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O início da personalidade civil e os direitos do nascituro

O início da personalidade civil e os direitos do nascituro

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O conceito de nascituro é pacífico na doutrina e pode ser entendido como “aquele que, estando concebido, ainda não nasceu”. Os direitos relacionados ao nascituro são um campo de intensa batalha legislativa.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar os direitos do nascituro e sua posição no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, realizou-se uma análise das teorias acerca do início da personalidade jurídica, considerando que só é detentor de direitos e obrigações quem possui personalidade. Foram analisadas as teorias concepcionista, da personalidade condicional e natalista, esta última, consagrada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo pelo Código Civil em seu artigo 2º. Por fim, foi realizada uma análise pormenorizada de quais são, efetivamente, os direitos do nascituro e quais proteções eles garantem ao ser concebido mas que ainda não nasceu. Foi analisado, ainda, o Projeto de Lei 478 de 2007, conhecido como Estatuto do Nascituro, e quais alterações ele pretende realizar na legislação pátria.

PALAVRAS CHAVE: Direitos do nascituro. Personalidade civil. Estatuto do nascituro.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Teorias acerca do início da personalidade. 1.1. Teoria concepcionista. 1.2. Teoria da personalidade condicional. 1.3. Teoria natalista. 2. Personalidade e capacidade jurídica. 3. Direitos do nascituro. Considerações finais.


INTRODUÇÃO

Os direitos do nascituro são um campo de intensa batalha legislativa. Embora o ordenamento jurídico tenha permanecido praticamente inalterado no último século, diversas propostas de lei tramitaram no Congresso Nacional. As de viés mais progressista tentam consolidar a teoria natalista e conferir ao nascituro mera expectativa de direito, de modo que os direitos da pessoa nascida sempre prevaleceriam aos daquele. Já os conservadores fizeram diversas investidas, que se intensificaram na última década, no intuito de equiparar o nascituro ao ser humano já nascido, conferindo-lhe todos os direitos previstos no ordenamento jurídico pátrio.

Contudo, para que as leis possam ser acolhidas pelo Direito brasileiro, não basta sua aprovação nas casas legislativas. Para surtir efeitos, estas devem estar em consonância com os princípios democráticos que regem a Constituição Federal. Neste sentido, se torna imperioso analisar o início da personalidade civil do ser humano, ou seja, o momento em que ele se torna sujeito de direitos e deveres e ganha a proteção do ordenamento jurídico. Somente assim será possível entender com mais clareza a discussão acerca dos direitos do nascituro, ou ainda, se este possui direitos ou não, e quais são eles.

O conceito de nascituro é pacífico na doutrina e pode ser entendido como “aquele que, estando concebido, ainda não nasceu”, conforme conceitua Maria Helena Diniz (1998, p. 334). O jurista Rudolf Von Ihering afirma que em todo o Direito, o que se faz mister considerar, em primeiro lugar é o sujeito, ou seja, as pessoas. Conforme assevera Washington de Barros Monteiro (2012), a palavra “pessoa” começou a ser utilizada na linguagem teatral e significava “máscara”. Por fazer ecoar a voz do ator, a máscara era uma persona. Mais tarde, “pessoa” começou a exprimir a atuação de cada indivíduo e, por fim, passou a expressar o próprio indivíduo que representava os papéis. Ainda segundo Monteiro, a palavra em questão, atualmente, pode ser interpretada em três acepções: vulgar, filosófica e jurídica.

Na acepção vulgar, pessoa é sinônimo de entre humano. […] Na acepção filosófica, pessoa é o ente que realiza seu fim moral e emprega sua atividade de modo consciente. […] Na acepção jurídica, pessoa é o ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. Nesse sentido, pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica. No direito moderno, todo ser humano é pessoa no sentido jurídico. Mas, além dos homens, são também dotadas de personalidade certas organizações ou coletividades, que tendem à consecução de fins comuns (MONTEIRO, 2012, p. 72).

Nesse sentido, é possível vislumbrar que para o Direito há duas espécies de pessoas, as naturais, também denominadas de pessoas físicas ou de existência visível, ou seja, o ser humano com vida, e as pessoas coletivas, também conhecidas por pessoas jurídicas, entes que o Direito também confere personalidade.

Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 70) ressalta que “o conceito de personalidade está umbilicalmente ligado ao de pessoa”, tendo em vista que todo ser humano que nasce com vida, torna-se uma pessoa e, portanto, adquire personalidade. Desta forma, a personalidade é o atributo da pessoa como sujeito de direitos, ou seja, a aptidão de ser sujeito de direitos e obrigações.

Neste sentido, assevera Sérgio Addalla Semião (2000, p. 26), “a personalidade civil constitui matéria da maior relevância, por ser matriz de todos os direitos privados. Para ela converge toda a ordem jurídica ao regular os direitos e as obrigações do homem na vida social”.

Sendo assim, forçoso reconhecer que para que o ser humano seja detentor de direitos e obrigações a personalidade é requisito obrigatório, sendo necessário, portanto, fixar o marco inicial em que o homem começa a existir juridicamente, ou seja, a partir de quando passa a ter personalidade. Neste ponto a doutrina se divide em três teorias, sejam elas: teoria concepcionista, teoria da personalidade condicional e teoria natalista.


1. TEORIAS ACERCA DO INÍCIO DA PERSONALIDADE

1.1 TEORIA CONCEPCIONISTA

Os adeptos da Teoria Concepcionista, dos quais se destacam Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua e Carlos de Carvalho defendem a ideia de que a personalidade civil começa a partir da concepção, sob o argumento de que, tendo o nascituro direitos previstos pelo ordenamento jurídico, deveria ser considerado uma pessoa, uma vez que só pessoa é sujeito de direitos. Explica Semião:

Falar em direitos do nascituro é reconhecer-lhe qualidade de pessoa, porque, juridicamente, todo titular de direito é pessoa. “Pessoa”, em liguagem jurídica, é exatamente o sujeito ou o titular de qualquer direito. Dito que o nascituro tem direitos, estar-se-á, ipso facto, afirmando que ele é sujeito de direitos e, portanto, pessoa (SEMIÃO, 2000, p. 35).

Segundo os concepcionistas, o ordenamento jurídico brasileiro dá diversas indicações de que a personalidade começa a partir da concepção, porquanto, o Direito Penal pune o aborto no capítulo de crimes contra a vida, protegendo o nascituro como se fosse um ser humano. Alegam ainda, que o nascituro pode ser representado por um curador e que o Direito Processual autoriza a posse em seu nome. O Direito de Família autoriza o reconhecimento de filhos ainda por nascer e o Direito Sucessório prevê a doação de bens para o nascituro (SEMIÃO, 2000).

Deste modo, para os autores acima mencionados, o nascituro é considerado um ser humano desde a concepção, uma vez que o Direito o protege como se já tivesse nascido. Neste sentido, Gonçalves cita a Professora Silmara J. A. Chinelato e Almeida:

Mesmo que ao nascituro fosse reconhecido apenas um status ou um direito, ainda assim seria forçoso reconhecer-lhe a personalidade, porque não há direito ou status sem sujeito, nem há sujeito de direito que tenha completa e integral capacidade jurídica (de direito ou de fato), que se refere sempre a certos e determinados direitos particularmente considerados. Não há meia personalidade ou personalidade parcial. Por isso se afirma que a capacidade é a medida da personalidade. Esta é integral ou não existe (GONÇALVES apud ALMEIDA, 2007, p. 81).

1.2 TEORIA DA PERSONALIDADE CONDICIONAL

Outra escola que merece destaque é a chamada Teoria da Personalidade Condicional, que tem como maiores expoentes Pablo Stolze Gagliano, Eduardo Espínola e Maria Helena Diniz. De acordo com estes doutrinadores, o nascituro possui direitos desde a concepção, porém sob condição suspensiva, ou seja, caso o feto nasça com vida, os direitos do nascituro serão reconhecidos retroativamente à data da concepção.

Neste sentido, Pablo Stolze Gagliano (2012) sustenta que a personalidade condicional do nascituro lhe conferiria apenas os direitos personalíssimos, sem conteúdo patrimonial, como por exemplo o direito à vida ou à gestação saudável. Já os direitos patrimoniais, como a herança e até mesmo celebração de contratos, estariam sujeitos ao nascimento com vida, sob condição suspensiva. Similar é o entendimento de Maria Helena Diniz:

[...] na vida intrauterina, tem o nascituro personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos e aos da personalidade, passando a ter a personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais, que permaneciam em estado potencial, somente com o nascimento com vida. Se nascer com vida, adquire personalidade jurídica material, mas se tal não ocorrer, nenhum direito patrimonial terá (DINIZ, 1999, p. 9).

