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Estatuto constitucional das relações contratuais

Estatuto constitucional das relações contratuais

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Propõe-se o estudo dos novos princípios contratuais: autonomia privada, boa-fé objetiva, função social do contrato e justiça contratual, que formam o estatuto constitucional das relações contratuais.

 

  1. Introdução

 

 

Quatro são os novos princípios contratuais (para alguns novos paradigmas contratuais, novas diretrizes contratuais ou nova teoria contratual): Autonomia Privada; Boa Fé Objetiva; Função Social do Contrato; Justiça Contratual, que formam o estatuto constitucional das relações contratuais.

 

Explica-se: como é sabido, a excessiva rigidez orientadora das relações obrigacionais tem sido paulatinamente substituída por novos paradigmas voltados à construção de uma sociedade mais justa, igual e solidária, fundada na dignidade da pessoa humana, mesmo que isso importe na flexibilização, reavaliação ou revisitação dos parâmetros obrigacionais até então adotados.

 

Nisso há uma forte aproximação principiológica do CDC e do CC2002, todavia, no CDC, a principiologia é aplicada de forma mais incisiva e com maior rigor, eis que visa reequilibrar a relação jurídica de consumo, defendendo o consumidor (princípio da proteção integral do consumidor), ante o fato de ser este a parte vulnerável da relação e ante a situação de assimetria própria da relação jurídica de consumo. Por isso é direito básico do consumidor a segurança[1] (Art. 6º I CDC), a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações (art. 6º II CDC), a informação[2] (art. 6º III CDC) e a proteção contra publicidade, métodos comerciais, práticas e cláusulas desleais ou abusivas (art. 6º IV CDC). Em outras palavras, a assimetria da relação jurídica, bem como a essencialidade do bem ou serviço perseguido serão fatores que fortalecerão a aplicação dessa principiologia. Lado outro, nos contratos civis paritários e livremente negociados entre as partes, menor será o dirigismo contratual (art. 421, parágrafo único, CC e art. 3º VIII da Lei da Liberdade Econômica).

 

 

Ressalte-se que os princípios da liberdade contratual, da força obrigatória (pactua sunt servanda) e da relatividade contratual ainda persistem, só que agora somados a essa nova principiologia lastreada na CF88. Não se trata de revisar as categorias tradicionais, mas de acolher uma racionalidade nova. Em outras palavras, vivencia-se uma hipercomplexidade, uma amálgama entre os princípios clássicos e contemporâneos, como modelos que convivem simultaneamente, interagindo em uma linha de ponderação de interesses.

 

Assim, os princípios abaixo analisados, notadamente a boa fé objetiva, função social do contrato e justiça contratual, permitem a aplicação dos princípios constitucionais nas relações privadas, notadamente a dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade material. A despatrimonialização e a repersonalização do direito privado, representada pela célebre opção do “ser” em detrimento do “ter”, permitem o influxo da dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade material nas relações contratuais, através dos princípios da boa fé objetiva, função social do contrato e justiça contratual. Enfim, consagram um direito privado constitucionalizado.

 

Sabemos que o CC2002 traz três diretrizes gerais: socialidade, eticidade, operabilidade. A primeira é fonte da função social do contrato. A segunda é fonte da boa fé objetiva. A operabilidade nada mais é do que a aplicação justa e eficiente do direito ao caso concreto, realizando o direito na sua concretude.

 

Analisemos então cada um dos novos princípios contratuais, aplicáveis, na verdade, ao direito civil como um todo e direito do consumidor. Aplicável ainda ao direito do trabalho[3], direito administrativo[4], e também no direito processual civil (art. 5º NCPC) e direito processual penal (art. 3º CPP c/c art. 5º NCPC)[5].  

 

 

 

2. Autonomia Privada

 

Difere da autonomia da vontade. Autonomia da vontade tem conotação subjetiva, psicológica, dizendo respeito à possibilidade reconhecida ao titular de celebrar, ou não, negócios jurídicos. Já a autonomia privada marca o poder da vontade, sendo concernente ao poder dos particulares de regular, pelo exercício da própria vontade, o conteúdo e disciplina dos negócios que resolverem entabular. Com base na autonomia da vontade, o vínculo contratual era concebido como resultado da simples fusão entre manifestações de vontade. Em sede de autonomia privada, admite-se a vontade como suporte fático, porém acrescida de regulamentação legal, a fim de que realize interesses dignos de tutela, daí o importante papel da lei (através de normas supletivas ou imperativas) e do juiz (na aplicação das cláusulas gerais).

 

Seu fundamento é o princípio da liberdade. Mas uma liberdade qualificada, não meramente formal. Em outras palavras, o exercício da autonomia privada deve ser efetivo, e não meramente formal. A autonomia privada é forjada na liberdade do ser humano de edificar a sua própria vida, exercendo o seu consentimento em suas escolhas existenciais e no desenvolvimento das relações patrimoniais. O contrato é instrumento de realização da pessoa humana no âmbito patrimonial. Por isso que nos contratos de consumo, há uma maior proteção à parte vulnerável (o consumidor), exatamente em razão da mitigação de sua autonomia privada. Na mesma trilha, o CC2002 também traz proteção ao aderente, quando regula os contratos civis de adesão, e protege ainda outros contratantes, dependendo do contrato.

 

A autonomia privada não é absoluta (afinal, tudo que é juridicamente garantido, é juridicamente limitado), encontrando limites em normas de ordem pública, como aquelas que regulam a boa fé objetiva, a função social do contrato e a justiça contratual, adiante analisadas. Há quem defenda que esses princípios não limitam a autonomia privada, ao contrário, a reforçam, fortalecem e a justificam constitucionalmente. Em outras palavras, esses princípios valorizam e legitimam a autonomia privada, equilibrando aquilo que a realidade tratou de desigualar, afinal o poder da vontade de uns é maior que o de outros.

 

Por fim, ressalte-se que há duas espécies de autonomia privada: a patrimonial e a existencial. A proteção à autonomia nas questões existenciais é muito mais intensa, já que as decisões neste campo situam-se numa esfera que deve ser protegida de intervenções externas. Diversamente da autonomia contratual, as liberdades existenciais não são meros instrumentos para a promoção de objetivos coletivos, por mais valiosos que o sejam, afinal, cabe ao ordenamento tutelar a esfera de autonomia privada do cidadão na sua dimensão mais relevante: o poder da pessoa humana de se autogovernar, enfim, de fazer escolhas existenciais e viver de acordo com elas, desde que não lese direitos de terceiros.[6] As situações jurídicas subjetivas existenciais não têm propriamente função social, porque são função social. Assim, percebemos a incidência de uma tutela qualitativamente diversa nas situações subjetivas existenciais e patrimoniais. Nestas, a vontade sofre limitações diante da principiologia constitucional, para garantir um tratamento materialmente igualitário às pessoas e o atendimento dos fins sociais da relação contratual. Já nas situações existenciais, a vontade tem trânsito garantido, mas a sua relevância ou não no caso concreto depende da ponderação entre a autonomia e os demais direitos da personalidade envolvidos, eis que o conteúdo mínimo da dignidade é irrenunciável.

 

 

 

3. Boa fé Objetiva

 

Ao contrário da boa fé subjetiva (consciência de estar atuando conforme o direito) a boa fé objetiva constitui cláusula ética, proba e moral (diretriz geral da eticidade), um padrão de conduta pautada na lealdade, confiança e legítima expectativa, presente em toda e qualquer obrigação, independente da vontade de seus partícipes. O fundamento de tal princípio é a solidariedade social e segurança jurídica. É por isso que se diz que a obrigação hoje é complexa (em razão da boa fé objetiva) e um processo que se desenvolve rumo ao adimplemento (direcionado à consecução dos seus fins, através de uma relação solidária e cooperativa entre as partes, pautada que é pelos princípios da boa fé objetiva e função social do contrato), tendo três fases: pré-negocial, negocial e pós-negocial. A boa fé objetiva pode ser traduzida no binômio: lealdade e confiança. As partes devem atuar de forma proba, ética e leal, respeitando as legítimas expectativas geradas pela relação negocial. A boa fé objetiva compreende um modelo de eticização de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de comportamento, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade, retidão e correção, de modo a não frustrar a legítima confiança e expectativa da outra parte. A conduta esperada é a conduta devida, de acordo com parâmetros sociais. Possui três funções (visão tridimensional da boa fé objetiva): interpretativa; limitativa ou de controle; integradora ou integrativa.

 

A primeira função (interpretativa – art. 113 do CC e art. 4º III CDC) significa que o interprete utilizará como critério de interpretação dos negócios jurídicos a ética da situação. Referido princípio atua como orientador do sentido da declaração de vontade, bem como no processo de fixação do conteúdo, assumindo assim feição interpretativa-integrativa. Não se trata tão somente de analisar como atuaria no negócio interpretado, o homem de sensibilidade e cuidado mediano/normal. Não se pretende tão somente investigar a vontade negocial de cada uma das partes isoladamente considerada, mas antes a vontade que todas as partes teriam consensualmente. Em outras palavras, trata-se da reconstrução de um consenso negocial hipotético, com apelo à boa fé, encarando as partes como pessoas sérias e honestas próprias de seu meio e nível sociocultural e profissional (art. 113 § 1º V CC). Daí que no tocante às relações de consumo, deve-se analisar a concepção coletiva de consumidor, mas sem olvidar daqueles grupos de consumidores hipervulneráveis: crianças e adolescentes, idosos, deficientes, analfabetos, doentes, etc.

 

A segunda função (limitativa ou de controle – art. 187 do CC e art. 51 IV do CDC) diz respeito ao abuso do direito (seja obrigacional, contratual, real, familiar, etc). Assim, comete abuso do direito aquele que ao exercê-lo excede manifestamente (uso ilegítimo, anormal, desproporcional, desarrazoado) os limites impostos pela boa fé objetiva (lealdade e confiança), bons costumes[7] ou pelos fins sociais e econômicos (função sócio-econômica). O abuso de direito é espécie de ato ilícito, independente de culpa, pois adota-se o critério objetivo-finalístico[8]. Sua inobservância pode levar à nulidade (art. 166 II e VI CC), quando o abuso se der na gênese do negócio, ou sua ineficácia (2035 pu CC) quando o abuso se der supervenientemente.

 

A doutrina costuma apontar como espécies do abuso do direito[9]: venire contra factum proprium[10][11] (proibição do comportamento contraditório[12], vedando que a conduta da parte entre em contradição com conduta anterior, geradora de uma justa expectativa na outra parte); supressio[13] (situação do direito que, não tendo, em certas circunstâncias, sido exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por violar a confiança gerada na outra parte, sendo, portanto, uma espécie de proibição do comportamento contraditório, caracterizada pelo fato que a conduta inicial consiste em um comportamento omissivo); surrectio (se a supressio é a perda de determinada faculdade jurídica em razão de um prolongado comportamento omissivo de seu titular, a surrectio é o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em razão do não exercício prolongado por outrem de um determinado direito, ou seja, é o outro lado da supressio, o que surge dela, em favor da outra parte); tu quoque[14] (também espécie de proibição do comportamento contraditório, invocação de uma situação ou comportamento que a própria parte outrora violou ou deixou de adotar; nada mais é do que a proibição de se valer da própria torpeza); duty to mitigate the loss[15][16] (dever de mitigar o próprio prejuízo); substancial performance[17][18] (inadimplemento mínimo - quando há um adimplemento substancial da obrigação, inviabilizando a resolução, mas não impedindo a cobrança do crédito, servindo, ainda, como limite da exceção do contrato não cumprido[19]). Em outras palavras, veda-se o desleal exercício do direito (inadimplemento mínimo), desleal não exercício do direito (venire, supressio e surrectio) e a desleal constituição do direito (tu quoque), além do dever de mitigar o próprio prejuízo.

 

Na terceira função (integrativa ou integradora – art. 422 do CC e art. 4º III CDC), a boa fé objetiva tem o condão de criar deveres anexos (ou deveres de conduta: proteção, informação e cooperação), anexando-se a toda e qualquer relação obrigacional como um padrão de comportamento, independentemente da vontade das partes. O não cumprimento desses deveres anexos gera uma espécie de inadimplemento, chamada de violação positiva do contrato, independente de culpa[20][21]. O dever de proteção[22] se traduz no comportamento tendente a salvaguardar o parceiro negociante de toda e qualquer lesão (ou ameaça de lesão) a direitos juridicamente relevantes, que derivem (que tenham sua causa) no negócio pactuado. O dever de informação[23] obriga o negociante a conceder ao outro amplo conhecimento acerca dos fatos relacionados ao objeto do negócio, para que todas as decisões possam ser fruto de uma vontade livre e real - livre consentimento informado ou consentimento genuíno. O dever de cooperação[24] pressupõe que as partes não pratiquem atos capazes de frustrar as finalidades materializadas no negócio, praticando sim atos que conduzam, permitam e facilitem o adimplemento, da forma menos gravosa ao devedor e da forma mais eficiente ao credor. Traduz a ideia de que os contratantes não são adversários, mas sim parceiros, devendo ambos cooperarem para a realização do fim contratual. Ressalte-se que os deveres anexos estão presentes tanto na fase pré-negocial[25][26]  como na fase pós-negocial[27], configuradores de uma responsabilidade extracontratual.

