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Notas sobre o auxílio-doença e as Medidas Provisórias nº 739/2016 e nº 767/2017

Notas sobre o auxílio-doença e as Medidas Provisórias nº 739/2016 e nº 767/2017

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Analisa-se o papel das recentes Medidas Provisórias n. 739/2016 e 767/2017 na atual disciplina do benefício previdenciário de auxílio-doença.

1. INTRODUÇÃO

No exercício da prerrogativa que lhe confere o art. 62 da Constituição Federal de 1988, o Presidente da República editou a Medida Provisória n. 739, de 07 de junho de 2016, por meio de que, entre outras medidas, alterou a disciplina do auxílio-doença na Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Resumidamente, a MP n. 739/2016 cuidava de questões como (a) carência e duração do benefício, (b) ônus e deveres do beneficiário.

Ocorre que a MP n. 739/2016 não foi convertida em lei pelo Congresso Nacional, perdendo sua eficácia por aplicação do art. 62, §3º, da Constituição Federal de 1988, cabendo ao poder legislativo disciplinar as situações jurídicas nascidas e modificadas no período em que tivera “força de lei”. A ausência do decreto legislativo disciplinar das situações jurídicas referidas implica na consolidação de seu regramento pela extinta medida provisória (CF, art. 62, §11).

Valendo-se de autorização constitucional implícita na disciplina do art. 62, §10, da Constituição Federal, já nos primeiros dias de 2017, o Presidente da República editou e publicou a Medida Provisória n. 767, de 06 de janeiro de 2017, por meio de que reestabeleceu praticamente tudo que fora instituído com a MP n. 739/2016 em matéria de auxílio-doença. A MP n. 767/2017 está atualmente em vigor, regendo a disciplina do auxílio-doença e ainda não fora, a exemplo de sua antecessora, convertida em lei.

Tais medidas provisórias marcam o início do esforço governamental de contenção da crise que assoma o Instituto Nacional da Seguridade Social, ameaçando-lhe a aptidão para o pagamento dos benefícios devidos a milhares de segurados e beneficiários. Embora não se trate da almejada solução definitiva (o que viria com a reforma da previdência na Constituição Federal), representa um ponto de partida de execução imediata.

O que desponta à primeira vista, em nossa opinião, é a circunstância de que a MP n. 767/2017 vem a lume, em substituição à MP n. 739/2016, numa situação de não adesão pelo Congresso Nacional, o que bem poderia ser interpretado (e haveria base para isso a partir de uma leitura séria da Constituição Federal) como rejeição da proposta governamental cristalizada na medida provisória anterior.

Em termos mais simples, poderíamos racionalizar a situação da seguinte maneira: se o Presidente da República edita uma medida provisória com força de lei, confiando em sua conversão pelo poder legislativo, mas essa conversão é implicitamente rejeitada pela não conversão no prazo constitucional, caber-lhe-ia respeitar a vontade popular (representada pelo parlamento), abstendo-se de insistir na estratégia já rejeitada. Apesar disso, o governo brasileiro repetiu, quase que integralmente, o texto da medida provisória anterior, desconsiderando inteiramente a rejeição da medida anterior como ato de vontade do parlamento.

De qualquer maneira, a Medida Provisória n. 767/2017, como dissemos, está atualmente em vigor e o governo espera, dessa vez, obter sua conversão em lei. Vamos examinar sua disciplina, em tudo e por tudo idêntica àquela instaurada pela MP n. 739/2016.


2. MANUTENÇÃO, PERDA E REAQUISIÇÃO DA QUALIDADE DE SEGURADO

De acordo com o art. 27-A da Lei n. 8.213/91, com redação dada pela MP n. 767/2017:

“Art. 27-A.  No caso de perda da qualidade de segurado, para efeito de carência para a concessão dos benefícios de auxílio-doença, de aposentadoria por invalidez e de salário-maternidade, o segurado deverá contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com os períodos previstos nos incisos I e III do caput do art. 25”.