Sendo assim, mesmo que o nascituro não tenha personalidade jurídica, a simples sinalização do ordenamento no sentido de resguardar qualquer direito que seja, implicaria na proteção do direito à vida, porquanto, sem o direito à vida o nascituro não poderá usufruir de nenhum outro direito (GAGLIANO, 2012).

1.3 TEORIA NATALISTA

Não obstante a filiação de grandes juristas às teorias acima mencionadas, a legislação e doutrina majoritária abraçam a Teoria Natalista. O entendimento de que a personalidade civil se inicia apenas a partir do nascimento com vida, conforme expressamente prevê o artigo 2º do Código Civil Brasileiro é defendido por nomes como Carlos Roberto Gonçalves, Caio Mário da Silva Pereira, Pontes de Miranda, Sílvio Rodrigues, Sérgio Abdalla Semião, entre outros.

De acordo com a teoria natalista o nascituro é mera expectativa de pessoa, uma vez que tem mera expectativa de direito, que só será confirmada com o nascimento com vida. Sustentam ainda, que a legislação elencou taxativamente quais direitos estariam assegurados ao nascituro, o que fortalece a ideia de que o feto não pode ser considerado uma pessoa. Neste sentido, afirma Semião (2000, p. 41) “Fosse ele pessoa, todos os direitos subjetivos lhe seriam conferidos automaticamente, sem necessidade da lei decliná-los um a um.”

De acordo com Sílvio Rodrigues, a legislação não concede personalidade ao nascituro até o seu nascimento com vida. Seus direitos, porém, são resguardados, com base no fato de que provavelmente ele nascerá com vida, uma vez que a maioria das gestações resultam no nascimento de criança viva. Segundo o autor, o ordenamento jurídico quis preservar os interesses futuros do nascituro, resguardando direitos que provavelmente serão seus. No mesmo sentido, assevera Caio Mário da Silva Pereira:

O nascituro não é ainda uma pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas, se se frustra, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já ele é sujeito de direito (PEREIRA, 2002, p. 144-145).

Importante ressaltar que o nascimento ocorre quando a criança é separada do ventre materno, sendo irrelevante se o parto foi natural ou com intervenção cirúrgica. Apesar de Monteiro (2012) entender que a criança não terá nascido enquanto estiver ligada pelo cordão umbilical, a doutrina majoritária aponta no sentido de que a ruptura do cordão é irrelevante, bastando que haja a separação do corpo da mãe e do filho, de forma a constituírem dois corpos com vida orgânica própria. Porém, todos os adeptos da teoria natalista concordam que antes do nascimento o feto não pode ser considerado uma pessoa, detentora de direitos e deveres como os demais cidadãos, uma vez que é parte das vísceras maternas, sendo dependente de sua genitora para que sobreviva. Neste sentido, corrobora o entendimento de Semião:

Antes do parto, o feto não é pessoa, é uma porção da sua mãe, uma parte das vísceras desta. […] Antes do nascimento o nascituro não tem vida própria e independente, pois é alimentado pelo sangue materno. Até operar-se o nascimento, o nascituro está ligado ao corpo materno, em razão mesmo da sua existência, inteiramente dependente, alimentado por intermédio da placenta, cuja vida só tem existência intrauterinamente (SEMIÃO, 2000, p. 152).

Entretanto, para que se considere que a criança nasceu com vida, é imprescindível que tenha respirado. Carlos Roberto Gonçalves explica “Para se dizer que nasceu com vida, todavia, é necessário que haja respirado. Se respirou, viveu, ainda que tenha perecido em seguida. Lavram-se, neste caso, dois assentos, o de nascimento e o de óbito” (GONÇALVES, 2007, p. 77).

É de extrema importância para o Direito a constatação de se a criança nasceu com vida ou não, sobretudo no campo sucessório. É possível constatar se chegou ar aos pulmões do recém-nascido, tradicionalmente, com a realização do exame denominado docimasia hidrostática de Galeno, que consiste na submersão dos pulmões em água. O que teve contato com o ar submergirá enquanto o que nunca foi inflado afundará.

