos no rol dos escopos do processo. Até porque o processo teria, segundo o eminente processualista, apenas um escopo jurídico, consistente em atuar a vontade do direito. Essa postura, entretanto, contrasta com as cada vez mais acentuadas tendências a aproximar o direito processual do direito material e a submeter todo o processo, bem como a teoria processual, a uma revisão orientada pelo ideal da efetividade.

O tópico está intimamente relacionado com a problemática da "ação" processual. A afirmação da autonomia do "direito de ação" [5] em relação ao direito substancial subjacente se colocou, conforme Rapisarda, dentre o quadro de uma mais geral tendência de superação de uma concepção das instituições processuais como meros instrumentos de reintegração dos direitos subjetivos violados [6]. Isto quer dizer que a elaboração dogmática do "direito de ação" inseriu-se num momento histórico em que vinha sendo descoberto o caráter público do processo, e não parece exagero afirmar que esta própria descoberta também resultou daquela elaboração. O que pode-se considerar um resultado positivo da construção da "ação" processual como direito autônomo, de natureza pública, em relação ao direito material. Ocorre que, a partir daí, o problema da tutela dos direitos foi completamente abandonado.

Obcecada por superar o primeiro momento metodológico, no qual o processo era considerado um meio de exercício e satisfação dos direitos, e a ação a expressão dinâmica dos próprios direitos subjetivos, a doutrina processual desviou a jurisdição do seu fim principal e passou a identificar sua função na atuação da vontade da lei [7]. Esta fórmula eliminava o vínculo do processo com o direito do autor, e assim se adequava à "ação" processual autônoma, que como tal não poderia conceitualmente corresponder a um direito material nem visar à defesa do autor que ostentasse o direito afirmado. Apesar de já ter sido superado o segundo momento metodológico, no qual conjugaram-se todos os esforços para autonomizar a ciência processual, o momento da instrumentalidade ainda está condicionado por pressupostos pertencentes à fase anterior. Daí porque Dinamarco repudia a inclusão da tutela dos direitos dentre os escopos da jurisdição e do sistema processual:

"Na criticada visão estritamente jurídica do fenômeno político que é jurisdição, os estudiosos do processo conformaram-se inicialmente com afirmações extremamente individualistas, ligadas ao sincretismo privatista em que o sistema processual aparece como meio de exercício dos direitos e institucionalmente destinado à sua satisfação. Dizia-se, então, que o escopo do processo era a tutela dos direitos, naquela visão pandectista que colocava a ação como centro do sistema e a descrevia como o próprio direito subjetivo em atitude de repulsa à lesão sofrida. Hoje, reconhecida a autonomia da ação e proclamado o método do processo civil de resultados, sabe-se que a tutela jurisdicional é dada às pessoas, não aos direitos, e somente àquele sujeito que tiver razão: a tutela dos direitos não é o escopo da jurisdição nem do sistema processual (grifo nosso); constitui grave erro de perspectiva a crença de que o sistema gravite em torno da ação ou dos direitos subjetivos materiais" [8].

Em ensaio inteiramente dedicado à tutela jurisdicional, Dinamarco deixou ainda mais evidente a razão do "repúdio votado à tutela de direitos como escopo do processo". Disse ele: "A tutela de direitos erigida como escopo do sistema constituía uma projeção da premissa imanentista então vigorante quanto ao conceito de ação..." [9]. Tendo em conta a centralidade do conceito de "ação" na fase de desenvolvimento da ciência processual, fica fácil perceber por que a temática da defesa dos direitos foi deixada à margem durante tanto tempo. Como categoria central, a "ação" não poderia ceder espaço a quaisquer cogitações contraditórias com o dogma da autonomia do processo, que a partir de então dever-se-ia considerar predisposto a atingir qualquer fim que não a tutela do direito do autor. Afinal, se "descobriu" que há processo e ação mesmo quando não há direito. À parte as incompatibilidades conceituais, o direito processual tentava a todo custo desvincular-se do direito material.

Todavia, diz Rapisarda, com razão, o nexo de separação-abstração da tutela processual em relação ao direito substancial pode se considerar hoje historicamente superado, pois este modo de entender as relações entre direito e processo perdeu as próprias motivações culturais, que traziam origem da necessidade de depurar as formas processuais da contaminação excessiva pelo direito substancial [10]. De modo que já é hora de o direito processual recuperar, ao menos em boa parte, o vínculo com o plano material. A ciência processual está suficientemente madura para suportar uma reaproximação, e por isso processualistas de envergadura não demonstram mais receio em pensar o processo do ponto de vista da tutela dos direitos.