Chama-se período de carência o tempo de contribuição (melhor ainda: a quantidade de contribuições mensais ou, no caso do segurado especial, o tempo de exercício da atividade) exigível para que o segurado tenha direito à percepção de determinado benefício (CASTRO; LAZZARI: 2016, 543). Na exata dicção da Lei n. 8.213/91 (art. 24), é “o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências”. De acordo com o art. 25, os benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez tem períodos de carência fixados em 12 (doze) contribuições mensais (inciso I); no caso do salário-maternidade, a carência será, em regra, de 10 (dez) contribuições mensais (inciso III).

Ao exercer atividade laborativa remunerada, o trabalhador se insere automaticamente no Regime Geral da Previdência Social (DUARTE: 2008, 38), tornando-se devedor das respectivas contribuições sociais (Lei n. 8.213/91, art. 11) (CASTRO; LAZZARI: 2016, 189). Em alguns casos, o dever instrumental de recolhimentos das contribuições é atribuído a terceiro, como no caso do segurado empregado (seu empregador é quem deve recolher as contribuições e repassar aos cofres do INSS). Em outros, cabe ao próprio segurado pagar suas contribuições (como no caso do segurado individual). Há ainda situações em que, conquanto não exerça atividade remunerada, o sujeito voluntariamente recolhe contribuições para fazer jus à cobertura securitária (segurado facultativo). Em todas essas situações, pode-se afirmar que ocorre a aquisição e a manutenção da qualidade de segurado.

Cessando seja a atividade laborativa remunerada, sejam os pagamentos mensais a título de contribuições devidas pelo trabalhador ou segurado facultativo, inicia-se um intervalo de tempo durante o qual o segurado mantém essa condição, ainda que sem contribuições. Trata-se do “período de graça”: lapso temporal durante o qual se mantém a qualidade de segurado, ainda que sem contribuições ou trabalho. As hipóteses e prazos estão previstos nos incisos do art. 15 do Plano de Benefícios da Previdência Social (Lei n. 8.213/91), trazendo seus parágrafos regras específicas de extensão desses prazos.

Superado o período de graça sem que o sujeito volte a exercer atividade que o qualifique como segurado obrigatório ou que volte a contribuir voluntariamente para a cobertura securitária, ocorre o fenômeno da “perda da qualidade de segurado”, perdendo o titular e seus dependentes toda a cobertura securitária, deixando de fazer jus, em regra, a quaisquer benefícios da previdência social cujo fato jurígeno ainda não tenha ocorrido. De acordo com o Plano de Benefícios, esse evento ocorrerá, precisamente, “no dia seguinte ao do término do prazo fixado no Plano de Custeio da Seguridade Social para recolhimento da contribuição referente ao mês imediatamente posterior ao do final dos prazos fixados neste artigo e seus parágrafos”.

Após a perda da qualidade de segurado, poderá o indivíduo recuperá-la, bastando voltar a desempenhar atividade remunerada que o qualifique como segurado obrigatório, ou mesmo recolher contribuições para a previdência social na condição de segurado obrigatório (individual, por exemplo) ou facultativo. É nesse ponto que surge nosso interesse sobre a regra da MP n. 767/2017, repetida a partir da redação da MP n. 739/2016.

Na sistemática anterior às Medidas Provisórias, bastava ao segurado que houvesse perdido a qualidade de segurado preencher 1/3 (um terço) da carência de um determinado benefício para “recuperar” as contribuições vertidas anteriormente à perda. Isso lhe permitiria obter o benefício em questão se a soma das contribuições anteriores (à perda) e posteriores  (à recuperação da qualidade de segurado) preenchesse integralmente o período legal de carência.

Na exata redação do dispositivo com eficácia suspensa pela MP n. 767/2017 (art. 24, parágrafo único):

“Havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido“.

No caso do auxílio-doença e da aposentadoria por invalidez (que têm prazo de carência de 12 meses), imaginando-se que o segurado houvesse vertido dez contribuições antes da perda da qualidade de segurado, bastaria que, em sua nova filiação ao RGPS, recolhesse quatro contribuições para que pudesse somá-las às dez anteriores, perfazendo assim mais de 12 contribuições e se credenciando à percepção do benefício. Em suma, desde que tivesse pelo menos oito contribuições anteriores, suas quatro contribuições posteriores lhe seriam suficientes ao recebimento de um auxílio-doença ou de uma aposentadoria por invalidez (considerando, obviamente, que preencha os demais requisitos legais, a exemplo da incapacidade laborativa).

