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A exigência da CID em atestados médicos

violação ao direito à intimidade do empregado ou um mal necessário para um bem maior?

A exigência da CID em atestados médicos: violação ao direito à intimidade do empregado ou um mal necessário para um bem maior?

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O CID consiste na Classificação Internacional de Doenças, em que a grande maioria dos diagnósticos médicos pode ser encontrada e associada a um código. Sua função é uniformizar os diagnósticos e permitir análises estatísticas necessárias para a saúde pública.

RESUMO: O presente artigo tem por escopo trazer à lume o debate sobre a afronta ao direito à intimidade do obreiro pelo empregador, visto a exigência do CID como requisito para aceitação de atestado médico apresentado para abonar faltas em virtude de doença. Tal imposição das empresas já estava sendo debatido, tanto pelos médicos, os quais, com supedâneo na Resolução CFM n.º 1.658/2002, posicionavam-se contrariamente à teratológica exigência, quanto pelos empregados e empregadores. No entanto, acertadamente, o Tribunal Superior do Trabalho abriu importante precedente entendendo que tal imposição das empresas viola o direito fundamental do empregado à privacidade. O presente trabalho tratará, ainda, da evolução dos direitos fundamentais, em qual dimensão se encaixa o direito à intimidade e saúde, o conceito de CID e sua finalidade, tecerá breves comentários sobre a Resolução CFM n.º 1.658/2002, a afronta ao direito do obreiro à intimidade e, por fim, demonstrará a importância da douta decisão da Corte Trabalhista.

PALAVRAS CHAVE: Direitos fundamentais. Direitos à intimidade e saúde. CID. Empregado. Empregador. Decisão do TST.


1 INTRODUÇÃO 

O direito à privacidade é direito fundamental inerente a todo ser humano, motivo pelo qual foi constitucionalmente positivado. Tal direito não diz respeito somente à vida íntima, também se aplica para afastar qualquer ameaça à imagem e honra do cidadão.

Tendo vista se tratar de direito do cidadão, o qual está positivado no art. 5º, inciso X, da Constituição da República de 1988, sua aplicação se estende às relações trabalhistas. Dessa forma, o empregador deve guardar sigilo quanto vida privada dos seus funcionários, já que o direito à intimidade abrange o acesso, a divulgação de aspectos da esfera íntima e pessoal e da vida familiar, afetiva e sexual, o estado de saúde e as convicções políticas e religiosas.

O empregador não pode exigir dos empregados informações relativas à sua vida privada, salvo quando particulares exigências inerentes à natureza da atividade profissional o justifiquem ou forem estritamente necessárias e relevantes para a avaliação da sua aptidão para o trabalho.

Mesmo diante da inviolabilidade do direito fundamental à privacidade, hodiernamente os empregadores vêm exigindo de seus empregados a indicação do CID nos atestados entregues por estes, o que agride um dos direitos mais importantes para o homem, sua intimidade. Ao solicitar a indicação do CID nos atestados médicos, o empregador deixa de cumprir os princípios insculpidos na Constituição Federal de 1988 e como é cediço, a violação de um princípio é muito mais grave do que violação da própria lei. Assim, não pode o empregador exigir a indicação do CID nos atestados médicos, pois é única e exclusivamente do obreiro o interesse sobre a doença ao qual foi acometido e o impossibilitou de trabalhar.

Ademais, tal prática das empresas é fortemente criticada pelo Conselho Federal de Medicina, pois não há qualquer obrigação do médico em indicar o código da doença ao qual foi acometido o obreiro/paciente, pois trata-se de relação sigilosa entre médico e paciente. Inclusive, é vedado pela Resolução CFM n.º 1.658/2002 o fornecimento de atestados codificados pelos médicos, salvo justa causa, exercício de dever legal, solicitação do próprio paciente ou de seu representante legal.

Portanto, tal artigo buscará mostrar a importância do direito fundamental à privacidade, a posição do Conselho Federal de Medicina sobre a indicação do CID em atestados médico e atual posicionamento do TST a respeito do tema, sendo essa a proposta objetiva desse trabalho. Mostrar a importância do direito à privacidade do trabalhador e a sua total violação pelos empregadores.