A defesa desta reaproximação entre os planos processual e material não resulta, contudo, apenas da maturidade da ciência processual, e portanto da dispensabilidade da postura metodológica anterior. Se é certo que a fase iniciada em fins do século XIX ajudou a superar o quadro metodológico de um processo civil do autor, como diz Dinamarco [11], não é menos certo que a reação ao sincretismo foi exagerada e forjou um processo civil do réu. Hoje a doutrina está obrigada a pensar em termos de "efetividade do processo", no sentido de "encontro do resultado devido ao autor", porque percebeu que o processo não estava correspondendo à necessidade de tutela do direito material [12].

O processo, como instrumento, deve adaptar-se às realidades sociais e às exigências de um dado momento histórico [13]. E se pode não ser tão fácil desvendar os motivos da demanda por tutelas realmente efetivas, é inegável que o atual momento histórico tem reclamado do processo meios capazes de socorrer adequadamente o autor que mereça proteção. A própria acumulação crescente do número de processos indica a necessidade de proteção jurisdicional concreta. As reformas do processo civil brasileiro denunciam uma postura do Estado tendente a garantir realização e proteção eficazes aos direitos materiais [14], e isto certamente reflete uma conjuntura social que não tolera mais a impotência e a passividade da jurisdição. Fala-se, por consenso, em crise do Judiciário, e por isso é necessário lembrar que a crise decorre também do descompasso entre a exigência de proteção jurisdicional e os meios de que o Estado dispõe para satisfazê-la [15].

Daí porque não é mais possível excluirmos dos escopos da jurisdição a tutela dos direitos. Isto é perfeitamente conciliável com a autonomia científica do direito processual, e ainda tem a virtude de eliminar o aspecto pernicioso da evolução ocorrida entre os dois séculos passados. Não se trata, é claro, de negar ao processo escopos políticos ou sociais, ou de recusar a função ética de tutelar pessoas, de que fala Dinamarco. Mas é imperioso notar que a tutela da pessoa autora exige mais que a tutela da pessoa ré. E que atualmente a tutela do réu se dá de forma satisfatória, enquanto o autor enfrenta obstáculos enormes, devendo portanto ser amparado pela preocupação dos processualistas.

Em linhas gerais, é possível dizer que a tutela do réu se dá pela inação do Estado diante dos pedidos do autor. Ou seja, para tutelar o réu basta que o processo, reconhecendo-lhe razão, não implique em nenhuma atividade exterior nem atue qualquer modificação na situação jurídica das partes. Já para tutelar o autor, tais atividades ou modificações são imprescindíveis, o que significa que a tutela do autor se dá em regra por ação do Estado.

Sem dúvida é escopo do processo evitar a ação do Estado contra o réu que tenha razão. Mas esse ponto de vista só é relevante antes de se passar ao momento de agir ou permanecer inerte; antes, quer dizer, do momento de se decidir sobre a adequação de agir ou não. É compreensível a prevalência deste ponto de vista quando os processualistas consideram momento magno do processo o pronunciamento do direito, ou a declaração da "vontade da lei". Mas se, atualmente, a preocupação está na capacidade de a atividade jurisdicional interferir concretamente na realidade, garantindo fruição de fato a quem tem razão, o ponto de vista deve ser desviado do momento anterior à decisão ao momento posterior, em que a decisão implicará em ação ou inação do Estado. Não se deve hoje dedicar tanto ao momento preparatório da decisão, como se nela se esgotasse a jurisdição, e sim ao momento posterior, onde é posta à prova a eficácia concreta da atividade jurisdicional e do próprio ordenamento jurídico.

Isto não significa que não importe a justiça da decisão, até porque a ação ou a inércia posteriores só se legitimam diante de decisões tendencialmente justas. Claro que a justiça importa, mas o atual momento metodológico da ciência processual há de ser definido em função das atuais deficiências que se apresentam aos processualistas. E depois de um século de processo civil do réu, caracterizado por um modelo de jurisdição declarativo e reativo, limitado por um garantismo exacerbado e pelo dogma da intangibilidade da liberdade individual, os problemas residem justamente na dificuldade de quem precisa superar as incontáveis possibilidades de defesa do réu e a tradicional impotência de um Judiciário sem imperium. Se alguém sofre, hoje, devido às mazelas do processo, este alguém é o autor que tem ou aparenta ter razão. E a tutela do autor exige, em regra, ação posterior à decisão, de modo que é deste ponto de vista que é necessário trabalhar para reequilibrar a balança, cujo fiel até hoje pendeu sempre em favor do réu, mesmo tendo razão, muitas vezes, o autor.

