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Perspectiva ético-jurídica do planejamento tributário

Perspectiva ético-jurídica do planejamento tributário

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A Constituição Federal tutela o direito ao exercício da autonomia privada, à propriedade e à liberdade contratual, porém, do mesmo modo a Carta Magna também prescreve o dever ético-jurídico ao pagamento do justo tributo.

SUMÁRIO: 1. Apontamentos iniciais; 2. Ética fiscal pública e privada; 3. Perspectiva metodológica para compreensão da Ciência do Direito Tributário e do Direito Tributário no contexto de uma justiça tributária; 4. Epistemologia jurídica e pós-modernidade; 5. Princípios norteadores do planejamento tributário: princípio da liberdade fiscal, princípio da capacidade contributiva e princípio da proporcionalidade; 5.1. Princípio da liberdade fiscal; 5.2. Princípio da capacidade contributiva; 5.3. Proporcionalidade como princípio harmonizador do binômio liberdade fiscal versus capacidade contributiva.

"Há tantas coisa que é escrita hoje simplesmente para defender os interesses do autor ou grupo que dissemina essa idéia, o que é assustador. Se você quer ter uma visão independente, aprenda correndo a observar você mesmo"

Stephen Kanitz – Veja Edição 1.865


1. Apontamentos iniciais.

Entende-se por planejamento tributário a técnica de organização preventiva de negócios jurídicos, visando a uma lícita economia de tributos. [1] Não há dúvidas que a Constituição Federal tutela o direito ao exercício da autonomia privada, à propriedade e à liberdade contratual, porém, do mesmo modo a Carta Magna também prescreve o dever ético-jurídico ao pagamento do justo tributo.

Deste modo, é imperioso que os operadores do direito pensem o planejamento tributário dentro de um contexto ético mais amplo, para que a sociedade brasileira possa avançar nos debates tributários, com o fito de ver no tributo, sua qualidade principal, qual seja, o de ser o instrumento financeiro indispensável à realização da justiça tributária e por conseguinte justiça social.

É no entremear destas singelas premissas que desenvolve o breve estudo que o leitor ora tem em mãos.


2. Ética fiscal pública e ética fiscal privada.

Todo e qualquer planejamento tributário, envolve a tomada de posição frente a questões de diversos matizes éticos. Lembremos que ética é justiça consoante já nos ensinou o professor Olinto A. Pergoraro [2]. Portanto, a justiça está no centro de qualquer discussão ética, e por decorrência no âmago de qualquer tematização atinente ao planejamento tributário. Viver eticamente é viver conforme a justiça. Tributar e gastar de forma ética é tributar e gastar conforme a justiça tributária. Planejar os negócios jurídicos dos contribuintes de forma ética é planejamento segundo a justiça tributária.

O princípio da justiça tributária encontra vida, alma e impulso na virtude da justiça. Esta leva o contribuinte virtuoso a viver como cidadão que luta por uma ordem tributária socialmente mais justa. Somos éticos, justos e virtuosos, no espaço social, ninguém é etico para si mesmo; somos éticos em relação aos outros [3], neste sentido, ética tributária é a prática da justiça tributária, ou, comportamento ético tributário é, antes de tudo, comportamento segundo a justiça tributária, e conforme já sabemos, a ética tributária é fiscal privada (contribuinte) e fiscal pública (Estado), ambos, com deveres e direitos na relação jurídico-tributária.

Para falarmos em Justiça Tributária numa sociedade democrática precisamos notar a presença de pelo menos duas características básicas: i- uma forte regulação na distribuição de bens na estrutura básica da sociedade e, - cidadãos-contribuintes que em uma democracia constitucional pagam tributos e mantêm um fundo comum público, destinado a garantir a oferta de bens e de serviços impossíveis de serem assegurados com eqüidade a todos os cidadãos, se entregues ao mercado. A garantia da oferta básica de tais bens materiais e imateriais, passa inexoravelmente pela intributabilidade do mínimo existencial, e a ausência da oferta deste bens à camada pobre da população redunda na perda do sentido humano, na perda da dignidade no âmbito econômico, político, social e jurídico-fiscal. Em uma sociedade democrática há bens primários, cuja característica principal é serem necessários à sobrevivência digna de todos os indivíduos, por força disto devem ser de acesso obrigatório a todos os cidadãos, o mínimo existencial no que diz respeito à moradia, ensino fundamental, saneamento básico, alimentação básica, saúde preventiva etc. A oferta dos bens desta natureza é de obrigação do poder público, ainda que o Estado deva recorrer ao mercado para garanti-los.

No campo da tributação estes bens primários hão que ser protegidos da tributação [4], e é justamente em nome desta proteção que os governos democráticos estão legitimados à coleta de tributos sobre a renda, propriedade e consumo daqueles que efetivamente podem contribuir. Tanto mais evoluída é a sociedade democrática do ponto de vista da tributação, quanto mais ela consiga inserir e garantir livre da tributação, na lista dos bens primários, outros bens que possam elevar o padrão de dignidade humana dos seus cidadãos. Diferentemente das sociedades hierárquicas, nas democracias deve-se reverter para o cidadão, em especial ao cidadão economicamente mais frágil, na forma da oferta de bens primários, o montante da riqueza que cada cidadão-contribuinte produzir com sua participação econômica, política e social.

Por essa razão, nas democracias a pessoa não trabalha para o engrandecimento da pátria, para merecer a salvação eterna, para honrar o monarca, para enriquecer o empregador etc; as pessoas trabalham, galgam melhores cargos e salários, tornam-se cidadãos-contribuintes para verem melhoradas a sua qualidade de vida, a qualidade de vida de sua geração e para verem garantidas a oferta básica de bens primários àqueles que em nome da solidariedade, têm um direito subjetivo à proteção social, trata-se na verdade de um reconhecimento de direitos e deveres gerados pela relação social. É neste contexto histórico que se insere o direito e ao mesmo dever ao planejamento tributário.

