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O Juízo Final, o servidor público, o Tribunal de Contas e o purgatório

O Juízo Final, o servidor público, o Tribunal de Contas e o purgatório

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Alguns questionamentos sobre o alcance da atuação dos Tribunais de Contas no exercício de suas funções, em especial quando analisa atos de aposentadoria, de pensão e de fixação de proventos.

Sumário:1. Introdução; 2. Diferenciação entre Prescrição e Decadência; 3. Possibilidade de Convalidação do Ato Administrativo; 4. Da (im)prescritibilidade da Atuação do Tribunal de Contas; 5. Summa jus, summa injuria; 6. Da Inobservância ao Princípio da Eficiência; 7. Conclusão


1.Introdução:

O presente estudo tem por finalidade suscitar alguns questionamentos e defender algumas posições sobre o alcance da atuação dos Tribunais de Contas no exercício de suas funções, em especial quando analisa atos de aposentadoria, de pensão e de fixação de proventos.

Podem os Tribunais de Contas apreciar toda a vida funcional do servidor público por ocasião de sua aposentadoria? Podem determinar a retirada de determinada parcela concedida há longa data? É o momento da aposentadoria o momento do juízo final da vida funcional do servidor, sendo os Tribunais de Contas autênticos purgatórios?

Enfrentaremos alguns pontos, demonstrando a impropriedade do pensamento que atribui a estas Casas de controle externo um poder imprescritível de revisar toda a vida funcional do servidor, não sendo a aposentadoria o momento do Juízo Final administrativo, nem as Cortes de Contas o lugar onde o aposentado expiará seus "pecados", ainda mais quando na maioria dos casos nem mesmo os praticou.

Trataremos, ainda, da posição neutral do Tribunal de Contas, o que lhe impossibilita participar do ato administrativo do jurisdicionado (quando se trata de concessão de aposentadoria) razão pela qual o mesmo não pode ser complexo.


2. Diferenciação entre Prescrição e Decadência

Como exaustivamente explicado pela doutrina, a prescrição se liga aos direitos que visam a uma prestação (reais e pessoais), ao passo que a decadência se liga aos direitos potestativos.

Analisaremos alguns temas sobre o assunto para fundamentar nossa posição, concluindo pelo entendimento da possibilidade de reconhecimento, de ofício, da prescrição administrativa.

Valioso o ensinamento do mestre Agnelo Amorim Filho, cujas palavras nos limitamos a transcrever:

"Segundo Chiovenda (Instituições 1-35 et seq.), os direitos subjetivos se dividem em duas grandes categorias: A primeira compreende aquêles direitos que têm por finalidade um bem da vida a conseguir-se mediante uma prestação, positiva ou negativa, de outrém, isto é, do sujeito passivo. Recebem êles, de Chiovenda, a denominação de ''direitos a uma prestação'', e como exemplos poderíamos citar todos aquêles que compõem as duas numerosas classes dos direitos reais e pessoais. Nessas duas classes há sempre um sujeito passivo obrigado a uma prestação, seja positiva (dar ou fazer), como nos direitos de crédito, seja negativa (abster-se), como nos direitos de propriedade. A segunda grande categoria é a dos denominados direitos potestativos, e compreende aquêles podêres que a lei confere a determinadas pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sôbre situações jurídicas de outras, sem o concurso da vontade destas.

........................

Da exposição feita acima se verifica facilmente que uma das principais características dos direitos potestativos é o estado de sujeição que o seu exercício cria para outra ou outras pessoas, independentemente da vontade destas últimas, ou mesmo contra sua vontade".

Concluímos, com a devida vênia, que os direitos potestativos têm um momento de nascimento e um termo certo para morrer. Quando não são exercidos, ocorre a decadência. Esta pode ser reconhecida de ofício, como demonstra a lei processual civil pátria, assim como o Código Civil.

Ao seu turno, a prescrição stricto sensu, por corresponder à questão de direito patrimonial, somente pode ser reconhecida por provocação da parte, seja porque a lei civil assim ordena nos seus arts. 193 e 194, seja por força do Princípio do Dispositivo. Melhor explicando: ao ter a prescrição se consumado, esta ingressa no patrimônio jurídico do devedor. Este ao ser demandado, se não a argüi, a renuncia, posto que pode ter o interesse em pagar o débito, embora inexigível. Por ter o devedor direito a pagar sua dívida, estabeleceu o legislador a impossibilidade do magistrado reconhecer, de ofício, a prescrição, pois retiraria o direito do devedor de renunciar a prescrição em juízo.


3. Possibilidade de Convalidação do Ato Administrativo e suas Repercussões

Para se discutir a possibilidade de convalidação do ato administrativo, pelo decurso do tempo, necessário se faz discutir a existência, ou não, da dicotomia no direito administrativo em atos nulos e anuláveis.

No direito administrativo, autores tradicionais repudiam a teoria dicotômica das nulidades no direito civil (Teoria Monista). Outros, a aceitam, prevendo possibilidade de convalidação dos atos (Teoria Dualista).

Pela Teoria Monista não há distinção entre ato nulo e anulável, pois, no âmbito da Administração Pública, todas as normas são de ordem pública, cogentes. Assim, o ato feito em desconformidade com a lei é nulo de todo efeito, não se convalidando nunca, sendo, por conseguinte, inaplicável a prescrição administrativa, podendo a Administração anular os seu atos sempre que estejam em desconformidade com a norma legal.

Já pela Teoria Dualista, a distinção entre nulo e anulável é justificada. Deve haver gradação entre as diversas transgressões à norma. Exemplo de ato nulo seria a admissão no serviço público sem concurso, conforme art. 37, § 2º da CR. Já o ato anulável é, pois, o ato passível de convalidação.

No direito administrativo, para se configurar um ato nulo é preciso que o vício atinja um preceito de ordem pública. Deve se ter em mente a definição de norma de ordem pública como aquela que visa proteger a sociedade e o Estado. O desrespeito a estas normas pode por em risco o grupo social e o Estado, como ente dotado de Soberania. Já, o ato anulável, tem o seu vício considerado de menor importância, atingindo uma norma, embora imperativa (por se tratar de direito público), que não visa proteger a vida social e o Estado, como são as normas de ordem pública. Sobre o tema escreveu José dos Santos Carvalho Filho:

"É exatamente a diferença quanto ao repúdio que conduz à classificação de atos nulos e anuláveis. Não é desnecessário, porém, lembrar que a maior ou menor gravidade do vício resulta de exclusiva consideração do legislador, que emite, de fato, um juízo de valor. Por isso entendeu ele que um ato jurídico que inobserva forma fixada em lei tem maior gravame que um ato praticado com vício de consentimento, como o erro, e tanto isso é verdadeiro que no primeiro caso o ato é nulo (art. 145, III, Código Civil) e no segundo o ato é anulável (art. 147, II, do Código Civil)".

Com a edição da Lei 9.784/99, o legislador pátrio abraçou a teoria dualista das nulidades no direito administrativo de forma expressa, pois como se verá adiante, esta já era aceita, não obstante a inexistência de lei específica.

A doutrina tem fundamentado a impossibilidade da revisão dos atos administrativos na "perda do direito" [1] de agir da Administração. Em relação a esta idéia tecemos alguns comentários.

O critério de classificação dos atos administrativos por prerrogativas possibilita mudar o enfoque da questão. Por esta classificação dois são os atos da Administração Pública: atos de gestão e atos de império.

Nos atos de gestão a Administração age como se particular fosse, no mesmo plano jurídico, sem sujeição entre esta e o administrado.

Valioso o ensinamento do mestre José dos Santos Carvalho Filho, que mais uma vez destacamos:

"O Estado, entretanto, atua no mesmo plano jurídico dos particulares quando se volta para a gestão da coisa pública (ius gestionis). Nessa hipótese, pratica atos de gestão, intervindo freqüentemente a vontade de particulares. Exemplo: os negócios contratuais (aquisição ou alienação de bens). Não tendo a coercibilidade dos atos de império, os atos de gestão reclamam na maioria das vezes soluções negociadas, não dispondo o Estado da garantia da unilateralidade que caracteriza sua atuação." (grifo nosso)

Desta forma, nos atos de gestão, a relação entre Administração e o particular é proveniente de um negócio jurídico. É uma relação de Prestação e Contraprestação.

Já nos atos de império, a idéia que melhor expressa o conceito é a relação Poder-Sujeição.

