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Estado Democrático

Estado Democrático

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No Estado Democrático, há tanto a jurisdicização das forças políticas que disputam o controle do Estado e do governo, quanto dos possíveis interesses de relevo público ou global.

RESUMO: o texto propõe uma breve análise da formação e da estrutura jurídica do Estado Democrático. Nosso primeiro indicativo é de que, posteriormente à institucionalização do poder político, adveio a jurisdicização do poder público: a responsabilização administrativa e jurídica do Estado e dos seus gestores. No Estado Democrático há tanto a jurisdicização das forças políticas que disputam o controle do Estado e do governo, quanto dos possíveis interesses de relevo público ou global. Com a progressiva institucionalização dos interesses ou propostas particularistas, partidárias, ocorreu a jurisdicização ou controle judicial (avaliação/punição) dos responsáveis diretos pela consecução dessas finalidades públicas: como os princípios da probidade, licitude, relevância e da eficiência que devem orientar as ações administrativas.

PALAVRAS-CHAVE: Estado Democrático; positividade; princípios democráticos.

SUMÁRIO: 1. Perfil Histórico; 2. Linha Histórica; 3. Positivação dos Princípios Fundamentais do Estado; 4. O Espírito da Grandeza Pública; 5. As Finalidades Públicas do Princípio Democrático; 6. Bibliografia.


1. Perfil Histórico

O texto está dividido em cinco partes, mas será desenvolvido em duas linhas de abordagem gerais, diversas, mas centrais aos objetivos do texto: a primeira é demonstrativa do perfil histórico do conceito e a segunda procura apresentar uma tese ou perspectiva para que se retome um debate - o Estado Democrático tem início com a positivação dos objetivos fundamentais do Estado. Portanto, pela linha histórica, a primeira vertente, temos o marco histórico do Estado Democrático na confecção do documento inglês Bill of Rights, entre 1688-1689. Já para essa segunda corrente, esta que propomos como um debate teórico, os marcos históricos seriam as Constituições portuguesa e espanhola. Iniciaremos o debate pela primeira corrente aventada, inclusive por ser a mais tradicional.

Assim, antes de tomarmos o conceito de Estado Democrático, analisemos alguns marcos históricos do longo processo de maturação da própria idéia ou dos pressupostos da democratização do Estado. São basicamente três esses contornos: as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa.

Com a Revolução Gloriosa (inglesa), desdobraram-se as bases jurídicas dos direitos individuais algumas possibilidades concretas de acirramento pela defesa desses direitos ou de restrições ao próprio Estado. Juridicamente, são as garantias individuais asseguradas pela regra obrigatória da norma da bilateralmente jurídica. No auge do embate político ou de restrição às ações do Estado (aos abusos do Estado), no entanto, invoca-se o direito de resistência ou o direito de revolução e a desobediência civil. De outra forma, também temos aqui muitos embriões do Estado de Direito, como o fortalecimento do parlamento e do parlamentarismo. Aqui está Locke e, por exemplo, o direito à tolerância - sobretudo a religiosa.

Já na Revolução Americana, costuma-se indicar a estruturação do Estado Constitucional, a supremacia da lei constitucional, do regime presidencialista (e com isso, novamente, os próprios direitos políticos de restrição ou controle do Estado) e no sentido mais jurídico, se ainda podemos falar dessa forma, temos as raízes das chamadas garantias institucionais. Este seria o cenário ou o espaço de realização do pensamento federalista, a consumação da República Federativa, como resultado prático dos artigos dos federalistas. Além disso, Thomas Paine (e seu Os direitos do homem) e Thoreau, na Defesa de John Brow, na linha da desobediência civil, são expoentes desse pensamento e devem ser tomados costumeiramente.

Por fim, provindo da Revolução Francesa, o leque aberto irá recobrir muitas outras perspectivas políticas, sociais, populares e comunitárias – vislumbra-se claramente, por exemplo, a afirmação teórica do chamado direito à revolução ou, simplesmente, sublevação, insurreição, destituição violenta do Poder Constituído (veremos adiante algumas passagens de O espírito da Revolução, de Saint-Just, um programa constitucional para a revolução, o que, por sua vez, não deixa de configurar a institucionalização do mesmo processo revolucionário). Mas, se pensarmos num horizonte maior, que se fecharia com a Comuna de Paris, então, é evidente que o foco - sem dúvida - deve ser a consumação prática do mesmo direito à revolução (o levantamento histórico e a leitura crítica de Marx sobre o período seriam fundamentais).