Insistirmos em que há no direito tributário duas éticas: uma ética fiscal privada e outra ética fiscal pública. [5] A ética privada é uma ética de condutas que norteia o cidadão-contribuinte que tem o dever fundamental de pagar tributos segundo a sua capacidade contributiva. Ao cidadão-contribuinte não é ético contribuir a menos para o montante da riqueza social, em proporção ao que suas faculdades lhe permitiam pagar, o que não deixa de ser uma exigência aristotélica na teoria da justiça tributária contemporânea. Portanto, não pode o contribuinte valer-se do planejamento tributário para efetuar pagamento de tributo aquém de sua capacidade contributiva.

Já a ética fiscal pública é informada por quatro valores superiores, a saber, a liberdade, que consiste na aceitação da opção fiscal a ser adotada pelo contribuinte, desde que respeitada a sua capacidade contributiva; a igualdade, no sentido de que todos que estiverem na mesma situação haverão de sofrer a mesma tributação; a segurança, que pugna pela não tributação de surpresa, irracional etc, e finalmente; a solidariedade, ápice da efetivação da ética fiscal pública. Fazer justiça tributária é dentre várias coisas, ser solidário com os carentes que têm direito subjetivo à solidariedade, é garantir aos credores desta solidariedade a oferta de bens primários intributáveis, porquanto os pobres, desempregados, e os assalariados não podem suportar o ônus tributário do Estado, mas, sim, hão que ser suportados pelo Estado via ética tributária da solidariedade mediante a arrecadação e distribuição de riquezas oriundas do pagamento de tributos dos cidadãos-contribuintes.


3. Perspectivas metodológicas para compreensão da Ciência do Direito Tributário e do Direito Tributário no contexto de uma justiça tributária.

A leitura dos limites do planejamento tributário envolve inexoravelmente questões atinentes ao campo filosófico. O conhecimento atual está profundamente marcado e mediado pela linguagem, de maneira que conhecer algo é conhecer a linguagem que torna esse algo compreensível. Agora, atenção! Tenhamos cuidado para que tal assertiva (Linguagem e Direito) seja ampliadora do fenômeno jurídico que é complexo, e não reducionista e mutiladora do Direito.

Pois bem. Vivemos um contexto filosófico onde ressai forte os conceitos oriundos da chamada: Filosofia da Linguagem Contemporânea. Fruto desta concepção filosófica é o alcunhado giro lingüístico que, introduz a novidade epistemológica de que o conhecimento e a linguagem têm sentido apenas no diálogo, e que a relação sujeito-objeto não pode ser vista apenas limitada a essa díade, sendo triádica, sujeito-objeto-comunidade.

Manfredo Araújo de Oliveira traz preciosa lição sobre o tema: "O pressuposto básico dessa concepção é de que a linguagem se radica num acordo prévio a respeito de um sistema de normas e convenções sociais. Insiste-se, portanto, aqui, acima de tudo, no caráter prático e intersubjetivo da linguagem humana. A linguagem passa a ser entendida, em primeiro lugar, como ação e mais precisamente como ação social, que, por essa razão, não pode ser explicada como produto de um único sujeito. Ela é a mediação necessária no processo intersubjetivo de comunicação de tal modo que o ponto de referência de toda a filosofia é, agora, a comunidade de sujeitos em interação, sua práxis comum, realizada de acordo com regras determinadas e originadas a partir do uso das palavras nas comunidades específicas" [6]. Assim, o giro lingüístico se dá com a inflexão da filosofia para o estudo da linguagem como mediadora e constitutiva do conhecimento intersubjetivamente válido. O sujeito e o objeto se relacionam na comunicação com os outros partícipes do discurso. Contudo, a linguagem neste sentido é um índice temático e não um fim temático ensimesmado, isto porque ela só ganha sentido e representação no diálogo com o outro. Se em Kant, a razão prática está associada a um padrão interpretativo que se explica a partir da singularidade do sujeito (o imperativo categórico kantiano é um exemplo), a partir da reviravolta lingüística, a razão prática é substituída pela razão comunicativa, acoplando o conceito de racionalidade ao medium lingüístico, isto é, na razão comunicativa o agir é orientado para o entendimento, para o outro, rompe-se o individualismo e entra-se num jogo dialógico. [7] Noutro dizer, o próprio conceito de validade moral desloca-se de uma consciência moral individual, para o âmbito de uma linguagem pública, realizada através do discurso argumentativo como um entendimento intersubjetivo. [8]

Neste contexto filosófico, o que é o "real"? Certamente, o "real" é o que pode ser representado em proposições verdadeiras, ao passo que o verdadeiro é o que pode ser explicado em relação ao outro no momento que se assevera uma proposição [9], "afinal de contas, a linguagem deseja ser comunicada, e não prescinde da alteridade. É pelo outro que me descubro como eu na vivência do discurso. É nesse sentido que podemos, então, compreender o papel do simbólico como representação social de algo que esta aí". [10]

Direito Tributário e Ciência do Direito Tributário sofrem o impacto direto da filosofia da linguagem contemporânea. Ambos são dos corpos de linguagem, dois discursos de ordem lingüística, da ordem do dever-ser e da ordem das ciências respectivamente, cada qual portador de suas peculiaridades próprias. O ordenamento jurídico tributário é ontologicamente tridimensional, ou seja, compõe-se de uma integração normativa de fatos segundo valores, que dizem respeito à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos, cujo estrato de linguagem possui um vetor prescritivo, ou seja, regulam as condutas nas relações interpessoais, prescrevendo comportamentos nos modais deônticos: permitido, proibido e obrigatório.