2. SÍNTESE DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Segundo a melhor doutrina, a história dos direitos fundamentais desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional, cujo âmago e motivo de existência residem no reconhecimento e na proteção do primado da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem, podendo, ainda, ser considerado como a história da limitação do poder estatal.[1]

Tendo por base essa importante lição e não pretendendo esgotar o tema – tendo em vista sua importância e fascínio –,   o presente tópico tem por finalidade expor a evolução dos direitos fundamentais, identificar o momento da sua positivação e, por fim, suas dimensões.

Dito isto, é necessário trazer à lume lição de Ingo Wolfgang Sarlet{C}[2], cujos ensinamentos relatam que:

Num primeiro momento, é possível destacar [...] algumas concepções doutrinárias e formas jurídicas que antecederam e influenciaram o reconhecimento, em nível do direito constitucional positivo, dos direitos fundamentais no final do século XVIII, até a sua consagração ao longo do século XX.

Buscando sintetizar tal trajetória quanto aos seus principais momentos, Klaus Stern identifica três etapas: a) uma pré-história, que se estende até o século XVI; b) uma fase intermediária, que corresponde ao período de elaboração da doutrina jusnaturalista e da afirmação dos direitos naturais do homem; c) a fase da constitucionalização, iniciada em 1776, com as sucessivas declarações de direitos dos novos Estados americanos. (Grifo nosso)

 A fase pré-histórica consiste na fase embrionária dos direitos fundamentais, pois, “a antiguidade foi o berço de algumas ideias essenciais para o reconhecimento dos direitos humanos [...] e posteriormente dos direitos fundamentais”[3], encontrando suas raízes na filosofia clássica, especialmente no pensamento greco-romano e na tradição judaico-cristã. Ou seja, nessa fase os direitos fundamentais não estavam tão desenvolvidos e tampouco positivados nas constituições da maioria dos Estados como na atualidade, sendo apenas tema de debate dos pensadores da época.

Concernente a afirmação natural dos direitos do homem, Paulo Gustavo Gonet Branco professa que relevante impulsionador para o acolhimento da ideia de uma dignidade única do homem com proteção especial, foi o cristianismo, cuja doutrina ensina ser o homem à imagem e semelhança de Deus e que próprio Deus assumiu a condição humana para redimi-la, transmitindo, assim, alto valor intrínseco à natureza humana, o que influenciou a elaboração do próprio direito positivo[4].

Na esfera do direito positivo, em que pese não ser o primeiro documento a tratar dos direitos fundamentais, a Magna Charta Libertatum, firmada em 1215, pelo Rei João Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses, é considerada o principal o documento que dispõe sobre os direitos fundamentais, o qual é referência para os estudiosos do assunto. Apesar de não contemplar todos os indivíduos (apenas os nobres ingleses), este documento tratou de “alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade”.[5]

Na fase de constitucionalização dos direitos fundamentais, ensina Alessandra Gotti[6] que o “processo de constitucionalização das declarações de direitos foi desencadeado, no final do século XVIII, com a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, a Constituição norte-americana, de 1787, e a Declaração francesa, de 1789.

Em suma, sintetizando a trajetória dos direitos fundamentais, Gotti citando as lições de Norberto Bobbio diz que:

Esse processo de positivação das declarações de direitos no texto das Constituições corresponde, como leciona Norberto Bobbio, à passagem da teoria (porquanto as declarações de direitos nascem como meras teorias filosóficas) à prática, do direito somente pensado ao direito realizado, já que, consoante sintetiza Bobbio, os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais. (Grifo nosso)

Após breve relato histórico dos direitos fundamentais, passemos a discorrer sobre suas gerações (dimensões).

2.1 gerações (dimensões) dos direitos fundamentais

Prezando pela objetividade do presente trabalho, não adentraremos na discussão doutrinária sobre a melhor terminologia para cognominar as etapas de evolução dos direitos fundamentais, nos limitando a discorrer sobre cada geração (dimensão) dos direitos fundamentais.

Sobre os direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações (dimensões), Uadi Lamengo Bulos[7] leciona o seguinte:

a)  Direitos fundamentais de primeira geração: direitos individuais

A primeira geração, surgida no final do século XVII, inaugura-se com o florescimento dos direitos e garantias individuais clássicos, os quais encontravam na limitação do poder estatal seu embasamento.