De outra forma, que talvez se possa chamar de complementar, forja-se nesse período um Rousseau rejuvenescido pelas práticas da também chamada democracia radical – ou alargamento e aprofundamento popular dos mesmos direitos conquistados pela burguesia (seguido de uma retomada institucional, a exemplo das garantias institucionais e do próprio direito à igualdade e à liberdade). Aliás, como marco congruente dessa fase tanto reivindicatória por novos direitos quanto revolucionária das bases produtivas, a Comuna de Paris tem de ser destacada. Mesmo que como o breve período que assombrou a história (62 dias - de 28 de março a 28 de maio, de 1871), a Comuna iria materializar o que Marx já havia visto e vivido claramente em 1848: "Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo" (1993, p. 65).

Com isso, chegamos ao final desse breve sumário histórico e a seguir teremos a linha histórica do que acabamos de narrar.


2. Quadro Sinótico da Linha Histórica

1.Polis grega: Século IV A. C. Aristóteles (Demo + Kratos = Poder do Povo; Demo + Cracia = democracia). Embrião da idéia democrática. Sentido de intensa participação pública. Democracia Direta. Cidade extrapola o seu espaço geográfico e se torna espaço de participação.

2.Século XVII: Revolução Inglesa (Revolução gloriosa). Bill of Rights – 1689: influência de Locke - introduz-se a idéia de representação em oposição a Hobbes, que defende o Estado forte para garantir a segurança. Desejo da liberdade religiosa associada ao direito de culto impulsionou a democracia (historicamente, há reação às perseguições religiosas). Holanda ® onde a liberdade religiosa é mais antiga, há mais tradição quanto ao princípio da tolerância.

3.Século XVIII: Revolução Americana ® importante para a idéia de República. Defesa da liberdade religiosa + luta contra as monarquias absolutistas. Declaração da Independência - 1776 (Thomas Jefferson). Principais idéias democráticas e republicanas. Idéias avançadas contra a escravidão. Idéia de que o povo tem o direito de demitir o atual governo. Federalista ® divulgou a idéia de República e de Federação (Madison-Hamilton) ® idéia do controle do poder do governo. Igualdade formal.

3.1 Revolução Francesa: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão - 1789. (influência de Rousseau). (Rivaliza-se com os privilégios: o que se origina de uma lei privada, prive legem, ® que só vale para um grupo). A Revolução Francesa nos legou os valores da liberdade, igualdade e solidariedade (hoje corresponde ao princípio da dignidade da pessoa humana), capitais para a democracia atual.

4.Século XIX: expansão do liberalismo (utilitarismo). França ® Tocqueville em A Democracia na América. Inglaterra ® Stuart Mill: defesa da educação para todos como condição da e para a democracia. Idéia de progresso = ideal iluminista. Expansão das idéias socialistas (Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista de 1848). Socialismo leva ao máximo a idéia de igualdade (como igualdade econômica); o liberalismo leva ao máximo a idéia de liberdade (como liberdade negativa – regulada pela lei).

4.1 Entre os séculos XIX e XX: poder dos partidos políticos ® auge da democracia representativa.

5.Século XX: Democracia de massas ® profundamente ligada à expansão da instituição do ensino público, gratuito e obrigatório.

5.1 Fim do século XX ® idéia da participação popular coexistindo com a democracia representativa. Formas de Democracia Direta: Inglaterra recorre à Democracia Direta para discutir políticas públicas. Democracia Radical ® busca igualdade real.

6. Início do século XX ® forte ênfase na democracia participativa e formas de democracia direta (plebiscitos, governanças eletrônicas, orçamento participativo).

No momento em que nos encontramos, as mudanças são drásticas e pode-se dizer que o campo jurídico, daqui por diante, será tão afetado quanto outros que já se encontram em maior evidência, como educação e economia. Na verdade, mais e mais as relações jurídicas serão politizadas e uma nova interface já se projeta com nitidez, além da preocupação crescente entre juristas de estabelecer relações entre Direito, Ciência Política e Novas Tecnologias. Como é o caso de Dalmo Dallari (2000):

No momento em que os mais avançados recursos técnicos para captação e transmissão de opiniões, como terminais de computadores, forem utilizados para fins políticos será possível a participação direta do povo, mesmo nos grandes Estados. Mas para isso será necessário superar as resistências dos políticos profissionais, que preferem manter o povo dependente de representantes (p. 153).