As MPs n. 739/2016 e n. 767/2017 estabeleceram que a regra da recuperação das contribuições anteriores à perda da qualidade de segurado – com o recolhimento de apenas 1/3 (um terço) do período de carência a partir da nova filiação – não mais se aplicaria aos benefícios de auxílio-doença (12 meses), aposentadoria por invalidez (12 meses) e salário-maternidade (10 meses). Nesses casos, de acordo com as Medidas Provisórias em questão, caberá ao segurado preencher integralmente o período de carência a partir da nova filiação.

Conquanto possa não ter sido esse o objetivo da equipe técnica governamental (acreditamos que tenha sido...), a nova regra tende a dificultar a prática ilícita levada a efeito por pessoas que perderam a qualidade de segurado e, tempos depois, viram-se acometidas de doença ou deficiência incapacitante. Uma vez que perderam a qualidade de segurado, a superveniência da incapacidade laborativa não lhes bastava à obtenção do direito ao benefício, de modo que, retardando o requerimento ao INSS, tais pessoas apressavam-se em recolher quatro contribuições (para recuperar as contribuições anteriores), pleiteando em seguida o auxílio-doença na via administrativa.

Com a MP n. 767/2012, essas pessoas deverão recolher doze contribuições durante não menos que doze meses, já que não se admite, para fins de carência, o recolhimento de contribuições em atraso na condição de segurado individual (pelo que seria muito fácil pagar, num só mês, as doze contribuições referentes aos doze meses anteriores, pedindo em seguida o benefício), como também o INSS tende a dificultar a validação de contribuições não contemporâneas (ou seja, recolhidas em atraso) vertidas em nome de segurado com vínculo empregatício, dada a possibilidade de fraude.


3. FIXAÇÃO DE PRAZO DE DURAÇÃO DO AUXÍLIO-DOENÇA PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA OU JUDICIAL

O auxílio-doença é um benefício previdenciário de caráter temporário, destinado a substituir os rendimentos do trabalhador acometido de doença ou deficiência que lhe cause uma situação de incapacidade laborativa não permanente. A partir do deferimento do benefício, duas são as possibilidades: se recuperar a capacidade laborativa, o benefício é cessado e o trabalhador volta ao trabalho; se não puder mais recuperar sua capacidade, o benefício poderá ser convertido em aposentadoria por invalidez. Assim, nos termos do que diz o art. 60, caput, da Lei n. 8.213/91, a ideia é que o segurado acometido de incapacidade transitória receba o benefício enquanto permanecer incapaz.

Em alguns casos, a perícia médica chegava à conclusão de que a incapacidade de determinado trabalhador seria provisória, sendo igualmente possível estimar o tempo de recuperação, fixando-o em dias ou meses. A partir daí, a autoridade administrativa concedia o benefício e desde já utilizava a estimativa do perito para fixar seu prazo de fruição, definindo a data de cessação, independentemente de nova perícia que confirmasse o restabelecimento do beneficiário. Em tais situações, o trabalhador sequer tinha dinheiro a requerer uma nova perícia médica junto ao INSS, vendo seu benefício ser extinto automaticamente. Trata-se do que se convencionou chamar de “alta programada” administrativa. Quando essa fixação era feita pelo juiz no âmbito de uma ação judicial, tornava-se uma “alta programada” judicial.

A “alta programada” foi impiedosamente caçada (sim, com “ç”) nas instâncias superiores do poder judiciário, que cassou (agora com “ss”) inúmeras decisões judiciais que admitiam-na. Chegou-se à conclusão de que, nem a autoridade administrativa, nem o juiz poderiam precisar o tempo necessário à recuperação do trabalhador, considerando assim indispensável a realização de uma nova perícia antes da cessação do benefício. Caberia, portanto, ao INSS convocar o beneficiário para submeter-se a novo exame, a partir de que lhe seria permitido interromper os pagamentos.