 

Por fim, é a boa fé objetiva (mas também a função social) que consagra a teoria das relações contratuais de fato[28] ou conduta socialmente típica (ou relação paracontratual), derivadas do contato social. Explica-se: Esta nova categoria dogmática tem como um dos seus principais alicerces a idéia de que, na contemporânea civilização de massas, segundo as concepções do tráfico jurídico, existem condutas geradoras de vínculos obrigacionais, fora da emissão de declarações de vontade que se dirijam à produção de tal efeito, antes derivadas de simples ofertas e aceitações de fato. Quer dizer, a utilização de bens ou serviços massificados ocasiona algumas vezes comportamentos que, pelo seu significado social típico, produzem as conseqüências jurídicas de uma caracterizada atuação negociatória, mas que dela se distinguem. Decorre da doutrina exposta que as relações contratuais se realizam através de duas formas típicas: uma delas é o negócio jurídico, designadamente o contrato – no qual a aparência de vontade e as expectativas criadas podem ceder, diante da falta de consciência da declaração ou incapacidade do declarante; a outra reporta-se às relações contratuais fáticas – onde a irrelevância do erro na declaração e das incapacidades (basta a capacidade de reconhecer o significado social típico) se justifica por exigências de segurança, de celeridade e demais condicionalismos do tráfico jurídico.

 

Fenômeno muito comum nos contratos eletrônicos, em razão da despersonalização do contrato, onde lateralmente à autonomia privada, posta-se a aparência (criada pelo ofertante) e a confiança (despertada pela aceitação), reforçando a segurança jurídica como expectativa de cumprimento.

 

Como dito, no tocante às relações contratuais de fato, sua base de sustentação é a boa fé objetiva. O princípio da boa-fé é condição para a própria formação das relações contratuais de fato (derivada de contato social). É a boa-fé que preenche o espaço vazio deixado pela ausência de vinculação volitiva dos contratos fáticos, alheios à existência de negócio jurídico fundante. A função primordial da aplicação do princípio da boa-fé na seara dos contratos é a de compatibilizar a lógica dedutiva do ordenamento jurídico às exigências éticas e aos padrões de conduta assumidos pela sociedade hodierna.

 

Soma-se isso à necessária objetivação do contrato. Não é a manifestação de vontade que define a natureza contratual de uma relação jurídica, mas sim as condições do tráfego social, chanceladas pelos comportamentos objetivamente considerados segundo valores do ordenamento jurídico que configuram o contrato como tal.

 

Lado outro, há de se apartar e desvincular os conceitos de contrato e relação jurídica. A complexidade das vinculações mantidas na sociedade dos dias atuais demanda uma releitura do instituto contratual, na medida em que a sua definição pautada no “negócio jurídico bilateral”, dependente de, “no mínimo, duas declarações de vontade, visando a criar, modificar e extinguir obrigações”, não explica muitas das relações estabelecidas no dia a dia[29], o que  demonstra a imperiosidade do desprendimento entre os conceitos de contrato e negócio jurídico.

 

Isso quer dizer, em uma palavra, que determinadas condutas humanas, porque relevantes à sociedade e porque vinculantes a outros sujeitos, carregam em si carga axiológica (reconhecida pelo próprio ordenamento) suficiente a constituir vínculos de natureza contratual. O conceito basilar da relação contratual, segundo o qual esta seria definida como acordo de vontades como expressão máxima da autonomia privada, é, agora, posto à prova. Já se admite a celebração de contrato, ou melhor, a vinculação de natureza contratual entre sujeitos pela simples realização de condutas típicas, mesmo que haja expressa negativa na pretensão de atrelamento com características de contrato[30]. E tal se deve, fundamentalmente, a justificativas de duas ordens: primeiro, porque a própria racionalidade fluída das relações cotidianas exige uma reformulação das relações contratuais (como exemplo típico têm-se os contratos derivados do tráfego de massa), e, em segundo lugar, porque o Direito passa a considerar (e a proteger) o cidadão, antes indiferenciado, na condição de sujeito qualificado e concreto, carente de necessidades, inserido em cotidianos complexos, de relações mais intricadas ainda. É preciso reconhecer, na atualidade, a existência de relações contratuais que não se enquadram na tradicional definição de contrato trazida pelo ordenamento, demonstrando-se de que forma o contato social pode fazer surgir contratos alheios à chancela (até então indispensável) da autonomia privada. E essa é uma incumbência da teoria das relações contratuais fáticas: a corrente doutrinária que concebe a possibilidade de se formarem relações contratuais mesmo sem a expressão da manifestação de vontade dos contratantes, e, indo mais além, até mesmo de existirem contratos em detrimento da inequívoca vontade contrária de celebração pelos indivíduos.

 

A explicação para tal concepção está nas condutas socialmente típicas, ou seja, comportamentos que, de per si, seriam suficientes a ensejar uma vinculação de natureza obrigacional, deixando-se a expressão da vontade em um segundo plano ou, até mesmo, totalmente desconsiderada. Essa nova conjuntura contratual é derivada, fundamentalmente, da efemeridade e do dinamismo de que está dotada a maioria das relações sociais do dia a dia (especialmente as de ordem contratual), cujos vínculos essenciais já não podem mais ser explicados pela mera consideração de se haver (ou não) expressão da vontade autônoma entre os indivíduos, agora contratantes.

 

Assim, os contratos passariam a ter origem em dois fundamentos basilares: i) os negócios jurídicos bilaterais, embasados na expressão da vontade e na máxima da autonomia privada; e ii) as condutas socialmente típicas, deflagradas por dois ou mais centros de interesses. É verdade que o contato social não se refere a qualquer vínculo interprivado mantido por sujeitos determinados no cotidiano. Para que um contrato fático surja neste contexto, é preciso que haja uma potencialidade negocial, vinculada à concatenação dos centros de interesses dos partícipes da relação jurídicas, imersos em um ambiente de condições voltadas ao comércio jurídico ou à prestação de serviços. Trata-se, portanto, de um “contato social qualificado”.

 

Percebe-se que as peculiaridades do cont(r)ato, neste contexto, estão intimamente relacionadas à lógica da vinculação em potencial. É preciso que haja a confluência de condutas em um campo propício à consolidação de um contrato propriamente dito, mesmo que não haja vontade direcionada a tal propósito. A intensidade do contato, dentro desse âmbito específico de potencialidade negocial, traz uma gama de interesses latentes e pode fazer com que as condutas dos centros de interesses se coordenem e sejam típicas, de maneira a desempenharem concatenadas, uma função social, configurando, assim, contrato sem negócio jurídico.

 

Conclui-se que os contratos sem negócio jurídico são, em síntese, a essência máxima das relações de contato social. Delas derivam vínculos eminentemente contratuais, nos quais é desarraigada a noção tradicional de imprescindibilidade do aspecto volitivo, entendido este, aqui, como a intencionalidade dos contratantes expressa e direcionada propriamente à conclusão do liame contratual. Enquanto a vontade seria elemento inerente à própria natureza do negócio jurídico, há de se reconhecer a existência de contratos sem negócio jurídico fundante, ou seja, relações contratuais em que não se vislumbra a existência de manifestação de vontade que não aquela relacionada à própria prática da conduta socialmente típica.

 

A perspectiva contemporânea desses contratos fáticos, contudo, trouxe à tona um papel de protagonismo assumido pelo princípio da boa fé. Como elemento intimamente ligado à figura do contrato, este princípio parece ter ganhado ainda mais destaque quando diante de relações contratuais desvinculadas da expressão volitiva dos contratantes. Chega-se a se reconhecer que é possível vislumbrar a boa-fé como pressuposto de existência das relações contratuais fáticas.

 

            Veja-se, portanto, que as relações contratuais derivadas de contato social transcendem os limites das relações pré-contratuais, estendendo-se aos vínculos socialmente relevantes e dotando de natureza contratual todos os liames que apresentam, como características fundamentais, a coordenação de centros de interesses, envoltos em uma condição de potencialidade negocial.

 

Já em relação à particularização das condutas sociais típicas ao ponto de formarem legítimas vinculações contratuais, o que se conclui é que as relações derivadas do contato social atingem o status contratual se imerso em um conjunto de fatores determinados, dentre os quais se destacam: i) a relevância social da relação; ii) a intensidade do contato; iii) a incidência protagonista do princípio da boa-fé; iv) a potencialidade negocial; v) e a coordenação típica de centros de interesses.

 

Não é o contato social em si que qualifica a contratualidade do vínculo estabelecida entre os sujeitos relacionados. Para além disso, o contato social só ganha ares contratuais se imerso em uma gama de fatores particularmente considerados, objetivamente determinados – contato social qualificado: a intensidade do contato, combinada com a relevância social do liame, imerso em um contexto de coordenação típica de centros de interesses, adjetivado pela incidência principiológica da boa-fé e da função social do (agora) contrato.

 

A potencialidade negocial também se apresenta como fator diferencial à qualificação do contrato fático. A tipicidade da conduta social faz com que as relações de contato social transmutem-se em legítimos contratos (fáticos). A partir daí, todos os efeitos contratuais configurados pelo ordenamento jurídico passam a incidir, também, sobre essa figura.

 

Destoa-se do superado mito da autonomia privada, para dotar de objetividade os contornos das relações contratuais. É preciso distinguir o conceito de contrato e negócio jurídico, a partir da incidência do conceito de volição em cada uma dessas figuras, isto é, enquanto para o negócio jurídico a vontade é elemento intrínseco à sua formação estrutural, no contrato fático a sua ausência não reflete prejuízos significativos.

 

Podem ser elencados, portanto, três elementos capazes de suscitar uma relação contratual, sem negócio jurídico fundante, a partir do contato social qualificado: i) a existência de dois ou mais centros de interesses; ii) a coordenação das condutas entre os centros de interesses que deflagram uma mínima unidade de efeitos; iii) o cumprimento da função social da atividade desenvolvida, que lhe dá legitimidade. Nesse particular, cabe ao princípio da boa-fé direcionar a coordenação das condutas dos partícipes da relação, fixando um vínculo de natureza contratual. 

 

Uma vez preenchidos esses requisitos, há a legítima passagem dos indivíduos de uma convivência genérica, para situações de contato interprivado estreito, fundamentalmente contratual. Enfim, observa-se uma reformulação do conceito de contrato que seja adequada à realidade social contemporânea. O que se observa é um elastecimento do rol das fontes obrigacionais, para fazer constar o contato social como legítimo criador de relações contratuais de fato.

 

 

 

4. Função Social do Contrato

 

Fala-se da função social (diretriz geral da socialidade) não só do contrato, mas também da propriedade, da família, da empresa, etc. O fundamento de tal princípio é a solidariedade social. Fala-se em função social de todo e qualquer negócio jurídico. Fala-se, portanto, na concepção social do contrato (funcionalização do contrato), afastando-se da ideia puramente individualista de outrora. Ante a diretriz geral da socialidade, passou-se a se enxergar o direito com uma visão social (ou visão funcional) – o direito como instrumento para a construção de uma sociedade livre, justa, igual e solidária. Toda sociedade tem um fim a realizar: a justiça, a paz, a ordem, a solidariedade e a harmonia da coletividade – enfim, o bem comum. E o direito é o instrumento de organização social para atingir essa finalidade. Em outras palavras, todo direito subjetivo está condicionado ao fim que a sociedade se propôs. Todo direito subjetivo deve ser exercido conforme sua finalidade social. Por isso se fala em direito-função. Assim, o titular de um direito, ao se valer dele para satisfazer seus interesses próprios, não deve sacrificar o interesse coletivo, devendo, portanto, conciliar o interesse individual à sua função social. Ou seja, o ordenamento jurídico só concederá legitimidade à persecução de um interesse individual, se este for compatível com os anseios sociais. Não se admitirá um direito ou seu exercício de forma anti-social. Resguardam-se os interesses individuais, desde que não haja ofensa ao interesse coletivo.

 

Assim, a função social implica no exercício de qualquer direito de acordo com os ditames constitucionais (sobretudo a justiça, a segurança e a dignidade), visando impedir, sobretudo, a violação a interesses metaindividuais e a dignidade da pessoa humana.