A principal promessa do Estado Democrático era trazer acréscimos, renovar o aprimoramento de instrumentos que se prestassem a desenvolver a cultura democrática na prática política, e o sufrágio universal como conquista popular talvez tenha sido o ápice. Do sufrágio censitário (definido pela segregação baseada na escolaridade, na cor, na raça, no poder aquisitivo), por exemplo, passamos à regulação do sufrágio universal: estágio político em que uma margem entre 70% e 80% da população encontra mecanismos de participação nas formas da democracia representativa ou até mesmo direta, como ocorre no referendo, no plebiscito, no recall, no veto popular, no exercício do direito de petição. Em suma, o ápice democrático se manifesta no exercício do direito de oposição e de resistência ao status quo e à classe política dirigente. Resumidamente, trata-se da evolução e da transformação por que passaram o direito de resistência e de participação:

O único modo de tornar possível o exercício da soberania popular é a atribuição ao maior número de cidadãos do direito de participar direta e indiretamente na tomada das decisões coletivas (...) O melhor remédio contra o abuso de poder sob qualquer forma – mesmo que "melhor" não queira realmente dizer nem ótimo nem infalível – é a participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das leis. Sob esse aspecto, os direitos políticos são um complemento natural dos direitos de liberdade e dos direitos civis, ou, para usar as conhecidas expressões tornadas célebres por Jellinek (1851-1911), os iura activae civitatis constituem a melhor salvaguarda que num regime não fundado sobre a soberania popular depende unicamente do direito natural de resistência à opressão (Bobbio, 1990, pp. 43-44).

Neste ponto, chegamos de certa forma ao clímax do desenvolvimento instrumental da prática política, dos meios de atuação política que podem ser encontrados na atual estrutura da democracia representativa. Porém é preciso referendar, fundamentar ou conceituar juridicamente esses mesmos meios e instrumentos políticos. E é isso o que ocorre justamente com a positivação dos princípios, objetivos, metas, perspectivas fundamentais do Estado Democrático. O item que iniciamos a partir de agora.


3. Positivação dos Princípios Fundamentais do Estado

Como dissemos anteriormente, neste momento iniciamos uma análise inicial, ainda superficial da tese de que o Estado Democrático positivou os objetivos fundamentais do Estado e, ao fazer isso, transformou-os em lei e pôs em si mesmo a obrigação legal de respeitá-los, promovê-los e cumpri-los ("cumpra-se sempre que necessário, sempre que disposto pela norma"). Não se trata, portanto, de uma simples obrigação moral – "cumpra-se quando for conveniente ou se possível". Porém, antes de aprofundarmos esta análise, iniciemos com o próprio conceito de Estado Democrático.

Teoricamente, todo socialismo é democrático, pois no regime socialista se busca a igualdade real, das condições e de oportunidades, e muito além, portanto, da famosa igualdade de direitos, da igualdade formal (aliás, aquela fase suplanta esta última). Porém, no plano histórico, concreto, do socialismo realmente existente poucas experiências políticas foram dignas da expressão democracia ou democracia popular. Isto porque muitos países geraram uma casta ou classe de gestores que se aproveitavam diferentemente dos recursos obtidos, da produção auferida – é o caso do período áureo do stalinismo e dos Gulags, na ex-URSS, ou de Pol Pot, no Camboja dos anos 70-80.

Juridicamente, o Estado Democrático inicia e promove o processo de positivação das chamadas normas programáticas, ou seja, as definições e conceituações acerca das finalidades institucionais e precípuas do Estado passaram (paulatinamente) por um processo de absorção pela Constituição Federal. Com isso, discussões, ponderações, conceituações, metas, formulações, objetivos e interesses de longo prazo do Estado começaram, lentamente, a migrar do campo político, da Ciência Política e da Teoria Política para dentro do Direito, alcançando um estágio doutrinário bem específico no campo do Direito Constitucional.

Com isso, em primeiro lugar, ocorreu uma fertilização de conteúdo fortemente político do Direito Constitucional, com os autores, juristas e profissionais do Direito debruçando-se sobre temas controversos e candentes da política. Enfim, já na esteira da experiência constitucional portuguesa e espanhola e depois em suas respectivas constituições (Constituição portuguesa – 1976; Constituição espanhola – 1978), os planos dirigentes das políticas públicas transformaram-se definitivamente em programas constitucionais – explicitando-se em artigos, além dos preâmbulos. Este aspecto também será destacado por Jorge Miranda:

O alcance político e literário do preâmbulo é evidente em qualquer Constituição. Ele reflete a opinião pública ou o projeto de que a Constituição retira a sua força; mais do que no articulado e nas palavras adquirem aqui todo o seu valor semântico e a linguagem todo o seu poder simbólico (...) Para nós, o preâmbulo é parte integrante da Constituição, com todas as suas conseqüências. Dela não se distingue nem pela origem, nem pelo sentido, nem pelo instrumento em que se contém. Distingue-se (ou pode distinguir-se) apenas pela sua eficácia ou pelo papel que desempenha (...) Tudo quanto resulte do exercício do poder constituinte – seja preâmbulo, sejam preceitos constitucionais – e conste da Constituição em sentido instrumental, tudo é Constituição em sentido formal (2002, p. 437).