O exame é utilizado, por exemplo, numa situação em que um homem engravida uma mulher e morre antes do nascimento de seu filho. Se a criança chegou a respirar logo após a separação do corpo da mãe, mesmo que por um segundo, terá vivido, recebido a herança de seu pai e transmitido para sua genitora. Entretanto, se restar comprovado que o nascituro sequer chegou a respirar, ou seja, é natimorto, o patrimônio do homem será transmitido aos seus outros herdeiros, excluindo a mãe do natimorto.

Deste modo, a realização dos exames que comprovem o contato do ar atmosférico com os pulmões do infante é fundamental em situações como a descrita acima, porquanto, a partir deste momento que se inicia a personalidade jurídica do ser humano e, consequentemente, o gozo de seus direitos e garantias fundamentais que antes eram resguardados apenas como hipótese, mera expectativa.

Vale pontuar que, embora a prática do aborto esteja tipificada no Código Penal na parte dos crimes contra a pessoa, os natalistas entendem que a proteção que o Código fornece ao nascituro não é pelo fato de considerá-lo pessoa, porquanto, ao prever as hipóteses de aborto necessário e moral o sistema jurídico-penal evidencia expressamente a desigualdade de tratamento entre o nascituro e os direitos da pessoa já nascida. Neste sentido, assevera Semião:

“Dessarte, para os natalistas, o aborto para salvar a mãe ou para não pôr em perigo a sua saúde, demonstra que não há um conflito entre bens iguais, ou seja, vida da pessoa por nascer contra a vida da pessoa já nascida, que no exemplo, é a vida da gestante.” (SEMIÃO, 2000. p.45).


2. PERSONALIDADE E CAPACIDADE JURÍDICA

Personalidade, capacidade e o conceito jurídico de pessoa estão intimamente ligados, de forma que sem personalidade, não há capacidade e, portanto, não há pessoa, sujeito de direitos para o ordenamento jurídico. Nos dizeres de Monteiro (2012, p. 77) “capacidade é a aptidão para adquirir direitos e exercer, por si ou por outrem, atos da vida civil. O conjunto desses poderes constitui a personalidade, que, localizando-se ou concretizando-se num ente, forma a pessoa.” Carlos Roberto Gonçalves corrobora com este entendimento ao afirmar:

Personalidade e capacidade completam-se: de nada valeria a personalidade sem a capacidade jurídica, que se ajusta assim ao conteúdo da personalidade, na mesma e certa medida em que a utilização do direito integra a ideia de ser alguém titular dele. Com este sentido genérico não há restrições à capacidade, porque todo direito se materializa na efetivação ou está apto a concretizar-se. A privação total de capacidade implicaria a frustração da personalidade: se ao homem, como sujeito de direito, fosse negada a capacidade genérica para adquiri-lo, a consequência seria o seu aniquilamento do mundo jurídico. Só não há capacidade de aquisição de direitos onde falta personalidade, como no caso do nascituro, por exemplo (GONÇALVES, 2007, p. 72).

A capacidade se divide em capacidade de direito e de fato e, como visto, pode ser conceituada como a aptidão para ser sujeito de direito e exercer os atos da vida civil. A capacidade de direito, ou de gozo, como prefere Monteiro (2012) é a inerente ao ser humano, que todas as pessoas possuem e que dela jamais podem ser privadas, assemelhando-se muito à personalidade. De modo diverso ocorre com a legitimação, que consiste no requisito para exercer determinados atos da vida civil. Mesmo tendo capacidade de gozo, pode ser que a pessoa não tenha legitimação para figurar em determinada relação jurídica, é o que ocorre com os menores.

Por sua vez, a capacidade de fato consiste na aptidão de exercer os direitos de maneira irrestrita, é a faculdade de dispor livremente dos direitos resguardados pela legislação. Ao contrário da capacidade de direito, a capacidade de fato pode ser retirada em determinadas circunstâncias, como ocorre com os pródigos, por exemplo, que perdem a capacidade de fato para alienar certos bens, porém, mantém a capacidade de direito.

Sendo assim, a capacidade de fato encontra-se vinculada a fatores objetivos como a idade e o estado de saúde. Vale lembrar que a ausência de capacidade de fato não suprime a capacidade de direito, sendo suprida pela representação. O incapaz exerce seus direitos, adquiridos com a personalidade, por meio dos representantes legais.

