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Impossibilidade jurídica de sentença mandamental da Justiça Trabalhista para adequar condutas funcionais de autoridades da Inspeção do Trabalho e do Ministério do Trabalho

Impossibilidade jurídica de sentença mandamental da Justiça Trabalhista para adequar condutas funcionais de autoridades da Inspeção do Trabalho e do Ministério do Trabalho

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O artigo analisa a incompetência da Justiça do Trabalho para impor obrigações de fazer ou de não fazer à União que impliquem adequações de condutas de autoridades da inspeção do trabalho.

RESUMO: Este artigo ensaio analisa a incompetência da Justiça do Trabalho para impor obrigações de fazer ou de não fazer à União que impliquem adequações de condutas de autoridades da Inspeção do Trabalho. Daí decorre a incompetência do Ministério Público do Trabalho (MPT) quanto ao mesmo fim, o que afasta como que uma espécie de tentativa de controle externo da Inspeção do Trabalho por parte do Parquet laboral. A análise adota como estudo de caso a ação civil pública (ACP) ajuizada por onze procuradores do trabalho junto à 2ª Vara da Justiça do Trabalho em Anápolis/GO em desfavor da União. Em plano secundário se faz referência à ACP ajuizada na Justiça do Trabalho em Aracaju/SE, na 20ª Região, por alguns dos mesmos Procuradores do Trabalho.  Ambas partem de interpretações do art. 628 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A tese da incompetência da Justiça trabalhista se sustenta na diferença entre processar e julgar atos administrativos emanados de autoridades da Inspeção do Trabalho contra empregadores (CF/88, art. 114, VII) e processar e julgar condutas funcionais dessas autoridades (CF/88, art. 109, I). Os méritos das ACP serão discutidos em outros artigos.

SUMÁRIO: 1 - Introdução. 2 – A construção da norma que se extrai do inciso VII do art. 114 da CF: o que não está dito no dispositivo. 3 –  O caráter exceptivo do inc. VII do art. 114 da CF e sua interpretação restritiva. 4 – Da incompetência do MPT e a usurpação de competência do MPF. 5 – Descumprimento de dever funcional e sua natureza jurídico-estatutária; uma argumentação ablativa. 6 – Justiça do Trabalho e julgamento de autoridades da Inspeção do Trabalho: violação da isonomia, da coerência e da integridade do Direito. 7 – Da ilegitimidade passiva do secretário da Inspeção do Trabalho. 8 – Da tese da inaplicabilidade dos efeitos da ADI 3.395 nos casos examinados. 9 – Da violação do princípio da separação dos poderes. 10 – Dos precedentes que corroboram a incompetência da Justiça do Trabalho na matéria. Conclusão.

PALAVRAS-CHAVES: Inspeção do Trabalho – Justiça do Trabalho – sentença mandamental – competências – CLT, art. 628


Introdução

O Ministério Público do Trabalho (MPT) ingressou com ação civil pública (ACP) na Justiça do Trabalho em Anápolis/GO[1] com o pedido de que a União, por meio da Secretaria da Inspeção do Trabalho (SIT) do então Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)[2], implementasse medidas que garantam a aplicação das leis trabalhistas mediante o efetivo controle de legalidade de cada ação fiscal realizada no País. O controle defendido pelo MPT se desdobra em cinco medidas[3], todas “mediante inserção de ‘Regras de Negócio’ no sistema Sfit, ou em qualquer outro que venha a substitui-lo.” A estranheza que possa surgir do fato de a ACP descer a minudências de um sistema informatizado de uso da Inspeção do Trabalho tem uma explicação: quatro dos onze procuradores autores da ACP exerceram o cargo de auditor-fiscal do trabalho (AFT)[4], advindo daí o conhecimento pormenorizado do denominado Sfit, sistema eletrônico de uso exclusivo da Inspeção do Trabalho[5]. O procurador do trabalho Meicivan Lemes Lima Mastrella, da Procuradoria do Trabalho em Anápolis e que assina digitalmente a petição inicial, é um deles.

O inconformismo do MPT tem por base o art. 628, caput[6], da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Diz o dispositivo que o agente da Inspeção do Trabalho, ao concluir pela existência de violação de preceito legal, deve lavrar o auto de infração correspondente, sob pena de responsabilidade, ressalvado o benefício da dupla visita previsto no art. 627 da CLT (A esse benefício se somam os previstos no art. 6º, § 3º, da Lei n.º 7.855/89[7], e no art. 55, caput e § 1º, da Lei Complementar n.º 123/2006[8]). O Parquet laboral não admite, principalmente, que o auditor-fiscal do Trabalho (AFT) deixe de autuar o empregador que, no curso da ação fiscal, regularize uma obrigação trabalhista que vinha sendo descumprida. Daí dizer que mesmo tendo sanado a irregularidade, o empregador deve ser autuado.

