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Delineando a prática do psicólogo judiciário

Delineando a prática do psicólogo judiciário

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Direito penal, direito de família, direito do trabalho, dentre outros: a atuação do psicólogo judicial, aliado à de outros profissionais, quando bem utilizada, pode preencher lacunas importantes na aplicação formal da lei.

Resumo: A Psicologia Jurídica é uma especialidade marcada pela sua interface com o Direito e também com outras representações sociais como a Assistência Social e o Sujeito. O presente trabalho tem como objetivo delinear a prática do Psicólogo Judicial com base na Psicologia Jurídica Brasileira, que afirma que essa prática consiste na aplicação dos conhecimentos psicológicos aos assuntos relacionados ao Direito, principalmente quanto à saúde mental, aos estudos sócio-jurídicos dos crimes e quanto à personalidade das pessoas e seus embates subjetivos.

Palavras-chave: Psicologia Jurídica no Brasil, Psicólogo Jurídico, Atendimento Psicológico, Psicologia Criminal.

Sumário: 1. Introdução. 2. Material e métodos. 3. Análise e discussão dos dados. 4. Considerações finais. 5. Referências.


1. Introdução

Nessa desafiante interface entre Psicologia, Direito, Serviço Social e o Sujeito é preciso conhecer como se deu a entrada da psicologia no cenário jurídico e como o trabalho do psicólogo demanda que outros atores (profissionais do Direito, do Serviço social, entre outros) entrem em cena, para que o sujeito, possa ser compreendido como um todo.

Historicamente, o início da relação da psicologia com o direito se deu no final do século XIX e era denominada “psicologia do testemunho”. Esta, segundo Altoé (2004), procurava verificar, por meio do estudo experimental dos processos psicológicos, a fidedignidade do relato do sujeito envolvido em um processo jurídico. Para Brito (1993) o que se pretendia verificar era se os “processos internos propiciam ou dificultam a veracidade do relato”. Essa verificação era realizada através da aplicação de testes, buscando-se a compreensão dos comportamentos dos sujeitos envolvidos na ação jurídica.

Nesta época, era competência do Psicólogo Judicial realizar perícias, exames criminológicos e pareceres psicológicos que eram fundamentados através dos resultados dos testes psicológicos e das entrevistas feitas com os sujeitos em conflito com a lei.

Mira y Lopes, por defender a cientificidade da psicologia na aplicação de seu saber e de seus instrumentos junto às instituições jurídicas, escreveu o “Manual de Psicologia Jurídica” (1945), que teve grande repercussão e serviu de ferramenta para avaliação e diagnóstico de criminosos e infratores. Confirmando, assim, que a psicologia poderia contribuir com o judiciário através da avaliação das condições psicológicas dos sujeitos envolvidos em um processo jurídico, com a finalidade de dar subsídio às decisões judiciais. Portanto, o trabalho do psicólogo consistia, na época, em detectar a mentira; descobrir causas subjetivas para desvio de normas sociais; indicar técnicas para alteração do comportamento anormal; classificar as pessoas (conforme hereditariedade, caráter, constituição física e psíquica); avaliar condições de discernimento ou sanidade mental das partes; determinar a periculosidade dos indivíduos.

Para a psicóloga e psicanalista Rauter (1994), esses pareceres e exames, quando realizados dentro das penitenciárias e hospitais psiquiátricos penais, servem “para instruir processos de livramento condicional, comutação de penas, indulto e, freqüentemente, para avaliar se um detento pode sair da cadeia ou não, se ele pode retornar ao chamado convívio social, se ele merece uma progressão de regime etc.” Seus estudos revelaram que “a maior parte do conteúdo destes laudos era bastante preconceituoso, estigmatizante e nada tinha de científico... Os laudos repetiam os preconceitos que a sociedade já tem com relação ao criminoso, com relação a alguém que vai para a prisão” (Rauter,1994:21) e contribuíam para prolongar as penas dos criminosos.

Silva (1994) salienta que os laudos e informações que eram dados em relação às crianças e jovens que eram levados para os centros de triagem para serem observados, diagnosticados e enviados aos internatos e reformatórios, acabavam facilitando a segregação, a exclusão dos mais vulneráveis. E, como ressalta Verani (1994 :14), os instrumentos oferecidos pela psicologia tinham um uso que favorecia a eficácia do controle social e reforçava a natureza repressora que está inserida no direito, ao invés de garantir as liberdades e os direitos fundamentais dos indivíduos.

A psicologia Criminal surge como a ciência humana que tinha o saber que viria dar conta do estudo da relação entre o crime e o criminoso, ou como bem coloca Oliveira (1992, p. 31), “as causas (fatores determinantes) da criminalidade, bem como a personalidade e a conduta do delinqüente e a maneira de ressocializá-lo”. Muitos autores descrevem como seria um delinquente, porém, destacar-se-á a versão de Lombroso, psiquiatra, pai da criminologia, criador da antropologia criminal (ciência que estuda a relação entre as características físicas do indivíduo e a criminalidade) e da Psicologia do delinqüente, que diz que o delinqüente é insensível, valente (e às vezes, covarde), inconstante, presunçoso, cruel e se caracteriza por uma tendência a entregar-se à bebida, ao jogo e às mulheres.