Continua o mestre com a sua lição quanto aos atos de império:

"Atos de Império são os que se caracterizam pelo poder de coerção decorrente do poder de império (ius imperii), não intervindo a vontade dos administrados para sua prática. Como exemplo, os atos de polícia (apreensão de bens, embargo de obra), os decretos de regulamentação etc." (grifo nosso)

Assim, quando a Administração revisa os seus atos ela está exercendo o seu poder de império, não está em uma relação de direito privado (stricto sensu). Este poder de império não perece. A Administração jamais o perde, nem mesmo por decurso de prazo. É um poder perene. Com base nisto é que discordamos das expressões que propugnam a prescrição ou a decadência do "direito" da Administração de rever os seus próprios atos.

A Lei 9.784/99 regula a matéria na esfera federal, estabelecendo que "decai" em cinco anos o "direito" da Administração para rever os seus atos. A norma expressa um equívoco, pois a decadência, como já dito alhures, se liga ao direito que tem um termo inicial e termo final para ser exercido. O fenômeno que realmente ocorre é a prescrição, prescrição esta aquisitiva. Se relaciona ao administrado, pois a inércia da Administração e o decurso de tempo fazem aparecer para aquele uma nova situação jurídica, um verdadeiro direito público subjetivo, no qual o devedor passa a ser a própria Administração.

Nesta linha de raciocínio, autores festejados põem a questão da prescrição administrativa sob um prisma peculiar. Afirmam que o fenômeno ocorrido é da aquisição de um direito por parte do administrado, pela inércia da Administração, após decurso de certo tempo, sendo caso de prescrição aquisitiva e não de prescrição extintiva ou decadência.

Em nota de rodapé, o Professor José dos Santos Carvalho Filho expõe pensamento consonante (Manual de Direito Administrativo, 6ª edição, Ed. Lumen Juris - 2000, fl. 117):

"106. Art. 54. O dispositivo consigna que o direito anulatório da Administração ''decai'' em cinco anos. Parece-nos que não é hipótese de decadência, pois que não se trata de direito nascido para exercício em tempo determinando. Ao contrário, a hipótese é própria da prescrição, porquanto o efeito favorável aos destinatários do ato inválido, consistente em sua imutabilidade, deriva da situação de inércia dos órgãos administrativos. É, pois, a inércia de uma parte gerando, na relação jurídica, situação nova de direito em favor da outra." (grifo nosso)

Se o ato passa a ser perfeito e origina um direito ao seu destinatário, como poderia a administração revê-lo? Como dito antes, tal medida afrontaria o direito adquirido e o respeito ao ato jurídico perfeito.

O Poder de Império não decai, assim como não prescreve, nunca. Na frase sumular de Dalmo de Abreu Dallari, o Poder de Império é "imprescritível porque jamais seria verdadeiramente superior se tivesse prazo certo de duração" [2].

O fato da Administração não poder mais rever os seus atos encontra fundamentação importante na disciplina de Teoria Geral do Estado.

O Estado, como organização política, tem como finalidade a promoção do bem comum. Tem que buscar a integração entre várias organizações sociais, coordenar os interesses particulares e diminuir as diferenças sociais na busca deste objetivo.

Com este fito, já podemos asseverar que as decisões do Estado e o seu Poder estão limitados pelos fins éticos de convivência, conforme ministério do Prof. Miguel Reale sobre o exercício da soberania:

"Soberania é o poder que tem uma nação de organizar-se juridicamente e de fazer valer, dentro de seu território, a universidade de suas decisões, nos limites dos fins éticos de convivência." (grifo nosso)

Dalmo de Abreu Dallari, comentando o acima exposto, conclui que "a soberania jamais é a simples expressão de um poder de fato, embora não seja integralmente submetida ao direito, encontrando seus limites na exigência de jamais contrariar os fins éticos de convivência, compreendidos dentro da noção de bem comum. Dentro desses limites o poder soberano tem a faculdade de utilizar a coação para impor suas decisões."

O exercício do Poder de Império é o exercício da Soberania. Atualmente o conceito desta desloca-se do campo político para o jurídico, não podendo mais o Soberano praticar todo e qualquer ato, sob pena de ocorrer em uso arbitrário da força. Utilizando a frase de Maquiavel "o poder limita o poder".

Voltemos à questão de invalidação do ato e relembremos que adotamos a Teoria Dualista, para se poder falar em prescrição administrativa em face do administrado. Ao nosso sentir, o que realmente ocorre é a aquisição de um direito por parte do administrado pela inércia da Administração e o decurso de tempo, pela validação do ato. É a prescrição aquisitiva. Serve o exemplo dado antes, onde ato anulável após decurso de prazo específico e inércia da Administração passa a ser perfeito, próprio para produzir efeitos no mundo jurídico. Ora, se o decurso do tempo, associado com a inércia da Administração fez convalidar um ato administrativo, neste momento surge um direito público subjetivo para o destinatário do ato. O ato passa de viciado a juridicamente perfeito. Por conta deste fenômeno a Administração encontra obstáculo, ou melhor, impedimento de revê-lo. A própria Carta Magna de 1988 propugna pelo respeito ao direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, inciso XXXVI da CRFB/88).

Por conta deste raciocínio não concordamos com a idéia da perda do "direito" da Administração em rever os seus atos, pois este "direito", na verdade é um Poder (Poder de Império) que não deve e nem pode prescrever ou decair, assim como não pode atacar o direito de outrém. É o caso do pai que depois de sua inação, decorrido certo prazo, perdesse o Pátrio Poder sobre o filho. O fato de encontrar impedimento em exercê-lo em detrimento do menor não quer dizer que tenha decaído ou prescrito, mas sim que tenha encontrado limite no direito do menor, ao qual deve respeito e encontra seus parâmetros.

Da mesma maneira a Administração encontrará obstáculos no direito adquirido e no ato juridicamente perfeito para exercer o seu ius imperii, tendo em vista a convalidação do ato em favor do administrado.

Malgrado a nossa posição, a lei 9.784/99, que regula a matéria na esfera federal, assim como a lei estadual 3.870/02, estabelecem que "decai" em cinco anos o "direito" da Administração rever os seus atos. Assim, pela letra da lei, trata-se de decadência a perda da oportunidade de revisar o ato inquinado de vício, podendo ser reconhecida de ofício.

Assim sendo, por conta da sua inércia, a administração está impedida de agir, independentemente de declaração ou solicitação do interessado, para ver reconhecida a prescrição administrativa. O seu "direito" de rever o ato decaiu, não mais subsiste, e qualquer movimento desta, no sentido de anulá-lo se mostrará ilegal e contrário ao direito, o que nos faz concluir que, o Tribunal de Contas ao determinar diligência neste sentido, alterando ato administrativo alcançado pela decadência administrativa, estará, na verdade, ordenando a prática de ato ilegal.

No mesmo sentido, destacamos jurisprudência do STJ:

"Ementa. Administrativo. Recurso Ordinário em mandado de segurança. Servidora pública estadual. Aposentadoria. Correção. Decadência.

- Conforme o disposto no art. 54 da Lei 9.784/99, a Administração Pública tem prazo de cinco anos para anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários.

- Tendo sido o ato de aposentadoria editado em março de 1991, consolidou-se a situação jurídica com o transcurso do qüinqüênio, sendo ilegal o ato de retificação de proventos expedido em fevereiro de 1999.

- Recurso ordinário provido.

Recurso Ordinário em MS nº 12.7050 - TO (2000/0136943-1)

Relator Ministro Vicente Leal" - (grifos meus)

Mas como ficaria tal posição em relação ao disposto na Súmula 473 do STF, que estabelece que "A Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial" ? A resposta deve ser analisada dentro de um contexto histórico do estudo da matéria.

Ao tempo da edição desta súmula, predominava a já referida Teoria Monista sobre os atos administrativos. Como exposto, tal tese não mais subsiste, tendo o legislador pátrio adotado a Teoria Dualista, prevendo a possibilidade de convalidação do ato administrativo, razão pela qual, a súmula em comento deve ser lida com temperamento.

Ressalvamos, mais uma vez, que não é todo e qualquer ato que possa ser convalidado. Somente os atos anuláveis são passíveis de convalidação. Exemplo já dado é do § 2º do art. 37 da Constituição, que preceitua que o ato de provimento de cargo sem observância do concurso público é nulo, impossibilitando a sua convalidação pelo decurso do tempo.

Contudo, existem situações em que os efeitos dos atos nulos são mantidos, pois não é interessante para o ordenamento jurídico desfazê-los. É o que pode ocorrer, por exemplo, nas ações diretas de inconstitucionalidade.