A linguagem do direito tributário positivo é chamada de linguagem-objeto, quando cotejada com a linguagem da ciência do direito tributário, que é de sobrenível, ou metalinguagem. Ao direito tributário positivo corresponde a lógica deôntica, lógica do dever-ser, em razão disto as normas de direito tributário são válidas ou não-válidas, diferentemente, da ciência do direito tributário, cujos enunciados são verdadeiros ou falsos. [11]

A Ciência do Direito Tributário é um corpo lingüístico, que se desenvolve a partir da análise do direito tributário (que é uma integração normativa de fatos segundo valores voltados para instituição, arrecadação e fiscalização de tributos), objetivando ordená-lo (objeto ou base empírica), declarando sua hierarquia, transmitido conhecimento sobre a realidade jurídico-tributária, clarificando a forma deôntica e valorativa que permeia todo sistema do direito tributário positivo, bem como, suas significações, articulando questões de ordem lógico-jurídicas (normas tributárias), éticas (valores tributários) e histórico-culturais (fatos tributários) A linguagem da ciência do direito tributário é tida como uma metalinguagem, cujo vetor é descritivo da linguagem-objeto, a lógica que preside esta linguagem é a lógica das ciências, ou lógica apofântica, cujos enunciados como já dito, são valorados como verdadeiros ou falsos.

Um parênteses para uma importante e decisiva observação. Trabalhamos com o conceito de "ciência" na acepção de um conjunto organizado de conhecimentos relativos a um determinado objeto, mediante o uso de um método próprio. Neste sentido é que falamos em ciência do direito tributário. Contudo, a problematização das questões jurídico-tributárias muito embora sejam estruturadas cientificamente, são ontologicamente de natureza prudencial, i.e, diante de múltiplas soluções corretas para uma mesma questão, o intérprete jurídico elege a aceitável, a discursivamente justificável [12].

Se a ciência do direito produzisse interpretações ontologicamente científicas, estaríamos inevitavelmente frente a questões para as quais a ciência jurídica ainda não seja capaz de oferecer respostas, e não como sói acontecer com a ciência do direito que está sempre frente a múltiplas respostas jurídicas. Por isso, acertadamente ao nosso ver, Eros Roberto Grau [13], assoalhado em Aristóteles (Ética a Nicômaco), afirma que a interpretação jurídica (que já é aplicação do direito) é uma prudência, uma virtude cientificamente estruturada cujo conteúdo é a razão intuitiva que não discerne o exato do ponto de vista jurídico, mas sim, o correto, o aceitável, o justificável na comunidade do discurso, daí a interpretação jurídica ser uma juris prudentia e não uma juris sientia. [14]


4. Epistemologia jurídica e pós-modernidade.

Urge ainda situarmos a Ciência do Direito Tributário, que antes de ser tributário é Direito, no quadro das ciências sociais da pós-modernidade. Assim o fazendo, por outras linhas, e em outra época, estamos nós repetidamente invocando as lições de Alfredo Augusto Becker sobre "o sistema dos fundamentos óbvios", só que desta feita, com outros objetivos, que não aqueles que na modernidade animaram o eminente jurista gaúcho.

Boaventura de Souza Santos [15], pondera que estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica. Na ciência moderna o conhecimento avançava pela especialização, pela busca do racionalismo cartesiano; neste sentido, ele era tanto mais rigoroso quanto mais restrito era o objeto (metodicamente mutilava-se o objeto), sobre o qual incidia, havia uma nítida segregação do saber, por conseguinte, uma compartimentabilização do conhecimento ao mesmo tempo em que imperava uma severa vigilância nas fronteiras das disciplinas, para reprimir o cientista que quisesse transpor tais limites, fazendo do cientista um "ignorante" especializado. Kelsen, na seara jurídica, foi um dos baluartes deste modelo, malgrado pelo conjunto da obra, possa ser facilmente reconhecido como o maior jurista do século passado.

O modelo científico pugnado pela ciência moderna, no campo jurídico, se por um lado produziu um reconhecido avanço racional, por outro reduziu a complexidade da vida à secura de uma dogmática mutiladora e reducionista, que a ciência jurídica da pós-modernidade quer superar ao redescobrir o mundo filosófico, ético, sociológico entre outros, em busca de uma complexidade e uma prudência aristotélica perdida pela modernidade. A verdade que nos foi revelada, ainda que como legado importante da modernidade, é que os fatos observados pelas ciências têm vindo a escapar ao regime do isolamento até então proposto, os objetos têm fronteiras cada vez menos definidas; são nas mais das vezes constituídos por anéis que se entrecruzam em teias complexas com os dos restantes objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles. Como então criar um isolamento prisional para o objeto jurídico tributário?

No caso das contribuições, cuja natureza foi constitucionalizada, a questão então é dramática. Temas como a natureza jurídica das contribuições; a destinação do valor arrecadado como elemento que influencia ou não na sua natureza jurídica ou não; são trabalhados hodiernamente, mediante teorias que buscam explicá-los através de um conhecimento que extrapole os parcos limites de uma dogmática estritamente normativista [16], indo além fronteiras, ao encontro de uma epistemologia tributária, agregadora, híbrida, plural, lingüística, complexa, porém, acima de tudo compromissada com uma postura ética, tanto do fisco quanto do contribuinte. [17]

Neste sentido, o conhecimento jurídico volta a ser uma aventura encantada, uma busca da totalidade, da complexidade, uma superação dos dualismos natureza/cultura, observador/observado, coletivo/individual etc. O universo jurídico pós-moderno não é de delimitação tão-somente, mas também de mistura, de celebração do cruzamento, do híbrido, do complexo, do plural, do concreto, do retórico. Muito mais do que se ter um objeto jurídico cartesianamente determinado, o que temos hoje são temáticas, agrupamentos de objetos, relações, galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros, formando um enorme mundo jurídico comunicacional, onde ganha cada dia mais relevo estudos ao modo de uma "situação comunicativa" tal como pugnada por Jürgen Habermas [18], ou à moda pontesiana e popperiana, oportunamente lançada por Adriano Soares da Costa [19], ou na linha de uma "semiótica jurídica", tão bem capitaneada pelo professor de Direito Tributário da PUC e da USP, Paulo de Barros Carvalho [20].