Noutro giro, cabe destacar que a personalidade em si não é um direito, mas o que apoia todos os direitos do ser humano. É o alicerce, o objeto do direito, o primeiro bem que a pessoa recebe ao nascer. Neste sentido, surgem os direitos da personalidade, que consistem no direito quase natural que a pessoa tem de defender o que lhe é próprio como a liberdade, a vida, a identidade, a honra e a reputação. Conforme ensina Maria Helena Diniz:

Os direitos da personalidade são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis. São absolutos, ou de exclusão, por serem oponíveis erga omnes, por conterem em si um dever geral de abstenção. São extrapatrimoniais por serem insuscetíveis de aferição econômica. […] São intransmissíveis, visto que não podem ser transferidos à esfera jurídica de outrem. […] São, em regra, indisponíveis, insuscetíveis de disposição, mas há temperamentos quanto a isso. Poder-se-á, p. ex., admitir sua disponibilidade em prol do interesse social. […] São irrenunciáveis já que não poderão ultrapassar a esfera de seu titular. São impenhoráveis e imprescritíveis, não se extinguindo nem pelo uso, nem pela inércia na pretensão de defendê-los, e são insuscetíveis de penhora (DINIZ, 2012, p. 135).


3. DIREITOS DO NASCITURO

Compulsando a legislação brasileira acerca dos direitos do nascituro é possível observar que eles estão, em sua grande maioria, previstos no âmbito do Direito Civil, principalmente nos direitos de sucessão, de cunho predominantemente patrimonialista. Como visto, para adquirir os direitos previstos aos demais cidadãos é necessário adquirir personalidade. Deste modo, o artigo 2º do Código Civil, que trata da personalidade, é a base para que se analise efetivamente quem tem ou não direitos e quais são eles, in verbis:

“Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”

Um rápido passar de olhos no texto legal pode fazer parecer que no primeiro momento a lei adota a teoria natalista para depois se contradizer e filiar-se à teoria concepcionista. Parte da doutrina, ao defender a teoria concepcionista, corrobora com a tentativa de ampliar o texto para além da vontade do legislador, que redigiu o artigo com clareza e domínio da língua portuguesa, para que não houvesse dúvida quanto ao início da personalidade.

Para interpretar o artigo acima mencionado, é necessário sua divisão em duas orações, como já fez o legislador. A primeira parte, que aduz, “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”, não gera qualquer tipo de dúvidas nem discussão, porquanto, afirma que o nascimento empresta universalidade à personalidade civil.

Entretanto, a segunda parte do artigo que gera polêmica, quando se afirma que “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, surgem as divergências doutrinárias que, data vênia, não deveriam existir devido a clareza do texto legal.

De acordo com Semião (2000), ao se atribuir à segunda oração da norma um poder sem limites, será afirmado nela o inteiro teor da primeira oração, uma vez que, se o nascituro for considerado sujeito de direitos, a personalidade começará a partir da concepção, e não do nascimento, contradizendo expressamente o texto legal, a saber, a primeira parte do artigo 2º do Código Civil. Ao admitir que a segunda parte do artigo abrange a primeira, o raciocínio lógico leva à conclusão de que aquela absorve esta, o que faria com que a primeira oração fosse letra morta no texto legal, algo impensável.

O que se observa é que as duas partes do artigo discorrem sobre duas situações distintas, em duas orações coordenadas e independentes. Condensando os ensinamentos dos melhores gramáticos da língua portuguesa, dentre eles Domingos Paschoal Cegalla (1997), é possível extrair que a conjunção adversativa “mas”, que separa a primeira e segunda parte do artigo, exprime oposição, ideias opostas. Deste modo, ao colocar a conjunção “mas” no meio do artigo o legislador transformou as duas partes em orações adversativas não subordinativas, pois possuem significado próprio e independente, são, portanto, orações coordenadas adversativas.

Sendo as duas partes do artigo 2º do Código Civil independentes, devem ser interpretadas em conjunto, sob pena de uma anular a outra, o que não pode ser admitido. Diante do exposto, é de se concluir que a lei põe a salvo os direitos do nascituro, que não correspondem aos direitos do nascido. A legislação busca resguardar, na verdade, que caso o feto nasça com vida – e é de se esperar que se nasça com vida, por simples probabilidade –, haja a transformação do que era mera expectativa de direito em direitos de fato. Neste sentido, afirma Semião:

Infere-se disso que […] ao dizer que a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro; não teve a intenção de conceder direitos atuais ao nascituro, mas sim, a de colocá-los (em algum lugar) “a salvo” de quaisquer perigos eventuais ou iminentes, resguardando-os e vigiando-os, como expectativas, caso haja o nascimento com vida (SEMIÃO, 2000, p. 68).