Com a Lei 9.868/99 foi incorporado ao ordenamento jurídico pátrio os efeitos prospectivos da sentença declaratória de inconstitucionalidade. Com isto, pode o STF fazer com que os efeitos da sentença não retroajam até a data do início da vigência da lei considerada inconstitucional, podendo fixar outro momento, que alguns sustentam poder ser até posterior à declaração. Assim, o efeito ex tunc da declaração não é mais, necessariamente, observado, podendo ter efeitos ex nunc, ou seja, que não retroajam.

Com isto, a doutrina estuda o tema para saber o que acontece com os atos praticados na vigência da norma declarada inconstitucional: foram convalidados, apesar de nulos, ou não ?

A resposta, para se manter a harmonia do sistema, é de que, na verdade, o STF está apenas, respeitando as situações definitivamente constituídas. São aquelas situações em que o desfazimento do ato pode gerar mais prejuízo do que a sua manutenção. Então, malgrado o ato nulo poder ser declarado a qualquer momento, situações há em que após cinco anos da prática do ato, sem nenhum questionamento pelas Cortes de Contas ou pela administração, deverão ser respeitadas as situações definitivamente constituídas, mas tal exame ficará jungido ao caso concreto.


4.Da (Im)prescritibilidade da Ação do Tribunal de Contas:

A idéia de que não há prazo decadencial para o Tribunal de Contas agir é desarrazoada, pois estaria este a se revestir de um poder que nenhum outro órgão possui, jurisdicional ou não.

As hipóteses de imprescritibilidade devem estar expressas, sendo exceções e não a regra.

Os casos de imprescritibilidade são previstos com verdadeiros tipos legais, condutas abstratas que uma vez concretizadas não terão o benefício da prescrição, pelo alto relevo da questão envolvida. É o caso das ações previstas no §5º do art. 37 da CR/88, destinadas ao ressarcimento de dano causado ao erário por ilícitos praticados por agentes públicos. Não faz relação com este ou aquele órgão, mas sim dispõe que determinadas situações não são passíveis de prescrição. Os fatos relevantes previstos no ordenamento jurídico é que são imprescritíveis.

Nos autos do mandado de segurança nº 516/03, impetrado contra o Presidente do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, por conta da decisão em processo de aposentadoria que determinara a retificação dos proventos concedidos há mais de cinco anos à impetrante, sobre a questão da prescritibilidade, assim se pronunciou o Ministério Público do Estado:

"Sendo a prescrição fundamento básico da segurança das relações jurídicas, consubstancia ela a regra geral, sendo a imprescritibilidade a exceção. A própria Constituição Federal de 1988 garante o princípio geral da perda da pretensão ou do direito pelo decurso do tempo, estabelecendo, como únicas exceções, os crimes de racismo e de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado democrático (art. 5º, incisos XLII e XLIV). No mesmo sentido é a doutrina, respectivamente, de PONTES DE MIRANDO e de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

‘A prescrição, em princípio, atinge a todas as pretensões e ações, quer se trate de direitos pessoais, quer de direitos reais, privados ou públicos. A imprescritibilidade é excepcional’ (Tratado de Direito Privado, v.6., § 666, p. 127).

‘A prescritibilidade é a regra, a imprescritibilidade a exceção’ (Instituições de Direito Civil, v.1., p. 477);

Igual é o pensamento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

‘Em matéria de prescrição em nosso sistema jurídico, inclusive no terreno do direito disciplinar, não há que se falar em jus singulare, uma vez que a regra é a da prescritibilidade’ (MS 20.069, rel. Min. Moreira Alves, RDA 135/78).

Com base nessas premissas, vale adotar a conclusão de LUÍS ROBERTO BARROSO:

‘Se o princípio é a prescritibilidade, é a imprescritibilidade que depende de norma expressa, e não o inverso (RT 779/117)."

O Ministério Público Estadual, após demonstrar que na ausência de norma específica deve ser buscado dentro do direito administrativo a norma supletiva, elenca um rol de leis que são utilizadas para a integração da lacuna legislativa, uma vez asseverado que a prescritibilidade é a regra:

"Demonstrado que o Direito Administrativo é a fonte adequada ao suprimento da analogia, verifica-se, de qualquer apanhado que se faça, constituir regra geral adotar-se o prazo máximo de 5 (cinco) anos, seja contra ou a favor da Administração, como se vê dos seguintes exemplos legislativos:

a)Código Tributário Nacional

Art. 174: prazo prescricional de cinco anos para cobrança de crédito tributário;

Art. 173: prazo prescricional de cinco anos para constituição de crédito tributário;

Art. 168: prazo prescricional de cinco anos para restituição de crédito tributário;

b)Lei 8884/94 (Lei do Cade), art. 28: infrações da ordem econômica prescrevem em cinco anos.

c)Decreto 20.910/32: prazo prescricional de 5 anos contra a Fazenda Pública.

d)Lei 8.112/90, art. 142: ação disciplinar contra funcionário prescreve, no máximo, em 5 anos, (no mesmo sentido dispunha a Lei 1.711/52, antigo Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União). Também os prazos prescricionais para a punição disciplinar previstos nas Leis Complementares 75/93 e 80/94 (Ministério Público Federal e Defensoria Pública) nunca são superiores a 5 anos.

e)Lei 8.429/92, art. 23, atos de improbidade administrativa prescrevem, no máximo, em 5 anos.

f)Lei 6.838/80, art. 1º: infrações disciplinares de profissionais liberais prescrevem em 5 anos. Também a Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB), art. 43, prevê o prazo prescricional máximo de 5 anos para punição.

g)Lei 4.717/65, art. 21: prazo de 5 anos para prescrição da ação popular;

h)No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, Decreto-lei 220/75 (Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado do Rio de Janeiro): prazo de 5 anos para a prescrição da pena administrativa de demissão;

i)Ainda na esfera estadual, Lei Complementar 106/2003 (Lei Orgânica do Ministério Público), art. 137, III: prazo de 5 anos de prescrição da punibilidade administrativa em casos de disponibilidade, demissão e cassação da aposentadoria.

A partir daí, a doutrina é uníssona ao admitir que, na falta de previsão legal, o prazo da prescrição administrativa é de cinco anos. (...)

Não destoam as opiniões de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, DIÓGENES GASPARINI e LUÍS ROBERTO BARROSO, respectivamente:

‘Ficamos com a posição dos que, como Hely Lopes Meirelles (1996/589), entendem que, no silêncio da lei, a prescrição administrativa ocorre em cinco anos, nos termos do Decreto-lei 20.910’ (Direito Administrativo, p. 487).

‘A prescrição consuma-se com o escoamento do prazo legal e, na falta desse, cremos que o prazo deve ser o mesmo instituído pelo art. 1º do Decreto-lei federal 20.910/32, para a prescrição de qualquer ação contra a Fazenda Pública, isto é, de cinco anos, já que a regra é da prescritibilidade’ (Direito Administrativo, 1993, p. 556).

‘De todo modo, e em desfecho a este tópico, é fora de dúvida que a regra vigente no âmbito do direito administrativo é a do prazo prescricional máximo de cinco anos’ (RT 779/121).

Especificamente quanto à pretensão anulatória da Administração Pública com relação a seus atos administrativos, mesmo anteriormente à Lei 9.784, de 1999, citada ao início deste parecer, a doutrina se posicionava favoravelmente à incidência da prescrição. Já dizia HELY LOPES MEIRELLES que a tendência era no sentido de ‘manter atos ilegítimos praticados e operantes há longo tempo e que já produziram efeitos perante terceiros de boa-fé’ (ob. cit.,p. 188)."

Continua o Ministério Público Estadual trazendo estudo do professor gaúcho Almiro do Couto e Silva, demonstrando que a invalidação de atos eivados de vícios deve ser feita com base nas premissas da Ação Popular:

"Com base nessas premissas, ALMIRO DO COUTO E SILVA extrai uma conclusão preliminar, a saber:

‘A pretensão à invalidação de atos administrativos, de que o povo, por seus cidadãos, está investido, não é nem pode ser diferente da pretensão que tem o Poder Público de invalidar aqueles mesmos atos jurídicos’

A partir daí deflui com facilidade cristalina, por força de lógica jurídica inelutável, que, se a própria Sociedade, diretamente por seus cidadãos, tem o prazo de cinco anos para postular a invalidação de atos administrativos ilegítimos (art. 21 da Lei da Ação Popular), a Administração Pública deve resguardar o mesmo lapso temporal para anular os seus atos considerados ilegais.