É com base na idéia defendida por Cohen (1996, p.10), de que “melhor do que procurar rotular ou classificar ‘tipos criminosos’ seria procurar estabelecer possíveis relações entre uma condição humana, em um determinado contexto, com a prática de ilicitudes” que se define ponto central de investigação da Psicologia Jurídica.

Nesta perspectiva, Liene (2008) assevera que a Psicologia Jurídica abrange as seguintes áreas de atuação:

  • · Psicologia Jurídica e as Questões da Infância e Juventude (adoção, conselho tutelar, criança e adolescente em situação de risco, intervenção junto a crianças abrigadas, infração e medidas Sócio-educativas);

  • · Psicologia Jurídica e o Direito de Família (separação, paternidade, disputa de guarda, acompanhamento de visitas);

  • · Psicologia Jurídica e Direito Civil (interdições, indenizações, dano psíquico);

  • · Psicologia Jurídica do Trabalho (acidente de trabalho, indenizações, dano psíquico);

  • · Psicologia Jurídica e o Direito Penal (perícia, insanidade mental e crime, delinqüência);

  • · Psicologia Judicial ou do Testemunho (estudo do testemunho, falsas memórias);

  • · Psicologia Penitenciária (penas alternativas, intervenção junto ao recluso, egressos, trabalho com agentes de segurança);

  • · Psicologia Policial e das Forças Armadas (seleção e formação da polícia civil e militar, atendimento psicológico);

  • ·Mediação (mediador nas questões de Direito de Família e Penal

  • · Psicologia Jurídica e Direitos Humanos (defesa e promoção dos Direitos Humanos);

  • · Proteção a Testemunhas (existem no Brasil programas de Apoio e Proteção a Testemunhas);

  • · Formação e Atendimento aos Juízes e Promotores (avaliação psicológica na seleção de juízes e promotores, consultoria e atendimento psicológico aos juízes e promotores);

  • · Vitimologia (violência doméstica, atendimento a vítimas de violência e seus familiares);

  • · Autópsia Psicológica (avaliação de características psicológicas mediante informações de terceiros).

O presente artigo refere-se ao projeto de pesquisa Cidadania no Cárcere: humanizando a vida carcerária no Vale do Gorutuba, realizado por professores e acadêmicos do curso de Direito e Serviço Social da Faculdade do Vale do Gorutuba/MG, no sentido de conhecer a realidade do sistema penitenciário de Janaúba/MG e apontar proposta de humanização, destacando neste artigo as práticas da psicologia, principalmente, no que tange a psicologia penitenciaria e como o psicólogo, fazendo parte de uma equipe multidisciplinar pode contribuir para a humanização na vida carcerária.


2. Material e Métodos

Para atingir os objetivos propostos, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, que, de acordo com Gil (2002, p. 44), “é uma pesquisa desenvolvida com base em material já elaborado, constituído em livros e artigos científicos”. Em seguida foi feita a pesquisa documental analisando os processos dos encarcerados do sistema prisional de Janaúba – SUAPI. Posteriormente, foi feito a pesquisa de campo, buscando o levantamento de dados, através de entrevistas e questionários junto a 20% da população carcerária, que totalizou a população de amostra de 23 presos. Para Gil (2002), o levantamento caracteriza-se pela interrogação direta sobre os dados e/ou comportamentos que se quer conhecer.

Utilizou-se formulário semiestruturado, elaborado com perguntas abertas, fechadas e semiabertas. Por fim, foram tabulados e analisados os dados a partir de uma abordagem quantitativa e qualitativa. A análise dos dados foi elaborada a partir do referencial teórico e do conteúdo das respostas dos entrevistados.

A pesquisa observou os princípios éticos, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética da FUNORTE, protocolo nº 01293/10.


3. Análise e Discussão dos Dados

Diante do papel do psicólogo judiciário, baseado nas atribuições delineadas pela Psicologia Penitenciária, tais como acompanhar juntamente com outros profissionais, os presos que tiveram penas alternativas, intervir junto ao recluso através da escuta, realizar um trabalho com os egressos, também em conjunto com outros profissionais; além de trabalhar com os agentes de segurança.

Percebe-se que esse é um trabalho multidisciplinar e para tanto é necessário que os profissionais discutam, a todo o momento, os casos que lhes são apresentados. Portanto, em muitas ações descritas acima é necessária a participação de outros profissionais.