Destarte, os direitos do nascituro que a lei põe a salvo, limitam-se àqueles que são especificamente previstos em lei, são um rol taxativo. Esta afirmação encontra respaldo no fato de que a lei separa os direitos da pessoa nascida, que adquiriu personalidade, dos direitos do ser por nascer, do nascituro, o que justifica a delimitação expressa no texto legal. Não seria crível esperar que o legislador separasse alguns direitos para o ser por nascer se o rol não fosse taxativo, ora, pois se o nascituro fosse sujeito de direitos não haveria necessidade alguma de tal separação, considerando que todos os direitos da pessoa nascida lhe seriam assegurados. Neste sentido, Semião conclui:

Os direitos do nascituro, são, portanto, aqueles que se acham expressa e taxativamente previstos na lei, e dentre os quais, à guisa de exemplos, encontram-se: a posse da herança em nome do nascituro; curatela do nascituro; legitimação do filho, estando concebido pelo casamento posterior à concepção; reconhecimento de paternidade; proteção à vida do nascituro pela punição do aborto provocado. Caso o Código Civil tivesse adotado a teoria concepcionista, não haveria nenhuma necessidade de fixar, um por um, os direitos do nascituro, pois, sendo ele considerado pessoa, teria todos os direitos inerentes à personalidade civil plena (SEMIÃO, 2000, p. 69-70).

É possível observar que a aferição dos direitos do nascituro se dá no campo de debate sobre qual teoria acerca do início da personalidade o ordenamento jurídico brasileiro adotou. Os concepcionalistas, por acreditarem que o nascituro tem personalidade, defendem maior amplitude aos direitos do ser por nascer. Já os natalistas, defendem que a pessoa só se torna sujeito de direitos após o nascimento com vida, possuindo o nascituro mera expectativa de direitos, desde que taxativamente prevista em lei, nos moldes do artigo 2º do Código Civil.

Desta maneira, é seguro dizer que a maior parte da doutrina e jurisprudência admitem que o ordenamento jurídico brasileiro adotou a teoria natalista, tendo em vista tanto o disposto no Código Civil quanto na Constituição Federal. Ademais, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou na votação da ADI 3510, ocorrida em 29 de maio de 2008, no sentido de que um embrião não pode ser considerado um ser humano. Naquela oportunidade, a maioria dos Ministros votaram pela constitucionalidade da lei que trata de biossegurança e regulamenta as pesquisas com células-tronco embrionárias.

Ocorre que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 478 de 2007, que pretende criar o Estatuto do Nascituro. Embora o projeto, em seu artigo 3º, reitere a primeira parte do artigo 2º do Código Civil ao dizer que “o nascituro adquire personalidade jurídica ao nascer com vida”, assegura diversos direitos ao nascituro, em detrimento dos direitos das pessoas já nascidas, em patente contradição. Na verdade, o que se percebe é que o projeto de lei não se apega à técnica jurídica, contendo vários artigos prolixos e contraditórios. Ignora, ainda, o fato de que para ser detentor de direitos e obrigações o “ser” deve possuir personalidade jurídica.

Os autores do projeto não discorrem sobre os motivos que os levaram a propor as grandes alterações legislativas em pautas, não trazem nenhum argumento de cunho científico ou jurídico para conceder direitos a um ser sem personalidade jurídica. Invocam tão somente premissas religiosas de que a vida se inicia a partir da concepção que poderá ocorrer dentro ou fora do corpo, em nítida afronta à laicidade do Estado.

Embora o projeto tenha sido aprovado na Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados em junho de 2013, onde o relator foi o ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o que se espera é seu arquivamento definitivo na Comissão de Constituição e Justiça, considerando que o texto do projeto é nitidamente inconstitucional por ferir os princípios basilares da democracia e justiça consagrados na Constituição Federal.

Vale ressaltar que o projeto vai na contramão do decidido pelo Supremo Tribunal Federal na votação da ADI 3510, uma vez que torna crime o congelamento e manipulação de embriões para desenvolvimento de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias. O discurso fundamentalista religioso é utilizado para justificar severas afrontas aos direitos humanos previstos na Constituição, o que não pode ser acatado pelos operadores do Direito.