O Juiz do Trabalho Ari Pedro Lorenzetti, titular da 2ª Vara do Trabalho em Anápolis/GO, na parte expositiva de sua sentença, sintetizou bem a causa de pedir:

“O Ministério Público do Trabalho ajuizou Ação Civil Pública em face da União alegando, em suma, que a ré não vem realizando, com a eficiência esperada, a fiscalização das relações de trabalho, uma vez que o sistema eletrônico utilizado permite o encerramento da inspeção, pelo Auditor-fiscal do trabalho, sem a devida aplicação das sanções previstas na legislação, sem justificativa alguma.” (ênfase acrescida).

Na contestação, a União alegou, nas preliminares, a incompetência da Justiça do Trabalho para o julgamento da causa. Sustentou que “se trata de demanda cujo ato-fim pretendido, isto é, a tutela jurisdicional pedida, está inserida no regime de direito público, pois a pretensão do Parquet é impor à União a forma como deve atuar no âmbito da fiscalização do trabalho.” Cita jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[9] e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.395 que aponta para a incompetência da Justiça do Trabalho para julgar as causas entre o poder público e seus servidores regidos por relações jurídico-estatutárias ou jurídico-administrativas. A União também alegou a ilegitimidade ativa do MPT, pois a ação visa alterar o controle de legalidade dos atos administrativos praticados pelo MTb com o uso do sistema Sfit, situação circunscrita ao Direito Administrativo. Foram arguidas outras preliminares que não serão tratadas aqui.

O juiz do Trabalho Ari Pedro Lorenzetti acolheu os argumentos do MPT e reconheceu a competência da Justiça do Trabalho, tendo ainda deferido a antecipação de tutela pedida. Após isso, o Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait) ingressou no processo na condição de litisconsorte passivo ou, sucessivamente, de assistente litisconsorcial. Alegou em preliminares a mesma incompetência da Justiça do Trabalho para julgar a causa. Os argumentos acerca do mérito ventilados pelo Sinait serão abordados em próximo artigo referido.

A União recorreu, tendo obtido provimento da parte do desembargador-presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (TRT-18) que suspendeu os efeitos da antecipação de tutela.

Na data de 26/01/2016 o juiz do Trabalho de Anápolis proferiu sentença julgando procedentes os pedidos formulados pelo MPT e condenou a União, por intermédio da Secretaria de Inspeção do Trabalho, a adotar as providências relativas à aplicação das penalidades administrativas aos empregadores que não cumprem a legislação trabalhista, o que será feito “mediante o efetivo controle de legalidade de cada ação fiscal realizada no país (arts. 1º e 7º, I, do Regulamento aprovado pelo Decreto 4.552/02)”, implementando regras de negócio no sistema Sfit.

Em 06/07/2016, ao julgar recurso ordinário (RO) interposto pela União, a 2ª Turma do TRT-18 acolheu voto do relator, desembargador do Trabalho Daniel Viana Júnior, e decidiu pela incompetência absoluta da Justiça do Trabalho para processar a julgar a ACP, determinando ainda a remessa dos autos à Justiça Federal em Anápolis/GO. A decisão transitou em julgado.

O desembargador Viana Júnior, em seu voto, afastou de plano a aplicação dos efeitos da ADI 3.395. Considerou que a demanda não trata de ação que tenha, de um lado, uma pessoa jurídica de direito público, e, de outro, servidor a ele vinculado por relação jurídico-administrativa que pretenda discutir essa relação.