Falar em linguagem comunicacional, em relações sujeito-a-sujeito, em temáticas como agrupamentos de objeto é reconhecer a complexidade do conhecimento na pós-modernidade, o complexus como bem ensina Edgard Morin [21]. Significa o que foi tecido junto. De fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o jurídico, o político, o filosófico, o sociológico, o psicológico, o afetivo etc), e há um tecido interdependente, interativo, unindo o todo e as partes e as partes entre si, por isso a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. O que precisamos é substituir um pensamento que separa e reduz por um pensamento que distingue e une. Não se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, nem da análise pela síntese, mas, sim de conjugar. Conjugar é diferente de sintetizar, na síntese se reduz, na conjugação, distingue-se para unir.

É conhecida a lição de Lourival Vilanova quando diz: "Há um abismo entre o ‘mundo do ser’ e o do ‘dever-ser’, a vontade de superar este abismo é o que caracteriza propriamente a ''cultura". [22] Com efeito, não há fusão do dever-ser no ser, contudo o direito é objeto cultural da ordem do dever-se, e o dever-ser o é em direção ao ser, à experiência, razão pela qual só um pensamento que conjugue, um pensamento que separe o ser do dever-ser para uni-los no objeto que cultural que é o direito, poderá fazer com que o direito hodierno tenha força social suficiente para enfrentar e dar respostas aos desafios da complexidade, com os quais o desenvolvimento próprio de nossa era nos confronta inelutavelmente.

Releva assim, a importância da ciência do direito tributário ser encarada sob estas novas perspectivas oriundas da pós-modernidade, para que só assim, possamos alcançar respostas satisfatórias para os problemas tributários que nos afligem no dia a dia, no particular, aqueles que envolvem os limites éticos-jurídico do planejamento tributário. Sentimentos como estes, faz com que juristas como Miguel Reale [23], cheguem a falar num pensamento jurídico conjetural, para significar que o Direito sendo uma das dimensões da vida humana, de sua experiência, não pode deixar de refletir as perplexidades e complexidades conaturais ao ser humano, em cuja atividade individual e coletiva, a flexível conjetura atende mais aos valores existenciais do que a pretensas certezas do racionalismo rigoroso e restrito.

Os limites do planejamento tributário hão quer compreendidos no seio da miséria social que assola este país, miséria esta que é assunto a ser tematizado por todos os ramos do direito, em especial, o direito financeiro e tributário. Para isto, é necessária uma outra forma de conhecimento jurídico, compreensivo, íntimo, e que não mutile e reduza nosso pensamento, mas antes, que nos conjugue com o que estudamos. Não se trata mais do espanto medieval perante uma realidade hostil possuída do sopro da divindade, nem, do racionalismo neutro do iluminisno, ou do ceticismo do século XX, mas, antes de tudo da prudência perante um mundo que, apesar de domesticado, nos mostra cada dia mais a precariedade do sentido de nossas vidas, em meio a um turbilhão de desigualdade social, pobreza e miserabilidade crescentes.

O que acima foi dito, nos remete de imediato à necessidade de uma nova metodologia jurídica, de um novo pensar jurídico, voltado para solucionar os conflitos complexos de uma sociedade pluralista, exigindo, destarte, a consideração na aplicação do direito de conhecimentos que até então eram considerados ajurídicos, como sabiamente aduz o professor Vicente de Paulo Barretto [24], "o direito pós-moderno aparece, então, quando o lemos sob essa nova ótica, não como instrumento de conservação social, mas sim como agente da mudança social".


5. Princípios norteadores do planejamento tributário: princípio da liberdade fiscal, princípio da capacidade contributiva e o princípio da proporcionalidade.

O princípio maior da dignidade da pessoa humana se agrega ao princípio da liberdade fiscal e ao princípio da capacidade contributiva como elementos norteadores do planejamento tributário. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária como prescreve o art. 3º, inciso I da Constituição Federal, pressupõe sob a ótica da tributação uma concretização dos princípios da liberdade fiscal e da capacidade contributiva, uma vez que a liberdade fiscal correlaciona-se com o ideal da liberdade em sentido constitucional, enquanto a capacidade contributiva vincula-se à idéia de justiça e solidariedade. [25]

5.1. Princípio da liberdade fiscal.

O tributo é o preço da liberdade, bem o disse Ricardo Lobo Torres, por servir para distanciar o homem do Estado, permitindo-lhe desenvolver as suas potencialidades no espaço público, sem necessidade de entregar qualquer prestação permanente de serviço ao Estado. Porém, não basta a liberdade, em seu sentido negativo, para a construção do conceito de tributo, é necessário também que se garantam as condições iniciais da liberdade mediante a proibição de incidência fiscal sobre o mínimo necessário à existência digna. [26]

A base empírica deste princípio é encontrada tanto no artigo 3º I, quanto no art. 5º, caput, da Constituição Federal. Para Rawls [27], liberdade é uma certa estrutura de instituições, um certo sistema de normas públicas que definem direitos e deveres. O princípio da liberdade fiscal possui dupla face: é ao mesmo tempo um direito fundamental e um dever fundamental. [28] Explicando. Na vertente do dever fundamental, submete-se a uma ética fiscal privada, uma ética de conduta que norteia o cidadão-contribuinte em direção ao dever fundamental de pagar tributos segundo a sua capacidade contributiva. Doutra banda, como direito fundamental, o princípio da liberdade fiscal subordina o Estado a uma ética fiscal pública, ou seja, o Estado é constitucionalmente obrigado a reconhecer o princípio da liberdade fiscal [29], aceitando mediante o devido processo legal, a opção fiscal (leia-se: planejamento tributário) adotada pelo contribuinte quando no limite de sua capacidade contributiva e negocial.