Entre vários bons exemplos de decisões nesse sentido, podemos citar o PEDILEF n. 05013043320144058302, de relatoria do eminente Juiz Federal Frederico Augusto Leopoldino Koehler (TNU, DOU 18/12/2015, pp. 142-87).

Parece-nos que a ideia subjacente a esse entendimento é a de que só o perito médico teria aptidão para constatar a recuperação da saúde do trabalhador. Respeitosamente, temos que divergir. Há alguém ainda mais credenciado que o perito para dizer se determinado trabalhador recuperou ou não sua capacidade para o trabalho: o próprio trabalhador. Sentindo-se plenamente recuperado e pronto para trabalhar, bem pode o segurado que vinha recebendo um auxílio-doença voltar a suas atividades normais, dando sequência a sua vida, independentemente do que o perito do INSS lhe pudesse dizer.

E essa é a deixa por via da qual entram em cena as Medidas Provisórias n. 739/2016 e 767/2017.

De acordo com o art. 60, §11, da Lei n. 8.213/91, com redação dada pela MP n. 767/2017 (mesmo texto da MP n. 739/2016): ”Sempre que possível, o ato de concessão ou de reativação de auxílio-doença, judicial ou administrativo, deverá fixar o prazo estimado para a duração do benefício”.

À primeira vista, seria a “legalização” da famigerada alta programada: o legislador estaria autorizando, aliás, determinando ao INSS e ao poder judiciário fixar o prazo de duração do auxílio-doença. A locução “sempre que possível” remeteria aos casos em que o próprio perito mérito do INSS, na primeira avaliação, faria uma estimativa objetiva do prazo de recuperação do trabalhador. Sendo assim, uma vez registrada no laudo a estimativa do perito sobre o tempo de duração da incapacidade, caberá à autoridade administrativa ou judicial definir um prazo de cessação automática do benefício.

O §12 do mesmo art. 60 da Lei n. 8.213/91, também com redação dada pela MP n. 7676/2017, estabelece em sua primeira parte que “na ausência de fixação do prazo de que trata o §11, o benefício cessará após o prazo de cento e vinte dias, contado da data de concessão ou de reativação”. O legislador se utiliza de uma ficção legal para estabelecer que a omissão da decisão administrativa ou judicial sobre o prazo de vigência do benefício implicará em que seja considerado como de cento e vinte dias.

Ocorre que a parte final desse art. 60, §12, da Lei n. 8.213/91, com redação da MP n. 767/2017, traz uma disposição que nos parece derrubar por terra as pretensões de associação da novel disciplina à antiga e famigerada alta programada. De fato, estabelece a disposição normativa a cessação do benefício ao final do prazo de cento e vinte dias, “exceto se o segurado requerer a sua prorrogação junto ao INSS, na forma do regulamento, observado o disposto no art. 62”.

A ideia é muito simples: se, no curso do prazo de vigência do auxílio-doença, o beneficiário requerer ao INSS sua prorrogação, a cessação do benefício dependerá da realização de perícia médica que confirme a recuperação da capacidade laborativa pelo trabalhador, ficando sem efeito a fixação administrativa ou judicial do prazo de extinção automática. Uma vez que o legislador estabeleceu esse requerimento de prorrogação como uma exceção à regra da cessação automática, a única conclusão possível é que caberá ao INSS conferir a atual aptidão do trabalhador, o que somente poderá ser feito através de um exame médico pericial.

Embora alocada no final do §12, não temos dúvida em afirmar que esse interessante enunciado normativo se aplica igualmente à disposição do §11, eis que ambos tratam do mesmo assunto: a possibilidade de automática cessação da vigência de um auxílio-doença concedido administrativa ou judicialmente com prazo certo. Trata-se, portanto, de uma exceção à disciplina geral da cessação automática, seja o prazo definido por expressa decisão judicial ou administrativa, seja por meio de ficção legal.