Nessa fase, prestigiavam-se as cognominadas prestações negativas, as quais geravam um dever de não fazer por parte do Estado, com vistas à preservação do direito à vida, à liberdade de locomoção, à expressão, à religião, à associação etc.

b)  Direitos fundamentais de segunda geração: direitos sociais, econômicos e culturais

A segunda geração, advinda logo após a Primeira Grande Guerra, compreende os direitos sociais, econômicos e culturais, os quais visam assegurar o bem-estar e a igualdade, impondo ao Estado uma prestação positiva, no sentido de fazer algo de natureza social em favor do homem.

Aqui encontramos os direitos relacionados ao trabalho, ao seguro social, à subsistência digna do homem, ao amparo à doença e à velhice.

c)  Direitos fundamentais de terceira geração: direitos de fraternidade ou solidariedade

A terceira geração, por alguns chamada de novíssima dimensão, engloba os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade (Karel Vasak).

Tais direitos têm sido incorporados nos ordenamentos constitucionais positivos e vigentes de todo o mundo, como nas Constituições do Chile (art. 19, § 8), da Coreia (art. 35, 1) e do Brasil (art.  225).

Os direitos difusos em geral, como o meio ambiente equilibrado, a vida saudável e pacífica, o progresso, a autodeterminação dos povos, o avanço da tecnologia, são alguns dos itens componentes do vasto catálogo dos direitos de solidariedade, prescritos nos textos constitucionais hodiernos, e que constituem a terceira geração dos direitos humanos fundamentais.

Sobre os direitos fundamentais supracitados, vale trazer o posicionamento do Supremo Tribunal Federal:

Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e politicos) - que compreendem as liberdades classicas, negativas ou formais - realcam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos economicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuidos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansao e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponiveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.  (MS 22164, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/1995, DJ 17-11-1995 PP-39206 EMENT VOL-01809-05 PP-01155)

No que tange aos direitos fundamentais de terceira geração (dimensão), pode-se afirmar que são direitos transindividuais, ou seja, direitos que ultrapassam os interesses do indivíduo, pois dizem respeito à proteção do gênero humano, cujo teor de humanismo e universalidade é demasiadamente elevado.

Sobre os direitos fundamentais de quarta geração (dimensão), André Ramos Tavares[8], citando as lições do notável Paulo Bonavides, diz que nesta quarta dimensão, segundo professa o grande mestre, tem se inserido o direito à democracia, ao pluralismo e à informação, ancorado na ideia de uma globalização política. No entanto, discorda do constitucionalista cearense dizendo:

No particular, parece mais acertado, para manter a estrita coerência com o critério de identificação das demais dimensões (e a própria ideia de dimensão), falar, na quarta dimensão, de uma diferenciação de tutela quanto a certos grupos sociais, como, por exemplo, as crianças e os adolescentes, a família, os idosos, os afro-descendentes etc. Enquanto os direitos de participação democrática poder-se-iam reconduzir aos clássicos direitos políticos, presentes desde os direitos de primeira dimensão, estes direitos não deixam de ser direitos já existentes, mas que sofrem não um alargamento (extensão) de conteúdo, senão uma diferenciação qualitativa quando aplicados a certos grupos.

Bonavides, em sua originalidade, sustenta, ainda, que a quarta dimensão

é o resultado da globalização dos direitos fundamentais, no sentido de uma universalização no plano institucional, que corresponde, na sua opinião, à derradeira fase de institucionalização do Estado Social. Para o ilustre constitucionalista cearense, esta quarta dimensão é composta pelos direitos à democracia (no caso, a democracia direta) e à informação, assim como pelo direito ao pluralismo.[9]

Sustenta, ainda, Bonavides a quinta geração de direitos fundamentais, que seria a imposição da positivação no texto das diversas constituições, o reconhecimento do direito à paz como condição imprescindível à convivência humana, de igual forma como ocorre na Constituição Brasileira de 1988, na qual estabelece a defesa da paz como um dos princípios fundamentais que regem o Estado Brasileiro em suas relações internacionais (art. 4°, inciso VI, da Constituição). Tal posicionamento do autor se justifica por entender que a forma que Karel Vasak tratou o tema “– que inclui a paz no rol de direitos ligados à fraternidade (terceira dimensão) – teria se revelado incompleto e lacunoso, permitindo que o referido direito caísse no esquecimento”.[10]