 

Uma observação é importante. Realmente o direito é instrumento para se alcançar uma sociedade mais justa, livre, igual e solidária. O direito deve ser instrumento de salvaguarda do bem comum e da dignidade da pessoa humana. O direito não pode ser exercido para malferir interesses individuais ou coletivos. Todavia, parte da doutrina aponta que o princípio da socialidade signifique o predomínio do social sobre o individual. Tal premissa, a meu ver, está incorreta. Para abandonar o individualismo do CC1916 não se precisa adotar o coletivismo. Em seu nome, não se pode invalidar, extinguir, minimizar ou desproteger todo e qualquer direito ou interesse individual. A plena realização do bem comum requer uma comunhão entre a plenitude da pessoa e da coletividade. Na elaboração do ordenamento jurídico das relações privadas, o legislador se encontra perante três opções possíveis: ou dá maior relevância aos interesses individuais, como ocorria no Código Civil de 1916; ou dá preferência aos valores coletivos, promovendo a socialização dos contratos; ou, então, assume uma posição intermediária, combinando o individual com o social de maneira complementar, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções equitativas e concretas. Não há dúvida que foi essa terceira opção a adotada pelo legislador do Código Civil de 2002.

 

Em uma palavra. Não há predomínio do social sobre o individual. O que há é o reconhecimento de ambos os interesses (individuais e sociais). Qual deve prevalecer? Só o caso concreto dirá (diretriz da operabilidade/concretude), à luz da principiologia constitucional: dignidade da pessoa humana, igualdade material, solidariedade e justiça social, liberdade e autonomia, segurança jurídica e proteção da confiança, sem olvidar o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, dentre outros.

 

Passemos a analisar especificamente a função social do contrato (art. 421 do CC – aplicável ao CDC por força do seu art. 7º), ressaltando que sua inobservância pode levar à nulidade (art. 166 II e VI CC) quando a violação à função social se der na gênese do negócio, ou sua ineficácia[31] (2035 pu CC) quando a ofensa à função social se der supervenientemente, na sua repercussão, ou melhor dizendo, na sua finalidade perante o corpo social em seu contexto histórico e cultural. Ademais, a violação da função social do contrato gera ato ilícito objetivo – abuso do direito (art. 187 CC).

 

O contrato deve ser concluído em benefício dos contratantes, todavia, sem conflito com o interesse social e coletivo. O contrato possui um interesse individual, mas induvidosamente também possui um interesse social. Novamente devemos fazer a observação citada acima. O CC2002 assumiu uma posição intermediária, combinando o individual com o social, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções equitativas e concretas. O contrato não é instrumento dos interesses dos contratantes isoladamente considerados, eis que também é instrumento de realização das finalidades traçadas pelo ordenamento jurídico. O contrato permanece possuindo seus interesses individuais, agora somados a valores sociais. O contrato não é um fim em si mesmo, mas meio, instrumento de finalidades sociais e morais, e não apenas econômicas e individuais. O contrato não pode ser visto de forma abstrata, no sentido de servir somente à utilidade econômica das partes, pois deve ser visto de forma causal, cumpridor de uma função social. Ademais, não há razão alguma para se sustentar que o contrato deva atender tão somente aos interesses das partes que o estipulam, pois o contrato possui um conteúdo e um valor social – aquilo que uma sociedade justa, livre, igual e solidária espera desse negócio jurídico, ou seja, que venha a atender além do interesse individual, o bem comum. O contrato só se legitima se destinado a realizar, além dos interesses próprios de seus partícipes, também os interesses comuns da sociedade a qual pertencem. Todavia, o contrato possui um valor social, que não se sobrepõe aos interesses individuais. Não há predomínio do social sobre o individual. Há o reconhecimento de ambos os interesses (individuais e sociais). Em caso de conflito, qual deve prevalecer? Só o caso concreto dirá (diretriz da operabilidade/concretude), à luz da principiologia constitucional, citada acima: dignidade da pessoa humana, igualdade material, solidariedade e justiça social, liberdade e autonomia, segurança jurídica e proteção da confiança, sem olvidar o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, somados à livre iniciativa e livre concorrência, valores sociais do trabalho e da família, proteção do meio ambiente e do consumidor, dentre outros.

 

A função social não coíbe a liberdade contratual, mas a legitima. Afinal, o contrato não tem o único fim de circulação de riquezas, mas também é instrumento de exigências maiores do ordenamento jurídico, como a justiça, a segurança, a livre iniciativa, o bem comum e a dignidade da pessoa humana. O contrato não é um átomo, mas um fato social que operacionaliza a realização de valores globais.

 

A função social possui uma eficácia interna (contratantes) e outra externa (terceiros). Como dito, o contrato é um fato social cujas consequências necessariamente alcançarão outras pessoas a princípio desvinculadas da relação jurídica. Assim, os contratantes têm o dever de proteção perante terceiros e à sociedade. Bem como os terceiros têm o dever de proteção perante os contratantes. Há uma via de mão dupla. Se o contrato não pode prejudicar terceiros, terceiros também não podem prejudicar o contrato.

 

Internamente[32][33] a função social do contrato visa tutelar a utilidade social que ostenta o contrato, não merecendo tutela quando o interesse perseguido não ostentar as exigências comunitárias de acordo com os parâmetros constitucionais. Visa ainda atender a não frustração dos interesses das partes contratantes, devendo o contrato ser mantido até a realização do fim almejado por seus partícipes (princípio da conservação do contrato), mas também sendo possível se pleitear a resolução do contrato que não mais atenda aos interesses de qualquer das partes e à sua função social e/ou econômica (princípio da não perpetuação do contrato sem fim social). Visa também assegurar contratos substancialmente equilibrados em que se atribua a cada um dos contratantes o reconhecimento de igual dignidade social. Enfim, busca a justiça interna do contrato, vedando condutas que ofendam preceitos de ordem pública, que sejam discriminatórias, abusivas ou antissociais, ou que coloquem um dos contratantes em situação de exagerada desvantagem. Garante-se, assim, que as contratações sejam justas e socialmente úteis, enquanto palco de prestígio de escolhas valorativas do sistema. Ainda internamente, não pode o contrato ofender a dignidade da pessoa humana, impedindo, assim, a coisificação da pessoa.

 

 

Externamente[34][35], temos que o contrato não pode ofender a interesses metaindividuais, também não pode prejudicar terceiros, tampouco ser ofendido por terceiros não contratantes.

 

Trata-se daquilo que se denominou chamar de tutela externa do crédito ou do contrato (eficácia transubjetiva do contrato), enfim, consagra-se uma releitura do princípio da relatividade do contrato.

 

Afinal, o contrato pode muitas das vezes ofender interesse metaindividuais ou os interesses e direitos de terceiros (terceiro ofendido).

 

Pode inclusive o contrato ser ofendido por terceiro (terceiro ofensor). Nesse caso, a função social externa não implica tornar as prestações de dar, fazer ou não fazer, exigíveis em face de terceiros (o que a relatividade impede), mas impõe a terceiros o respeito (dever jurídico coletivo de abstenção) à realização de obrigações anteriormente assumidas entre os contratantes (oponibilidade do contrato erga omnes), desde que esses terceiros tenham conhecimento (ou devessem ter) da existência do contrato. A atuação ilegítima de terceiros que induza o negócio jurídico ao inadimplemento caracteriza ato ilícito gerador de responsabilidade extracontratual. Todavia, ressalte-se que a oferta de condições contratuais mais vantajosas é própria da livre concorrência (art. 170 IV CF), como acontece na venda de produtos e na prestação de serviços (telefonia, bancos, seguros, planos de saúde, etc), não se podendo condenar a prática da melhor oferta (desde que lícita), sob pena de engessar a economia e desestabilizar o mercado. Todavia, se visar simplesmente esvaziar o contrato primevo sem qualquer justificativa legítima, ou então se valer de expedientes abusivos, ilegítimos e desleais, teremos a figura do terceiro ofensor e da concorrência desleal (art. 173 § 4º CF). Em outras palavras, é indispensável o cuidado com a distinção entre as situações de grave interferência ilícita nas relações negociais, suscetível de conduzir ao colapso o ambiente de confiança entre os parceiros, e uma situação de interferência contratual benigna e introduzida por meios lícitos, em que a oferta de condições contratuais mais vantajosas é própria da concorrência.

 

Enfim, a função social no aspecto interno visa impedir a violação da dignidade da pessoa humana, assegurar a justiça interna do contrato, afastando cláusulas discriminatórias, abusivas e antissociais, ou que coloquem um dos contratantes em situação de exagerada desvantagem, além de fomentar a conservação contratual, a não frustração dos fins contratuais, evitando, ainda, o aprisionamento dos contratantes a uma relação contratual que não atende aos interesses de qualquer das partes, tutelando, assim, a utilidade social que ostenta o contrato.  Lado outro, a função social no aspecto externo visa a proteção de interesses metaindividuais decorrentes do contrato, bem como visa tutelar os efeitos do contrato perante terceiros que não são partes, evitando, ainda, a conduta ilícita e abusiva de terceiros que repercutam nos contratos.

 

Ainda na função social externa, temos a consagração da teoria das redes contratuais[36], (que também decorre da boa fé objetiva), pois por força dessa teoria um contrato passa a ter efeitos sobre outro contrato com objeto e partes diversos. Essa teoria se dá quando há um vinculo finalístico e funcional entre dois ou mais contratos com fins e partes diversos, devendo, portanto, seus efeitos serem visualizados de forma conjunta. Em outras palavras, reconhece-se que dois ou mais contratos estruturalmente diferenciados podem estar unidos, formando um sistema destinado a cumprir uma função prático-social diversa daquela pertinentes aos contratos singulares individualmente considerados. Enfim, a pluralidade de relações jurídicas contratuais unidas em rede por uma mesma operação econômica, depreendem-se efeitos jurídicos interdependentes que são imputados aos contratantes integrantes da rede. Em síntese, contratos em rede são aqueles que, apesar de sua autonomia, reúnem-se por um nexo econômico funcional, em que as vicissitudes de um podem influir no outro, dentro da malha contratual na qual estão inseridos. Há quem defenda[37] que se deve partir do termo coligação contratual, para retratar o gênero das situações em que duas ou mais diferentes relações contratuais se encontram vinculadas, ligadas, promovendo alguma eficácia paracontratual, ou seja, alguma eficácia ao lado daquela que se desenvolve internamente ao contrato. Esta eficácia paracontratual, por sua vez, se justifica pelo reconhecimento duma operação econômica unificada que se sobrepõe àquela decorrente de cada um dos contratos que se encontram coligados. Em síntese, contratos coligados se caracteriza pela unidade de operação econômica e propósito comum, mediante uma pluralidade de relações contratuais interligada sob a perspectiva funcional e econômica. Sendo contratos coligados o gênero, suas espécies seriam: a) contratos coligados em sentido estrito (nexo decorrente da lei); b) contratos coligados por cláusula expressamente prevista pelos contratantes; c) contratos conexos (em que o nexo não decorre nem da lei nem de cláusula expressa), que se subdivide em c1) redes contratuais (nexo entre contratos que se destina à oferta de produtos ou serviços no mercado de consumo) e c2) contratos conexos em sentido estrito (nexo entre contratos destinados a outros segmentos do mercado). Quanto a extensão do vínculo, a coligação entre contratos se classifica em três espécies: i) vínculos de acessoriedade; ii) vínculos de dependência; iii) vínculos de coordenação. O vínculo de acessoriedade se dá quando determinado contrato serve para viabilizar ou incrementar o adequado adimplemento de um outro contrato que, na operação econômica supracontratual, mantem-se como principal. Também pode ocorrer um vínculo de dependência, quando a eficácia ou o propósito econômico de um determinado contrato depende de outro. Por fim, verifica-se o vínculo de coordenação. Nele há uma ordenação conjunta entre diferentes contratos, com ou sem um núcleo de poder contratual centralizado. Com efeito, a vinculação coordenada entre contratos por vezes se dá em moldes centrífugos, ao se expandir a partir de um centro comum, sem dele se separar e, noutras vezes, surgem em termos associativos, congregando esforços para o alcance de um objetivo comum que nenhum dos participantes alcançaria sozinho, sem que uma das partes exerça uma posição centralizadora. No tocante às redes contratuais, o fundamento para uma propagação eficacial, concernente à responsabilidade por danos causados ao consumidor, pode ser justificada a partir da solidariedade da cadeia de fornecimento prevista no CDC (arts. 7° parágrafo único, 25 § 1° e 34). A propagação eficacial em função da reparação de danos causados ao consumidor, atingindo integrantes da rede diversos daqueles que diretamente contrataram com o destinatário final, é justificada pela fixação geral da solidariedade passiva entre fornecedores. Todo aquele que participa da rede de fornecimento do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos danos causados ao consumidor. Nas contratações em rede também é possível sustentar uma contagiação de invalidades. Defeitos num contrato que conduzam a nulidade ou anulabilidade podem contagiar outros contratos a ele vinculados, o que se observa do teor do art. 51 do CDC que estabelece que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços, abrangendo, assim, toda a rede de fornecimento. Também se verifica nos contratos em rede situações de propagação de ineficácias. Cite-se, por exemplo, o poder de resolver vários contratos em rede em decorrência do inadimplemento em um deles. O exemplo é recorrente nas situações de resolução contratual por vícios do produto ou serviço em contratos de compra e venda ou prestação de serviços que se projetariam sobre o contrato de financiamento que viabilizou a aquisição.