Como a ciência processual sempre se dedicou ao momento preparatório da decisão, porque o ato jurisdicional por excelência era considerado aquele que continha a declaração do direito, todas as atenções se dirigiam à fase na qual o Judiciário deveria permanecer imparcial. E perdeu-se de vista que esta fase é meramente preparatória da atividade jurisdicional mais importante, que se realiza após a decisão, ou por meio dela mas visando conseqüências posteriores, quando o Judiciário deve então se parcializar e agir em favor de quem considerou merecedor de proteção. Após considerar dever fundamental de toda organização estatal a outorga de meios capazes de tornar efetivo o próprio direito, Ovídio firmou posição acerca do escopo jurídico do processo e da jurisdição:

"A verdadeira essência da função jurisdicional não é, portanto, o ''pronunciamento'' da sentença que compõe o litígio ¾ que não passa de uma atividade-meio, apenas instrumental (grifo nosso) ¾ , senão que corresponde à realização do direito material que o Estado impediu que se fizesse pela via privada da auto-realização. O que ocorre, no entanto, é que o Estado, para poder realizar o direito material, terá necessariamente de averiguar, antes, a existência do direito cuja titularidade seja porventura afirmada por aquele que o procura para exigir a tutela jurisdicional. Desta contingência decorre a circunstância inevitável de ter-se de conceder "ação", no plano do direito processual, igualmente ao que não tenha direito, não tenha pretensão nem ação" [16].

O próprio "pronunciamento" do direito é "atividade-meio", da qual não se pode abdicar devido apenas à necessidade de o Estado averiguar quem tem ou não razão. Durante muito tempo os processualistas sobrevalorizaram aquela atividade-meio e olvidaram-se do fim a que ela serve: permitir que o Estado tutele quem tem direito, ou, considerando uma construção dogmática adequada a esta perspectiva, realize através do processo a ação de direito material cuja realização privada foi proibida.

Se a atividade declaratória do direito concentrou a atenção dos processualistas durante tanto tempo, tal deveu-se, dentre outras razões, à necessidade histórica de superar o caos da incerteza anterior ao advento do Estado de Direito. Hoje, todavia, percebe-se que não é suficiente a relativa segurança conseguida através da (também relativa) previsibilidade das decisões judiciais, sendo imprescindível obter do Estado tutela capaz de assegurar no mundo dos fatos a fruição dos bens reconhecidos como importantes pelo ordenamento jurídico [17]. Para citar alguns bons exemplos, Adolfo di Majo coloca dentre as tarefas primárias do ordenamento jurídico a de prover a uma eficaz tutela dos direitos, e afirma, sem meias palavras, que não cumpriria esta tarefa um ordenamento que se limitasse a reconhecer a abstrata titularidade de direitos e interesses [18]; Marinoni vai além de eleger a tutela dos direitos como escopo do processo, pois afirma que se o processo visa garantir resultados no plano do direito material, o seu escopo é a tutela concreta dos direitos [19]; Barbosa Moreira, um dos mais notáveis juristas brasileiros, considera que o processo se avizinha do optimum na proporção em que tende a fazer coincidir a situação concreta com a situação abstrata prevista na regra jurídica material [20]; Kazuo Watanabe considera que a primordial vocação do processo seja servir de instrumento à efetiva realização dos direitos [21]. O próprio Dinamarco, apesar de repudiar a priori a menção à tutela dos direitos como escopo da jurisdição, afirmou literalmente: "A utilidade prática que se deseja do processo é a efetiva satisfação de pretensões apoiadas pelo direito" (grifos nossos) [22].

Mesmo a devoção aos conceitos não impediu Dinamarco de extrair importantes conclusões acerca da tutela jurisdicional. Segundo ele, a tutela jurisdicional considera-se definida e dimensionada pelo direito material [23]. Não se pode esquecer, então, que o direito material institui direitos, cuja tutela compete à jurisdição. Se a tutela jurisdicional socorre o réu, quando o Estado a ele reconhece razão e permanece inerte, socorre também o autor, e para tanto deve agir no sentido de tutelar o seu direito. Pode-se, contudo, inverter a perspectiva e simplesmente dizer que o Estado permanece inerte ao reconhecer razão ao réu porque no caso o direito material não exige a tutela do autor, ou não exige tutela porque não há direito. Ou seja, não se trata apenas de tutelar o réu com razão, mas de negar tutela ao autor porque não havia direito digno de tutela. Este é o escopo jurídico fundamental: tutelar os direitos. O que não se dará quando direito não houver, e isto não deve mudar a perspectiva para considerar que houve então tutela do réu. O processo não visa tutelar quem tenha razão, e sim o autor que tenha razão. Isto não implica esquecer as garantias do réu, mas coloca a função jurisdicional num lugar mais adequado às exigências atuais.