Levando em conta que o estudo do professor gaúcho é de 1996, forçoso reconhecer que o advento do art. 54 da Lei Federal 9.784, de 1999, representa um verdadeiro corolário dos trabalhos do jurista. Porém, não pode significar, dada a natureza dos argumentos de COUTO E SILVA, uma limitação dos princípios, de forma a autorizar interpretações tais como inadmitir sua aplicação aos Estados e Municípios ou reduzir sua incidência aos prazos iniciados depois da vigência da lei.

Na realidade, o princípio é pré-existente à lei, que veio somente declarar ou ratificar uma conclusão que a doutrina já extraía do sistema jurídico. Daí que a jurisprudência do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA já teve a oportunidade de decidir, por duas vezes reiteradas, que a Lei 9.784/99 aplica-se não só aos Estados da Federação, como aos prazos iniciados e concluídos antes dela, exatamente na linha defendida neste parecer, ou seja, de que, em qualquer ocasião e em qualquer alçada federativa, a Administração decai em cinco anos do direito de anular os seus próprios atos.

(...)

Ademais, as situações enfrentadas pelo STJ também se reportavam à aposentadoria de servidores, o que sempre pressupõe a interveniência dos Tribunais de Contas. Vê-se, portanto, que o STJ considerou deverem as Cortes de Contas subordinarem-se aos ditames do art. 54 da Lei 9.784/99, até porque nada justifica que o TCE demore onze anos para rever o ato da aposentadoria da impetrante, como ocorreu na espécie vertente.

Acresce que, em última análise, o ato de revisão dos proventos da aposentadoria da impetrante, foi praticado pela autoridade municipal, que também ocupa o pólo passivo da relação processual. Quanto a ela, nem se discute a aplicabilidade dos princípios de prescrição administrativa. Assim, mesmo que o TCE fosse imune ao curso da decadência, a Prefeitura de Duque de Caxias não mais poderia anular o seu próprio ato administrativo, dada a convalidação decorrente do curso do tempo." (gifos nossos)

Pelo dito até o momento, não há como se argumentar sobre a imprescritibilidade da ação do Tribunal de Contas. A tão mencionada súmula 473 do STF, que data de 03/10/1969, como já dito, é apreciada fora do contexto histórico do estudo jurídico sobre a matéria.

A teoria dualista, dividindo os atos administrativos em nulos e anuláveis, foi consagrada expressamente pela Lei 9.784/99. A aplicação da tese não se deu com a edição da aludida norma. Ao contrário, esta veio a corroborar um entendimento já aceito pelos Tribunais deste país, aceitando a convalidação dos atos eivados de vícios.

Assim, não importa o momento da edição da lei 9.784/99 como marco inicial da aplicação da teoria da prescrição administrativa em nosso país. O saudoso Hely Lopes Meirelles já se pronunciava neste sentido, ensinando que quando a lei não determina o respectivo prazo este deve ser de cinco anos, tendo em vista analogia feita com o Decreto 20.910/32.

Há pensamentos, ainda, que sustentam que a questão da decadência administrativa deve ser regulada por cada ente da federação. Abstraindo-se a discussão sobre a inclusão dos municípios no conceito de ente federado, cada um deverá prevê-la e estabelecer o seu prazo, conforme tal corrente. Enquanto isto não ocorrer não haverá decadência administrativa e, portanto, convalidação de atos eivados de vícios. No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, este momento seria o mesmo que o da esfera federal, ou seja, com a edição da Lei 9.784/99, por força do art. 368 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que manda aplicar a legislação federal no que for omissa a legislação estadual.

Não concordamos com tal tese. Explicamos.

Outras legislações analisadas em conjunto fazem com que cheguemos a mesma conclusão quanto a existência de prazo para rever o ato administrativo viciado, não obstante a inexistência de lei específica, ainda que se trate de municípios. Neste sentido transcrevemos trecho da ata de sessão ordinária realizada no Tribunal de Contas do Município de São Paulo:

"ATA DA 2.057ª SESSÃO (ORDINÁRIA) – Tribunal de Contas do Município de São Paulo – (...) A esse propósito o Supremo Tribunal Federal já decidiu que "a regra é a prescritibilidade" e que esta ocorre no prazo de quatro anos para as penalidades disciplinares do funcionalismo federal. Entendemos que, quando a lei não fixa o prazo da prescrição administrativa, esta deve ocorrer em cinco anos, à semelhança da prescrição das ações pessoais contra a Fazenda Pública (Decreto 20.910/32), das punições dos profissionais liberais, (Lei 6.838/80) e para cobrança do crédito tributário (Código Tributário Nacional, art. 174)’ (Direito Administrativo Brasileiro, RT, 16.ª edição, 1991, pág. 577). (grifos meus)"

Existe prazo, sim, para a administração rever os seus atos, independentemente de legislação expressa, pois a regra é da prescritibilidade. Salientamos que a decisão transcrita é dos idos de 1991.

Adotam a mesma posição o Prof° Celso BASTOS (BASTOS: 1994: 555), a Profª. Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, bem como a Prof.ª Lúcia Vale FIGUEIREDO (FIGUEREDO: 1994: 148), a qual preceitua que "assim como as ações contra a Administração Pública devem respeitar o prazo prescricional de cinco anos, também entendemos que a invalidação do ato não se possa dar em maior prazo".

Neste comentário não há qualquer distinção sobre o ente federado a ser alcançado pelo entendimento (União, Estado ou Município). Também é anterior à lei 9.784/99.

Parecer da Procuradoria Geral do Município de Fortaleza, nos idos de 1996, ou seja, também antes da edição da Lei 9.784/99, da lavra da Dra. Clarissa Sampaio Silva, Professora Substituta de Direito Administrativo da Universidade Federal do Ceará, trata do assunto, assumindo que existe prazo para a administração (municipal ou não) anular os seus atos quando criem direitos aos administrados:

"Contudo, o que não se há de admitir é que não havendo prazo ‘prescricional’ previamente estabelecido possa a Administração, a qualquer tempo, invalidar um determinado ato. Isso porque sendo a prescrição instituto fundamental do direito, a ela se submetem não apenas os particulares, mas também a Administração que atua sob a égide de um ordenamento jurídico, o qual não tolera que determinadas situações fiquem eternamente pendentes." (grifo nosso)

Assim, não há distinção em relação ao ente federado para aplicação da teoria dualista. O prazo de 5 (cinco) anos para a revisão do ato administrativo deverá ser respeitado, independentemente de lei expressa na esfera da União, Estado ou Município.

Em outras palavras: a prescritibilidade é a regra, não tendo o Tribunal de Contas um "escudo" contra prescrição administrativa, até porque esta se liga aos atos e fatos administrativos e não a determinada pessoa ou órgão.

Do Ato Complexo:

Grande parte da doutrina e setor da jurisprudência firmemente sustentam a natureza de ato complexo ao que concede aposentadoria.

Com isto, entendemos necessário aprofundarmos no estudo do ato complexo para dar tratamento diferenciado para situações diferenciadas.

Atos complexos, conceitua determinado autor, "são aqueles cuja vontade final da Administração exige a intervenção de agentes ou órgãos diversos, havendo certa autonomia, ou conteúdo próprio, em cada uma das manifestações." [3]

A primeira vista, por esta conceituação, o ato complexo somente produziria efeito após a participação do último órgão na formação da vontade administrativa. A razão do início da contagem do prazo decadencial após a manifestação da última vontade é muito clara: antes desta o ato almejado ainda não gera efeitos! Contudo, não é isto que ocorre no caso das aposentadorias, pois a partir da expedição da primeira vontade administrativa (supondo ser a aposentadoria ato complexo), os efeitos do ato já começam a se verificar, pois efetivamente estará aposentado o servidor e percebendo os seus proventos.

Então, a doutrina que entende ser o ato de aposentadoria complexo deveria distingui-lo em dois tipos: de efeito diferido e de efeito imediato (propomos esta classificação para fins de estudo e entendimento do fenômeno).

Dentro do primeiro grupo (de efeito diferido) estariam os atos que somente produziriam efeitos após a manifestação do último agente ou órgão da cadeia de vontades necessárias. Exemplo seria a investidura do Ministro do S.T.F. que se inicia pela escolha do Presidente da República, passa pela aferição do Senado Federal e culmina com a nomeação (art. 101, parág. Único, C.F.). [4]

No segundo grupo (de efeito imediato), antes da manifestação da última vontade administrativa, o ato já produz efeitos. Seria o caso da aposentadoria, que já produz seus efeitos antes do registro pelo Tribunal de Contas.