A par disso, ele erigiu argumento a partir de voto da ministra Rosa Maria Weber sobre critério da fixação da competência jurisdicional quando ainda no TST[10], em que ela destacou o trecho do voto da ministra do STF Carmem Lúcia no julgamento do RE 573.202/AM. Segundo a acurada observação da min. Carmem Lúcia, “quando se formula um pedido, pode-se fazer de tal forma que ele seja encaminhado rigorosamente à Justiça que convém ao interessado. A competência não poderia ser designada dessa forma.” A partir desse argumento, o desembargador Viana Júnior referendou a necessidade de o julgador delimitar o pedido do autor na ação proposta e verificar quais os fundamentos da pretensão, a fim de evitar que o demandante determine a que órgão jurisdicional lhe convém processar e julgar sua demanda. Guiado por esse fundamento, ele entendeu que a causa de pedir e o pedido da ACP não envolvem matéria trabalhista, mas referem-se a obrigações de fazer para adequar o exercício de uma função pública por parte de órgãos e servidores públicos aos ditames da lei e da Constituição, as quais se circunscrevem ao feixe de matérias da Justiça Federal, “ainda que eventual resolução do mérito tenha o potencial de gerar reflexos nas relações de trabalho de todo o país, e ainda que para a solução da lide seja necessário interpretarem-se normas de natureza eminentemente trabalhista.” O desembargador do Trabalho também assentou seu voto na interpretação restritiva de regras de exceção para delimitar o alcance da norma que se extrai do inciso VII do art. 114 da Constituição da República.

Antes do ajuizamento da ação civil pública o MPT recomendou ao então MTE as mesmas medidas, as quais foram rejeitadas pelas autoridades do Órgão sob o argumento de que a forma de administração do sistema Sfit é uma discricionariedade da Administração. Na época, o autor deste artigo, já na condição de AFT aposentado, formulou representação[11] ao Conselho Nacional do Ministério Público (Cnmp) requerendo a instauração de procedimento de controle administrativo em relação à recomendação (não se trata de medida disciplinar contra os procuradores do trabalho, como pensam alguns). A incompetência do MPT para o matéria foi o principal fundamento, lastreado principalmente nos efeitos vinculantes da ADI 3.395. Por derivação, a reclamação apontou a invasão de competências do Ministério Público Federal por parte dos procuradores do Trabalho. O processo da reclamação foi extinto em face da impossibilidade de o Cnmp revisar ou desconstituir atos relativos à atividade-fim do Ministério Público, conforme Enunciado n.º 6, de 28/04/2009, do Conselho. Em face da decisão monocrática o autor interpôs recurso interno sob o fundamento da violação das prerrogativas funcionais do MPF (Lei Complementar n.º 739/93, art. 39, II), suscitando um conflito que ameaça a independência funcional do Parquet federal. O recurso foi considerado intempestivo[12].

Menciona-se também a ACP ajuizada na Justiça do Trabalho em Aracaju/SE, na 20ª Região, pelo MPT[13].  O pedido relaciona-se ao mesmo art. 628 da CLT. Os procuradores querem impor ao titular da SIT obrigações de fazer e de não fazer para que o AFT lavre auto de infração tantas vezes quantas forem as violações de um mesmo dispositivo celetista constatada na mesma ação fiscal. A título de exemplo, se o agente fiscal verificar que o empregador deixou de recolher o Fgts por três meses, deve lavrar um auto de infração para cada mês em atraso, quando a prática fiscal é lavrar um único auto de infração pelo atraso nos três meses. O argumento do MPT é que o empregador que atrasa o recolhimento por um mês sofre a mesma penalização daquele que se torna inadimplente por três meses.

Nesse caso concreto, a juíza do Trabalho Eleusa Maria do Valle Passos, da 5ª Vara do Trabalho de Aracaju/SE, no mérito, julgou a ACP improcedente. Não foi discutida a competência da Justiça especializada. Note-se, por importante, que o pedido e a causa de pedir dessa ACP não envolvem questões trabalhistas, mas eminentemente administrativa, uma vez que sustenta um suposto descumprimento do mesmo art. 628 da CLT por parte de AFTs.

O MPT interpôs recurso ordinário que se encontra concluso para julgamento.

Em plano secundário neste artigo, menciona-se ainda uma terceira ACP patrocinada por membros do MPT que busca provimento judicial para que somente auditores-fiscais do trabalho detenham competência para embargar e interditar, sem a necessidade da decisão do superintendente regional do trabalho prevista no ordenamento jurídico pelo caput e § 2º do art. 161 da CLT[14]. O MPT considera o artigo celetista inconstitucional. Os pedidos foram julgados improcedentes em primeira instância, mas a sentença foi reformada pela 2ª Turma do TRT da 14ª Região. O ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira cedeu às pretensões do MPT e decidiu que firmará termo de conciliação judicial[15]. Assim, ter-se-á um fato inusitado: a invalidação de dispositivo de lei por meio de acordo judicial entre as partes. Sublinhe-se ainda que o acórdão do TRT da 14ª Região condenou a União na obrigação de fazer no sentido de readequar seus atos normativos internos. Com a celebração do acordo judicial, ter-se-á outra novidade: por decisão do ministro do Trabalho, seu subordinado, o presidente da República terá que expedir decreto alterando o inciso XIII do art. 18 do Regulamento da Inspeção do Trabalho, aprovado pelo Decreto n.º 4.552/2002[16], já que o dispositivo regulamentar determina ao auditor-fiscal do trabalho que ele proponha interdição ou embargo, comunicando o fato de imediato à autoridade competente.