 

É importante também apartar a boa fé objetiva da função social do contrato interna. Em alguns casos, embora presente internamente a boa fé objetiva, teremos um contrato internamente violador da função social, pela amplitude de seu conceito, mormente quando violador de valores sociais outros que não a lealdade e confiança. Muitas das vezes os contratantes atuam com boa fé objetiva, mas internamente o contrato não atenderá a função social, como o caso do contrato de restrição aos direitos da personalidade gravemente violador da dignidade da pessoa humana.

 

 Ambos decorrem do princípio da solidariedade social. A boa fé objetiva estabelece uma cláusula ética nos contratos (eticidade). A função social consagra valores sociais ao contrato (socialidade). A boa fé objetiva só possui eficácia interna, quando a função social possui também eficácia externa.

 

 Na verdade, perceberemos que a função social interna é instrumentalizada pela boa fé objetiva. Em outras palavras, a boa fé objetiva serve de instrumento de concretização do aspecto interno da função social. Conclui-se que a boa fé objetiva e a função social do contrato, embora com características próprias, andam juntas, implicando eticidade e socialidade aos contratos.

 

            É com base na função social - perspectiva funcional do contrato - que se pode trabalhar com a análise econômica do direito. Tal doutrina tem como pressuposto o aumento do grau de previsibilidade e eficiência das relações intersubjetivas, próprias do Direito, a partir da utilização de postulados econômicos para aplicação e interpretação de princípios e paradigmas jurídicos. Com efeito, a análise econômica do direito não pretende, por óbvio, submeter as normas jurídicas à economia, mesmo porque o Direito não existe para atender exclusivamente aos anseios econômicos. Por outro lado, visa à aproximação das normas jurídicas à realidade econômica, por meio do conhecimento de institutos econômicos e do funcionamento dos mercados. A interação das duas ciências é o seu fim, não a exclusão de uma pela outra. Assim, a regulamentação jurídica pode influenciar empreendimentos econômicos e promover o desenvolvimento e a mudança social[38].

A análise econômica do direito permite medir, sob certo aspecto, as externalidades do contrato (impactos econômicos) positivas e negativas, orientando o intérprete para o caminho que gere menos prejuízo à coletividade, ou mais eficiência social. A coletividade deixa de ser encarada apenas como a parte fraca do contrato e passa a ser vista como a totalidade das pessoas que efetivamente ou potencialmente integram um determinado mercado de bens e serviços, como no caso do crédito. Dessa forma, a análise econômica do direito aposta, por exemplo, no efetivo cumprimento dos contratos de financiamento, como pressuposto para o sucesso do sistema como um todo. A satisfação de cada um dos pactos celebrados entre financiadores e financiados, individualmente considerados, é requisito para que o sistema evolua e garanta o beneficiamento de outros tantos sujeitos, de toda coletividade interessada.

            Em uma perspectiva de análise econômica do direito, não se rejeita que existam interesses coletivos dignos de tutela nas relações contratuais. Contudo a coletividade é identificável na estrutura do mercado que está por trás do contrato que está sendo celebrado (em verdade, a própria Lei 12529/2011 [lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência] reconhece ser o mercado protegido por ela um interesse difuso ou coletivo digno de tutela). Nesse sentido, o todo em um contrato de financiamento é representado pela cadeia ou rede de mutuários (e potenciais mutuários), que dependem do cumprimento do contrato daquele indivíduo para alimentar o sistema financeiro, viabilizando novos financiamentos a quem precisa. Assim, se houver quebra na cadeia, com inadimplementos contratuais, quem sai perdendo é a coletividade (que ficará sem recursos e acabará pagando um juro maior). Como os mercados são imperfeitos, existem custos de transação (custos incorridos pelas partes para negociar e para fazer cumprir um contrato). É papel do direito diminuir esses custos de transação. O que se pode afirmar, inclusive, é que, pelo menos dentro de uma perspectiva econômica, quanto mais desenvolvidas as instituições, mais propício é o ambiente para seu natural desenvolvimento, pela diminuição dos custos de transação. Quanto mais sólidos os tribunais e as agências reguladoras e quanto mais íntegro e previsível o sistema jurídico de um país (garantindo a concorrência, a propriedade e os contratos empresariais), melhores são suas instituições.

            A interação entre direito e economia preconizada pela análise econômica do direito é tão interessante que estudiosos dessa interdisciplinaridade afirmam que os sistemas jurídicos repercutem de forma tão significativa nos fatores que determinam o desempenho econômico a ponto de a eficiência de reserva da economia diminuir e sofrer considerável distorção, diante da existência do risco jurídico. Informam os estudiosos que pesquisas já assinalaram que os países com sistemas jurídicos decorrentes da civil law (tradição de direito romano-germânico) possuem baixo desempenho econômico, pois são países que oferecem menor proteção jurídica aos investidores em razão do conteúdo das normas jurídicas (direito material) e da forma de cumprimento destas (direito processual), o que resulta em mercados de crédito e de capitais com menor desenvolvimento.

            Enfim, a análise econômica da função social do contrato permite reconhecer o papel institucional e social que o direito contratual pode oferecer ao mercado, qual seja a segurança e previsibilidade nas operações econômicas e sociais, capazes de proteger as expectativas dos agentes econômicos e a coletividade em geral. Conclui-se que por meio de instituições mais sólidas, que reforcem, ao contrário de minar, a estrutura do mercado, serão preservados os interesses coletivos e difusos presentes nas relações contratuais e que os riscos, as incertezas e os custos de transação serão diminuídos, facilitando-se o crédito, dinamizando a economia e, portanto, favorecendo a posição dos agentes econômicos, dos contratantes e da coletividade em geral.

 

 

5. Justiça Contratual

 

Para alguns também chamada de equilíbrio contratual. O fundamento de tal princípio é a igualdade material, enfim, a equidade no âmbito negocial. Não é vedado o lucro e a vantagem. O que não se permite é o lucro ou vantagem desarrazoada, abusiva e exagerada. Nem tudo que não é vedado é permitido, sob a ótica constitucional. A primazia não é da vontade, e sim da justiça contratual.

 

Todavia, o direito, em certa medida, não requer um equilíbrio absoluto nas relações contratuais. O que quer o direito é um certo grau de equivalência entre as prestações (equivalência mínima). Todavia, quanto maior for a assimetria entre as partes, menor será a tolerância pela falta de equivalência entre as prestações (como acontece nas relações de consumo, ante a vulnerabilidade do consumidor). Ou dito de outra forma, quanto menor for a assimetria, como nos contratos civis paritários e livremente negociados entre as partes, menor será a interferência estatal (art. 421, parágrafo único, CC e art. 3º VIII da Lei da Liberdade Econômica).

 

Dentro da justiça contratual, suas maiores e mais relevantes manifestações são os institutos da lesão[39] e onerosidade excessiva[40]. Basicamente em ambos os institutos temos a quebra da comutatividade, do sinalagma, enfim, do equilíbrio nas prestações (justiça contratual), seja em sua gênese (lesão), que configura a quebra do sinalagma genético, seja superveniente (onerosidade excessiva), que configura a quebra do sinalagma funcional.

 

Na lesão do CC[41] (lesão especial – art. 157) requer além do elemento objetivo (prestação manifestamente desproporcional), o elemento subjetivo (conhecimento de uma parte sobre a necessidade ou inexperiência da parte contrária[42][43]), levando à anulabilidade do contrato (mas cabível também a revisão por força do art. 157 § 2º CC e o princípio da conservação do contrato[44]). No CDC (lesão consumerista) basta o elemento objetivo (prestação manifestamente desproporcional), gerando a nulidade da cláusula (art. 51 IV § 1º III), salvo quando contamine todo o contrato, o que levará à sua total nulidade (51 § 2º CDC), todavia, isso não impede a revisão da cláusula abusiva (sobretudo quando referente a preço ou reajuste), por força do art. 6º V primeira parte, como direito do consumidor.  

 

Na onerosidade excessiva – baseada na cláusula rebus sic stantibus[45] em mitigação à cláusula pactua sunt servanda, o CDC também tratou de forma diferente do CC/2002. De igual, a sua aplicação: tal instituto somente é aplicável aos contratos de duração, ou seja, contratos de execução diferida no tempo, pela vontade das partes (ex. compromisso de compra e venda parcelada) e contrato de execução continuada, que são aqueles cuja própria natureza envolve o elemento temporal (ex. fornecimento de serviço de telefonia e planos de saúde). Todavia, o CDC adota a teoria da base objetiva (art. 6º V segunda parte). Ou seja, havendo fatos supervenientes que rompam/quebrem a base em que se firmou o negócio jurídico, gerando uma excessiva onerosidade a uma das partes, é cabível a revisão ou a resolução do contrato. Não precisa ser imprevisível, basta que seja não esperado pelo consumidor a destruição da relação de equivalência ou a impossibilidade de alcançar o fim do contrato. O CC2002 adotou a teoria da imprevisão (art. 478)[46]. Essa teoria tem como núcleo o que aqui se falou acerca da teoria da base objetiva (fatos supervenientes que rompam/quebrem a base em que se firmou o negócio jurídico, gerando uma excessiva onerosidade a uma das partes), somada à imprevisão dos fatos supervenientes que geram a onerosidade excessiva[47]. Em outras palavras, são requisitos da onerosidade excessiva no CC a eclosão de fato superveniente extraordinário, que gere onerosidade excessiva, sendo tal acontecimento imprevisível[48]. No CC2002 a onerosidade excessiva gera a resolução (mas também cabe revisão, por força do art. 479, 480 e 317 CC e o princípio da conservação do contrato[49]).

 

Justifica-se essa diferenciação de tratamento[50] (tanto da lesão quanto da onerosidade excessiva) no CC e no CDC pela simples razão de que no CDC a inferioridade (vulnerabilidade) do consumidor é presumida, de forma absoluta, sendo um código para desiguais, devendo ser tratado o consumidor como desigual para igualá-lo na relação jurídica de consumo, daí sua especial proteção. Ao contrário, o CC é um código para partes tendencialmente iguais (quase-iguais).

 

Para diferenciar a função social interna da justiça contratual, é preciso entender que a função social atende ao princípio da solidariedade social, enquanto a justiça contratual atende ao princípio da igualdade material, garantindo a proporcionalidade quantitativa entre os contratantes. Assim, a função social interna amplifica a justiça contratual, cuja finalidade é enfatizar que os contratantes não são apenas substancialmente iguais na economia do contrato, mas também iguais em direitos fundamentais, iguais em dignidade.

 

Na verdade, a função social interna é instrumentalizada pela justiça contratual, consagrando a justiça interna do contrato. Em outras palavras, a justiça contratual serve de instrumento de concretização do aspecto interno da função social. Conclui-se que a justiça contratual e a função social do contrato, embora com características próprias, andam juntas, implicando igualdade e solidariedade aos contratos.

 

            Com base no princípio da justiça contratual (mas também com base na boa fé objetiva e função social do contrato), como decorrências do princípio da dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade material, é que se deve dar especial tutela ao devedor superendividado[51], numa espécie de limite do sacrifício ou exceção de ruína econômica-pessoal. Superendividamento[52] pode ser definido como impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos) em um tempo razoável, com sua capacidade atual de rendas e patrimônio. Esta definição destaca que o superendividamento é um estado da pessoa física consumidora leiga (o não profissional ou o não empresário, pois estes podem falir), um devedor de crédito, que o contraiu de boa-fé (desprovida de dolo ou culpa grave), mas que agora se encontra em uma situação de impossibilidade (subjetiva) global (universal e não passageira) de pagar todas as suas dívidas atuais (já exigíveis) e futuras (que vão vencer) de consumo, com a sua renda e patrimônio (ativo) por um tempo razoável (a indicar que teria de fazer um esforço por longos anos, quase uma escravidão ou hipoteca do futuro para poder pagar suas dívidas), violando assim o núcleo da dignidade da pessoa humana (mínimo existencial), capaz de representar a morte civil do consumidor. Nesses casos de grave alteração das circunstâncias subjetivas relativas ao consumidor, há a necessidade de uma especial tutela do devedor superendividado.

 

            Para a especial tutela do devedor superendividado, devem estar presentes os seguintes pressupostos: vulnerabilidade do devedor; boa fé do devedor (ausência de dolo ou culpa grave pela alteração das condições pessoais ou pelo agravamento da sua situação financeira); situação de urgência social (força maior social – a alteração de sua condição pessoal decorreu de externalidades, de acidentes da vida, de fatos alheios à sua vontade, situação não causada deliberadamente pelo consumidor); risco de violação do núcleo dos direitos fundamentais decorrentes da dignidade da pessoa humana.