Então, grande diferença há entre um e outro: nos atos complexos de efeito diferido, não se observa qualquer situação de vantagem para o destinatário do ato até a manifestação de todas as vontades da cadeia administrativa envolvida, ao passo que nos atos complexos de efeito imediato, a vantagem é concedida antes da finalização desta cadeia.

De fato, no caso da aposentadoria, tão logo seja publicado o ato de aposentação do servidor, este já passa a "ostentar" o status de aposentado. Se este ato possui algum vício em benefício do ex-servidor, neste momento surge o interesse da administração em revê-lo ou anulá-lo. É a actio nata. Como o ordenamento jurídico reza, toda vez que nasce um direito de agir para que alguém influa na esfera jurídica de outro, seja por conta de um direito potestativo ou de um direito patrimonial, o tempo exerce influência em tal relação e o faz, de tal forma, que o seu decurso poderá acarretar na decadência ou na prescrição do direito, conforme um ou outro caso. Não pode existir interesse de agir não sujeito a prazo prescricional [5].

Aqui, então, asseveramos que, independentemente de ser um ato complexo ou não, a revisão do ato de aposentadoria, ao criar uma situação subjetiva de vantagem para o administrado, está sujeita a prazo prescricional, tão logo o destinatário passe a usufruir de suas conseqüências.

Neste sentido, judicioso acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

"Acórdão

RESP 1560 / RJ ; RECURSO ESPECIAL

1989/0012288-6

Fonte

DJ DATA:19/02/1990 PG:01041

RDA VOL.:00179 PG:00126

Relator

Min. CARLOS VELLOSO (0140)

Ementa

ADMINISTRATIVO. FUNCIONÁRIO. APOSENTADORIA. PRESCRIÇÃO. ATO COMPLEXO. INICIO DO PRAZO PRESCRICIONAL. REGISTRO NO TRIBUNAL DE CONTAS.

I - NÃO OBSTANTE COMPLEXO O ATO ADMINISTRATIVO DA APOSENTADORIA, CERTO E QUE, A PARTIR DE SUA EXPEDIÇÃO, SEGUE-SE A SUA EXECUÇÃO. A PARTIR DA PUBLICAÇÃO DO ATO, POIS, COMEÇA A CORRER A PRESCRIÇÃO QUINQUENAL DA AÇÃO QUE TEM POR OBJETO ALTERÁ-LO, PRESENTE O PRINCÍPIO DA ACTIO NATA, E NÃO DA DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS, QUE APRECIA A SUA LEGALIDADE E QUE NÃO PODE, NESSA ATIVIDADE FISCALIZADORA, MODIFICAR O SEU FUNDAMENTO;

II-RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO." (grifo nosso)

Uma outra faceta deve ser enfrentada. Os adeptos da teoria que afasta a incidência dos preceitos da lei 9.784/99 aos processos de aposentadoria em trâmite nos Tribunais de Contas, sustentam que a norma, por tratar de processo administrativo, não se aplica às Cortes de Contas, pois estas, no exercício de suas funções constitucionais, não praticam ato administrativo propriamente dito.

Se isto é certo (e acreditamos que seja), como pode o ato de aposentadoria ser considerado complexo, se o mesmo é um ato administrativo e os Tribunais de Contas não praticam atos administrativos propriamente ditos no desempenho de suas funções constitucionais?

Assim, discordamos quanto a conceituação do ato de aposentadoria como ato complexo. O ato complexo resulta do concurso de vontades de vários órgãos ou vários sujeitos da Administração Pública, sendo requisitos indispensáveis do ato administrativo complexo a identidade de conteúdo e a unidade de fins das diversas vontades, que se fundem para formação de um ato único. Esclarecemos que a lição não é nossa (queríamos que fosse), mas sim do doutrinador italiano Guido Zanobini (Corso di Diritto Amministrativo", Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1939, vol. I, págs. 292-295).

O ato que concede a aposentadoria e o ato do registro pelos Tribunais de Contas não visam o mesmo fim. O primeiro visa passar o servidor para a inatividade, enquanto o segundo visa o exame da legalidade do ato. Mais: se o ato formado é único, a natureza do mesmo, no caso da aposentadoria, é de ato administrativo. Perguntamos: o Tribunal de Contas exerce atividade administrativa no exercício de suas funções constitucionais? Não !

Trazemos valioso estudo da lavra do Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Dr. Wallace Paiva Martins Junior, sobre o ato complexo, que felizmente, também aborda a questão do registro da aposentadoria pelo Tribunal de Contas, concluindo que o mesmo não serve como exemplo do ato administrativo em debate:

"Ato complexo é ato único, indiviso: resultante de vontades distintas e homogêneas (nenhuma das quais idônea a constituir um ato administrativo à parte); seus atos específicos não produzem nenhum efeito isolado, senão quando simultaneamente se completam, integrados, escreve Lafayette Pondé.

Sandra Julien Miranda explica que o ato administrativo complexo "é o que se aperfeiçoa pela fusão ou integração de vontades de órgãos diversos, de que decorre manifestação de um só conteúdo e finalidade. Se as vontades manifestadas não se revestem de igual valor jurídico decorrerá a complexidade igual ou desigual. Se as manifestações são de órgãos de uma só entidade ou entidades diversas, teremos a complexidade interna ou externa, respectivamente", destacando que o requisito de unidade de conteúdo e fim é essencial e indispensável para distingui-lo de outras formas de concurso de vontades, como os atos coletivos, o contrato entre entes públicos, o controle estatal sobre as deliberações dos entes autárquicos, as convenções, os atos compostos, o acordo, o chamado ato-união e etc."

Até aqui, já constatamos que o conceito de ato complexo deve levar em conta a unidade de conteúdo e finalidade, e não somente a manifestação de pessoas diferentes. O ato praticado isoladamente por uma das vontades não possui finalidade autônoma, sendo inócua sem as outras.

Continuando no estudo, o ilustre jurista adentra na questão da eficácia do ato complexo:

"A complexidade é fator de eficácia do ato? A manifestação concorde ou convergente de todos os sujeitos (órgãos, entidades ou agentes públicos) é requisito atinente à perfeição e validade do ato administrativo complexo, sem a qual ele não se aperfeiçoa. A manifestação da vontade do último órgão a ser ouvido não condiciona a eficácia da vontade inicial, porque esta ainda que reputada como ato necessita do concurso das demais, razão pela qual a falta de convergência de vontades para edição de ato único retira-lhe um elemento essencial. Será isto ineficácia do ato? Parece que de ineficácia não há que se cogitar, pois, se atribuiria ao ato complexo a característica própria do ato composto: isto é, a eficácia do ato principal ficaria na dependência de um ato acessório, subordinada à condição suspensiva (no caso, homologação ou aprovação). No ponto, Sandra Julien Miranda invocando Caio Tácito, tendo como parâmetro o registro (ou julgamento da legalidade) de aposentadorias, reformas, pensões e etc., adverte que "muito embora uma das formas típicas de ato complexo seja aquele sujeito à autorização ou aprovação de outra autoridade, a doutrina italiana costuma distinguir o ato complexo em que a aprovação integra a manifestação de vontade das formas de mero controle de legalidade, em que o ato, apesar de perfeito, depende para sua eficácia, de ação de outra autoridade, verdadeira condição suspensiva". Por isso, Caio Tácito limita o conceito de aprovação aos atos típicos de controle, em que não há identidade de fins e conteúdo entre as duas manifestações de vontade, que, embora concorrentes, atendem a interesses distintos. O pronunciamento inicial, complementa, constitui um ato perfeito de eficácia condicionada à aprovação (juízo de legitimidade e oportunidade) ou ao visto (juízo de legalidade). Ora, no ato de controle o objetivo do controlador é a verificação da legalidade e do interesse público do ato já praticado, enquanto que no ato complexo o objetivo de quem "aprova" é, em essência, o mesmo: nomear alguém, realizar certo empreendimento, etc.; nele, residualmente, há controle da legalidade e do interesse público, embora esse traço não seja o essencial. No ponto, convém observar que o ato complexo tem essa característica porque apresenta uma convergência de atribuições ou competências, inspirada por vários motivos (como a participação na condução política da administração pública)."

Fazemos um pequeno parêntese para chamar atenção do leitor para a questão da convergência de atribuições ou competências no ato complexo. Excepcionando o caso dos seus próprios servidores, não têm competência ou atribuição os Tribunais de Contas para conceder aposentadoria e/ou pensão a servidores dos seus jurisdicionados. Esta observação é muito importante. No exemplo já dado de ato complexo, como a nomeação de Ministro do STF, todas as pessoas envolvidas possuem a mesma atribuição e competência para nomeá-lo, participando de cada etapa do ato, visando o mesmo fim.