O princípio da liberdade fiscal também está associado ao conceito de liberdade negocial no direito tributário. Leciona Heleno Tôrres [30] que a liberdade negocial está vinculada a três possibilidades de escolhas: escolha da melhor "causa" (fim negocial), da melhor "forma" e do melhor "tipo" contratual ou societário, quanto estes não sejam definidos em lei. Heleno Tôrres cunha o conceito de "elusão" para aquelas situações onde o contribuinte, desvia-se das três possibilidades de escolhas negociais, e é surpreendido pela Administração praticando situações carentes de causas ou causa imprópria ou incompatível com o ordenamento, quando se abrirá a possibilidade para eventuais desconsiderações e outras sanções que possam aplicar à espécie, i.e, "elusão" é o exercício da autonomia privada (liberdade fiscal) carente de causa, ou via negócio aparente (simulado ou fraudulento) dolosamente programado para evitar a incidência da norma tributária vigente. [31]

Tamanha é a importância do conceito de liberdade negocial, para o adequado entendimento de uma das vertentes do princípio de liberdade fiscal, que reproduzimos fielmente as palavras de Heleno Tôrres quando discerne, evasão, elisão e elusão, verbis: "Quando alguém promove um negócio jurídico apenas com a finalidade de obter redução de carga tributária incidente, salvo o descumprimento frontal da lei (evasão), das duas uma: ou age com liberdade garantida pelos princípios constitucionais que protegem a autonomia privada, no campo do planejamento tributário legítimo, visando à economia de tributos, constituindo negócios válidos e dotados de causa (elisão), sejam estes típicos ou atípicos, indiretos ou fiduciários, formais ou não formais; ou organiza negócios querendo aparentar um negócio jurídico legítimo e válido, mas desprovidos de causa, organizados com pacto de simular, para retirar os efeitos da causa do negócio aparente, ou ordenados para evitar a incidência da lei imperativa, qualificados como fraudulentos, também estes carentes de "causa" (elusão). Eis como se diferenciam elisão e elusão. Ambos os conceitos decorrem do exercício de autonomia privada, sendo aquele vinculado às opções legítimas do ordenamento e este decorrente do uso das liberdades negociais disponíveis". [32]

5.2. Princípio da capacidade contributiva.

Juntamente com o princípio da liberdade fiscal, o princípio da capacidade contributiva é norteador do planejamento tributário. Aqueles cidadãos que têm o dever de suportar o ônus financeiro do Estado, ou seja, a qualidade de destinatários do dever fundamental de pagar tributos, o tem na medida de sua respectiva capacidade contributiva, isto é, mediante o reconhecimento ético-tributário de que estamos frente a um Estado Fiscal suportável nos limites dos princípios constitucionais tributários.

A liberdade fiscal no Estado Fiscal e Principial, é uma liberdade cidadã, cujo preço reside na existência de destinatários do dever fundamental de pagar tributos. Por conseguinte, o princípio da capacidade contributiva não nos reserva outro caminho, senão por exemplo, o da crescente abertura (observado o devido processo legal) de informações bancárias dos contribuintes fiscalizados às administrações tributárias. O que devemos evitar é o maniqueísmo neste acesso a dados tão importantes, o que só será coibido via ponderação no uso dos princípios jurídicos tributários, ferramentas jurídicas que nos oferecem a possibilidade do justo equilíbrio entre os direitos dos cidadãos, de um lado, e os poderes da administração, de outro. Como bem lembra José Casalta Nabais, "entre o segredo absoluto, que tudo sacrifica nos altares da arcana praxis, e a devassa, própria do mais descarado voyeurismo, há uma infinidade de oportunidades de realização do justo equilíbrio." [33]

O princípio da capacidade contributiva revela-se no aspecto material do fato gerador. O aspecto material consiste, objetivamente, no pressuposto, no limite máximo e no parâmetro do dever tributário. [34] É pressuposto na medida em que constitui o próprio fundamento do dever tributário, revelado pela realização concreta do fato de conteúdo econômico que, diante do conjunto de regras e princípios do ordenamento, justifica a incidência da norma tributária. É limite máximo, pois ninguém pode legitimamente ser obrigado a recolher um tributo superior à sua capacidade econômica. O princípio da capacidade contributiva impede que o dever tributário imposto seja maior do que o conteúdo econômico materializado no fato gerador. É parâmetro, para permitir a aferição da conexão razoável entre o fato gerador e o montante do dever tributário, bem como, para que seja apurado se o valor recolhido pelo contribuinte está na medida correta (não pode ser inferior, nem superior) de suas possibilidades, tendo em vista que é dever de todos [35] concorrer para o financiamento das despesas públicas na medida de sua capacidade econômica, ou seja, quem pode pagar mais, porque é possível [36] pagar mais, deve pagar mais sempre (é vedado escusar-se em opções fiscais [sem causa negocial] para pagar menos do que se pode economicamente), e quem não pode pagar, porque não é possível, deverá pagar o que é possível, só assim avançaremos na construção de uma sociedade menos injusta. [37]

É certo que sob a ótica de uma liberdade fiscal é direito do contribuinte, valer-se dos meios juridicamente lícitos postos à sua disposição, para organizar sua situação tributária frente ao fisco de acordo com a sua autonomia privada e capacidade contributiva, todavia, este direito de se auto-organizar (licitude dos meios/formas jurídicas) não é um direito absoluto e incontrastável em seu exercício, tendo em vista que a experiência pós-moderna de convívio em sociedade, é fundamentalmente informada pelo princípio da solidariedade social e não pelo individualismo exacerbado. [38]

Afirmar a existência de um pagamento de tributo nos limites de sua capacidade contributiva, é pensar outra perspectiva, que não aquela tradicional de dar somente importância à discussão sobre a licitude ou ilicitude da conduta do contribuinte, isto é, se a conduta se materializou antes ou depois da fato gerador, o que se deve verificar hodiernamente é se o contribuinte adotou uma forma jurídica para pagar o tributo com causa negocial e proporcionalmente e razoavelmente de acordo com a sua capacidade contributiva. Se assim o fez, utilizou-se dos meios jurídicos adequadamente; se assim não agiu, abusou dos meios jurídicos para sofrer carga tributária inferior à sua capacidade econômica, e por esta razão, deve ser desconsiderada na forma da lei o revestimento dado ao negócio pelo contribuinte.