 

            Dessa especial tutela, impõe-se primariamente, o dever de renegociação do contrato, que encontra seu fundamento no dever de cooperação e na vedação ao exercício abusivo de posições jurídicas[53], ou não sendo possível ou sendo frustrada a renegociação, autoriza-se a intervenção do juiz para adequar a forma de execução do contrato em razão da alteração das circunstâncias ou até mesmo para resolver o contrato pela excessiva onerosidade.

 

             Enfim, o direito pátrio oferece três soluções ao superendividamento: a) imposição do dever de renegociação (art. 4º III CDC c/c art. 187, 421 e 422 do CC); b) adaptação do contrato em razão da alteração das circunstâncias (art. 6º V CDC c/c art. 480 do CC); c) resolução do contrato que se tornou excessivamente oneroso (art. 6º V CDC c/c art. 478 do CC). Perceba que essa revisão ou resolução se fundamenta em uma onerosidade excessiva subjetiva (e não em onerosidade excessiva objetiva como é a regra no sistema de direito privado), pois sua base de sustentação é uma extrema onerosidade para uma das partes contratantes, advindas de circunstâncias particulares e pessoais, desde que sejam suficientemente motivadas tanto eticamente quanto economicamente.

 

Ademais, nos casos em que a concessão abusiva ou predatória do crédito tenha gerado o superendividamento, impõe-se a responsabilização da instituição financeira (ou equivalente) pela má concessão do crédito - defeito do serviço de fornecimento de crédito, como nos casos de falha no dever de esclarecimento ou aconselhamento, publicidade abusiva, aproveitamento da inexperiência do devedor e inobservância da manutenção do mínimo existencial do devedor.

 

            Ressalte-se que a tutela especial do superendividado se dará não somente nas hipóteses de superendividamento passivo (aquele que excedeu a capacidade de pagamento por fatores externos: desemprego, morte e doença familiar, separação e divórcio, etc), mas também ao superendividado ativo inconsciente (quando o consumidor é levado a se endividar pelas pressões do mercado, impulsionado pelo excessivo apelo ao consumo, devido à sedução provocada intencionalmente pelo mercado [a chamada sedução de novas necessidades], ou então nos casos de oferta irresponsável de crédito ou nos casos em que o consumidor é vítima de desinformação tornando-o incapaz de prever a impossibilidade de cumprimento da obrigação assumida). Portanto, somente se afasta a tutela especial do superendividado nos casos de má fé, conduta maliciosa ou nos casos de imprudência e negligencia graves do consumidor (superendividado ativo consciente), responsável, por dolo ou culpa grave, pela alteração das condições pessoais ou pelo agravamento da sua situação financeira, enfim, aquele que deliberadamente ou por culpa grave é responsável pela alteração de sua condição pessoal financeira.

 


[1] Discute-se a existência de dano moral na hipótese em que o consumidor adquire garrafa de refrigerante com corpo estranho em seu conteúdo, sem, contudo, ingerí-lo. A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho, expondo o consumidor à risco concreto de lesão à sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral, dada a ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Hipótese em que se caracteriza defeito do produto (art. 12, CDC), o qual expõe o consumidor à risco concreto de dano à sua saúde e segurança, em clara infringência ao dever legal dirigido ao fornecedor, previsto no art. 8º do CDC. (STJ. REsp 1424304/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/03/2014, DJe 19/05/2014)

[2] As normas de proteção e defesa do consumidor têm índole de “ordem pública e interesse social”. São, portanto, indisponíveis e inafastáveis, pois resguardam valores básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social, daí a impossibilidade de o consumidor delas abrir mão ex ante e no atacado. O ponto de partida do CDC é a afirmação do Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor, mecanismo que visa a garantir igualdade formal-material aos sujeitos da relação jurídica de consumo, o que não quer dizer compactuar com exageros que, sem utilidade real, obstem o progresso tecnológico, a circulação dos bens de consumo e a própria lucratividade dos negócios. O direito à informação, abrigado expressamente pelo art. 5°, XIV, da Constituição Federal, é uma das formas de expressão concreta do Princípio da Transparência, sendo também corolário do Princípio da Boa-fé Objetiva e do Princípio da Confiança, todos abraçados pelo CDC. No âmbito da proteção à vida e saúde do consumidor, o direito à informação é manifestação autônoma da obrigação de segurança. Entre os direitos básicos do consumidor, previstos no CDC, inclui-se exatamente a “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem” (art. 6°, III). Informação adequada, nos termos do art. 6°, III, do CDC, é aquela que se apresenta simultaneamente completa, gratuita e útil, vedada, neste último caso, a diluição da comunicação efetivamente relevante pelo uso de informações soltas, redundantes ou destituídas de qualquer serventia para o consumidor. Nas práticas comerciais, instrumento que por excelência viabiliza a circulação de bens de consumo, “a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores” (art. 31 do CDC). A informação deve ser correta (= verdadeira), clara (= de fácil entendimento), precisa (= não prolixa ou escassa), ostensiva (= de fácil constatação ou percepção) e, por óbvio, em língua portuguesa. A obrigação de informação é desdobrada pelo art. 31 do CDC, em quatro categorias principais, imbricadas entre si: a) informação-conteúdo (= características intrínsecas do produto e serviço), b) informação-utilização (= como se usa o produto ou serviço), c) informação-preço (= custo, formas e condições de pagamento), e d) informação-advertência (= riscos do produto ou serviço). A obrigação de informação exige comportamento positivo, pois o CDC rejeita tanto a regra do caveat emptor como a subinformação, o que transmuda o silêncio total ou parcial do fornecedor em patologia repreensível, relevante apenas em desfavor do profissional, inclusive como oferta e publicidade enganosa por omissão.[...] No campo da saúde e da segurança do consumidor (e com maior razão quanto a alimentos e medicamentos), em que as normas de proteção devem ser interpretadas com maior rigor, por conta dos bens jurídicos em questão, seria um despropósito falar em dever de informar baseado no homo medius ou na generalidade dos consumidores, o que levaria a informação a não atingir quem mais dela precisa, pois os que padecem de enfermidades ou de necessidades especiais são freqüentemente a minoria no amplo universo dos consumidores. Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação do consumo e a "pasteurização" das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna. Ser diferente ou minoria, por doença ou qualquer outra razão, não é ser menos consumidor, nem menos cidadão, tampouco merecer direitos de segunda classe ou proteção apenas retórica do legislador. O fornecedor tem o dever de informar que o produto ou serviço pode causar malefícios a um grupo de pessoas, embora não seja prejudicial à generalidade da população, pois o que o ordenamento pretende resguardar não é somente a vida de muitos, mas também a vida de poucos. (STJ. REsp 586.316/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/04/2007, DJe 19/03/2009)

[3] Violam a função social interna do contrato de trabalho, pois ofensivo à dignidade da pessoa humana, a cláusula de não engravidar e a prática de revistas íntimas: Como expressão do poder diretivo reconhecido ao empregador e ainda com o propósito de compatibilizar os comandos constitucionais de proteção à propriedade e à honra e dignidade do trabalhador, a jurisprudência majoritária tem admitido a possibilidade de o empregador promover, consideradas as características e peculiaridades da atividade comercial explorada, a revista visual de objetos pessoais de seus empregados, ao final do expediente, desde que não ocorram excessos e exposições vexatórias que comprometem a honra e a imagem desses trabalhadores. Nesse cenário, ao realizar revistas íntimas que consistiam em determinar a exposição do sutiã, da calcinha e da meia de suas empregadas, para verificar a eventual ocorrência de furtos dessas peças no interior do estabelecimento, atua o empregador à margem dos parâmetros razoáveis, invadindo esfera indevassável de intimidade e incidindo em abuso que deve ser reparado – Código Civil, artigos 186 e 927 (TST - RR 1069/2006-071-09-00.2 - Publ. em 14-8-2009).

[4][4] O direito administrativo também possui tais princípios (com características que lhe são próprias), embora com outras fontes (pois o direito administrativo possui principiologia própria). Vejamos. A boa fé objetiva encontra fonte no princípio da moralidade (mas também na solidariedade social e segurança jurídica). A função social encontra fonte no principio da supremacia do interesse público (mas também na solidariedade social). A justiça contratual encontra fonte no princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato (mas também na igualdade material). A autonomia privada também está presente no contrato administrativo, sempre por parte do contratado (princípio da liberdade), pois a Administração não possui tal autonomia, pois o administrador só pode fazer aquilo que a lei permite (princípio da legalidade estrita). Aplicação da boa fé objetiva no âmbito administrativo: A jurisprudência que cuida da devolução de valores percebidos indevidamente por servidores públicos evoluiu para considerar não apenas o caráter alimentar da verba, mas também a boa-fé objetiva envolvida in casu. O elemento que evidencia a boa-fé objetiva no caso é a legítima confiança ou justificada expectativa, que o beneficiário adquire, de que valores recebidos são legais e de que integraram em definitivo o seu patrimônio [...] quando a Administração Pública interpreta erroneamente uma lei, resultando em pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa de que os valores recebidos são legais e definitivos, impedindo, assim, que ocorra desconto dos mesmos, ante a boa-fé do servidor público (STJ. REsp 1384418/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/06/2013, DJe 30/08/2013)

[5] Exemplos de aplicação da boa fé objetiva no processo civil e penal são muitos: aquele que deu causa à nulidade relativa não pode invocá-la (tu quoque); dever de manter atualizado o endereço, sob pena das intimações reputarem perfeitas se endereçadas ao anterior endereço (dever de cooperação e informação); incabível a chamada nulidade guardada, de bolso ou algibeira (dever de lealdade ou fair play processual): Sem que haja prejuízo processual, não há nulidade na intimação realizada em nome de advogado que recebeu poderes apenas como estagiário. Deficiência na intimação não pode ser guardada como nulidade de algibeira, a ser utilizada quando interessar à parte supostamente prejudicada. (STJ. REsp 756.885/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/08/2007, DJ 17/09/2007, p. 255); incabível a alegação tardia de nulidade quando podia e devia ter feito anteriormente (dever de mitigar o próprio prejuízo):  princípio da boa-fé objetiva ecoa por todo o ordenamento jurídico, não se esgotando no campo do Direito Privado, no qual, originariamente, deita raízes. Dentre os seus subprincípios, destaca-se o duty to mitigate the loss. Na espécie, a serôdia insurgência, somente após a realização de diversos atos processuais, como o interrogatório, alegações finais e sentença, evidencia a consolidação da situação, sedimentando a tácita aceitação da ausência de oitiva da testemunha. Não deveria a parte insistir em marcha processual que crê írrita, sob pena de investir tempo e recursos de modo infrutífero. (STJ. HC 171.753/GO, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 04/04/2013, DJe 16/04/2013); a impossibilidade de se indicar a penhora bem impenhorável e depois pretender sua liberação em razão da impenhorabilidade (venire): Os bens protegidos pela cláusula de impenhorabilidade (art. 649, V, do CPC) podem constituir alvo de constrição judicial, haja vista ser lícito ao devedor renunciar à proteção legal positivada na norma supracitada, contanto que contemple patrimônio disponível e tenha sido indicado à penhora por livre decisão do executado, ressalvados os bens inalienáveis e os bens de família. Precedentes do STJ. No caso, não há nulidade no procedimento expropriatório, porquanto, além de o bem penhorado ("colheitadeira") compor o acervo ativo disponível do recorrente/executado, este o ofertou deliberadamente nos autos da execução, de ordem a evidenciar contradição de comportamento da parte ("venire contra factum proprium"), postura incompatível com a lealdade e boa-fé processual.(STJ.  REsp 1365418/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 04/04/2013, DJe 16/04/2013). A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais. Não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão (vedação ao comportamento contraditório). Tem-se, assim, a ponderação da proteção irrestrita ao bem de família, tendo em vista a necessidade de se vedar, também, as atitudes que atentem contra a boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais. (STJ. REsp 1782227/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/08/2019, DJe 29/08/2019); a impossibilidade de pleitear a relativização da coisa julgada, em ação filiatória, em comportamento contraditório: O  Supremo  Tribunal  Federal,  ao apreciar o RE 363.889/DF, com repercussão  geral  reconhecida, permitiu, em caráter excepcional, a relativização  da  coisa  julgada  formada  em  ação de investigação julgada  improcedente  por ausência de provas, quando não tenha sido oportunizada  a  realização  de  exame  pericial  acerca  da  origem biológica  do  investigando por circunstâncias alheias à vontade das partes.  Hipótese distinta do caso concreto em que a ação de investigação de paternidade foi julgada procedente com base na prova testemunhal, e,  especialmente,  diante  da  reiterada  recusa  dos  herdeiros do investigado em proceder ao exame genético, que, chamados à coleta do material por sete vezes, deixaram de atender a qualquer deles.  Configura  conduta manifestamente contrária à boa-fé objetiva, a ser  observada  também em sede processual, a reiterada negativa, por parte  da  recorrente,  de  produzir  a  prova  que traria certeza à controvérsia estabelecida nos autos da anterior ação de investigação de  paternidade  para,  transitada  em  julgado  a decisão que lhe é desfavorável,  ajuizar ação negatória de paternidade agora visando à realização  do  exame de DNA que se negara a realizar anteriormente.  Intolerável  o comportamento contraditório da parte, beirando os limites           da          litigância          de          má-fé. (STJ. REsp 1562239/MS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/05/2017, DJe 16/05/2017); e a possibilidade de indenização civil por comportamento manifestamente abusivo em sede de processo judicial (assédio processual): Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais. O ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça. (STJ. REsp 1817845/MS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/10/2019, DJe 17/10/2019).