Como se vê, preâmbulo ou princípios (o que inclui as finalidades ou objetivos fundamentais), tanto faz, tudo é parte do direito positivo, expressa uma ação direta da força da Constituição. Até então, as finalidades precípuas do Estado eram pouco mais do que promessas de campanha política, não indo além de um mero reflexo constitucional de programas partidários – como se cada governo imprimisse suas prerrogativas ao Estado, transformando o partidário em governamental e este em estatal, sem nenhum filtro jurídico, sem praticamente nenhuma regulamentação constitucional das políticas públicas de longo prazo. Num outro plano também tornado clássico, esta transformação remete à passagem do governo dos homens ao governo das leis. Como define Bobbio (1986):

Se então, na conclusão da análise, pedem-me para abandonar o hábito do estudioso e assumir o do homem engajado na vida política do seu tempo, não tenho nenhuma hesitação em dizer que a minha preferência vai para o governo das leis, não para o governo dos homens. O governo das leis celebra hoje o próprio triunfo na democracia. E o que é a democracia se não um conjunto de regras (as chamadas regras do jogo) para a solução dos conflitos sem derramamento de sangue? e em que consiste o bom governo democrático se não, acima de tudo, no rigoroso respeito a estas regras? (...) No momento mesmo em que um regime democrático perde de vista este seu princípio inspirador, degenera rapidamente em seu contrário, numa das tantas formas de governo autocrático de que estão repletas as narrações dos historiadores e as reflexões dos escritores políticos (pp. 170-1).

Para Bobbio (1990, pp. 17-19), esta transformação expressará nada mais do que a fixação das bases jurídicas, políticas e institucionais do Estado de Direito. Ou seja, para Bobbio, trata-se simplesmente dos prognósticos do período clássico, vale dizer liberal, do Estado de Direito.

Por isso, com a passagem do governo dos homens ao governo das leis, doravante as Constituições receberiam, transformariam, absorveriam os objetivos de longo prazo, as promessas e as intenções quase futuras (ou futurísticas) do Estado em texto de lei, com força de lei e com a disponibilidade do uso da coerção. Neste particular, deve-se recordar, (re)cobrar que a Constituição é uma lei, a lei das leis, e por isso deve ser cumprida em toda sua extensão. Pensemos que os objetivos fundamentais do Estado brasileiro (conforme art. 3º da CF) devem ser vistos não como promessa de campanha deste ou daquele candidato ou partido, mas como curso a pautar toda conduta política e administrativa do Estado. A Constituição de Portugal quis mais, declarando como objetivo fundamental a construção do socialismo, com igualitarismo econômico real.

O outro ramo de pensamento, invertendo os pólos que viemos construindo, além de diferenciar princípios e normas constitucionais, ainda acentua uma maior presença da positividade às normas constitucionais (como ser, obrigatoriamente) e apenas condicionalmente aos princípios (portanto, como dever-ser). O argumento se baseia no fato de que o Estado não pode se furtar de realizar, concretizar as transformações sociais suscitadas nas normas programáticas, se (apenas se) há condições objetivas e materiais, econômicas, políticas e jurídicas para tanto: o direito acaba colocado na condicional. No entanto, como é fácil analisar e concluir, mesmo nesta perspectiva, esta regra leva o Estado a ir de encontro às demandas sociais, aos objetivos públicos, à edificação da democracia e à transformação do próprio Direito.

Um sentido, no entanto, que, mesmo suscitando a força da crítica da facticidade ou do realismo político, não tem peso decisivo, pois como se vê em muitos autores, bem como em Jorge Miranda, a eficácia da norma constitucional implica na obrigação do seu cumprimento. Do contrário, o Direito seria definido como meio-termo, como condicionado e não como condicionante:

Havendo fiscalização da constitucionalidade, pelo menos, tal não sucederá: o órgão ou órgãos competentes verificarão se ocorrem ou não as circunstâncias objetivas (normativas e não normativas) que tornam possível – e, portanto, obrigatória – a emissão das normas legislativas suscetíveis de conferirem exeqüibilidade às normas constitucionais (2002, p. 447).

