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A moral e o envenenamento do judiciário

A moral e o envenenamento do judiciário

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Um breve ensaio com fim na reflexão. O Brasil caminha a passos largos para um regresso jurídico. De teoria se conhece muito, mas de prática, todos parecem reféns das próprias concepções.

Sabe-se que no Direito a análise do caso concreto é norteadora para a aplicação da lei. Sendo assim, quando propagam-se essa ideia, o intuito do ensino (a grosso modo) é dizer que há uma moldura já pronta (lei), mas o conteúdo da imagem ou fotografia a ela anexada (caso concreto), será diferente, porém, com as mesmas dimensões – não podendo extrapolar o que a moldura limita.

Portanto, analisando o cenário atual do judiciário brasileiro, percebe-se que, por algum motivo (necessário tratar), a referida moldura parece desaparecer para uns, mas para outros, além de existir, é rígida e de madeira tão mais sólida.

Em análise substancial, perceptível e bastante nítido que as decisões e atuações judiciais estão cheias de concepção moral, tornando a referida moldura inócua.
Eis que surge os seguintes questionamentos:

MORAL – DE QUAL ESTAMOS FALANDO?

Salienta-se, inicialmente, que não vem a jogo abordagem a respeito das mais absurdas decisões proferidas por centenas de magistrados ao longo do território. Até porque, seria afirmar um utópico pensamento de que nós, brasileiros, somos os únicos acometidos por essa enfermidade. Mas mais do que isso, análogos aos cientistas médicos, precisamos buscar as causas que nos levaram a essa abrupta e violenta doença que, hoje, tornou-se um câncer para o judiciário nacional.

Quando um cidadão sem formação jurídica (sem excluir até mesmo muitos juristas) escuta que não se pode deixar que a moral corrompa o judiciário, a expressão espantosa em seu olhar é nítida e contínua, o questionamento seguinte é deveras comum: “Como não? Um judiciário pautado pela moral é fundamental, pois, o contrário disso é a imoralidade! ”. O problema aqui encontra-se resguardado em nosso leigo entendimento sobre “moral”.

Como leciona Sánchez Vásquez¹, estando estrechamente vinculados, no se identifican los problemas teóricos morales con los problemas prácticos, tampoco pueden confundirse la ética y la moral.

Percebe-se, portanto, que ao falar de “moral” se faz necessário reconhecer variadas formas de manifestação e um amplo leque de estudos, porém, não sem razão, acabamos por caminhar para o apaixonado conceito que temos de “moral-administrativa”, abordada como:

um padrão de conduta que deve ser necessariamente observado pelos agentes públicos como condição para uma honesta, proba e íntegra gestão da coisa pública, dem odo a impor que estes agentes atuem no desempenho de suas funções com retidão de caráter, decência, lealdade, decoro e boa-fé².
 

Quando dizemos que a moral não pode corromper o judiciário, claramente, ainda nas palavras do saudoso professor Vázquez, trata-se daquela denominada de “problema prático-moral”, que:

Si al indivíduo concreto se le plantea em la vida real uma situación dada, el problema de como actuar de manera que su acción pueda ser buena, o sea, valiosa moralmente, tendrá que resolverlo por sí mismo con ayuda de una norma que él reconoce y acepta intimamente.³ (grifo nosso)

Portanto, trata-se de íntima convicção do indivíduo, ligada a uma norma interior que carrega consigo, fruto do aprendizado rotineiro da vida e convivência sociais.

QUAL O PROBLEMA DA MORAL NO JUDICIÁRIO?

Imaginem que um par de homossexuais desejam reconhecer sua união, porém, no judiciário do Estado existem duas Varas responsáveis pelas demandas, onde o juiz de uma não aceita, por concepção moral própria, a referida união, mas o outro, sim.

O leitor provavelmente deve pensar: mas o juiz é imparcial e existe todo um ordenamento para permitir isso.

Ora, é exatamente isso que é dito quando o judiciário é saudável e apartado de convicções íntimas dos atuantes profissionais.

Agora, por mais absurdo que pareça, o mesmo casal deverá contar com a sorte neste caso, pois, nas mãos de um magistrado, eles conseguirão; noutro, não será possível – é exatamente isso que se tornou comum no Brasil.

Saindo da esfera civil e migrando para a penal, nesta, existem uma gama de leis regulamentando condutas profissionais de autoridades policiais, promotores, defensores, magistrados e etc.

O que se busca (não só na esfera penal, mas no Direito uno) é o que chamamos de segurança jurídica, não somente aquela das decisões judiciais, mas em toda e qualquer atuação, tendo a plena convicção de que haverá tratamento igualitário (formal e material, mas regulados por lei ou amparados por forte jurisprudência) a qualquer cidadão que assim ingresse na atuação do Estado-investigador-julgador-punidor.  

Essa moldura existe para impedir que os cidadãos estejam condenados a uma vida de “atuação da sorte”.

As cortes superiores brasileiras estão infestadas de decisões contraditórias, tratadas de formas diferentes em situações bastante semelhantes, mas não por análise minuciosa dos detalhes (o famoso cada caso é um caso), contudo por fundamentações pautadas (pelo que parece) pelo humor no dia do julgamento.

Parece um jogo de loteria ingressar com um Habeas Corpus ou Mandado de Segurança. A sensação é de estar dentro de um cassino quando uma audiência é marcada. Não se sabe como será a atuação e a conduta profissional no dia; a lei parece já não ter mais aplicabilidade, mas mais do que isso, a moral de quem está na sala será norteadora das práticas.

Se fazemos da moral particular a moldura de atuação do judiciário, para que servem as leis?

Um juiz pode simplesmente assumir o papel de acusador? Ou de defensor?

O mais preocupante é que dado o elevado conhecimento dos juristas brasileiros, parece que estão sempre buscando se esconder em argumentos fortes e que realmente fazem sentido, v.g., “mas o magistrado tem o desejo de esclarecer os fatos”, fazendo disso motivo para rasgar o Código de Processo Penal.

Conclusão

Não cabe ao juiz gostar da lei, mas aplica-la. O Poder Judiciário não tem função legislativa (típica) para manusear instrumentos ao bel-prazer criando normas alheias a vontade do Legislativo. A culpa aqui não é exclusiva daquele Poder (o Judiciário), mas de uma sociedade que carece de informação e atuação democrática, deixando a elaboração de leis nas mãos de irresponsáveis que espalham aos outros Poderes uma sensação de “confusão” profissional, v.g., são tantas leis desnecessárias e contraditórias entre si, que os operadores do direito se veem perdidos, recorrendo a moral interior.

É como dizer que “quem não sabe para onde ir, qualquer caminho lhe será bom”.

Referências

1 – Sánchez Vásquez, Adolfo; A Ética; Editora Crítica; 4ªEdição, 1984, pág. 24

2 – Cunha Júnior, Dirley da; Curso de Direito Administrativo; Editora jusPODIVM, 14ª Edição, 2015, pág. 39

3 – Sánchez Vásquez, Adolfo; A Ética; Editora Crítica; 4ªEdição, 1984, pág. 19


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