 2.2. O direito à privacidade/intimidade

De acordo com Constituição de 1988, em seu art. 5º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Como pode se observar, a Constituição Federal, optou por referir tanto a proteção da privacidade, quanto da intimidade, como bens autônomos, tal como no caso da honra e da imagem. Porém, tendo em vista ser a esfera da vida íntima (intimidade), mais limitada que a da privacidade, não é possível dissociar uma da outra, sendo imperioso um tratamento conjunto de ambas as situações.[11]

Tendo em vista a proteção constitucional atribuída à intimidade, é possível afirmar que a divulgação do CID em atestados médicos depende de prévia autorização do paciente, já que compreende informações confidenciais e segredos pessoais do paciente, ou seja, abrange as relações do indivíduo com o meio social nas quais não há interesse público na divulgação.

Em que pese existir proteção constitucional em relação ao direito à privacidade, tal direito não é absoluto e pode haver restrições no âmbito de sua proteção, quando:

I) adequadas para fomentar outros princípios constitucionais;

II) necessárias, por não haver outro meio similar com igual eficácia; e

III) proporcionais em sentido estrito, por fomentarem princípios constitucionais que, diante das circunstâncias do caso concreto, fornecem razões mais fortes que as oferecidas pelo direito à privacidade.[12]

Agarrando-se às exceções, empresas Brasil afora vem solicitando dos seus empregados a indicação do CID em seus atestados médicos para que haja o abono da falta, o que nitidamente viola o direito à privacidade.

Para tratar do assunto de forma mais aprofundada, abriremos alguns tópicos específicos, conceituando o que seria CID, a posição do Conselho de Medicina a respeito do tema e por fim, a decisão do TST sobre o assunto.


3. CID, O QUE É? QUAL A POSIÇÃO ADOTADA PELO CONSELHO DE MEDICINA SOBRE A SUA INDICAÇÃO NOS ATESTADOS MÉDICOS?

De acordo com Renato de Mello Silveira (apud Jorge Allan Daniel Giordani da Silveira)[13], “atestado é o documento que se realiza a atestação, afirmação, testemunho e/ou declaração escrita de determinado fato ou obrigação com presunção de veracidade” e segundo § 3º, do art. 6º, da Resolução CFM n.º 1.658/2002, “o atestado médico goza da presunção de veracidade, devendo ser acatado por quem de direito, salvo se houver divergência de entendimento por médico da instituição ou perito”, ou seja, somente pode haver recusa ao seu recebimento pela junta médica da empresa e nos casos em que este apresentar indícios de falsidade, o que inclusive é crime.

O atestado médico tem por finalidade atestar o estado de saúde do indivíduo, declarando sua saúde, além certificar a existência de uma doença, justificando a ausência de atividade laboral.

Em que pese o atestado médico gozar de veracidade, algumas empresas vêm exigindo o CID em atestados como requisito para sua aceitação e posterior abono da falta, o que caracteriza total violação ao direito à privacidade do empregado.

O CID, por sua vez, consiste no código da Classificação Internacional de Doenças, em que a grande maioria dos diagnósticos médicos pode ser encontrada e associada a um número, cuja função é uniformizar os diagnósticos e permitir análises estatísticas necessárias para a saúde pública.[14]

Considerando a função do CID, o atestado médico expedido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou pelo médico não necessita contê-lo, já que não foi elaborado com a finalidade de controle das doenças. Dessa forma, somente por meio de lei o médico estará obrigado a revelar o código ou a doença em atestados médicos, ou quando a pedido do empregado.

Tal vedação esta, inclusive, positivada, na Resolução CFM n.º 1.658/2002, em seu Art. 5º, o qual dispõe: “Os médicos somente podem fornecer atestados com o diagnóstico codificado ou não quando por justa causa, exercício de dever legal, solicitação do próprio paciente ou de seu representante legal”.