Continuemos no exame do estudo:

"O Supremo Tribunal Federal dedicou especial atenção ao assunto na sua evolução. Sob a égide da Constituição de 1967 com a redação dada pela Emenda 01/69, denegou a ordem em mandado de segurança impetrado por juiz classista de Tribunal Regional do Trabalho contra decisão do Tribunal de Contas da União que julgou ilegal sua aposentadoria, porque "declarando a ilegalidade da concessão da aposentadoria, opera julgamento definitivo na esfera administrativa", descabendo ao Presidente da República sustar a execução do ato do Tribunal de Contas com decreto legislativo homologatório do Congresso Nacional. No julgamento, considerou que "o ato de aposentadoria é complexo e só se aperfeiçoa com o registro no Tribunal de Contas" nos termos do art. 72, § 8º, do citado diploma constitucional. Em outra oportunidade, assentou que, sob o pálio da mesma Constituição, que o Tribunal de Contas no exercício de sua função se limita à legalidade ou não da concessão da aposentadoria, sendo-lhe vedado determinar seu registro em termos diversos dosem que foi requerida e deferida. Mais recentemente, no império da atual Constituição de 1988 (art. 71,III), declarou que configura função constitucional de típico poder de controle a verificação da legalidade de aposentadoria com a determinação da efetivação ou não do registro (dependente da situação jurídica emergente do ato concessivo), não podendo inovar o título jurídico submetido a seu exame, mas podendo recomendar – se constatada ilegalidade no mesmo – ao órgão ou entidade competente a adoção das medidas necessárias para fiel cumprimento da lei, de modo a evitar a medida radical de recusa do registro e, se, o órgão ou entidade recusar-se a dar execução à recomendação, caberá ao Tribunal de Contas o pronunciamento definitivo sobre a efetivação do registro. Quanto a esta faculdade de recomendação precedente ao julgamento da legalidade ou não pelo Tribunal de Contas, festejada pelo Relator Ministro Celso de Mello com base no art. 71, IX, da Constituição, tida como meio instrumental e etapa decisória saneadora preparatória da decisão final sobre o registro, sofreu a crítica dos Ministros Moreira Alves e Francisco Rezek, cujo entendimento inclinava pela aplicação do art. 71, IX, somente na decretação da ilegalidade do registro, adicionado a sustação do ato impugnado se não cumprida esta (art.71, X). A observância do órgão ou entidade concedente ao pronunciamento da ilegalidade da aposentadoria pelo Tribunal de Contas decorre da força de convencimento jurídico de suas decisões, em razão de sua competência constitucional de controle, sem poder o Tribunal de Contas, no entanto, proceder a retificação e a negativa do cumprimento da decisão de ilegalidade sujeita a sustação do ato. Assentado nessas premissas, o Supremo Tribunal Federal destacou que "ainda hoje não é pacífica a questão em torno da natureza jurídica do registro, se constitui ato que integra o ato de concessão de aposentadoria, para formação de um ato único (ato complexo) ou se é ato autônomo de controle da legalidade, sem função integrativa, do qual depende a eficácia ou executoriedade definitiva do primeiro", referindo parecer mais acertada esta última posição, sustentada por Francisco Campos, segundo o qual "o registro pressupõe acabado, integrado e perfeito o ato administrativo – já dotado de uma executoriedade provisória – correspondendo a uma função de controle, que não colabora na formação do ato, sendo apenas condição de sua executoriedade definitiva", não cabendo ao Tribunal de Contas modificar o ato porque não lhe é dado substituir a competência do órgão ou entidade. Não se pode olvidar que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 06. Sua base está no "RMS nº 8.657, julgado em 6.9.1961, o Rel. Min. Victor Nunes, em erudita exposição, demonstrou apoiado em Seabra Fagundes, que a aprovação do ato converte-o em procedimento da autoridade que o outorga. Sendo o ato, em tal caso, do Tribunal de Contas, e não mais da autoridade administrativa, a competência para torná-lo sem efeito se desloca desta para aquele. Por isso, nessa hipótese, não pode ter qualquer efeito executório, nem mesmo condicionalmente, o ato anulatório emanado da autoridade administrativa, o qual representa apenas, a primeira etapa do processo de anulação". Deste modo, mais recentemente, e resgatando a compreensão original da Súmula 06, o Supremo Tribunal Federal consente que a Administração Pública anule seu ato por motivo de ilegalidade, mas "esse ato de revisão é inoperante até que, assentindo nos seus motivos, de sua vez o registrasse o Tribunal de Contas, desfazendo o registro anterior", dado que ela não pode anular o registro do Tribunal de Contas, razão pela qual o ato anulatório não tem efeito antes de confirmado pelo Tribunal de Contas. No ponto, acórdão do Superior Tribunal de Justiça julgando recurso em mandado de segurança impetrado por servidora pública estadual cuja aposentadoria foi cassada por ato do Governador do Estado, sustentando a ilegalidade pela ausência do Tribunal de Contas, refutou o argumento sob o pálio de que "a recorrente fora aposentada como professora. O respectivo decreto é suficiente. O registro no Tribunal de Contas apenas condição de exeqüibilidade. Rememore-se a clássica distinção entre ato administrativo complexo e ato administrativo composto. O primeiro se constitui pela manifestação de vontade de mais de um órgão. O segundo forma-se pela atuação de um só órgão, todavia exeqüível com a aprovação de outro", ressaltando que "a cassação da aposentadoria, assemelhada à demissão, é da competência da autoridade que efetiva a nomeação. O Tribunal de Contas, na espécie, posteriormente, manifesta aprovação". A decisão está correta na medida em que a manifestação do Tribunal de Contas não integra nem aperfeiçoa como elemento essencial o ato, cuja natureza revela ser composto e não complexo." (grifos nossos)

Ou seja, não há como se considerar o ato de aposentadoria complexo. Se assim for, chegaríamos à conclusão de que os TC´s estariam praticando atos administrativos propriamente ditos no exercício de suas atribuições constitucionais, o que não pode acontecer, como veremos mais adiante, quando comentarmos a Teoria dos Poderes Neutrais.

A tese nos parece um tanto quanto tacanha, oriunda de um olhar estrábico da realidade. O ato de aposentadoria não é complexo, mas sim ato de controle externo, visando o controle da legalidade do mesmo.

A partir do momento em que se concede a aposentadoria ao servidor e fixados os seus proventos, deste momento é que se começa a contar o prazo decadencial para revê-los (ato de aposentadoria e de fixação de proventos).

Quanto a natureza do ato de aposentadoria, importante destacar o que foi consignado pela então Procuradora-Geral do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Dra. Fátima Maria Amaral Tavares Paes, em parecer sobre o assunto:

"Embora reconheça a lógica e a importância da tese (sic: do ato complexo) entendo que há alguns obstáculos à sua plena aceitação. Com efeito, o artigo 71 da Constituição Federal firma a competência do Tribunal de Contas no sentido de ´apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal..., bem como a das concessões de aposentadorias´. Logo, a redação da norma sugere que a aposentadoria já tenha sido concedida antes de encaminhada ao Tribunal para registro, até porque os efeitos típicos do ato já se verificam desde a manifestação inicial da Administração a qual estaria o servidor vinculado, devendo, porém, sofrer um controle posterior que poderá, inclusive, importar na sua desconstituição. Creio, pois, que a manifestação de vontade da Administração é suficiente para consumar o ato de aposentadoria do servidor público, que, porém, fica sujeito a ato complementar de controle, de natureza homologatória. Tal controle pode concluir pela legalidade da concessão do benefício, pela sua invalidade, ou pela necessidade de sua reforma, sendo sempre posterior ao ato da Administração, não contribuindo, a rigor, para a formação deste.

É de se considerar, ainda, que a manifestação do Tribunal de Contas tem objetivos nitidamente distintos daquela exarada pelo órgão administrativo; esta última materializa uma ação administrativa, de organização de pessoal, que visa a transformar o servidor ativo em inativo; aquela verifica a regularidade dessa ação administrativa. Logo, o ato inicial afigura-se perfeito, desde logo apto a produzir efeitos, pendendo, apenas, de um controle de legalidade posterior." (grifos meus)

E realmente é isto que ocorre.