Em síntese, isso é objetivar as metas, positivar os objetivos, com força de lei (entenda-se consenso que autoriza e legitima a coerção e o uso da força) capaz de dirigir o Estado e obrigar/responsabilizar seus próprios agentes e gestores para perseguirem esses fins pré-estabelecidos – e com isso cumprirem a lei e os dispositivos expressos da Constituição Federal. Portanto, não há que se falar em normas programáticas (promessas públicas ao léu, ditas ao Deus dará), mas numa lei (positiva, do Direito Posto) de caráter ou de cunho geral, social, coletivo, global, abrangente em seus múltiplos efeitos e pronta para ser cumprida. E se é certo que não é válido alegar ignorância da lei (para justificar seu descumprimento), neste caso é ainda mais certo porque a Constituição trata do começo de tudo, das fundações do Estado. De certa maneira, é o que também entendemos dessa passagem de Eros Roberto Grau:

Deveras, a Constituição do Brasil não é um mero "instrumento de governo", enunciador de competências e regulador de processos; mas, além disso, enuncia diretrizes, fins e programas a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Não compreende tão-somente um "estado jurídico do político", mas sim um "plano global normativo" da sociedade e, por isso, do Estado Brasileiro (...) A Constituição do Brasil é – tem sido – uma Constituição dirigente e vincula o legislador e, ainda que tenha sido múltiplas vezes emendada, seu cerne, que identifico fundamentalmente nos preceitos dos seus artigos 3º, 1º e 170, resta intocado (Grau, p. 428-9).

Na prática estatal e jurídica, entretanto, o que se tem é o puro descumprimento da lei e sem que o povo tenha qualquer opção ou recurso. O Estado sempre alega e se apega à falta de dinheiro, à facticidade, em busca de um efeito anulatório da lei que, em tese, obrigaria o próprio Estado a ser social e democrático (na condução prática das políticas sociais). Bem se vê, dessa forma, que o Estado Democrático tem forte presença de elementos socialistas – inclusive no plano jurídico está mais voltado ao socialismo do que seu predecessor Estado de Direito Social: este que também fez as bases do regime nazista.

No Estado de Direito Social, apenas os direitos sociais são positivados, agora no Estado Democrático as metas globais do Estado (como erradicar toda forma de injustiça e de desigualdade) são parte da lei – a Lei Maior positivou os objetivos de alcance e de resultados públicos. Neste contexto, o direito à educação e o direito à saúde são instrumentos a serviço do Estado para que se realizem os próprios objetivos essenciais do Estado. Em outros termos, o Estado de Direito Social pode ser um instrumental jurídico e político a serviço do Estado Democrático.

Esse modelo de Estado propôs-se positivar os meandros, os meios da mudança e da transformação do antigo Estado de Direito Liberal. Por isso, ainda devemos recordar, frisar, assegurar as regras do jogo democrático. Denis Rosenfield (1992), comentando o livro Qual Socialismo, de Bobbio, sintetiza as regras do jogo da seguinte maneira: "...regras estas que se caracterizam pela rotatividade do poder, pelo sufrágio universal, pelo respeito às decisões da maioria, pela defesa dos direitos da minoria...". (p. 32).

Entretanto, para além das regras do jogo (imprescindíveis, mas não suficientes), o Estado Democrático tem de ser real, efetivo, não apenas formal ou eficaz; tem de ser político e social, e não apenas jurídico, dogmático ou doutrinário. Estes aspectos também fariam parte das atribuições reguladoras de um Tribunal Constitucional que centralizaria os debates sobre tudo que é afeto ao Direito Constitucional, deliberando de acordo com os preceitos e princípios geradores do Estado Democrático. A isto chamaremos de espírito de grandeza pública, e que analisaremos sumariamente no próximo item.


4. O Espírito de Grandeza Pública

Esse espírito de grandeza pública que deve orientar o atual Estado Democrático, na verdade, já constava dos primeiros textos e das clássicas manifestações dos pioneiros ou orientadores da Revolução Francesa, como vemos em Saint-Just (1989). Aliás, um projeto de Constituição intencionalmente intitulado de O Espírito da Revolução:

A liberdade, a igualdade, a justiça são os princípios necessários daquilo que não é depravado; todas as convenções repousam sobre elas como o mar sobre sua base e contra suas margens (...) na França não há poder, falando sensatamente; só as leis comandam, seus ministros impõem-se a obrigação de prestar contas uns aos outros e todos juntos à opinião, que é o espírito dos princípios (...) Os poderes devem ser moderados, as leis implacáveis, os princípios irreversíveis. A opinião é a conseqüência e a depositária dos princípios. Em todas as coisas o princípio e o fim se tocam onde estão prestes a se dissolver. Há uma diferença entre o espírito público e a opinião: o primeiro é formado pelas relações de constituição ou da ordem, e a opinião é formada pelo espírito público (p. 50, 51, 52).