Ora, se a própria lei disponibiliza ao segurado um instrumento por meio do qual pode compelir o INSS a submetê-lo a um exame médico pericial como condição para que seu benefício possa ser cancelado, não se pode, nem de longe, equiparar uma tal disciplina à sistemática da “alta programada”. As decisões judiciais anteriores às MPs n. 739/2016 e 767/2017 se baseavam na compreensão de que a alta programada era incompatível com a Lei n. 8.213/91 porque essa última determinava a permanência do benefício enquanto durasse a incapacidade, ao passo que a cessação automática, pura e simples, permitia que um segurado ainda incapaz ficasse desamparado. A proibição dirigida ao INSS de cancelar o benefício antes da perícia, à vista de um requerimento nesse sentido do segurado, distingue radicalmente as duas situações.


4. DURAÇÃO INDETERMINADA DO BENEFÍCIO: INCAPACIDADE TOTAL TEMPORÁRIA, INCAPACIDADE PARCIAL DEFINITIVA E PROCESSO DE REABILITAÇÃO

A prescrição legal de fixação de prazo certo para a duração do auxílio-doença leva em conta a possibilidade de uma tal estimativa pelo médico perito que examinar o segurado. Há, contudo, situações em que o laudo pericial não traz qualquer estimativa objetiva do tempo que levará o trabalhador para recuperar sua aptidão laborativa. Seria possível dizer que tais situações fogem ao “sempre que possível” previsto na lei.

Nessas hipóteses – em que o perito não encontra elementos que lhe permitam estimar com segurança o momento em que o trabalhador estará novamente apto para o trabalho – não se pode aplicar o prazo fictício de cento e vinte dias previsto no art. 60, §12, da Lei n. 8.213/90. Enquanto o §11 dispõe que caberá à autoridade administrativa ou judicial, “sempre que possível”, definir o prazo de vigência do benefício, o §12 estabelece a aplicação do prazo ficto apenas na “ausência de fixação do prazo de que trata o §11”. Como o “prazo de trata o §11” pressupõe a real possibilidade da estimativa (“sempre que possível”), o prazo fico de cento e vinte dias somente se aplica se, embora estimável, o prazo não foi estimado pela autoridade.

Nos casos em que a estimativa do prazo de recuperação da capacidade laborativa se revela impossível ou problemática, deve-se aplicar, para determinado grupo de casos, a disposição do art. 62 da Lei n. 8.213/91, não tendo sido sem razão a referência que lhe fez o art. 60, §12, referência essa que, em nosso sentir, não contrasta, antes converge com o que dissemos acima. De acordo com o caput desse dispositivo, “o segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de sua atividade habitual ou de outra atividade”, o que significa que, naqueles casos de incapacidade parcial (ou seja, apenas para algumas atividades, não para todas), caberá ao segurado submeter-se a processo de reabilitação, o que poderá envolver a submissão a cursos profissionalizantes que o capacitem a exercer atividade diversa da anterior, compatível com a deficiência de que seria portador. O processo de reabilitação, como é óbvio, não tem prazo para terminar, pois depende de aptidões e características pessoais de cada indivíduo, estando aí o motivo da impossibilidade, a fuga ao “sempre que possível” que condiciona a estimativa de tempo para retorno ao trabalho.

O parágrafo único do art. 62 estabelece que “o benefício a que se refere o caput será mantido até que o segurado seja considerado reabilitado para o desempenho de atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não recuperável, seja aposentado por invalidez”. Caberá, portanto, ao INSS manter o auxílio-doença enquanto o segurado incapacitado para sua atividade habitual estiver em processo de reabilitação, somente podendo cessá-lo se o perito entender que o segurado está reabilitado para trabalho diverso daquele que habitualmente exercia. Caso o perito entenda que o segurado é irrecuperável para qualquer trabalho, deverá o INSS converter o benefício em aposentadoria por invalidez.