O desrespeito das empresas ao direito fundamental à privacidade e intimidade é condenado pela melhor doutrina que diz o seguinte:

Esta é uma medida ética do médico [art. 5º, Resolução CFM n.º 1.658/2002] e uma garantia de privacidade do paciente. A não revelação ou a revelação do CID ou do diagnóstico não é, portanto, uma decisão do médico e sim do paciente. Desta forma, a empresa não poderá obrigar o médico a colocar o diagnóstico ou o CID nos atestados, sem autorização do paciente, podendo o médico incorrer em violação de segredo profissional (art. 154 do Código Penal).[15]

Sobre a intimidade e a privacidade nas relações de trabalho, é imperioso trazer a posição de Amauri Mascaro Nascimento[16], que diz o seguinte:

O trabalhador e o empregador devem guardar sigilo quanto à intimidade da vida privada. O direito à reserva da intimidade da vida privada abrange o acesso, a divulgação de aspectos da esfera íntima e pessoal e da vida familiar, afetiva e sexual, o estado de saúde e as convicções políticas e religiosas. (...) O empregador não pode exigir do candidato a emprego ou dos empregados que prestem informações relativas à sua vida privada, à sua saúde, salvo quando particulares exigências inerentes à natureza da atividade profissional o justifiquem ou forem estritamente necessárias e relevantes para a avaliação da sua aptidão para o trabalho. (Grifo nosso)

É cristalina a posição do Conselho Federal de Medicina quanto a indicação do CID em atestados médicos, o que inclusive está disposto no supracitado art. 5º, da na Resolução CFM n.º 1.658/2002. Sua posição fica mais nítida com a comemoração da decisão do TST que suspendeu a validade de cláusula coletiva que exigia a indicação da Classificação Internacional de Doenças em atestados médicos. Vejamos trecho de informação constante no site do CFM:

"A decisão baseada em preceitos éticos da Medicina foi comemorada pelo 1º secretário da autarquia, Hermann Alexandre Vivacqua von Tiesenhausen. Na avaliação do diretor, a “decisão vai ao encontro de tudo o que o CFM tem defendido há longa data, de que a privacidade é um direito constitucional e que essa relação de confiança entre o médico e o paciente é uma cláusula pétrea”.


4. A POSIÇÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO SOBRE A INDICAÇÃO DO CID EM ATESTADOS MÉDICOS

Em que pese o TST já ter se posicionado sobre o assunto, não é possível apontar com total firmeza qual entendimento restou cristalizado na Corte Trabalhista, visto que consoante Informativo nº 115 do TST, a Corte, acertadamente, decidiu pela nulidade de cláusula de convenção coletiva de trabalho que prevê a obrigatoriedade da inserção do CID (Classificação Internacional de Doenças) no atestado médico do empregado. Entretanto, em recente decisão, de forma contrária, admitiu a indicação do CID, sustentando que não há violação do direito fundamental à intimidade/privacidade, cláusula constante de convenção coletiva de trabalho que exija a inserção do CID nos atestados médicos apresentados pelos empregados (Informativo nº 126 do TST).

De acordo com o primeiro posicionamento do Tribunal, a apresentação do CID obriga o empregado a informar acerca de seu estado de saúde, o que viola o direito fundamental à sua privacidade e intimidade. Vejamos trecho do Voto proferido no Processo: TST-RO-268-11.2014.5.12.0000:

A exigência da CID nos atestados estipulada por norma coletiva obriga o trabalhador a divulgar informações acerca de seu estado de saúde sempre que exercer o seu direito - garantido pelo art. 6º, § 1º, "f", da Lei nº 605/1949 - de justificar a ausência no trabalho por motivo de doença comprovada.

Essa exigência, por si só, viola o direito fundamental à intimidade e à privacidade do trabalhador, sobretudo por não existir, no caso, necessidade que decorra da atividade profissional.

A Resolução nº 1.685/2002 do CFM, que normatiza a emissão de atestados médicos, preceitua no art. 3º, II, alterado pela Resolução nº 1.851/2008 do CFM, que a previsão do diagnóstico no documento em questão depende de autorização expressa do paciente.

O art. 5º da mencionada Resolução reforça essa disposição ao afirmar que os médicos só podem fornecer atestados com a previsão do diagnóstico em três hipóteses: justa causa, dever legal e solicitação do paciente. Entretanto, o caso em tela não evidencia a configuração de nenhuma dessas hipóteses.

[...]