Segundo Marco Aurélio Greco, [39] a conseqüência desta postura é a revitalização dos princípios éticos, ao lado das condutas típicas. Hoje, mais do que nunca, estão na ordem do dia os grandes princípios jurídicos: confiança, boa-fé, moralidade da Administração e também do particular, honestidade, sinceridade de propósitos, porque são eles que vão delimitar a faixa de constância e flexibilidade. Se estamos andando na direção da igualdade, justiça social, não podemos andar na direção de apenas um princípio, mas na direção de vários, e o que vai determinar a faixa de certeza e de flexibilidade serão este princípios.

Não cabe mais invocarmos simplesmente, o princípio da legalidade, a proteção ao patrimônio e a liberdade, mas, também devemos invocar o dever fundamental de pagar tributos, o que implica a afirmação de outros princípios jurídicos, solidariedade, liberdade fiscal, capacidade contributiva, proporcionalidade etc. Como bem anota Marco Aurélio Greco [40], a solução dos conflitos concreto na medida em que estamos num Estado Democrático de Direito, passa pela reunião de valores do Estado de Direito e valores do Estado Social, um valor não exclui o outro, um não se anula com o outro, a solução passa pela composição de valores naquilo que eles não se contradisserem, ou seja, prestigia-se um, mas também prestigia-se outro.

Com efeito, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária pode, entre outras formas, ser buscada mediante uma concretização dos princípios da capacidade contributiva e da livre iniciativa, através do princípio da proporcionalidade, pois enquanto aquele primeiro liga-se diretamente à idéia de justiça e solidariedade, o segundo remete ao ideal de liberdade. O princípio da proporcionalidade nesta perspectiva, é princípio de direito e princípio de interpretação do direito, vetor fundamental dirigido tanto ao legislador quanto aos aplicadores do direito em sentido lato.

É bem verdade que Alberto Xavier [41] salienta que "a liberdade individual de os particulares se organizarem e contratarem de modo menos oneroso do ponto de vista fiscal é um dos temas mais nobres do Direito Tributário, intimamente ligado, como está, às garantias constitucionais que a visam proteger e que consistem nos princípios da legalidade e da tipicidade da tributação". Entrementes, mencionada ''liberdade'' não é absoluta conforma bem detecta Klaus Tipke, [42]que reconhece a existência de um direito dos particulares organizarem a sua vida econômica pelo recurso aos meios negociais que o Direito Privado faculta, mas, parte ele igualmente do pressuposto que esse direito não é absoluto, mas intrínseca e originariamente limitado.

Nesta linha, para Tipke [43] a defesa intransigente da segurança jurídica corresponde a um pensamento positivista, ligado ao Estado de Direito Formal, mas inadequado face ao moderno Estado de Direito material. Por isso, caso se comprove que o contribuinte, pelo uso de forma inusuais, modelou juridicamente um fato econômico revelador de capacidade contributiva, de modo a evitar a tributação, o princípio da segurança jurídica deve ceder perante o princípio da capacidade contributiva, cabendo até a legitimação da aplicação analógica.

Cidadão-Contribuinte e Estado têm objetivos (fins) a serem alcançados, entre eles há uma permanente ‘tensão’ de justos interesses, de ambos os lados desta relação pululam os valores da segurança jurídica, da legalidade tributária, da capacidade contributiva, da cidadania fiscal bilateral e da proporcionalidade, e certamente, hoje em dia a proporcionalidade (enquanto princípio de direito e princípio de interpretação do direito [44]) e a capacidade contributiva, são fortes instrumentos à disposição do intérprete para que a tensão entre Estado e Contribuinte possa permanecer em níveis democraticamente aceitos, conforme bem leciona Helenílson Cunha Pontes em obra específica sobre o tema da "proporcionalidade" no Direito Tributário [45].

A discussão atual entre a Ética Tributária do Estado e a Ética Fiscal do cidadão-contribuinte nos revela que o sentido semântico do que seja segurança jurídica mudou completamente, há uma revolução copernicana no conceito do que seja segurança jurídica, tipicidade tributária etc., e quanto a isto parece não pairar mais dúvidas. José Marcos Domingues de Oliveira é sensível a tal mudança, quando bem observa que a "tipicidade aberta, através dos conceitos indeterminados, é o caminho capaz de iluminar materialmente a conciliação ético-jurídica da liberdade humana com o dever social de prestar o tributo justo, justo porque conexo à capacidade contributiva dos cidadãos, sempre sob a reserva do controle de proporcionalidade das leis e dos atos administrativos de lançamento". [46]

5.3. Proporcionalidade como princípio harmonizador do binômio liberdade fiscal versus capacidade contributiva.

O princípio da proporcionalidade tributária é o princípio harmonizador dos objetivos constitucionais previstos nos princípios da liberdade fiscal e capacidade contributiva. Tanto o contribuinte no exercício da autonomia privada (planejamento tributário) quanto o Estado na sua função normativa, produzem normas no sistema, e referido exercício está inelutavelmente limitado pelo princípio da proporcionalidade. A regra jurídica para ser constitucional deve, antes de mais nada, ser proporcional aos fins que objetiva alcançar, os quais necessariamente devem estar em sintonia com os objetivos constitucionalmente almejados. [47]

Numa sociedade de riscos, onde múltiplas são as obrigações do Estado frente a um elenco vastíssimo de direitos fundamentais (art. 5º da CF) e escassos são os recursos públicos, o princípio da proporcionalidade surge como princípio regulador e harmonizador dos conflitos, na aplicação e na proteção dos direitos do homem e da dignidade humana.