Em trabalho dedicado a extrair a máxima efetividade dos artigos 461 do CPC e 84 do CDC, Marinoni revelou a importância da colocação da tutela dos direitos no centro da preocupação dos processualistas:

"As referidas normas têm a sua potencialidade descortinada quando se pensa em ''tutela dos direitos'', pois é apenas raciocinando a partir do que o processo deve dar aos direitos que é possível extrair das técnicas processuais a sua máxima efetividade" (grifo nosso) [24].

Se hoje há unanimidade em reconhecer a importância da efetividade processual, e se para considerar-se efetivo deve o processo, principalmente, proteger o autor que tenha razão, não se pode deixar de pensar as técnicas e os conceitos do ponto de vista da tutela dos direitos. Nesse sentido, a própria "ação" processual, bem como o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, vêm sendo considerados os portadores constitucionais da garantia de tutela adequada ao plano do direito material [25].

O conceito de ação de direito material tende a ser resgatado, pois pensar o processo a partir do direito material exige o encontro de um ponto de contato entre os dois planos. No âmbito da dogmática pode enfrentar dificuldades a idéia de que o processo realiza ou tutela direitos, mas isto se deve a uma defasagem conceitual. Em realidade, o processo (deve) realiza(r) ações de direito material, que por sua vez podem não corresponder a direitos subjetivos [26]. Assim, a pretensão à adequada tutela jurisdicional é pretensão não simplesmente a uma sentença, mas a uma sentença que em caso de procedência realize a ação de direito material [27].

A eficácia da jurisdição, por sua vez, avaliada do ponto de vista da tutela dos direitos, passa a depender da consecução de objetivos a que não servem os mecanismos processuais tradicionais. O direito à adequada tutela jurisdicional, considerada assim a tutela adequada ao plano do direito material, tem como corolário, diz Marinoni, a regra de que, quando possível, a tutela deve ser prestada na forma específica [28]. Ademais, a preocupação em efetivamente garantir direitos deve corresponder à adoção de um princípio geral de prevenção [29], que não se realiza plenamente através da forma tradicional da tutela cautelar. A tutela preventiva é, assim, outro corolário do direito à adequada tutela jurisdicional. Como não é sempre possível prevenir o ilícito, assume grande importância a possibilidade de removê-lo [30], o que não se cumpre satisfatoriamente através da execução obrigacional. Efetividade significa, também, obter a melhor tutela no menor espaço de tempo e com o mínimo de esforço possível [31]. E se a eficácia da jurisdição exige tudo isto, é óbvio que o instrumento processual cumprirá sua finalidade apenas se oferecer aos diferentes direitos materiais e às diversas necessidades de tutela procedimentos diferenciados e adaptáveis às suas peculiaridades [32].

Todas essas conclusões decorrem de uma nova postura metodológica, consistente, conforme defendemos, em considerar que o processo deve sim responder ao objetivo de tutelar direitos. E a melhor prova da adequação dessa postura está justamente na riqueza dos seus desdobramentos teóricos. Os processualistas que a adotam chegam facilmente à conclusão de que o processo civil precisa ser diuturnamente revisado, não só para alcançar o objetivo de tutelar direitos como para tutelá-los da melhor forma possível. Se estão corretas as premissas de que partiu Dinamarco, a predisposição de meios capazes de tornar o processo mais efetivo só pode decorrer da prévia admissão da idéia de que a tutela dos direitos constitui o mais importante escopo do processo civil.


Referências bibliográficas:

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Notas

1 Dinamarco, A instrumentalidade do processo, 10ª ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 22.

2 Dinamarco, A instrumentalidade do processo, op. cit., p. 181.

3 "A jurisdição não tem um escopo, mas escopos (plural); é muito pobre a fixação de um escopo exclusivamente jurídico, pois o que há de mais importante é a destinação social e política do exercício da jurisdição. Ela tem, na realidade, escopos sociais (pacificação com justiça, educação), políticos (liberdade, participação, afirmação da autoridade do Estado e do seu ordenamento) e jurídico (atuação da vontade concreta do direito)" (Dinamarco, A instrumentalidade do processo, op. cit., p. 387).