O apego à respeitabilidade do espírito público é inegável, óbvio e ao que não restou dúvidas ao longo do texto. Uma constatação que terá conseqüências diretas, e ainda mais objetivas no pensamento de Saint-Just quando se refere à constitucionalização dos princípios políticos e das finalidades que conformariam o Estado gerado após a Revolução Francesa:

A Constituição é o princípio e o fulcro das leis; toda instituição que não emana da Constituição é tirania; é por isso que todas as leis civis, as leis políticas, as leis do direito das gentes devem ser positivas e nada deixar nem para as fantasias, nem para as presunções do homem (...) Uma Constituição livre é boa na medida em que se aproximam os costumes de sua origem, que os pais são amados, as inclinações puras e os laços, sinceros (pp. 57 - 60).

Esta imagem ou mensagem também surge bem definida, clara na Revolução Americana, uma vez que, além da independência, os colonos e pioneiros, elaboraram a matriz e o perfil do Estado e da Federação americana (após a própria organização da Confederação em torno das 13 Colônias), inaugurando a prática do plebiscito e do referendo para cada uma dessas deliberações. Este aspecto, porém, é tão importante que mereceria uma análise substancial e em separado.

Por fim, como vimos todo o tempo, esse modelo de Estado é um caso clássico em que a política virou lei e assim passou a ser regulada pela Constituição Federal. Historicamente, remete-nos a pensar que a discordância e a diferença acabaram no consenso e no consentimento, visualizando-se que a prática, a experiência, a história orientaram o Direito e os poderes públicos.

Mas, de forma prática ou técnica, como pensar no direito como fator democrático?

Uma possibilidade seria tomar a síntese política, a constitucionalização dos conflitos sociais, como equivalente do esforço pela maior efetividade democrática da Constituição e, assim, da política e do Estado – primando pela síntese constitucional que não esteriliza a política ou as vontades dos participantes da vida pública. E devendo, então, como ensina Konrad Hesse (1991), assegurar que:

Finalmente, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social. Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração de poder, o federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força normativa (p. 21).

A Constituição deve assimilar os contrários, os dissensos, as demais possibilidades sociais e políticas de sua sociedade, inaugurando um pluralismo sócio-político e não o monismo jurídico (ou totalitarismo, de prevalência do pensamento único). Nesta trilha, porém mais tecnicamente, deve-se tomar o direito na forma das garantias institucionais (assegurando-se os direitos fundamentais), como seguridade jurídica necessária à livre fruição das vontades políticas socialmente válidas, pois que o direito, assim considerado, figurará como garantia da vida pública no bojo do Estado Democrático de Direito.

Trata-se, em outras palavras, de assegurar a função jurídica do Estado em que os direitos individuais fundamentais (co)existam com a mesma inclinação de força devida aos deveres públicos. Por fim, da auto-regulação da política e da democratização do direito (direito democrático) podemos extrair a necessária mediação entre o governo dos homens (da política) e o governo das leis (o Telos, a finalidade projetiva da justiça social).

Em sentido estrito, esta passagem da política ao Direito (a positivação dos objetivos fundamentais do Estado Democrático) tem sua fórmula definida pelo princípio democrático (tomo emprestado o conceito de Canotilho), pois que será uma espécie de garantia popular a fim de que as políticas públicas e sociais estejam resguardadas (positivadas, ao abrigo das facticidades e com "força de lei") como finalidades do Estado Público. Por esta razão, passaremos a analisar o princípio democrático com mais vagar.


5. As Finalidades Públicas do Princípio Democrático

Em outro momento, mais brevemente e de forma tangencial, já abordamos o princípio democrático, mas devemos retomá-lo por se tratar de uma especificidade do Estado Democrático, ou seja, por se constituir num dos traços fundantes e como um dos princípios mais importantes e reveladores do Estado Democrático. Portanto, hoje, no dizer de Canotilho, como princípio basilar e já positivado, o princípio democrático é uma norma jurídica constitucionalmente democrática:

O princípio democrático, constitucionalmente consagrado, é mais do que um método ou técnica de os governantes escolherem os governados, pois como princípio normativo, considerado nos seus vários aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, ele aspira a tornar-se impulso dirigente de uma sociedade (s/d, p. 286).

O princípio democrático que norteia o Estado Democrático, por sua vez, é parte dessa complexidade que é o próprio Estado:

Em primeiro lugar, o princípio democrático acolhe os mais importantes postulados da teoria democrática representativa (...) Em segundo lugar, o princípio democrático implica democracia participativa, isto é, a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer controle crítico na divergência de opiniões, produzir inputs político-democráticos. É para este sentido participativo que aponta o exercício democrático do poder (...), a participação democrática dos cidadãos (...), o reconhecimento constitucional da participação direta e ativa dos cidadãos como instrumento fundamental da consolidação do sistema democrático (...) e aprofundamento da democracia participativa (Canotilho, p. 286).