Mediante a análise dos resultados apresentados pela pesquisa, mais precisamente de um deles, as reincidências, vamos propor uma discussão. Num universo de 29 entrevistados, sendo este 20% da população carcerária, 13 deles, ou seja, 45% dos entrevistados, são reincidentes e reincidem por mais de uma vez. A maior parte deles tem faixa etária entre 20 a 30 anos, Conforme gráfico abaixo:

Diante deste contexto, cabe questionar sobre tantas reincidências. Seriam estas derivadas apenas das escolhas do sujeito, do tratamento oferecido pelas instituições carcerárias, do meio onde este sujeito está inserido, ou a família? Enfim, o objetivo aqui não é responsabilizar esse ou aquele pela reincidência destes presos, mas propor uma discussão o assunto.

Quando uma pessoa, institucionalizada, é encaminhada a um profissional dentre eles, o psicólogo, normalmente este indivíduo acha que precisa provar alguma coisa, seja sua inocência, sua sanidade mental, sua verdadeira intenção, seu interesse, sua vitimização, entre outros. Para alguns a resposta a ser dada tem a finalidade de convencer; para outro o que cabe é a recusa, em todos os sentidos: ser escutado, falar, ou ser acolhido. Esta recusa acaba demonstrando a resistência do sujeito aos discursos que o avaliam e normatizam. O que torna comum na fala dos entrevistados é reproduzirem o que se encontra escrito no processo.

Sendo assim, cabe ao psicólogo penitenciário adotar posturas que possibilitem uma escuta clínica, e para isso não cabe negar que não tem conhecimento do que consta no processo, que os mesmos não foram lidos, mas que naquele momento, momento que podemos chamar de acolhimento, o sujeito seja convidado a falar o que quiser o que tiver vontade. Pois, sabe-se que o trabalho do psicólogo dentro destas instituições muitas vezes é pautado apenas na perícia, no relatório, na entrevista.

A escuta clínica para Freud, como nos mostra Kastrup (2007), exigiria uma espécie de atenção flutuante, uma vez que o perigo da focalização da atenção do analista é que essa “concentração” o levaria a negligenciar aspectos fundamentais – e mais, o levaria a “descobrir o que já sabe” (Freud apud KASTRUP, 2007, p. 1). A atenção flutuante em Freud consistiria num esforço em manter a atenção numa espécie de mobilidade, o não privilégio a priori de elementos da fala do paciente, uma abertura que implica abrir mão de preconceitos, mesmo sabendo que, ao final da entrevista, o psicólogo precise fazer um relatório ao juiz, explicando que esta questão (relatórios) é secundária, e não primária. É preciso que os atendimentos psicológicos não sejam direcionados. E a escuta também não seja limitada.


4. Considerações finais

A psicologia possibilita ao profissional perceber o sujeito em todos os seus aspectos e em todos os contextos onde está inserido, e de que maneira estes influenciam em seu comportamento.

A participação de professores e alunos, de cursos diferentes, nesse projeto de pesquisa Cidadania no Cárcere: humanizando a vida carcerária no Vale do Gorutuba, contribuiu para uma discussão rica em questionamentos, descobertas, estudos e transformações. Pela vivência e convivência, no desenrolar das atividades, ficou evidenciado quanto o psicólogo tem a contribuir para as discussões e mudanças que serão propostas para o Sistema Prisional de Janaúba – SUAPI.

A sugestão de uma escuta clínica se deu em razão da experiência pessoal oferecer elementos que comprovam que a partir da escuta clínica, é possível fazer um levantamento diagnóstico e elaborar um projeto terapêutico, com possibilidades de intervenções eficientes. Pois, pela própria dinâmica do projeto terapêutico, pode- se mexer, organizar, desorganizar, vidas e condutas de pacientes. O sujeito é visto em suas reais e possíveis potencialidades, e não em suas insuficiências.

A integração do trabalho de vários profissionais e a constância nos procedimentos da prática clínica poderá desencadear a melhora e até a mudança operacional em todo o Sistema Prisional, e consequentemente, nas reincidências.

Enfim, diante das atribuições conferidas ao Psicólogo, não tem como não reconhecer a importância do saber psicológico neste universo que envolve tantos sujeitos, a sociedade e também a Justiça. Contudo, se faz necessário que os profissionais sejam éticos, conscientes e criteriosos ao escutar, relatar ou elaborar um laudo e mais ainda quando avaliar a condição psíquica e/ou saúde mental dos sujeitos envolvidos em um processo jurídico.


Referências Bibliográficas

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COHEN, C. et al. Saúde Mental, Crime e Justiça. São Paulo: EDUSP, 1996.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1983.

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KASTRUP, V. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. Psicologia & Sociedade, v. 19, n. 1, p. 15-22, 2007.

Liene,M.L.<https://www.ufpi.br/subsiteFiles/parnaiba/arquivos/files/rded2ano1_artigo11_Liene_Leal.PDF>. Acesso em novembro de 2010.

MIRA Y LOPEZ, E. Manual de Psicologia Jurídica. 2. ed. São Paulo: Impactus, 2008.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Grazielle Lopes Santos. Delineando a prática do psicólogo judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4949, 18 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55203. Acesso em: 26 abr. 2024.