[6] Por isso a liberdade de pensamento abrange o direito de ter e divulgar ideias absurdas. Por isso a liberdade de associação abrange o direito de fundar entidades com finalidades fúteis, desde que não criminosas. Por isso a liberdade de religião tutela tanto o direito de professar o credo católico como o de frequentar cultos satânicos.

[7] Enunciado 413 do CJF: Os bons costumes previstos no art. 187 do CC possuem natureza subjetiva, destinada ao controle da moralidade social de determinada época, e objetiva, para permitir a sindicância da violação dos negócios jurídicos em questões não abrangidas pela função social e pela boa-fé objetiva.

[8] Enunciado 37 do CJF: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.

[9] Enunciado 412 do CJF: As diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva.

[10] Enunciado 362 do CJF: A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil.

[11] Hipótese de venire contra factum proprium está na súmula 370 do STJ: caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado. Na jurisprudência: Promessa de compra e venda. consentimento da mulher. atos posteriores. " venire contra factum proprium ". Boa-fé. [...] a mulher que deixa de assinar o contrato de promessa de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juízo, expressamente admite a existência e validade do contrato, fundamento para a denunciação de outra lide, e nada impugna contra a execução do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissários compradores exerceram pacificamente a posse sobre o imóvel, não pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos próprios. (STJ. REsp 95.539/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 03/09/1996, DJ 14/10/1996, p. 39015). Outra hipótese está na súmula 302 do STJ: É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado. E na jurisprudência: Havendo previsão contratual de cobertura de determinada patologia, é abusiva a restrição aos meios necessários ao sucesso do tratamento. Quem garante os fins deve dar os meios, sob pena de ofensa à boa fé objetiva e à vedação do comportamento contratual contraditório (STJ. AgRg no AREsp 341956/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4-T, DJe 7.10.2014). Outra hipótese é o pai que registra o filho sabendo não ser seu, depois pretende a desconstituição do registro filial: A "adoção à brasileira", ainda que fundamentada na "piedade", e muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado não consubstancia negócio jurídico sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva, consistente no término do relacionamento com a genitora (STJ. REsp 1613641/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/05/2017, DJe 29/05/2017)

[12] Também chamada de proibição da incoerência e doutrina dos atos próprios, com expressão previsão no art. 113 § 1º I CC.

[13] Hipótese de supressio/surrectio está no art. 330 do CC. Na jurisprudência: Discussão relativa à [...]  pretensão do representante comercial de receber diferenças de comissão [...] o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título da diferença, que sempre foram dispensados, frustrando uma expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual pela recorrida. (STJ. REsp 1323404/GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 05/09/2013). Trata-se de situação na qual, mais do que simples renúncia do direito à correção monetária, a recorrente abdicou do reajuste para evitar a majoração da parcela mensal paga pela recorrida, assegurando, como isso, a manutenção do contrato. Portanto, não se cuidou propriamente de liberalidade da recorrente, mas de uma medida que teve como contrapartida a preservação do vínculo contratual por 06 anos. Diante desse panorama, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título de correção monetária, que vinha regularmente dispensado, frustrando uma expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual.[...] A supressio indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido a renúncia àquela prerrogativa. (STJ. REsp 1202514/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 30/06/2011) Trata-se de ação de cobrança de multa prevista em contrato de promessa de compra e venda de combustíveis e produtos derivados sob a alegação de que o posto de gasolina não adquiriu a quantidade mínima prevista. [...] Segundo o instituto da suppressio, o não exercício de direito por seu titular, no curso da relação contratual, gera para a outra parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação, presente  a possível deslealdade no seu exercício posterior. Hipótese em que a recorrente permitiu, por quase toda a vigência do contrato, que a aquisição de produtos pelo posto de gasolina ocorresse em patamar inferior ao pactuado, apresentando-se desleal a exigência, ao fim da relação contratual, do valor correspondente ao que não foi adquirido, com incidência de multa. (STJ. REsp 1374830/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/06/2015, DJe 03/08/2015) CONDOMÍNIO. Área comum. [...] Área destinada a corredor, que perdeu sua finalidade com a alteração do projeto e veio a ser ocupada com exclusividade por alguns condôminos, com a concordância dos demais. Consolidada a situação há mais de vinte anos sobre área não indispensável à existência do condomínio, é de ser mantido o statu quo. Aplicação do princípio da boa-fé (suppressio). (STJ. REsp 214.680/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 10/08/1999, DJ 16/11/1999, p. 214). Não tem se admitido sua aplicação em sede alimentar: Controvérsia acerca da possibilidade ou não de, com fundamento na teoria do abuso do direito e na surrectio, perpetuar obrigação alimentar assumida por longo período a título de mera liberalidade pelo alimentante já exonerado da dívida. Não há falar em ilicitude na conduta do recorrente por inexistência de previsibilidade de pagamento eterno dos alimentos, especialmente porque ausente relação obrigacional. [...] Na hipótese, inviável a manutenção do dever alimentar em virtude do decurso do prazo fixado em acordo homologado em juízo e pela existência de coisa julgada refutando a dívida. (STJ. REsp 1789667/RJ, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 22/08/2019).

[14] Hipótese de tu quoque está nos arts. 129, 150 e 180 do CC, art. 476 do CC (exceção do contrato não cumprido), ou na hipótese daquele que está em mora e vem pleitear a resolução por incumprimento da outra parte, ou daquele que já está em mora quando ocorrem circunstâncias supervenientes e vem a pleitear a revisão/resolução do contrato por onerosidade excessiva. O mesmo se diga da impossibilidade de se alegar a anulabilidade por aquele que lhe deu causa. Assim também na sumula 385/STJ: Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento. Na jurisprudência: a assinatura de próprio punho do emitente é requisito de existência e validade de nota promissória. [...] Caso concreto, porém, em que a assinatura irregular escaneada foi aposta pelo próprio emitente. Vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa. Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos 'tu quoque' e 'venire contra factum proprium', segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé (STJ. REsp 1192678/PR, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2012, DJe 26/11/2012). A regra de nulidade integral da fiança prestada pelo cônjuge sem outorga do outro cônjuge não incide no caso de informação inverídica por este de estado de solteira, assinando, no caso, a fiadora, mulher casada, com omissão do nome do marido. A boa-fé objetiva que preside os negócios jurídicos (CC/2002, art. 113) e a vedação de interpretação que prestigie a malícia nas declarações de vontade na prática de atos jurídicos (CC/2002, art.180) vem em detrimento de quem preste fiança com inserção de dados inverídicos no documento. [...] Inocorrência de ofensa à Súmula 332/STJ, validade da fiança, no tocante à fiadora, a comprometer-lhe a meação, sem atingir, contudo, a meação do marido.(STJ. REsp 1328235/RJ, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/06/2013, DJe 28/06/2013).

[15] Enunciado 169 do CJF: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo.

[16] Hipótese de dever de mitigar o próprio prejuízo: Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor.  Infringência aos deveres  de cooperação e lealdade. [...] O fato de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos atos de defesa possessória diminuiriam a extensão do dano. Violação ao princípio da boa-fé objetiva. Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta pela Corte originária (exclusão de um ano de ressarcimento). (STJ. REsp 758.518/PR, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 17/06/2010, REPDJe 01/07/2010, DJe 28/06/2010). Assim também a súmula 309 do STJ (O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo) e o art. 537 § 1º NCPC.

[17] Enunciado 361 do CJF: O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475. Enunciado 586 do CJF: Para a caracterização do adimplemento substancial, levam-se em conta tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos. Ou seja, entende-se que a análise do adimplemento substancial não abrange somente a quantidade de prestação cumprida, mas também aspectos qualitativos da prestação. Importa verificar se a parte adimplida da obrigação, ainda que incompleta ou imperfeita, mostrou-se capaz de satisfazer quase que essencialmente o interesse do credor. Para isso, o intérprete deve levar em conta, ainda, a boa fé daquele que invoca o adimplemento substancial.

[18] Hipótese de adimplemento substancial: É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título. (STJ. REsp 1051270/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 05/09/2011). A jurisprudência não admite sua aplicação em matéria de alimentos: a Teoria do Adimplemento Substancial, de aplicação estrita no âmbito do direito contratual, somente nas hipóteses em que a parcela inadimplida revela-se de escassa importância, não tem incidência nos vínculos jurídicos familiares, revelando-se inadequada para solver controvérsias relacionadas a obrigações de natureza alimentar. O pagamento parcial da obrigação alimentar não afasta a possibilidade da prisão civil. Precedentes. O sistema jurídico tem mecanismos por meio dos quais o devedor pode justificar o eventual inadimplemento parcial da obrigação (CPC/2015, art. 528) e, outrossim, pleitear a revisão do valor da prestação alimentar (L. 5.478/1968, art. 15; CC/2002, art. 1.699). (STJ. HC 439.973/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 16/08/2018, DJe 04/09/2018)

[19] Se a falha na execução do contrato é de pequena monta, irrelevante, fica desautorizado o acolhimento da exceção do contrato não cumprido (STJ. REsp 648.780/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 20/03/2014, DJe 07/05/2014)

[20] Enunciado 24 do CJF: Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.

[21] No tocante à violação positiva do contrato: O princípio da boa-fé se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio [...] A violação a qualquer dos deveres anexos implica em inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa. (STJ. REsp 595.631/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/06/2004, DJ 02/08/2004, p. 391).

[22] Exemplo do dever anexo de proteção é a sumula 130 do STJ: a empresa responde, perante o cliente, pela reparação do dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento.

[23] Exemplo de dever anexo de informação: Assim a súmula 359 do STJ: Cabe ao órgão mantenedor do Cadastro de Proteção ao Crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição. Na jurisprudência: Rodapé ou lateral de página não são locais adequados para alertar o consumidor, e, tais quais letras diminutas, são incompatíveis com os princípios da transparência e da boa-fé objetiva, tanto mais se a advertência disser respeito à informação central na peça publicitária e a que se deu realce no corpo principal do anúncio, expediente astucioso que caracterizará publicidade enganosa por omissão, nos termos do art. 37, §§ 1º e 3º, do CDC, por subtração sagaz, mas nem por isso menos danosa e condenável, de dado essencial do produto ou serviço. Pretender que o consumidor se transforme em leitor malabarista (apto a ler, como se fosse natural e usual, a margem ou borda vertical de página) e ouvinte ou telespectador superdotado (capaz de apreender e entender, nas transmissões de rádio ou televisão, em fração de segundos, advertências ininteligíveis e em passo desembestado, ou, ainda, amontoado de letrinhas ao pé de página de publicação ou quadro televisivo) afronta não só o texto inequívoco e o espírito do CDC, como agride o próprio senso comum, sem falar que converte o dever de informar em dever de informar-se, ressuscitando, ilegitimamente e contra legem, a arcaica e renegada máxima do caveat emptor (= o consumidor que se cuide). (STJ. AgRg no AgRg no REsp 1261824/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/02/2012, DJe 09/05/2013). Em situações de simetria contratual e informacional, há quem defenda não só o dever de informar mas também o ônus de se informar. Fala-se em ônus para se ressaltar que, embora não se constitua propriamente em dever juridicamente coercitivo, a postura diligente do credor apresenta-se como pressuposto para o legítimo exercício do seu direito à informação. Com efeito, dificilmente poder-se-ia concluir que age conforme à boa-fé objetiva o credor que deixa de buscar – ou, ao menos, de solicitar – as informações às quais razoavelmente poderia ter acesso sem esforço desmesurado.

[24] Exemplo de dever anexo de cooperação é o dever da seguradora de plano de saúde realizar prévio exame médico, se não o faz, assume o risco de sua omissão, sendo seu o ônus de comprovar a má fé do segurado. Assim a súmula 609 do STJ: a recusa de cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente, é ilícita se não houve a exigência de exames médicos prévios à contratação ou a demonstração de má-fé do segurado. Em razão do dever de cooperação, compete ao fornecedor, nos contratos de duração, encaminhar em tempo oportuno o boleto bancário ao consumidor, se assim ficou contratado, para que este efetue o pagamento. Como também decorre da cooperação, o dever de devolver aquilo que foi recebido indevidamente.