Em todo caso, o art. 62 traz uma ideia principal: o benefício de auxílio-doença deve perdurar até que se defina, com segurança, se o segurado já recuperou ou pode recuperar sua aptidão para o trabalho. Apenas essa ideia já conflitaria com uma “alta programada” sem freios, sem a possibilidade de que o segurado comprovasse administrativamente que segue necessitando do benefício para viver. Por outro lado, acreditamos igualmente que não há conflito com a ideia de que o próprio segurado pode decidir ou, no mínimo, concordar que, em determinado momento – notadamente, aquele momento estimado pelo perito como de restauração da aptidão para o trabalho – tenha recuperado sua capacidade laborativa, decidindo-se assim a voltar a suas atividades normais, sem ter que se preocupar em se deslocar ao INSS, apenas para que um perito lhe diga o que ele já sabe.

Há, ainda, um grupo de casos que não comporta a aplicação do art. 62 da Lei n. 8.213/91: os casos de incapacidade total temporária em que a recuperação da capacidade laborativa do segurado depende, segundo o médico perito, da particular e individualizada evolução do tratamento, manifestando-se desde o início pela impossibilidade de estimar prazo de recuperação. Em casos assim, não cabe processo de reabilitação, de forma que a duração da vigência do benefício lhe pode ser vinculada.

O que fazer?

A solução que encontramos serve-se da analogia entre os benefícios previdenciários e assistenciais por incapacidade, tomando-se como ponto em comum de singular relevância (base para a validade do raciocínio analógico) o fato de que, nos dois casos, trata-se de garantir a manutenção da sobrevivência de alguém que não pode provê-la por seus meios por estar incapacitado para o trabalho[1]. Buscamos a resposta na sistemática do amparo social ao deficiente, prevista na Lei Orgânica da Assistência Social (Lei n. 8.742/93).

De acordo com a legislação que rege o amparo social ao deficiente, a deficiência, por si só, não basta à percepção do benefício. Nem mesmo é suficiente que dela decorra incapacidade laborativa. Nos termos do que diz o parágrafo 2º do art. 20 da Lei n. 8.742/93, a “pessoa com deficiência” que se credencia à percepção do chamado benefício de prestação continuada é “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (grifamos). É preciso, portanto, que a deficiência seja incapacitante para o trabalho e que represente um “impedimento de longo prazo”, considerando-se como tal, nos termos do parágrafo 10 do mesmo artigo, “aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos”.

Ressai facilmente das disposições acima que o amparo social não é, necessariamente, um benefício provisório como o auxílio-doença. Por outro lado, se o auxílio-doença se dirige sobretudo a impedimentos de curto prazo, o amparo exige a longa duração como requisito, evitando assim que se torne uma espécie de auxílio-doença para não segurados. De qualquer maneira, tanto em um quanto em outro caso os titulares assumem o dever de submissão a inspeções regulares para averiguação da manutenção do estado de incapacidade laborativa.

No caso do amparo social – e é aí que sua disciplina nos auxilia no presente ponto – existe regra específica sobre a sazonalidade dessas inspeções. De fato, prescreve o art. 21 da Lei Orgânica da Assistência Social que o “benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem”. Parece-nos lógico que assim seja. Se o impedimento que autoriza a concessão do amparo deve ter duração mínima de dois anos, o ato de concessão já exclui, desde o início, a perspectiva de durações inferiores, de modo que seria um desperdício de tempo e dinheiro realizar sucessivas inspeções médicas durante os dois primeiros anos de sua duração. A partir do terceiro ano, contudo, a arquitetura do instituto já permite esperar alguma recuperação, sendo necessária a submissão do beneficiário a nova perícia para que o INSS afira a manutenção do estado de incapacidade.

Em nossa opinião, o critério de dois anos como prazo para a realização da perícia médica que poderá permitir a manutenção do amparo social ao deficiente pode ser utilizado para aquelas situações em que o requerente, segurado da previdência social, é considerado provisoriamente incapaz para o trabalho, mas sem que o perito possa minimamente precisar seu prazo de recuperação. Não, contudo, para impor ao INSS que apenas com dois anos da concessão do auxílio-doença possa convocar o beneficiário para uma perícia (o que seria contrariar a regra do art. 60, §13, como explicamos adiante), mas para autorizar que as autoridades administrativa ou judiciária, no ato por meio de que vierem a conceder o benefício, fixem em dois anos o prazo de duração em que se tenha por indispensável ao cancelamento a realização prévia de um exame médico pericial.