No próprio âmbito da Medicina, a obrigatoriedade da previsão da CID em atestado é vista como prejudicial ao trabalhador. Nesse sentido, Genival Veloso de França, ao analisar a figura do atestado médico oficial:

(...) é nosso entendimento que a obrigatoriedade do "diagnóstico codificado", no atestado médico oficial, em vez de proteger o trabalhador, cria-lhe uma situação de constrangimento e, ao ser relatado o seu mal, mesmo em código, suas relações no emprego são prejudicadas, pela revelação de suas condições de sanidade, principalmente se é ele portador de uma doença cíclica que o afastará outras vezes do trabalho. (...) Concluindo, podemos afirmar que a indicação do diagnóstico em atestados ou outros documentos médicos, de forma declarada ou pelo CID, constitui infração aos princípios éticos que orientam o exercício profissional, a não ser que expressamente autorizada pelo paciente, por justa causa ou por dever legal.

Há que se ressaltar que esta não foi a primeira decisão que proibiu a indicação do CID em atestados médicos apresentados pelo empregado, vejamos ementa abaixo:

RECURSO ORDINÁRIO. MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA. HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. (...) CLÁUSULA VIGÉSIMA SEGUNDA. ATESTADOS MÉDICOS E ODONTOLÓGICOS. EXIGÊNCIA DE PREENCHIMENTO DO CID. A Constituição Federal elegeu a intimidade e a vida privada como bens invioláveis. Trata-se, pois, de direito fundamental albergado no art. 5.º, X, da Constituição Federal. A exigência de indicação expressa do CID nos atestados médicos vai de encontro à referida diretriz constitucional, por se tratar de ingerência na vida privada do cidadão. A cláusula 22.ª, tal como redigida, não se coaduna com o Precedente Normativo n.º 81 desta Corte Superior, pois, além de conter obrigação à margem da lei e da Constituição Federal, não contempla a necessidade de convênio com a Previdência Social, no que se refere aos serviços ofertados pelos sindicatos da categoria profissional. (...) (RO-20238-58.2010.5.04.0000, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, SDC, DEJT 19/10/2012)

De forma totalmente contrária às decisões supra mencionadas, o TST decidiu o seguinte:

Ação anulatória. Atestado Médico. Exigência da inserção da Classificação Internacional de Doenças (CID). Validade da cláusula de convenção coletiva de trabalho. Não violação do direito fundamental à intimidade e à privacidade.

Não viola o direito fundamental à intimidade e à privacidade (art. 5º, X, da CF), cláusula constante de convenção coletiva de trabalho que exija a inserção da Classificação Internacional de Doenças (CID) nos atestados médicos apresentados pelos empregados. Essa exigência, que obriga o trabalhador a divulgar informações acerca de seu estado de saúde para exercer seu direito de justificar a ausência ao trabalho por motivo de doença, traz benefícios para o meio ambiente de trabalho, pois auxilia o empregador a tomar medidas adequadas ao combate de enfermidades recorrentes e a proporcionar melhorias nas condições de trabalho. Sob esse entendimento, a SDC, por unanimidade, conheceu do recurso ordinário e, no mérito, pelo voto prevalente da Presidência, deu-lhe provimento para julgar improcedente o pedido de anulação da cláusula em questão. Vencidos os Ministros Mauricio Godinho Delgado, relator, Kátia Magalhães Arruda e Maria de Assis Calsing. TST-RO- 480-32.2014.5.12.0000, SDC, rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, red. p/ o acórdão Min. Ives Gandra Martins Filho, 14.12.2015. (Informativo nº 126 do TST)

Apesar das decisões divergentes do TST, neste trabalho, a posição adotada foi no sentido da não indicação do CID nos atestados apresentados pelo empregador, pois a justificativa que a indicação do código traria benefícios para o meio ambiente de trabalho, pois auxilia o empregador a tomar medidas adequadas ao combate de enfermidades recorrentes e a proporcionar melhorias nas condições de trabalho, vai contra o direito fundamental à intimidade/privacidade. Ademais, tal justificativa não encontra guarida em nenhum dos motivos ensejadores à restrição do direito à privacidade, que seria quando:

I) adequadas para fomentar outros princípios constitucionais;

II) necessárias, por não haver outro meio similar com igual eficácia; e

III) proporcionais em sentido estrito, por fomentarem princípios constitucionais que, diante das circunstâncias do caso concreto, fornecem razões mais fortes que as oferecidas pelo direito à privacidade.

Até que haja uma posição definitiva do TST, tais decisões servem para alicerçar tanto a parte hipossuficiente da relação, quanto o empregador. Assim, é necessário aguardar uma posição definitiva do TST a respeito do tema. Até lá, vários embates serão propostos nas Varas Trabalhistas para que os trabalhadores não tenham o seu direito fundamental à privacidade violado.