[25] Enunciado 170 do CJF: A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.

[26] Aplicação da boa fé objetiva na fase pré-negocial: Rompimento injustificado e arbitrário das tratativas, vulnerando a legítima expectativa da outra parte: A responsabilidade pré-contratual não decorre do fato de a tratativa ter sido rompida e o contrato não ter sido concluído, mas do fato de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material. As instâncias de origem, soberanas na análise das circunstâncias fáticas da causa, reconheceram que houve o consentimento prévio mútuo, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo das tratativas, o prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido. (STJ. REsp 1051065/AM, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/02/2013, DJe 27/02/2013).  Ou então a súmula 130 do STJ: a empresa responde, perante o cliente, pela reparação do dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento. A empresa que fornece estacionamento aos veículos de seus clientes responde pelos danos, furtos, roubos e latrocínios ocorridos no seu interior, mesmo que o estacionamento seja gratuito, uma vez que, em troca dos benefícios financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto aos consumidores, o estabelecimento assume o dever de segurança dos bens e dos próprios clientes.

[27] Aplicação da boa fé objetiva na fase pós-negocial: conduta ofensiva à fruição do resultado útil da relação já concluída, como o dever de sigilo e de não concorrência decorrente de determinadas relações contratuais findas (ex. art. 1147 CC).Também a súmula 548/STJ: Incumbe ao credor a exclusão do registro da dívida em nome do devedor no cadastro de inadimplentes no prazo de cinco dias úteis, a partir do integral e efetivo pagamento do débito. Na jurisprudência: O fiel adimplemento da obrigação decorrente da relação de débito e crédito, é o ponto culminante da conduta esperada reciprocamente pelas partes, persistindo, contudo,  os efeitos pós contratuais, não obstante extinto o negócio pelo adimplemento. A responsabilidade pós negocial, no sentido lato, vem sempre anelada ao princípio da boa-fé objetiva - veda-se cobrar dívida já paga. (STJ. REsp 1068271/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 15/06/2012). A rescisão imotivada do contrato, em especial quando efetivada por meio de conduta desleal e abusiva - violadora dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da responsabilidade pós-contratual - confere à parte prejudicada o direito à indenização por danos materiais e morais. (STJ. REsp 1255315/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/09/2011, DJe 27/09/2011). Da mesma forma o dever dos fornecedores de realizarem o recall (art. 10 § 1º CDC).

[28] Vale-se aqui de primoroso estudo de SIRENA, Hugo Cremonez. Do contrato ao contato: um estudo sobre as relações contratuais de fato. In http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/29873/R%20-%20D%20-%20HUGO%20CREMONEZ%20SIRENA.pdf?sequence=1.

[29] Se, verdadeiramente, os contratos fossem estritamente pautados na vinculação volitiva entre sujeitos, como explicar a validade do fato de um menor, absolutamente incapaz, tomar o uso de um transporte coletivo para se locomover até a sua residência? Ou como reconhecer a expressão de vontade do consumidor que recebe, em sua casa, serviços públicos de energia elétrica, água e esgoto mesmo sem jamais ter formalizado, efetivamente, qualquer tipo de negociação com o Poder Público? Ou, ainda, como validar relações contratuais mantidas por sociedades de fato, ainda não regular e juridicamente constituídas, impossibilitadas, portanto, de expressar a sua vontade institucional? Todas essas são hipóteses de relações contratuais de fato. Outra hipótese de relação contratual de fato se dá nas hipóteses de relações trabalhistas em que o trabalhador é menor de 14 anos (vedação constitucional). Embora nula a relação pela incapacidade do trabalhador, possui este direitos trabalhistas e previdenciários, à luz da doutrina das relações contratuais fáticas: Agravo de instrumento. 2. Trabalhador rural ou rurícola menor de quatorze anos. Contagem de tempo de serviço. Art. 11, VII, da Lei nº. 8213. Possibilidade. Precedentes. 3. Alegação de violação aos arts. 5º, XXXVI; e 97, da CF/88. Improcedente. Impossibilidade de declaração de efeitos retroativos para o caso de declaração de nulidade de contratos trabalhistas. Tratamento similar na doutrina do direito comparado: México, Alemanha, França e Itália. Norma de garantia do trabalhador que não se interpreta em seu detrimento. Acórdão do STJ em conformidade com a jurisprudência desta Corte. 4. Precedentes citados: AgRAI 105.794, 2ª T., Rel. Aldir Passarinho, DJ 02.04.86; e RE 104.654, 2ª T., Rel. Francisco Rezek, DJ 25.04.86 5. Agravo de instrumento a que se nega provimento.(STF. AI 529694, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 15/02/2005, DJ 11-03-2005 PP-00043 EMENT VOL-02183-09 PP-01827 RTJ VOL-00193-01 PP-00417 RDECTRAB v. 12, n. 129, 2005, p. 176-190)

[30] Exemplo clássico que pode muito bem ilustrar essa situação é o dos estacionamentos gratuitos oferecidos por determinados centros comerciais: ainda que haja a expressa menção de que o estabelecimento não se responsabiliza pelo veículo, o entendimento majoritário é oposto. A negativa de vontade do ofertante do estacionamento não o desvincula de uma relação contratual de fato na qual passa a ser responsável pelo veículo. Nesse sentido é a Súmula 130, do STJ, segundo a qual “a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículos ocorridos em seu estacionamento.” Assim a jurisprudência: Responsabilidade Civil. Estacionamento. Supermercado. Furto de veículo.  [...] Incidência da Súmula 130. Desnecessidade da caracterização do depósito, pois se trata de relação contratual de fato. (STJ. REsp 120.719/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 22/10/1997, DJ 12/04/1999, p. 156).

[31] Enunciado 431 do CJF: A violação do art. 421 conduz à invalidade ou à ineficácia do contrato ou de cláusulas contratuais.

[32] Conforme enunciado 360 do CJF: O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes.

[33] Exemplos não faltam de aplicação da função social do contrato no âmbito interno. São os casos de contratos de limitação voluntária permanente e geral dos direitos da personalidade, ou então a cláusula de não engravidar, revistas íntimas em empregados, ofensivas à dignidade da pessoa humana. Conforme enunciado 11 do CJF: o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral. Assim também o enunciado 23 do CJF: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presente [...]  interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana. Outra hipótese é a frustração do fim do contrato, onde desaparece seu móvel, sua causa-fim, por eventos extraordinários, alheios às partes, superando o risco assumido pela parte afetada. Ocorre somente em contratos de cumprimento diferido (prazo suspensivo ou trato sucessivo). O que se verifica é a impossibilidade absoluta de alcançar a finalidade buscada, embora seja possível executar a prestação (se as prestações se tornam excessivamente onerosas, aplicável a teoria da onerosidade excessiva; se afetado é o cumprimento da prestação devida, impedindo seu cumprimento, o caso será de caso fortuito ou força maior). Assim o Enunciado 166 do CJF: A frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil. Como exemplo é a Súmula 597 do STJ (de acordo com o art. 12 V c da Lei 9656/98), que em matéria de carência de plano de saúde, visa impedir a frustração do fim contratual, devendo o valor da vida humana sobrepujar ao relevo comercial,  eis que o fim maior do contrato de assistência médica é o de amparar a vida e a saúde: a cláusula contratual de plano de saúde que prevê carência para utilização dos serviços de assistência médica nas situações de emergência ou de urgência é considerada abusiva se ultrapassado o prazo máximo de 24 horas contado da data da contratação. Outra hipótese de aplicação da função social interna do contrato está na impossibilidade de condutas contratuais discriminatórias, abusivas e antissociais, ou que coloquem o contratante em situação de exagerada desvantagem (a chamada justiça interna do contrato). Assim a vedação da renúncia antecipada ou exagerada limitação a direitos inerentes à natureza do contrato (art. 424 do CC e art. 51 I IV § 1º II CDC) bem como a vedação da cláusula de decaimento (art. 53 do CDC e Súmula 543 do STJ: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento). Nos planos de saúde a função social interna também se aplicará no caso de aumentos abusivos e discriminatórios em razão da idade. Assim o STJ: Nos contratos de seguro de saúde, de trato sucessivo, os valores cobrados a título de prêmio ou mensalidade guardam relação de proporcionalidade com o grau de probabilidade de ocorrência do evento risco coberto. Maior o risco, maior o valor do prêmio. É de natural constatação que quanto mais avançada a idade da pessoa, independentemente de estar ou não ela enquadrada legalmente como idosa, maior é a probabilidade de contrair problema que afete sua saúde. Há uma relação direta entre incremento de faixa etária e aumento de risco de a pessoa vir a necessitar de serviços de assistência médica. Atento a tal circunstância, veio o legislador a editar a Lei Federal nº 9.656/98, rompendo o silêncio que até então mantinha acerca do tema, preservando a possibilidade de reajuste da mensalidade de plano ou seguro de saúde em razão da mudança de faixa etária do segurado, estabelecendo, contudo, algumas restrições e limites a tais reajustes. Não se deve ignorar que o Estatuto do Idoso, em seu art. 15, § 3º, veda "a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade". Entretanto, a incidência de tal preceito não autoriza uma interpretação literal que determine, abstratamente, que se repute abusivo todo e qualquer reajuste baseado em mudança de faixa etária do idoso. Somente o reajuste desarrazoado, injustificado, que, em concreto, vise de forma perceptível a dificultar ou impedir a permanência do segurado idoso no plano de saúde implica na vedada discriminação, violadora da garantia da isonomia. Nesse contexto, deve-se admitir a validade de reajustes em razão da mudança de faixa etária, desde que atendidas certas condições, quais sejam: a) previsão no instrumento negocial; b) respeito aos limites e demais requisitos estabelecidos na Lei Federal nº 9.656/98; e c) observância ao princípio da boa-fé objetiva, que veda índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em demasia o segurado. Sempre que o consumidor segurado perceber abuso no aumento de mensalidade de seu seguro de saúde, em razão de mudança de faixa etária, poderá questionar a validade de tal medida, cabendo ao Judiciário o exame da exorbitância, caso a caso. (STJ. REsp 866840/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 07/06/2011, DJe 17/08/2011). Da mesma forma o enunciado 543 do CJF, aplicável aos contratos cativos de longa duração: Constitui abuso de direito a modificação acentuada das condições do seguro de vida e de saúde pela seguradora quando da renovação do contrato. Por fim, a função social interna também tem relação com o princípio da conservação dos contratos, verificado no art. 51 § 2º CDC. Conforme enunciado 22 do CJF: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas. Daí a possibilidade de adaptações contratuais visando evitar a ruína de um dos contratantes - exceção da ruína. Pela exceção da ruína, o vínculo contratual original pode sofrer ação liberatória e adaptadora às novas circunstâncias da realidade, com a finalidade de manter a relação jurídica sem a quebra do sistema, sendo imprescindível a cooperação mútua para modificar o contrato do modo menos danoso às partes: esta Corte Superior entende que não há direito adquirido a modelo de plano de saúde ou de custeio, podendo o estipulante e a operadora redesenharem o sistema para evitar o seu colapso (exceção da ruína), contanto que não haja onerosidade excessiva ao consumidor ou discriminação de idoso.(STJ. AgInt no AgInt no RCD no REsp 1664358/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 26/11/2019, DJe 03/12/2019). Inversamente, não sendo possível aferir qual das partes primeiramente descumpriu o contrato e, sendo evidente que a relação obrigacional já não mais atende ao interesse de qualquer dos contratantes, com base na função social do contrato, que não tolera o aprisionamento das partes a uma relação contratual que não cumpre mais sua função social e/ou econômica - princípio da não perpetuação do contrato sem fim social, há de se admitir a legitimidade de qualquer contratante pleitear a resolução do contrato, atenuando-se o rigor do art. 475 do CC: Diante da indefinição quanto à parte que primeiro teria inadimplido o contrato, bem como tendo em vista os riscos decorrentes da perpetuação do vínculo contratual, afigura-se perfeitamente razoável mitigar parcialmente os efeitos do art. 475 do CC/02, rescindindo o contrato e deixando eventuais prejuízos para serem compensados mediante indenização. O pleno exercício da liberdade de contratar pressupõe um acordo que cumpra determinada função econômica e social, sem a qual não se pode falar em legítima manifestação de vontade. Assim, não se pode impor a uma das partes a obrigação de se manter subordinada ao contrato se este não estiver cumprindo nenhuma função social e/ou econômica. Embora o comportamento exigido dos contratantes deva pautar-se pela boa-fé contratual, tal diretriz não obriga as partes a manterem-se vinculadas contratualmente ad aeternum, mas indica que as controvérsias nas quais o direito ao rompimento contratual tenha sido exercido de forma desmotivada, imoderada ou anormal, resolvem-se, se for o caso, em perdas e danos. (STJ. REsp 1250596/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/11/2011, DJe 16/11/2011)

[34] Conforme o Enunciado 21 do CJF: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.