Além de transformar o crime de aborto em hediondo, o Estatuto do Nascituro prevê pena de detenção de até 3 (três) anos para quem “causar culposamente a morte de nascituro”, situação impensável, considerando que a lei penal considera impossível a tipificação do aborto na modalidade culposa. Outro aspecto de que o projeto trata, também na contramão do decidido pelo STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 54, é o da proibição total de se realizar o aborto eugênico, ou seja, o aborto realizado nos casos em que fica comprovado que o feto não tem condições de sobreviver devido a sérias anomalias físicas e genéticas, como no caso de anencefalia.

Ocorre que, caso o projeto seja aprovado, a consequência mais grave e perversa de tal engodo jurídico recairá sobre as mulheres. O Estatuto do Nascituro proíbe o aborto realizado quando a gravidez for resultado de estupro, prevê o pagamento de “pensão” ao nascituro até a identificação do agressor, que a partir daí, seria o responsável por ajudar na criação do filho. Além de afrontar o princípio da dignidade humana e os direitos à liberdade, reprodução e sexualidade, obrigar a mulher a carregar um feto resultado de uma agressão sexual é uma verdadeira tortura psicológica.

A violência contra a mulher, sobretudo a sexual, é prática reiterada no Brasil. O poder público deve criar ferramentas para coibir os abusos sofridos diariamente por suas cidadãs e não leis que estimulem a agressão sexual, uma vez que transfere ao criminoso o status de “pai” e aumenta o sentimento de culpa da vítima, que terá de conviver com seu algoz e criar um filho deste.

Restou demonstrado que o Projeto de Lei nº 478 de 2007 fere diversos princípios e garantias fundamentais previstas na Constituição Federal. Possui um texto obscuro, sem fundamentação e que pode atrasar o desenvolvimento do Brasil, tanto culturalmente ao promover a desigualdade, o ódio e a violência, quanto cientificamente, ao proibir pesquisas com células-tronco embrionárias.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, foi possível constatar que a personalidade jurídica é o requisito indispensável para que qualquer pessoa seja considerada sujeito de direitos e obrigações. Neste sentido, apesar de ilustres doutrinadores defenderem a teoria concepcionista, ou ainda, a teoria da personalidade condicional, que conferem direitos mais amplos ao nascituro, como os direitos da personalidade, o artigo 2º do Código Civil aponta claramente que a teoria adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro é a natalista.

De acordo com o referido artigo, o ser humano só adquire personalidade jurídica ao nascer com vida, ou seja, a partir do momento que o ar atmosférico entra em contato com os pulmões do recém-nascido. Considerando que o nascituro ainda não é pessoa, portanto, não possui personalidade civil, os direitos que lhe são resguardados não podem corresponder aos mesmos direitos da pessoa já viva, sob pena de que se anule parte do texto legal, o que seria inadmissível.

Deste modo, forçoso admitir que o nascituro não detém personalidade e, consequentemente, não detém capacidade de direito ou de fato, de modo que não lhe são assegurados os mesmos direitos de uma pessoa nascida. Entretanto, a legislação menciona direitos do nascituro e os põe a salvo desde a concepção, o que cria certa confusão na doutrina em estabelecer quais seriam tais direitos.

Destarte, conclui-se que os mencionados direitos seriam apenas aqueles taxativamente previstos na lei, de caráter majoritariamente patrimonial, como o direito à herança, à posse em nome de nascituro, à curatela, entre outros, que desde a concepção estão assegurados para caso ocorra o nascimento com vida, que por simples probabilidade, provavelmente ocorrerá.

Foi possível constatar, ainda, que o Projeto de Lei nº 478 de 2007, popularmente conhecido como Estatuto do Nascituro, é um texto eivado de inconstitucionalidade e controvérsias. Na verdade, faltou clareza e técnica jurídica aos elaboradores do projeto, que se contradizem a todo instante, utilizando expressões obscuras e com sentido muito amplo, fácil de ser distorcido. O referido Projeto cria tipos penais injustificados, como a figura do aborto culposo, além de proibir de qualquer forma a manipulação de embriões humanos, como os utilizados para pesquisas científicas, o que representaria um verdadeiro retrocesso na legislação brasileira.


REFERÊNCIAS

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MARTINS, Guilherme Henrique Ferreira. O início da personalidade civil e os direitos do nascituro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4936, 5 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53671. Acesso em: 29 mar. 2024.