Não estaria o INSS, no caso do auxílio-doença com duração definida em dois anos, impedido de convocar o segurado a cada seis meses (por exemplo) para inspeção médica. É o que ressai da disposição do art. 60, §13, da Lei n. 8.213/91, com redação dada pela MP n. 767/2017: “O segurado em gozo de auxílio-doença, concedido judicial ou administrativamente, poderá ser convocado a qualquer momento para avaliação das condições que ensejaram a concessão ou a manutenção, observado o disposto no art. 101”. A fixação do prazo de dois anos, nesses casos, teria o único objetivo de evitar que o benefício fosse automaticamente cancelado pelo INSS sem a realização do exame médico pericial, permitindo ainda a aplicação do parágrafo 12 do mesmo artigo para autorizar o beneficiário a requerer sua prorrogação antes dos dois anos, ficando ao INSS proibido o cancelamento do benefício, ainda que superado o prazo estabelecido na concessão, antes da perícia administrativa.

Como é óbvio, não nos parece que essa seja a única possibilidade hermenêutica do sistema normativo que disciplina os benefícios previdenciários e assistenciais por incapacidade. Pode até ser, inclusive, que nem seja a melhor. Contudo, é aquela que nos parece adotar com mais fidelidade os critérios objetivos fornecidos pelo sistema, estando ainda em sintonia com os fins dos respectivos institutos.


4. OBJETIVOS POR TRÁS DA MP N. 767/2016

Muito se vem discutindo sobre os objetivos e finalidades do governo federal com a edição das Medidas Provisórias n. 739/2016 e n. 767/2017. Os mais exaltados “intérpretes” das disposições afirmam uma iniciativa de conter o “rombo” deixado no patrimônio do Instituto Nacional do Seguro Social à custa do trabalhador brasileiro, que seria o único prejudicado com todas essas medidas que aumentam prazos de carência (após a recuperação), restringem o acesso a benefícios previdenciários e ainda legalizam a temida e famigerada “alta programada”. Estamos, contudo, entre aqueles que, integrando o grupo mais moderado, enxergam objetivos mais nobres que simplesmente “fechar o rombo da Previdência”.

O INSS sempre foi visto como uma imensa entidade, um gigante administrativo e financeiro de difícil controle. Especialmente por isso, sempre foi alvo da investida de agentes públicos e sujeitos particulares inescrupulosos, ávidos pela obtenção de proveitos ilícitos à custa do patrimônio público. Os casos de corrupção envolvendo o patrimônio do sistema de Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social) são frequentemente divulgados pela imprensa, normalmente com a constatação de prejuízos milionários. Há ainda a criminalidade pulverizada de autoria daqueles indivíduos que procuram obter benefícios previdenciários ou assistenciais sem o preenchimento  dos requisitos legais (não raramente falseando-os para enganar os servidores encarregados da análise e concessão). Tudo isso conduz a uma simples conclusão: é preciso adotar estratégias, técnicas e medidas mais eficazes no gerenciamento e no controle do emprego das rendas públicas vinculadas à Seguridade Social, compreendendo a saúde, a previdência social e a assistência social.

Conquanto não a única, o aperfeiçoamento do controle administrativo e financeiro na área de concessão de benefícios previdenciários por incapacidade nos parece estar entre as finalidades da iniciativa governamental que resultou na edição das Medidas Provisórias n. 739/2016 e n. 767/2017.

Pontualmente, podemos observar que a imposição do cumprimento da carência integral a partir da perda da qualidade de segurado para benefícios com prazos de carência tão pequenos (doze meses para a aposentadoria por invalidez e o auxílio-doença, dez meses para o salário-maternidade) objetiva combater o expediente de recolher poucas contribuições quando já incapacitado para o trabalho, forjando o preenchimento de requisitos em situação de preexistência.

Ainda nessa linha, a determinação de fixação do prazo de duração do auxílio-doença, com a possibilidade de cancelamento automático independentemente da submissão do beneficiário a uma perícia médica administrativa – sempre respeitada a exceção segundo a qual o requerimento de prorrogação, no prazo de vigência, posterga obrigatoriamente o cancelamento para após a perícia médica que constate a recuperação da capacidade – tem o claro objetivo de eliminar um evidente inconveniente do sistema anterior, sem qualquer prejuízo para o segurado.