5. CONCLUSÃO

Tendo vista a importância do direito fundamental à privacidade, não é possível sua violação na hipótese estudada sob a justificativa de que seria um mal necessário para o bem da maioria, pois estaríamos diante de um atentado aos preceitos constitucionais, o que é inadmissível.

Assim, a justificativa de que a indicação do CID traria benefícios para o meio ambiente de trabalho, pois auxilia o empregador a tomar medidas adequadas ao combate de enfermidades recorrentes e a proporcionar melhorias nas condições de trabalho, fere de morte as disposições constitucionais e, também, um dos direitos mais importantes inerente ao homem.

Dessa forma, a justificativa utilizada para fundamentar a decisão se não enquadra nas hipóteses de restrição do direito à privacidade, pois não é possível limitá-lo, como acertadamente vinha decidindo o TST até infeliz decisão teratológica que colocou em xeque a intimidade dos empregados.

Assim, até que haja uma posição definitiva do TST, os empregados continuarão tendo seus direitos violados, já que são a parte mais fraca da relação trabalhista. Não se pode deixar o silêncio tomar de conta da situação, devendo o obreiro buscar o Judiciário.


Notas

[1] Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional / Ingo Wolfgang Sarlet. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. E-book.

[2] Sarlet, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Curso de direito constitucional – 4. ed. ampl., incluindo novo capítulo sobre princípios fundamentais – São Paulo : Saraiva, 2015. E-book.

[3] Idem.

[4] Mendes, Gilmar Ferreira. Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. – 9. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2014. E-book.

[5] Sarlet, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Curso de direito constitucional – 4. ed. ampl., incluindo novo capítulo sobre princípios fundamentais – São Paulo : Saraiva, 2015. E-book.

[6] Gotti, Alessandra. Direitos sociais: fundamentos, regime jurídico, implementação e aferição de resultados. – São Paulo: Saraiva, 2012. E-book.

[7] Bulos, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional – 8.  ed.  rev.  e atua1. De acordo com a Emenda Constitucional n.  76/2013 – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 528-529.

[8] Tavares, André Ramos. Curso de direito constitucional. – 11. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2013. E-book.

[9] Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. E-book.

[10] Novelino, Marcelo. Manual de direito constitucional. – 9. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO , 2014. E-book.

[11] Sarlet, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Curso de direito constitucional – 4. ed. ampl., incluindo novo capítulo sobre princípios fundamentais – São Paulo : Saraiva, 2015. E-book.

[12] Novelino, Marcelo. Manual de direito constitucional. – 9. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO , 2014. E-book.

[13] SILVEIRA, Allan Daniel Giordani da.  A exigibilidade do atestado médico codificiado em Ofensa a princípios constitucionais. Trabalho de conclusão de curso (graduação de Direito). 2011. Universidade Tuiuti do Paraná. Disponível em:<http://tcconline.utp.br/wp-content/uploads/2012/05/A-EXIGIBILIDADE-DO-ATESTADO-MEDICO-CODIFICADO-EM-OFENSA-A-PRINCIPIOS-CONSTITUCIONAIS.pdf>. Acesso em 12 de mai. 2016.

[14] Cassar, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. – 11.ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015. E-book.

[15] Idem.

[16] Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho, relações individuais e coletivas do trabalho, 27. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 779-780.


ABSTRACT: This project brings to the light the discussion about the affront to the right to privacy of the worker by the employer, because the demand of the ICD as a requirement to the acceptance of medical certificate introduced to eliminate the non-attendance because of illness. This companies obligation was already being discussed by many doctors, which they are positioning themselves up contrary to the unnatural demand, as by employees and employers, based on Resolution CFM nº 1.658/2002. However, the Superior Labor Court opened an important precedent understanding that companies obligation infringes the fundamental rights of the employee to privacy. This project will, still, show up the fundamental rights evolution, in which dimension it fits the right to privacy and health, the ICD concept and its goal, short comments about the Resolution CFM nº 1.658/2002, the affront to the employee’s right to the privacy and lastly it will show the importance of the Worker Court decision.

KEY WORDS: Fundamental rights.  Right to privacy and health. ICD. Employee. Employer. TST decision.


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