A dialética entre a individualidade (microética) e a comunidade representada pelo Estado (macroética) há que ser dominada pelo razão prática da proporcionalidade, ou de uma mediania aristotélica. A proporcionalidade é uma mediania, contudo não é uma mediocridade, mas sim, uma culminância [48], um valor nobre, considerando que é a vitória da razão sobre os instintos, neste caso os instintos públicos e privados. Pensar uma mediania fiscal, é pensar o tributo como justa medida de um dever fundamental de solidariedade. [49] Aqui, há quase que uma síntese de toda aquela sabedoria grega que identifica no ''meio caminho'', no ''nada em excesso'' e na ''justa medida'' a regra suprema do agir, assim como há também a aquisição pitagórica que identificava a perfeição do ''limite'' e ainda, por fim, há uma exploração do conceito de ''justa medida''.

O homem é principalmente razão, mas não apenas razão. Com efeito, na alma há algo de estranho à razão (desejo, apetite etc), que a ela se opõe e resiste, mas que, no entanto, participa da razão. Dominar esta parte da alma, e reduzi-la aos ditames da razão é a virtude ética, a virtude do comportamento prático. Esse tipo de virtude se adquire com a repetição de uma série de atos sucessivos, ou seja, com o hábito. Nós adquirimos as virtudes com uma atividade anterior, como acontece também com as artes. Com efeito, é fazendo que nós aprendemos a fazer, tributando se aprende a tributar, pensando se aprende a pensar. Pois bem. Da mesma forma, realizando ações justas tornamo-nos justos; ações moderadas, moderados; ações corajosas, corajosos. Assim, as virtudes tornam-se como que [hábitos], [estados] ou [modos de ser] que nós mesmos construímos. Assim como muitos são os impulsos e tendências (excesso de tributação versus excesso de sonegação) que a razão deve moderar, também são muitas as ''virtudes éticas'', mas, todas têm uma característica essencial que é comum: os impulsos, as paixões e os sentimentos tendem ao excesso ou à falta (ao muito ou ao pouco), intervindo, a razão deve impor a ''justa medida'' a ‘proporcionalidade’, que é o ''meio caminho'' ou ''mediania entre os dois excessos.

Tal lição serve ao Estado, ente tributante e ao cidadão contribuinte. Portanto, a virtude tem a ver com as paixões e ações, nas quais o excesso e a falta constituem erros e são censurados, ao passo que o meio é louvado e constitui retidão, virtude. A proporcionalidade na tributação está na ‘justa medida do tributo a ser exigido’, nem tributo com efeito confiscatório, nem tributo aquém da capacidade contributiva, mas sim, tributo como justa medida de um dever fundamental de solidariedade do cidadão.

O princípio da proporcionalidade tributária apresenta duas dimensões, uma negativa, que veda o arbítrio estatal, ou seja, é uma cláusula geral anti-arbítrio, uma proteção do cidadão contribuinte contra medidas estatais arbitrárias; e outra positiva, na otimização das pretensões constitucionais que possam aparentemente apresentarem contraditórias (liberdade fiscal v capacidade contributiva, por exemplo). Tanto quanto desempenha função negativa ou positiva, o princípio da proporcionalidade exerce a dupla missão de constituir o limite e o fim da atuação estatal. [50]

O princípio da proporcionalidade também postula ser um método geral para solução de colisão de bens, valores, ou princípios constitucionais, estabelecendo ponderações entre distintos bens constitucionais. Nesta função, revela-se em três máximas:

Adequação, verificar no caso concreto se o ato em questão é apto para produzir o efeito desejado, se o meio utilizado para alcançar a finalidade desejada é apropriado, ou ao contrário, se torna ainda mais dificultoso o atingimento do resultado almejado.

Necessidade, verificar se o meio utilizado está na medida justa, ou se pode ser substituído por outro menos gravoso e igualmente eficaz. Ou seja, se estamos diante de um conflito principiológico e de uma limitação ao exercício de um bem jurídico, que essa limitação eficacial seja perpetrada estritamente nos lindes necessários ao alcance do interesse público buscado, mediante a eleição do meio mais suave dentre aqueles igualmente aptos aos fins desejados.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito, que consiste em verificar se se afigura uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto. Se o a relação entre o meio adotado e o fim com ele perseguido revela-se proporcional, i.e, quando a vantagem representada pelo alcance desse fim supera o prejuízo decorrente da limitação concretamente imposta a outros interesses igualmente protegidos. O sacrifício imposto por uma intervenção estatal a uma parcela da liberdade constitucionalmente protegida não deve estar fora de proporção com o efeito (positivo ou negativo) que se pretende promover com tal intervenção. [51]


Notas

1 Heleno Taveira Torres. Direito Tributário e Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 175.

2 Ética é Justiça. 6ª ed. Petrópolis: Vozes. 2001. 13

3 Ética é Justiça. op. cit. p. 9.

4 Cf. John Rawls. Uma Teoria da Justiça. op. cit. p. 303-313.

5 Cf. À respeito da temática ética pública e ética privada, o pensamento de Gregorio Peces-Barba citado por Márcio Monteiro Reis no texto, Moral e Direito – A fundamentação dos direitos humanos nas visões de Hart, Peces-Barba e Dworkin, in Teoria dos Direitos Fundamentais, (org) Ricardo Lobo Torres, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 130-136.

6 Diálogos entre razão e fé. São Paulo: Paulinas, 2000, p.24. Grifos apostos.

7 Luiz Moreira. Fundamentação do Direito em Habermas. 2ª ed. Belo Horizonte: Mandamentos. 2002. p. 100-102.

8 Marina Velasco. Ética do Discurso. Apel ou Habermas? Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad. 2001. P. 11.

9 Luiz Moreira. op. cit. p. 107.

10 Adriano Soares da Costa. Teoria da incidência da norma jurídica. Crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey. 2003. op. cit. p. 23.

11 Cf. por todos, Paulo de Barros Carvalho. Curso de direito tributário. 14ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002.op. cit. p. 3-4.