4 Dinamarco, A instrumentalidade do processo, op. cit., pp. 273/274.

5 Utilizamos o termo "direito de ação" por fidelidade aos textos eventualmente citados e, também, porque é expressão usual. Mas não se pode deixar de consignar que por "direito de ação" se conceitua um direito público à jurisdição ou à tutela jurisdicional, que corresponde a uma pretensão exercida por meio da "ação" processual (nesse sentido, Ovídio Baptista da Silva, Curso de processo civil, v. 1, 5ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2001, em especial p. 87, onde o autor considera "ação" o "exercício" do direito de acesso aos tribunais; Pontes de Miranda, Tratado das ações, t. I, 2ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1972, por exemplo na p. 48, fala em "pretensão à tutela jurídica", que como pretensão é anterior à "ação").

6 Rapisarda, "Premesse allo studio della tutela civile preventiva", in Rivista di diritto processuale, Padova, 1980, p. 136.

7 Nesse sentido, Rapisarda: "La teoria chiovendiana della giurisdizione quale funzione mirante all''attuazione della volontà concreta della legge risultava infatti strettamente connessa, sul piano concettuale, con il principio di autonomia dell''azione. L''accoglimento da parte del Chiovenda della tesi del Wach circa il collegamento teorico tra autonomia dell''azione civile e tutela di mero accertamento ¾ in cui si ravvisava, como è noto, la dimostrazione del totale sganciamento del diritto di azione dal diritto materiale e da una violazione di esso ¾ fu, infatti, la ragione principale della prospettazione pubblicistica della finalità del processo e della giurisdizione civile, posto che la separazione tra azione e diritto soggettivo sostanziale implicava necessariamente il superamento della concezione privatistica fino ad allora dominante" (Profili della tutela civile inibitória, Padova, CEDAM, 1987, p. 52).

8 Dinamarco, A instrumentalidade do processo, op. cit., p. 184.

9 Dinamarco, "Tutela jurisdicional", in Fundamentos do processo civil moderno, t. II, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 800.

10 Rapisarda, Profili..., op. cit., p. 217.

11 Dinamarco, "Tutela jurisdicional", op. cit., p. 800. É importante lembrar que o processo civil se poderia dizer do autor apenas porque trabalhava, no plano conceitual, com categorias de direito material. Ou seja, a ciência processual era "do autor". O processo civil não era em concreto dedicado à adequada e tempestiva tutela do autor, até porque os ideais da imparcialidade, da neutralidade, da estrita separação de poderes, da inviolabilidade da esfera de autonomia privada, etc., não permitiam a construção de um sistema processual dotado de instrumentos capazes de garantir a melhor tutela, e sim a mais ampla possibilidade de defesa do réu.

12 Marinoni, Tutela específica, 2ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 33.

13 Ovídio Baptista da Silva, "A ''plenitude de defesa'' no processo civil", in Da sentença liminar à nulidade da sentença, 1ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 118.

14 Nesse sentido, Marinoni: "Os arts. 461 do CPC e 84 do CDC, ao privilegiarem a tutela específica em relação ao mero ressarcimento pelo equivalente, refletem a postura de um Estado que sabe que a efetiva realização dos direitos é fundamental para uma organização social mais justa" (Tutela inibitória. Individual e coletiva, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 297). Pode-se dizer o mesmo, agora, tendo em vista a nova redação do art. 287 e o novo art. 461-A do CPC, o primeiro modificado e o segundo criado pela Lei 10.444/02.

15 Ovídio Baptista da Silva, "Celeridade versus economia processual", in Da sentença liminar à nulidade da sentença, 1ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 225.

16 Ovídio Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, v. 1, op. cit., p. 86.

17 Isto significa que o ideal da segurança não pode mais visar apenas a relativa previsibilidade das decisões judiciais, a certeza sobre o conteúdo das sentenças, mas deve corresponder à garantia de efetiva tutela, e portanto conferir razoável certeza sobre a possibilidade de se obter decisões eficazes. Isto requer um incremento de poderes, conforme asseverou Clayton Maranhão, e não a supressão dos poderes do juiz, como reclamava a segurança buscada ao tempo do advento do Estado de Direito: "(...) o juiz, que é desprovido de imperium, apenas declara a existência de um direito, mantendo a insegurança jurídica e a conflituosidade social, posto que a pacificação que a eficácia condenatória enseja é apenas jurídica" ("Tutela específica das obrigações de fazer e de não fazer", in A segunda etapa da reforma processual civil, São Paulo, Malheiros, 2001, p. 126).