Como analisa Canotilho, o princípio democrático ainda será um processo dinâmico e informador do poder:

O princípio democrático não se compadece com uma compreensão estática de democracia. Antes de mais, é um processo de continuidade transpessoal, irredutível a qualquer vinculação do processo político a determinadas pessoas. Por outro lado, a democracia é um processo dinâmico inerente a uma sociedade aberta e ativa, oferecendo aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de participação crítica no processo político, condições de igualdade econômica, política e social (...) O princípio democrático aponta, porém, no sentido constitucional, para um processo de democratização extensiva a diferentes aspectos da vida econômica, social e cultural (...) A democracia é, no sentido constitucional, democratização da democracia (s/d, p. 287-8).

De modo complementar, o princípio democrático deve institucionalizar a prática democrática da política, como meio de regulação e de limitação ou controle do poder e dos que têm seu exercício como profissão voltada ao domínio:

O princípio democrático não elimina a existência das estruturas de domínio mas implica uma forma de organização desse domínio. Daí o caracterizar-se o princípio democrático como princípio de organização da titularidade e exercício do poder. Como não existe uma identidade entre governantes e governados e como não é possível legitimar um domínio com base em simples doutrinas fundamentantes é o princípio democrático que permite organizar o domínio político segundo o programa de autodeterminação e autogoverno: o poder político é constituído, legitimado e controlado por cidadãos (povo), igualmente legitimados para participarem no processo de organizar da forma de Estado e de governo (Canotilho, s/d, p. 288).

Por fim, ainda salientando os ensinamentos de Canotilho, o princípio democrático deverá, outrossim, pautar-se pelos direitos fundamentais:

Tal como são um elemento constitutivo do Estado de Direito, os direitos fundamentais são o elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: 1) significa a contribuição de todos os cidadãos (...) para o seu exercício (princípio-direito da igualdade e da participação política); 2) implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por exemplo, direitos constitutivos do próprio princípio democrático); 3) coenvolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivos de uma democracia econômica, social e cultural (s/d, p. 288)

Por fim, como ainda salienta Canotilho, o princípio democrático também será um meio/instrumento do direito constitucional (se institucionalizado, positivado) de modo a atuar com um caráter funcional, regulador e que possa dimensionar as funções essenciais à democracia:

Realce-se esta dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio democrático. Ao pressupor a participação igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjetivos de participação e associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia. Por sua vez, os direitos fundamentais, como direitos subjetivos da liberdade criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio maioritário, publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjetivos a prestações sociais, econômicas e culturais, direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos (s/d, p. 288-9)

De qualquer modo, por mais relevante que seja o princípio democrático, para o Estado Democrático, este princípio foi organizado e estruturado a partir do contexto capitalista e, por isso, até o presente não se mostrou suficiente para superar as crises sociais e econômicas.

Enfim, concluindo, no Brasil, a despeito de toda análise constitucional, por mais refinada que seja (e comandada pelo mais brilhante dos constitucionalistas), de maneira bem prosaica, colocando-se submisso às circunstâncias e limitando-se aos escaninhos da barganha do poder, o Estado acaba por alegar que precisa pagar os juros da dívida externa e que, por isso, é levado a não cumprir as metas sociais estabelecidas pela Constituição, e mesmo que para isso descumpra diariamente a lei, afrontando a Constituição.

Deixei para o final a tarefa de relacionar algumas características, traços ou princípios do Estado Democrático, inclusive, porque o debate já se fez ao longo do texto. Relacionei-os da seguinte forma: eletividade, rotatividade, responsabilidade, transparência, tolerância, publicidade, referendo e participação popular.


Bibliografia

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 13ª ed. Rio de Janeiro : DP&A Editora, 2003.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 5ª ed. Rio de janeiro : Paz e Terra, 1986.

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NOTAS

1 Como manifestação pública e popular de resistência ou de enfrentamento a todo o sistema político.

2 Quando se trata de descumprimento de uma lei ou de um conjunto específico de leis, portanto, de implicações mais restritas do que as indicadas pelo direito de resistência ou do direito de revolução.

3 Em outro contexto, seria interessante reconstruir as bases desse Estado de Direito Radical, baseado em Rousseau e nos revolucionários que sustentaram a Comuna de Paris.

4 Devo ressaltar que este item está profundamente inspirado em aulas ministradas pela prof.ª Dr.ª Maria Victoria M. Benevides, quando cursei o doutorado na USP, entre 1997 e 2001.

5 Neste item, não devemos confundir a história ou as bases históricas, filosóficas, jurídicas, políticas da democracia, enquanto forma de governo, com o Estado Democrático – pois este, é óbvio, só foi edificado após a formação do clássico Estado Moderno. Então, a democracia se inicia na Grécia antiga ou clássica, com os primórdios dos direitos políticos e da prática democrática, porém, apenas depois da formação do Estado Moderno é que os direitos políticos adquirem a positividade e a universalidade requeridas.