O conhecido Ministro do Supremo Tribunal Federal, Victor Nunes Leal, nos autos do mandado de segurança nº 8.657, assim se pronunciou sobre o registro das aposentadorias pelos Tribunais de Contas:

O registro pelos Tribunais de Contas "não integra nem completa o ato de concessão, mas que converte a executoriedade precária (porque condicionada) da concessão em executoriedade definitiva".

Desta forma, por não possuírem identidade de conteúdo e unidade de fim, aliando que o Tribunal de Contas não pratica ato administrativo propriamente dito no exercício de suas funções constitucionais, não há como se considerar o ato de aposentadoria como complexo.

Da Teoria dos Poderes Neutrais:

Outro argumento pode ser trazido para afastar a tese que imprime ao ato de aposentadoria o condão de complexo. Trata-se da Teoria dos Poderes Neutrais.

Entender a posição do Tribunal de Contas no cenário da organização e estruturação do Estado é de suma importância.

Durante muito tempo entendia-se que os únicos poderes legítimos, ou órgãos legítimos, para atuar política e administrativamente eram aqueles cuja composição advinha da participação do eleitorado, ou seja, decorrente de eleição. A prática demonstrou a fragilidade da idéia, pois vários segmentos sociais podiam não estar representados, ou então, uma vez eleitos, os representantes poderiam não buscar os verdadeiros interesses para o qual foram eleitos, buscando efetivar apenas interesses privados ou do próprio Estado como pessoa jurídica. Passou a se distinguir, então, o interesse público em primário e secundário.

Por interesse público primário entende-se aquele em que a satisfação interessa a toda a sociedade, ao passo que por interesse público secundário, entende-se aquele em que a satisfação interessa apenas ao Estado, como um interesse subjetivo, podendo até contrariar interesses sociais ou coletivos.

Para a verificação e fiscalização do atendimento do interesse público primário, que consideramos o verdadeiro interesse público, foram criados órgãos cuja composição é desprovida, em tese, de interesses políticos, tendo posições neutras (daí o nome Poderes Neutrais).

Boas são as palavras do professor Alexandre Santos de Aragão:

"No advento da Revolução Francesa, acreditava-se que apenas os órgãos da soberania popular, ou seja, os mandatários eleitos, poderiam levar a vida em sociedade a bom termo. Logo, porém, foi verificada a necessidade da criação de órgãos estatais com autonomia de gestão e independência funcional para, fora do círculo político-eleitoral, controlar e equilibrar as relações entre os titulares dos cargos eletivos para assegurar a observância dos valores maiores da coletividade. Surgiram, então, os poderes neutrais do Estado, que abrangem realidades díspares, desde as cortes constitucionais às agências reguladoras independentes, passando pelos tribunais de contas, conselhos com sede constitucional etc." (grifos nossos)

E continua seu escólio, citando Silvia Niccolai em sua obra I Poteri Garanti della Costituzioni e le Autorità Indipendenti:

"A independência assegurada aos órgãos neutrais do Estado é uma relação qualificada com os bens e valores que tutelam ou expressam, que os separa de tudo o que não for a eles concernente. Na independência, portanto, estão ínsitos traços de sujeição a estes bens e valores, que se agregam à autoridade neutral, podendo-se dizer haver ´uma relação de fundamentação, ou uma relação hierárquica imprópria, entre os valores tutelados e os órgãos neutrais, relação que produz a liberdade dos órgãos para atuar na proteção destes valores, o que lhes dá autoridade porque demonstra que os órgãos independentes pertencem ao ordenamento no qual, juntamente com os valores tutelados, estão inseridos valores que também são comuns aos destinatários das atividades dos órgãos independentes’." (grifo nosso)

Assim, o Tribunal de Contas surge como órgão neutro, não participando da atividade dos órgãos sujeitos à sua fiscalização. O trecho acima negritado demonstra que os órgãos neutrais não se imiscuem na atividade administrativa dos órgãos jurisdicionados, pois estão comprometidos apenas com os bens e valores que tutelam. Inferir ao ato de aposentadoria o condão de ato complexo é retirar da Corte de Contas a neutralidade que lhe é essencial para o exercício de suas funções. A independência que este órgão deve ter, exige, necessariamente, que o mesmo não participe de qualquer ato dos seus jurisdicionados. Se o ato de aposentadoria é um ato administrativo e o Tribunal de Contas no exercício de suas atribuições não desempenha atividades administrativas propriamente ditas, acrescentado o seu caráter neutral de órgão fiscalizador, não há como imputar-lhe participação no mesmo.

Dos Atos Sujeitos a Registro:

Estabelece a Constituição Federal, em seu art. 71, inciso III, que compete ao Tribunal de Contas da União, apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório.

Chamo a atenção para fato que não tem sido notado ou comentado nos processos de aposentadoria, e que consideramos de suma importância. O que é que está sujeito à análise da legalidade por parte da Corte de Contas, por ocasião da aposentadoria do servidor, ainda que o ato de aposentadoria seja considerado complexo?

Faço esta pergunta, pois entendemos que mesmo dentre aqueles que consideram o ato de aposentadoria complexo, há de ser distinguido os atos administrativos e parcelas concedidas por ocasião da aposentadoria, daqueles atos e parcelas concedidas no decorrer da vida funcional do aposentado. Não consideramos razoável considerar o momento da aposentadoria como aquele próprio para investigar toda a vida funcional do servidor público, alcançando atos concluídos e sepultados no tempo, como um verdadeiro Juízo Final administrativo.

Há atos administrativos que não estão sujeitos a registro pelos Tribunais de Contas para que tenham validade e sejam considerados concluídos, sendo, no máximo, atos compostos, e não complexos. Explicamos.

Em sua vida funcional, o servidor progride na carreira e tem a sua remuneração diferenciada da remuneração inicial do cargo. Estes atos concessórios de parcelas remuneratórias não estão sujeitos a registro pelo Tribunal de Contas, daí porque não são complexos, tendo a sua conclusão no momento da concessão ou fruição.

Com isto, o ato de fixação de proventos, contendo uma parcela irregularmente concedida há mais de cinco anos, pelos motivos aqui já esposados, não poderá sofrer alteração, pois a parcela já incorporou-se ao patrimônio jurídico do servidor, ainda em atividade. Este ato concessório de parcelas remuneratórias não é ato complexo, não tendo necessidade de envio ao Tribunal de Contas para validar-se, razão pela qual, sem sombra de dúvida, o prazo prescricional para revisá-lo contar-se-á da concessão da parcela.

A análise da Corte de Contas se cingirá às questões que surgem por ocasião da aposentadoria, como, por exemplo, o correto cálculo da proporcionalidade, ou a contagem do tempo de serviço e, ainda, parcelas que se incorporam por ocasião da aposentação, por exemplo.

Não pode a aposentadoria ter o condão de ressuscitar questões, mais uma vez, já sepultadas no tempo, máxime as questões que nem mesmo precisam do pronunciamento do Tribunal de Contas para se concretizarem, não sendo sujeitas a registro.


5.Summa jus, summa injuria – "Supremo direito, suprema injustiça"

Neste ponto trazemos a esta discussão elementos de Direito Constitucional.

Existem, na temática constitucional, valores e princípios a serem perseguidos pelo nosso Estado Democrático de Direito.

Presentes no preâmbulo da Carta Maior, destacamos três valores:

1.Da Proteção à Dignidade da Pessoa Humana;

2.Da Segurança Jurídica;

3.Da Garantia a um Ordenamento Jurídico Justo.

Estes valores permeiam o nosso ordenamento jurídico e a atividade estatal.

Os princípios constitucionais, norteadores da atividade do Estado, buscam, nos valores acima, os seus fundamentos de validade e incidência. Sempre que um princípio estiver em conflito com um valor, este último deve prevalecer.

É o que ocorre no caso presente. O Princípio da Legalidade Administrativa, deve ceder espaço para o valor Segurança Jurídica, até porque, um ordenamento jurídico que não possui segurança, não pode ser considerado justo. Estabelecer que não há prazo decadencial para a atuação do TCE, é desrespeitar dois valores fundamentais: o da segurança jurídica e o direito a um ordenamento jurídico justo.

Lição importante traz o Exmo. Ministro do STF, Gilmar Mendes, em voto proferido em ação cautelar, nº 2.900 – RS, citando expoentes do nosso direito, assim como do direito comparado:

"(...)vale a pena trazer à colação clássico estudo de Almiro do Couto e Silva sobre a aplicação do aludido:

"É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o principio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa fé e a confiança (Treue und Glauben)dos administrados.

(...)