De fato, em razão de limitações administrativas e operacionais do INSS (escassez de médicos peritos, por exemplo), vários benefício de auxílio-doença eram mantidos indefinidamente, apenas porque era impossível realizar a perícia médica ao final do prazo estimado pelo perito. Esse pequeno detalhe permitia que o segurado já perfeitamente restabelecido e, às vezes, já trabalhando, continuasse a receber mensalmente o auxílio-doença porque o INSS não tinha meios de lhe inspecionar a capacidade laborativa no tempo necessário. O pior de tudo é que os pagamentos realizados após o retorno ao trabalho seriam, obviamente, indevidos, o que remeteria os interessados a duas situações possíveis, ambas desnecessárias, ambas desagradáveis: ou o segurado seria compelido a devolver todos os valores indevidamente recebidos (e já gastos) a título de auxílio-doença a partir de quando voltara a trabalhar, o que implicaria em descontos mensais em seus proventos, prejudicando seu orçamento doméstico; ou tais valores pagos indevidamente simplesmente seria perdidos pelo INSS, uma vez considerados irrepetíveis, dada sua natureza alimentar e a “ausência de má-fé do beneficiário”[2].

O que a nova disciplina da MP n. 767/2017 impõe, em termos simples, é uma mera inversão do ônus da iniciativa. Antes, sem a iniciativa do INSS em submeter o beneficiário a uma perícia, mantinha-se o benefício em franco prejuízo aos cofres públicos. Com a MP, se o segurado retorna ao trabalho antes do prazo fixado para duração do benefício, a extinção automática serve às duas partes, pois tanto evitará que o segurado seja compelido a devolver o que indevidamente recebera, quanto impedirá que a irrepetibilidade desses valores se converta em prejuízo ao patrimônio público. Por fim, se o beneficiário ainda estiver incapacitado para o trabalho na iminência da superação do prazo, bastará requerer ao INSS sua prorrogação, afastando assim o cancelamento automático e obtendo o direito à percepção do benefício até que a perícia seja realizada e devidamente constatada sua recuperação.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os ramos jurídicos do direito social são particularmente sensíveis à opinião pública. Modificações no ordenamento jurídico positivo em matéria de direito do trabalho, direito previdenciário, direito assistencial, direito sanitário etc., são seguidas de intensa exposição pelos meios de comunicação de massa e, consequentemente, de efusivos debates pela sociedade civil. Trata-se do exercício direto do poder político de participação popular na definição do ordenamento jurídico, precisamente na parte que mais diretamente atinge a aspectos sensíveis da vida do trabalhador brasileiro. É algo que deve ser elogiado e, quanto possível incentivado.

O interesse em escrever o presente trabalho surgiu da constatação do quanto as recentes inovações na ordem jurídica em matéria de direito previdenciário, levadas a efeito pelo governo federal, vem suscitando na população brasileira a vontade de conhecer, opinar e debater. Para que isso aconteça, todos devem conhecer o quanto possível as normas com base em que se pretende sejam governados. A promoção da acessibilidade do conhecimento, assim, é imprescindível ao bom exercício de um controle popular sobre a atividade legislativa. Esperamos que o presente trabalho possa fomentar o debate sobre tais temas e, se possível, esclarecer pontos que tenham ficado obscurecidos pelo inevitável tecnicismo da linguagem legislativa.


Notas

[1] Lei n. 8.742/93. Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011).

[2] Se é que se pode falar em “ausência de má-fé” daquele que, sabendo-se perfeitamente capaz para o trabalho, tanto que já trabalhando e auferindo renda, continua a receber e a gastar valores que somente lhe estariam sendo pagos em razão de uma suposta incapacidade e para evitar que fosse levado a um estado de indignidade.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABREU, Rogério Roberto. Notas sobre o auxílio-doença e as Medidas Provisórias nº 739/2016 e nº 767/2017. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5013, 23 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56604. Acesso em: 26 abr. 2024.