6 Raramente se fala no ensino de qualidade e não só da quantidade, como se acentua hoje em dia.

7 Hoje, o ciberespaço apresenta inúmeros recursos que podem/devem ser aplicados ao desenvolvimento da democracia virtual – em que se destaca o recurso técnico da livre produção de mensagens, sem mecanismos ou instrumentos prévios de censura, controle ou regulação no âmbito técnico. E é claro que também não me refiro aqui à exclusão digital como a pior forma de censura econômica (Martinez, 2001).

8 O desenvolvimento e a aplicação mais constante deste instrumento jurídico propiciou ou antecipou uma forma muito instigante/interessante de controle popular de constitucionalidade ou de controle externo e popular do próprio Poder Judiciário, como tanto se discute e se requer no Brasil.

9 A Constituição Alemã de 1949 já era expressiva nesse sentido: "Artigo 17 (Direito de petição) Qualquer pessoa tem o direito de apresentar por escrito, individualmente ou de comum acordo com outros, petições ou reclamações às autoridades competentes e à representação do povo" (1975).

10 Teoricamente, todo Estado Socialista deveria ser democrático, mas (nem teoricamente) todo Estado Democrático redundaria no Estado Socialista – basta-nos aqui pensar nos EUA e nas constantes guerras de agressão que dirigem a outros povos e ainda que a maioria de sua população esteja (ou estivesse) contra (como foi o caso da Guerra do Vietnã e agora, na Guerra do Iraque). Neste caso, em que momento o pseudo-Estado Democrático ouviu a vontade popular? As sondagens de opinião pública estão longe de servir de parâmetro global...

11 Os soviets nos primórdios da Revolução Russa e as tentativas de se implantar a autogestão na antiga Iugoslávia seriam bons exemplos das tentativas de se implantar a democracia popular.

12 Se o Direito é Posto, como querem os mais positivistas, então há normas programáticas, uma vez que estas também são parte substancial da Constituição Federal – são sim princípios constitucionais positivados, o que também aguarda seu cumprimento.

13 No preâmbulo: "A Assembléia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno" (grifos nossos). Esse também será o sentido destacado pelo Estado Democrático de Direito brasileiro, ao que se somam as garantias institucionais dos direitos sociais, coletivos, difusos e de todo o complexo dos direitos humanos; contudo, este é um tema que merece tratamento diferenciado. De outro modo, é certo que, na prática, pouco se fez neste sentido – o que teria esvaziado a Constituição portuguesa.

14 Há que se lembrar que se deve diferenciar normas de princípios constitucionais (Silva, 2003). Todavia, este também não é o objetivo deste trabalho.

15 Os planos, programas e planejamentos que visam à efetivação dos objetivos fundamentais são uma outra discussão, pois estes decorrem da ação prática de cada governo.

16 O desenvolvimento teórico, doutrinário e prático do socialismo trouxe, entre tantas contribuições aos direitos políticos, o direito de greve, como o direito que afrontaria diretamente a produção, o direito à propriedade e o próprio direito ao trabalho (alienado).

17 A liberdade, a igualdade, a justiça formam o tripé dos Direitos Humanos.

18 De modo complementar, vê-se aqui a defesa intransigente do Estado Constitucional.

19 Atente-se para a informação de que temos a declaração da necessidade da regulamentação dos direitos políticos, e neste caso, é o que se entende como primeira geração dos direitos políticos.

20 Estas últimas considerações também retratam a necessidade de um ensino jurídico publicista, como desenvolvi em outro texto: Educação para o Espírito Público, em Jus Vigilantibus (Martinez, 23/11/2003).

21 Aliás, diga-se de passagem, a definição clássica do Estado relaciona como elementos de formação apenas o território, o povo, a soberania e a finalidade (ainda que sob este último item recaia certa controvérsia). O único elemento desconsiderado pela grande maioria é o reconhecimento externo.

22 As citações são extensas, mas preferimos utilizar este recurso porque são extremamente claras e elucidativas, como verdadeiras aulas-resumo do tema abordado.

23 No artigo intitulado Estado Funcional, em Jus Navigandi (Martinez, 23/04/2004).

24 Complexus: o que se tece (cresce) junto.

25 Uma espécie de pacta eternus sunt servanda: uma obrigação de fazer que só obriga um dos lados e, normalmente ou via de regra, só os mais fracos, os que não têm a quem recorrer.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado Democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 384, 26 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5497. Acesso em: 28 mar. 2024.