Esclarece OTTO BACHOF que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos anos 50 na doutrina e na jurisprudência, para concluir que o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa fé e à segurança jurídica. Informa ainda que a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido. (Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht in der Rechtssprechung des Bundesverwaltungsgerichts, Tübingen 1966, 3. Auflage, vol. I, p. 257 e segs.; vol. II, 1967, p. 339 e segs.).

Embora do confronto entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica resulte que, fora dos casos de dolo, culpa etc., o anulamento com eficácia ex tunc é sempre inaceitável e o com eficácia ex nunc é admitido quando predominante o interesse público no restabelecimento da ordem jurídica ferida, é absolutamente defeso o anulamento quando se trate de atos administrativos que concedam prestações em dinheiro, que se exauram de uma só vez ou que apresentem caráter duradouro, como os de índole social, subvenções, pensões ou proventos de aposentadoria."

Depois de incursionar pelo direito alemão, refere-se o mestre gaúcho ao direito francês, rememorando o clássico "affaire Dame Cachet":

"Bem mais simples apresenta-se a solução dos conflitos entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica no Direito francês. Desde o famoso affaire Dame Cachet, de 1923, fixou o Conselho de Estado o entendimento, logo reafirmado pelos affaires Vallois e Gros de Beler, ambos também de 1923 e pelo affaire Dame Inglis, de 1935, de que, de uma parte, a revogação dos atos administrativos não cabia quando existissem direitos subjetivos deles provenientes e, de outra, de que os atos maculados de nulidade só poderiam ter seu anulamento decretado pela Administração Pública no prazo de dois meses, que era o mesmo prazo concedido aos particulares para postular, em recurso contencioso de anulação, a invalidade dos atos administrativos.

HAURIOU, comentando essas decisões, as aplaude entusiasticamente, indagando: ''Mas será que o poder de desfazimento ou de anulação da Administração poderá exercer-se indefinidamente e em qualquer época? Será que jamais as situações criadas por decisões desse gênero não se tornarão estáveis? Quantos perigos para a segurança das relações sociais encerram essas possibilidades indefinidas de revogação e, de outra parte, que incoerência, numa construção jurídica que abre aos terceiros interessados, para os recursos contenciosos de anulação, um breve prazo de dois meses e que deixaria à Administração a possibilidade de decretar a anulação de ofício da mesma decisão, sem lhe impor nenhum prazo''. E conclui: ''Assim, todas as nulidades jurídicas das decisões administrativas se acharão rapidamente cobertas, seja com relação aos recursos contenciosos, seja com relação às anulações administrativas; uma atmosfera de estabilidade estender-se-á sobre as situações criadas administrativamente.'' (La Jurisprudence Administrative de 1892 a 1929, Paris, 1929, vol. II, p. 105-106.)".

Na mesma linha, observa Couto e Silva em relação ao direito brasileiro:

"MIGUEL REALE é o único dos nossos autores que analisa com profundidade o tema, no seu mencionado ''Revogação e Anulamento do Ato Administrativo'' em capítulo que tem por título ''Nulidade e Temporalidade''. Depois de salientar que ''o tempo transcorrido pode gerar situações de fato equiparáveis a situações jurídicas, não obstante a nulidade que originariamente as comprometia'', diz ele que ''é mister distinguir duas hipóteses: (a) a de convalidação ou sanatória do ato nulo e anulável; (b) a perda pela Administração do benefício da declaração unilateral de nulidade (le bénéfice du préalable)''. (op. cit., p.82). (SILVA, Almiro do Couto e. Os princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado. Publicação do Instituto de Informática Jurídica do Estado do Rio Grande do Sul, V. 18, Nº 46, p. 11-29, 1988)."

Considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional (princípio do Estado de Direito) e está disciplinado, parcialmente, no plano federal, na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (v.g. art. 2º).

Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material." (grifos meus)

Mais uma vez, ensina o Prof. José dos Santos Carvalho Filho:

"Quanto à prescrição, considera grande parte da doutrina que ela incide em relação aos atos administrativos inválidos. Entende-se que o interesse público que decorre do princípio da estabilidade das relações jurídicas é tão relevante quanto a necessidade de restabelecimento da legalidade dos atos administrativos, de forma que deve o ato permanecer seja qual for o vício de que esteja inquinado." (grifo nosso)

O brocardo latino Fiat Justitia, Pereat Mundus (faça justiça, ainda que o mundo pereça) não é uma máxima entre nós. Usando as palavras do Exmo. Carlos Maximiliano, "O excesso de juridicidade é contraproducente; afasta-se do objetivo superior das leis; desvia os pretórios dos fins elevados para que foram instituídos; faça-se justiça, porém do modo mais humano possível, de sorte que o mundo progrida, e jamais pereça".

Fazemos coro ao todo dito acima. Não aceitamos a idéia de que não há prazo para atuação do Tribunal de Contas. Se não há lei prevendo-o (e isso somente aceita-se por hipótese), certo é que esta deve existir, buscando-se, neste caso, um prazo razoável no ordenamento jurídico pátrio. A lei federal 9.784/99 e a lei estadual 3.870/02, sem se olvidar do Decreto nº 20.910/32, que trata das ações contra a fazenda pública, estipulam o prazo comum de 5 (cinco) anos para os interessados tomarem as providências que elencam, devendo ser este o prazo observado pela Corte de Contas.


6.Da Inobservância ao Princípio da Eficiência:

Derradeiro argumento tem de ser levado em consideração.

No caso do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, a Deliberação 190/95 estipula o prazo de 120 dias para o processo de aposentadoria acusar entrada nesta Casa, a contar da data do protocolo na origem. A mesma deliberação, em seu art. 9º, fixa prazo para cumprimento de diligência (30 dias), tendo o TCE o remédio da Promoção para compelir o jurisdicionado intempestivo a observar seu prazo.

Se o processo tramita durante longos cinco anos, há claro desrespeito ao Princípio Constitucional da Eficiência. Não se vigia e nem se zela pelo cumprimento deste prazos, seja para o envio do processo ao Tribunal de Contas, seja para o cumprimento de diligência.

Se o administrador não cumpre com proficiência os ditames legais, cabe ao TC compeli-lo a tal. Não podemos, a título de observância da legalidade, deixar o cidadão permanentemente em estado de alerta, pois como já dito, isto contraria os valores da Segurança Jurídica e do Direito a um Ordenamento Jurídico Justo.


7. Conclusão

Concluindo, a prescritibilidade é a regra, ao passo que a imprescritibilidade é a exceção. Na ausência de norma específica sobre decadência administrativa, deve o jurista se socorrer da analogia a legislação referida neste trabalho, pois o Princípio da Segurança Jurídica e o Valor Ordenamento Jurídico Justo são as verdadeira normas a serem empregadas, não ficando o intérprete e aplicador do direito preso ao positivismo puro.

Define-se, ainda, que o ato de aposentadoria não é um ato complexo, e mesmo que se tratasse de, o prazo prescricional deve ser contado a partir do momento em que o interessado começa a usufruí-lo, posto o princípio da actio nata.

A posição das Cortes de Contas no cenário jurídico e político não permite que estas participem de atos dos seus jurisdicionados, o que lhes retiraria a condição de órgão neutral, máxime que nem mesmo pratica ato administrativo propriamente dito no exercício de suas funções constitucionais.

Na verdade, o decurso do prazo tido por decadencial, quando estamos diante de ato anulável, tem o condão de convalidá-lo, sendo pois, caso de prescrição aquisitiva, o que faz com que a administração fique impedida de rever o ato, pois este teria ingressado definitivamente no patrimônio jurídico do administrado, não podendo atentar-se contra o direito adquirido e o ato juridicamente perfeito.

Por fim, não é o momento da aposentadoria o Juízo Final administrativo para o servidor, nem mesmo os Tribunais de Contas o purgatório do serviço público, não podendo a vida funcional inteira do aposentado ser revista quando da análise da legalidade da aposentadoria, mas apenas aquelas questões dentro do qüinqüênio anterior a aposentação e outras surgidas no momento da passagem para a inatividade.


Notas

1 A lei 9.784/99 estabelece que "decai" em cinco anos o "direito" da Administração rever os seus atos

2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 19a edição, Ed. Saraiva, São Paulo - 1995

3 FILHO. José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. fl. 97. 6ª Edição. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2000

4 Exemplo retirado da mesma obra citada na nota nº 1.

5 Salvo as exceções expressamente criadas por lei.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAETANO, Fabiano de Lima. O Juízo Final, o servidor público, o Tribunal de Contas e o purgatório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 348, 20 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5352. Acesso em: 28 mar. 2024.