[35] Como exemplo de função social do contrato no âmbito externo teríamos os contratos ofensivos ao meio ambiente, com publicidade abusiva ou enganosa aos consumidores, abuso de poder econômico ou concorrência desleal (eliminação da concorrência, aumento arbitrário dos lucros ou dominação de mercado), ou ainda capaz de frustrar a competitividade própria do esporte violando assim o direito do torcedor, eis que ofensivo aos interesses metaindividuais. Conforme enunciado 23 do CJF: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais... Ainda externamente temos a figura do terceiro ofendido, como o bystander (art. 17 do CDC); possibilidade da vítima acionar, nos limites da responsabilidade securitária, a seguradora em litisconsórcio com o autor do dano, conforme a Súmula 529 e 537 do STJ (No seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano; Em ação de reparação de danos, a seguradora denunciada, se aceitar a denunciação ou contestar o pedido do autor, pode ser condenada, direta e solidariamente junto com o segurado, ao pagamento da indenização devida à vítima, nos limites contratados na apólice) e conforme jurisprudência (em ação de reparação de danos, a seguradora possui legitimidade para figurar no polo passivo da demanda em litisconsórcio com o segurado, apontado causador do dano - STJ. REsp 1076138/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 22/05/2012, DJe 05/06/2012) além da possibilidade de pleitear, nos limites da responsabilidade securitária, o cumprimento de sentença contra a seguradora denunciada à lide pelo segurado (art. 128 pu NCPC – execução per saltum); a possibilidade de extensão da solidariedade para além do art. 265 do CC, à luz da função social externa, como nos casos de imputação de garantia ao adquirente, por parte dos integrantes anteriores da cadeia dominial, pelos vícios redibitórios e evicção, eis que as relações jurídicas anteriores produzem consequências objetivas nas relações posteriores; o entendimento da Súmula 308 do STJ (a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel) e o entendimento de que contrato de financiamento para compra de veículos realizado pelo banco da montadora implica responsabilidade solidária pelos vícios e defeitos do automóvel (responsabilidade solidária da instituição financeira vinculada à concessionária do veículo ["banco da montadora"], pois parte integrante da cadeia de consumo. - STJ. REsp 1379839/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 15/12/2014), numa consagração da teoria das redes contratuais, que também decorre da função social externa. Também externamente, temos a figura do terceiro ofensor, que sabe (ou deveria saber) acerca do contrato primevo firmado por outras pessoas, e que com sua atuação interfere de forma ilícita, ilegítima, desleal ou abusiva em contrato alheio, podendo levar à sua ruptura ou inadimplemento. É o caso de atravessadores e aliciadores de pessoas obrigadas a prestar serviços a outrem (debauchage), havendo ou não cláusula de exclusividade ou de não concorrência (sendo certo que quando houver ficará ainda mais nítida a figura do terceiro ofensor): o CC prevê expressamente tal figura no art. 608, que trata da prestação de serviços; outra hipótese está expressamente contemplada na Lei Pelé (art. 28 § 2º Lei 9615/98), quando responde solidariamente pela cláusula indenizatória desportiva o atleta e a nova entidade desportiva, no caso de transferência do atleta para outra entidade desportiva durante a vigência do contrato de trabalho desportivo; outro exemplo famoso é o caso Zeca Pagodinho/Brahma x Schin, pois o cantor firmou contrato de exclusividade com a Schin para campanha publicitária de cerveja (garoto propaganda) e ainda durante a vigência do contrato debandou para outra marca de cerveja, se tornando garoto propaganda da Brahma: ação de reparação de danos em que se pleiteia indenização por prejuízos materiais e morais decorrentes da contratação do protagonista de campanha publicitária da agência autora pela agência concorrente, para promover produto de empresa concorrente. [...] Concorrência desleal caracterizada. Aplicação dos ditames derivados do princípio da boa-fé objetiva ao comportamento do terceiro ofensor. (STJ. REsp 1316149/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJe 27/06/2014). Ressalte-se que essa demanda, julgada pelo STJ, se deu entre as agências de publicidade. No TJSP, a Schin obteve sucesso indenizatório contra o cantor (Danos morais e materiais -Contrato de utilização da imagem e voz de cantor em campanha publicitária de cerveja - Quebra do contrato, com o debande do artista para empresa concorrente - Violação do contrato, com efetivação de danos materiais e morais. TJSP. Relator(a): Pedro Ablas; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 14ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 09/04/2008; Data de registro: 06/06/2008; Outros números: 7155293900) e contra a empresa Brahma (Empresa-autora que foi prejudicada pelo aliciamento do principal artista de sua campanha publicitária por parte da empresa-ré [...] Requerida que cooptou o cantor, na vigência do contrato existente entre este e a autora - Veiculação de posterior campanha publicitária pela ré com clara referência ao produto fabricado pela autora – Não observância do princípio da função social do contrato previsto no art. 421 do Código Civil - Concorrência desleal caracterizada [...] Danos materiais devidos [...] Ato ilícito da requerida que gerou patente dano moral e à imagem da requerente (TJSP. Relator(a): J.L. Mônaco da Silva; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 12/06/2013; Data de registro: 25/06/2013; Outros números: 994070311205) O mesmo entendimento pode ser aplicado ao endossatário que desconta cheque, pós-datado pelo emitente (em relação negocial com o endossante), antes da data fixada, desde que o endossatário tenha conhecimento (ou devesse ter) acerca da pós-datação. O mesmo entendimento pode ser aplicado para fundamentar indenização a ser paga pelo amante, em solidariedade com a esposa ou companheira traidora, em caso de ato ilícito praticado por ambos (como o caso de uma traição pública e ultrajante ou então na ocultação dolosa da verdadeira paternidade do filho registrado) em prejuízo do marido ou companheiro enganado, salvo se o amante estivesse de boa fé, desconhecendo a relação conjugal da sua parceira ou desconhecendo ser pai biológico do filho registrado por outrem.

[36] Exemplo de aplicação da teoria das redes contratuais: o entendimento da Súmula 308 do STJ (a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel) e o entendimento de que contrato de financiamento para compra de veículos realizado pelo banco da montadora implica responsabilidade solidária pelos vícios e defeitos do automóvel (responsabilidade solidária da instituição financeira vinculada à concessionária do veículo ["banco da montadora"], pois parte integrante da cadeia de consumo. - STJ. REsp 1379839/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 15/12/2014).

[37] Vale-se aqui de primoroso estudo de LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os contratos coligados. In: BRANDELLI, Leonardo. Estudos em homenagem à Professora Véra Maria Jacob de Fradera. Porto Alegre : Lejus, 2013.

[38] Assim na jurisprudência: A análise econômica da função social do contrato, realizada a partir da doutrina da análise econômica do direito, permite reconhecer o papel institucional e social que o direito contratual pode oferecer ao mercado, qual seja a segurança e previsibilidade nas operações econômicas e sociais capazes de proteger as expectativas dos agentes econômicos, por meio de instituições mais sólidas, que reforcem, ao contrário de minar, a estrutura do mercado.(STJ. REsp 1163283/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 07/04/2015, DJe 04/05/2015)

[39] O instituto da lesão é passível de reconhecimento também em contratos aleatórios, na hipótese em que, ao se valorarem os riscos, estes forem inexpressivos para uma das partes, em contraposição àqueles suportados pela outra, havendo exploração da situação de inferioridade de um contratante. (STJ. REsp 1155200/DF, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/02/2011, DJe 02/03/2011)

[40] É possível a revisão ou resolução por excessiva onerosidade em contratos aleatórios, desde que o evento superveniente, extraordinário e imprevisível não se relacione com a álea assumida no contrato (Enunciado 440 das Jornadas do CJF).

[41] A lesão do CC se aparta do estado de perigo do CC no sentido de que na lesão o contratante se submete ao negocio em função de uma necessidade econômica, enquanto no estado de perigo a premência possui cunho existencial.

[42] Enunciado 410 do CJF: A inexperiência a que se refere o art. 157 não deve necessariamente significar imaturidade ou desconhecimento em relação à prática de negócios jurídicos em geral, podendo ocorrer também quando o lesado, ainda que estipule contratos costumeiramente, não tenha conhecimento específico sobre o negócio em causa.

[43] Enunciado 150 do CJF: a lesão de que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento.

[44] Enunciado 149 do CJF: Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002. Enunciado 291 do CJF: Nas hipóteses de lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento do preço.

[45] Contratar é perigoso. O fator risco é inerente à base ideológica do sistema capitalista. Todo e qualquer contrato, mesmo aqueles comutativos, possuem certo grau de risco (nos contratos aleatórios, o risco é acentuado e da essência do negócio jurídico). Daí o acerto do Enunciado 366 do CJF: o fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação.

[46] Há quem defenda uma certa flexibilização da teoria da imprevisão no CC, pois o acontecimento deve ser imprevisível mas não precisa ser imprevisto. Imprevisível qualifica o fato, enquanto imprevisto descreve o estado de espírito do agente. A imprevisibilidade pode ser objetivada (observação feita de fora), independente da análise da situação psíquica das partes. Enfim, imprevisível equivale a dizer anômalo ou anormal.

[47] Enunciado 365 do CJF:A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena.

[48] Enunciado 175 do CJF: A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às conseqüências que ele produz.

[49] Enunciado 176 do CJF: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual. Enunciado 367 do CJF: Em observância ao princípio da conservação do contrato, nas ações que tenham por objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade, pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada a sua vontade e observado o contraditório.

[50] Assim o STJ: A teoria da base objetiva, que teria sido introduzida em nosso ordenamento pelo art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor - CDC, difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade de fato que determine oneração excessiva de um dos contratantes. Tem por pressuposto a premissa de que a celebração de um contrato ocorre mediante consideração de determinadas circunstâncias, as quais, se modificadas no curso da relação contratual, determinam, por sua vez, consequências diversas daquelas inicialmente estabelecidas, com repercussão direta no equilíbrio das obrigações pactuadas. Nesse contexto, a intervenção judicial se daria nos casos em que o contrato fosse atingido por fatos que comprometessem as circunstâncias intrínsecas à formulação do vínculo contratual, ou seja, sua base objetiva. Em que pese sua relevante inovação, tal teoria, ao dispensar, em especial, o requisito de imprevisibilidade, foi acolhida em nosso ordenamento apenas para as relações de consumo, que demandam especial proteção. Não se admite a aplicação da teoria do diálogo das fontes para estender a todo direito das obrigações regra incidente apenas no microssistema do direito do consumidor (STJ. REsp 1321614/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 03/03/2015)

[51] Exemplo de tutela especial do superendividamento está no limite de percentual para crédito consignado em folha de pagamento de servidor público, empregado celetista ou aposentado/pensionista do INSS (35% conforme Lei 13172/2015). Assim também a jurisprudência: O entendimento firmado no âmbito da Segunda Seção é no sentido de ser possível a resilição do compromisso de compra e venda, por parte do promitente comprador, quando se lhe afigurar economicamente insuportável o adimplemento contratual. Nesse caso, o distrato rende ao promissário comprador o direito de restituição das parcelas pagas, mas não na sua totalidade, sendo devida a retenção de percentual razoável a título de indenização (STJ. AgRg no AREsp 730.520/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/08/2015, DJe 28/08/2015). Assim também a Súmula 543 do STJ: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.

[52] Vale-se aqui de primoroso estudo de PALHARES, Cinara. A tutela do consumidor excessivamente  endividado como forma de preservação dos direitos fundamentais da pessoa humana. In http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-13122010-161854/pt-br.php.

[53] O reconhecimento de um dever de renegociar, entendido não como o dever de revisar o contrato extrajudicialmente ou de aceitar as condições sugeridas pelo contratante que sofre o desequilíbrio, mas sim como um dever de ingressar em renegociação, decorre boa-fé objetiva (dever de cooperação) e da função social interna dos contratos (princípio da conservação dos contratos). O dever de renegociar não é o dever de obter um certo resultado, mas sim um dever de comportamento. Desdobra-se em dois aspectos fundamentais: (a) para quem sofre o desequilíbrio, o dever de renegociar impõe informar prontamente o desequilíbrio contratual ao outro contratante, formulando um pleito de revisão do contrato; (b) para quem se beneficia do desequilíbrio, o dever de renegociar impõe analisar, com seriedade, o pleito eventualmente apresentado pelo outro contratante e respondê-lo, ainda que para negá-lo – o que, ao menos, indicará ao contratante que sofre a excessiva onerosidade qual o caminho a adotar.


Autor

  • Cleber Couto

    Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber. Estatuto constitucional das relações contratuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4896, 26 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53850. Acesso em: 28 mar. 2024.