18 Adolfo di Majo, La tutela civile dei diritti, 2ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 01.

19 Marinoni, Tutela inibitória..., op. cit., p. 399.

20 José Carlos Barbosa Moreira, "Tutela sancionatória e tutela preventiva", in Temas de direito processual (segunda série), 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1988, p. 21.

21 Nesse sentido, Kazuo Watanabe anuncia a tendência ao instrumentalismo substancial (Da cognição no processo civil, 2ª ed., São Paulo, Central de Publicações Jurídicas, Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, 1999, p. 21).

22 Dinamarco, "Tutela jurisdicional", op. cit., p. 798.

23 Dinamarco, "Tutela jurisdicional", op. cit., p. 835.

24 Marinoni, Tutela específica, op. cit., p. 61.

25 Vide, por exemplo, Marinoni, Tutela inibitória..., op. cit., p. 397. "O princípio da inafastabilidade garante a tutela adequada à realidade de direito material, ou seja, garante o procedimento, a espécie de cognição, a natureza do provimento e os meios executórios adequados às peculiaridades da situação de direito substancial" (Marinoni, Novas linhas do processo civil, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1999, p. 204). O autor revela ter-se inspirado na doutrina italiana, que com os olhos no art. 24 da Constituição passou a tratar da necessidade de conferir efetiva tutela aos direitos (Tutela inibitória..., op. cit., p. 319). Um exemplo dentre os italianos pode ser encontrado em Federico Carpi, para quem o art. 24 da Constituição italiana, ao decretar que todos podem agir em juízo para a tutela dos próprios direitos, não pode senão referir-se a uma tutela completa e acabada ("Note in tema di tecniche di attuazione dei diritti", in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, 1988, p. 121).

26 Embora o conceito de ação de direito material pareça estritamente vinculado ao de direito subjetivo, a correlação entre ambos é meramente relativa. No caso de direitos difusos, por exemplo, ou mesmo de interesses protegidos que não possam ser reduzidos à categoria dos direitos, nada impede que se outorgue pretensão e ação a quem não seja titular de direito subjetivo algum. Pontes de Miranda exemplificava com as ações populares, a que não correspondem direitos subjetivos (Tratado das ações, t. I, op. cit., p. 94). Isto é importante porque, apesar da necessidade de se pensar o processo do ponto de vista da tutela dos direitos, a concepção privatista que via na jurisdição uma atividade destinada à defesa dos direitos subjetivos privados não se concilia com a vida contemporânea (Marinoni, Novas linhas..., op. cit., p. 185).

27 Nesse sentido, acolhendo a categoria da ação de direito material, delineada por Pontes de Miranda e lapidada por Ovídio, Marinoni, Novas linhas..., op. cit., p. 215. Também Watanabe merece referência por ter reconhecido que a análise do processo a partir da pretensão e da ação de direito material tem a virtude de tornar o processo "bem aderente ao direito material, pois a pretensão processual estaria perfeitamente ajustada à peculiaridade e à exigência da pretensão material" (Da cognição..., op. cit., p. 22).

28 Marinoni, Tutela específica, op. cit., p. 70.

29 Marinoni, Tutela inibitória..., op. cit., p. 62.

30 "Quando se percebe que boa parte dos bens não têm equivalente em pecúnia e que, justamente por isso, não podem ser tutelados através da técnica ressarcitória, evidencia-se igualmente que, mais importante do que reparar o dano é eliminar o ilícito que pode provocá-lo" (Marinoni, Tutela específica, op. cit., p. 23). Esta conclusão tem especial significado em relação aos direitos não patrimoniais, mas nada indica que por isso deva ser restringida ao campo dos direitos não patrimoniais.

31 Nesse sentido, Marinoni, Tutela específica, op. cit., p. 33.

32 "(...) na medida em que o processo oferece aos diferentes direitos materiais que lhe cabe tratar, procedimentos diferenciados e, tanto quanto possível, adaptados a suas exigências peculiares, fortalece-se o princípio da instrumentalidade do processo, tornando-o funcionalmente adequado e harmônico com sua finalidade de dispositivo realizador do direito material" (Ovídio Baptista da Silva, "A ''plenitude de defesa'' no processo civil", op. cit., p. 127).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Fábio Cardoso. Sobre o escopo jurídico do processo: o problema da tutela dos direitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 343, 15 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5330. Acesso em: 18 maio 2024.