12 Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. São Paulo. Malheiros. 2003. p. 35.

13 "Não se tome, no entanto, a afirmação de que a interpretação do direito não é ciência, mas prudência, como assertiva de que as decisões jurídicas são imprevisíveis. Isso não é exato. Sendo inúmeros os sentidos do uso do vocábulo "ciência", nada nos impede de sustentar que a decisão jurídica, porque há de ser previsível estrutura-se cientificamente {Menezes Cordeiro 1989: LXII]. Mas "cientificamente", aqui, significa exclusivamente decisão consumada segundo determinadas regras. Como a prudência é sempre implementada segundo certas regras, que asseguram um mínimo de previsibilidade à decisão nela fundada, poderia se referida como cientificamente estruturada". Eros Roberto Grau, Ensaio discurso sobre...op. cit. p. 96.

14 Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre...op. cit. p. 93-98.

15 Um Discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo - USP. São Paulo. V. 3. p. 71.

16 Cf. por todos, Marco Aurélio Greco, "Contribuições (uma figura ''sui generis'')" São Paulo. Dialética. 2000.

17 Cf. Roberto Wagner Lima Nogueira, "Ética Tributária e Cidadania Fiscal". Revista de Estudos Tributários. Porto Alegre. Síntese. Ano V. Nº 27. set-out de 2002. p. 20-40.

18 Cf. Teoria de la Acción Comunicativa:Complementos y Estudos Previos. Madrid. Cátedra. 2001.

19 Cf. Teoria da incidência da norma jurídica. Crítica ao realismo língüistico de Paulo de Barros Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey. 2003. passim.

20 Cf. Direito Tributário - Fundamentos Jurídico da Incidência. São Paulo. Saraiva. 1998.

21 Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. 4 ed. Cortez. São Paulo. 2001. p. 38.

22 Sobre o conceito do direito. Recife. 1947. p. 88.

23 Nova fase do Direito Moderno. 2ª ed. rev. São Paulo. Saraiva. 1998. p. 144.

24 In prefácio de Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e Argumentação - Uma contribuição ao Estudo do Direito. 2ª ed. amp. Rio de Janeiro.Renovar. 2001.

25 Cf. Helenilson Cunha Pontes. O princípio da proporcionalidade e o Direito Tributário. São Paulo: Dialética. 2000, p. 103.

26 Cf. Liberdade, Segurança e Justiça no Direito Tributário, Justiça Tributária - I Congresso Internacional de Direito Tributário Vitória - 12-15 de agosto de 1998. São Paulo. Max Limonad. 1998. p. 684-685.

27 John Rawls. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes. 1997. p. 219.

28 Cf. José Casalta Nabais. O dever fundamental de pagar impostos. Almedina. Coimbra. 1998. p. 679.

29 Para uma ampla visão do tema, autonomia privada, simulação e elusão tributária, cf. Heleno Tôrres, Direito Tributário e Direito Privado. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2003. passim

30 Direito tributário e direito privado. op. cit. p. 16.

31 Direito tributário e direito privado. op cit. p. 17.

32 Direito tributário e direito privado. op. cit. p. 166.

33 Revista Virtual...op. cit. p. 26.

34 Helenilson Cunha Pontes, op. cit. p. 107.

35 Com exceção é claro daqueles cidadãos protegidos pelo princípio constitucional da cidadania fiscal unilateral.

36 Lembrar preceito Constitucional art. 145, § 1º, "Sempre que possível...".

37 Bem disse Paulo Freire: "Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da eqüidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que dizemos e o que fazemos. (...) Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher, não estarei ajudando meus filhos a serem justos e amorosos com a vida e com os outros". Rio de Janeiro. Jornal "O Globo". Caderno Prosa e Verso. 24-05-1997, p. 6.

38 Marco Aurélio Greco, Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária, São Paulo. Dialética. 1998. p. 127-128.

39 "Planejamento Fiscal..." op. cit. p. 25.

40 Planejamento Fiscal.." op. cit. p. 29.

41 Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Paulo. Dialética. 2001. p. 13.

42 Apud, Alberto Xavier, Tipicidade da tributação... op. cit. p. 102.

43 Apud, Alberto Xavier, Tipicidade da tributação.." op. cit. p. 103.

44Apud, Eros Roberto Grau, in prefácio, Helenílson Cunha Pontes, O Princípio da proporcionalidade e o Direito Tributário. São Paulo. Dialética. 2000.

45 O Princípio da proporcionalidade.." op. cit. parte III, p. 101-120.

46 Legalidade tributária. O princípio da proporcionalidade e a tipicidade aberta in Estudos de Direito Tributário em homenagem à memória de Gilberto de Ulhôa Canto. (Coord) Maria Augusta Machado de Carvalho. Rio de Janeiro. Forense. 1998. p. 215.

47 Helenilson Cunha Pontes. op. cit. p. 41.

48 Cf. Aristóteles. Ética à Nicômaco. São Paulo: Martin Claret. Livro II. 2002. p. 47-49.

49 Cf. José Casalta Nabais. op. cit. p. 674-679

50 Cf. Helenilson Cunha Pontes, op. cit. p. 87.

51 Helenilson Cunha Pontes. op. cit. 70.


Autor

  • Roberto Wagner Lima Nogueira

    mestre em Direito Tributário, professor do Departamento de Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) , procurador do Município de Areal (RJ), membro do Conselho Científico da Associação Paulista de Direito Tributário (APET) é autor dos livros "Fundamentos do Dever Tributário", Belo Horizonte, Del Rey, 2003, e "Direito Financeiro e Justiça Tributária", Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004; co-autor dos livros "ISS - LC 116/2003" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto e Ives Gandra da Silva Martins), Curitiba, Juruá, 2004; e "Planejamento Tributário" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto), São Paulo, Quartier Latim, 2004.

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NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Perspectiva ético-jurídica do planejamento tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 419, 30 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5641. Acesso em: 25 abr. 2024.