A respeito disso, o autor, em outro artigo[17], aponta que o resultado prático da ACP é extirpar o art. 161 celetista do ordenamento jurídico, fazendo coisa julgada com efeito erga omnes (Lei n.º 7.347/1985, art. 16). Tal efeito reveste a ACP dos contornos de uma ação direta de inconstitucionalidade, ou, mais precisamente, de uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), pois o dispositivo atacado é pré-constitucional. Por tal característica, a ACP enseja a hipótese de usurpação da competência do STF por parte do TRT da 14ª Região (CF, art. 102, I, a), bem como a usurpação da legitimidade do procurador-geral da República por parte do MPT (CF, art. 103, VI).

Também merece registo a ACP ajuizada pelo MPT junto à Justiça do Trabalho em Brasília/DF para impor à União e ao ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira, judicialmente, a divulgação do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo (“lista suja”), nos termos previstos na Portaria Interministerial MT/MMIRDH nº 4, 13 de maio de 2016[18]. Depois de decisões judiciais a favor e contra a União, a lista foi publicada pelo MTb[19].

Apresentado o contexto dos dois casos principais, analisa-se então, neste artigo, a questão da incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar autoridades da Inspeção do Trabalho. Inicia-se por esclarecimentos necessários para guiar a argumentação.


2 – A construção da norma que se extrai do inciso VII do art. 114 da CF: o que não está dito no dispositivo

A análise da incompetência aludida neste artigo não prescinde da construção normativa do disposto no inciso VII do art. 114 da CF. O dispositivo fixa a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho. O texto apresenta uma deficiência na redação, pois diz menos do que deveria.

A interpretação literal restringiria a competência da justiça especializada aos casos de penalidades administrativas impostas aos empregadores pelas autoridades da Inspeção do Trabalho (CLT, art. 634, caput e art. 636)[20]. Sendo a multa a única penalidade administrativa, estariam afastados os atos administrativos de embargos ou de interdições (CLT, art. 161), as notificações para implementação de medidas de segurança e saúde (CLT, art. 156, II, Dec. n.º 4.552/2002, art. 18, X e XI), notificações para recolhimento de débitos do Fgts e da Contribuição Social (CS) da Lei Complementar n.º 110/2001 (Lei 8.036/90, art. 23, § 1º, V, Dec. n.º 4.552/2002, art. 18, VI)[21]. Nenhum desses atos administrativos constitui penalidade.

A expressão penalidades administrativas impostas tem outro inconveniente. As decisões pela imposição de multas e pelo recolhimento de depósitos fundiários, bem como as decisões para embargo ou interdição, são apenas o resultado final de um processo administrativo que se inicia com a lavratura do auto de infração ou com a expedição da notificação para recolhimento do Fgts e da Contribuição Social (Portaria n.º 854, de 25/06/2015, art. 1º) ou a lavratura de laudo técnico. Mas antes mesmo da expedição de auto de infração ou da notificação para recolhimentos fundiários, bem como da expedição de notificação para execução de medidas de segurança e saúde no trabalho, a cargo do AFT, ou mesmo antes da expedição de termo de embargo ou interdição, a cargo do superintendente, o auditor-fiscal realiza outros procedimentos decorrentes de suas prerrogativas legais (Decreto n.º 4.552/2002, art. 18). Todos eles são passíveis de ações judiciais se o empregador entender que são ilegais. E tais ações passaram a ser processadas e julgadas na Justiça do Trabalho a partir da vigência da EC N.º 45/2004. Todos esses atos administrativos emanados de autoridades da Inspeção do Trabalho se desenrolam no contexto de uma ação fiscal em face de um empregador. E é nos limites desse contexto que incide a competência da Justiça do Trabalho.

Por conta dessas particularidades legais é que se afirma que o dispositivo do inciso VII do art. 114 constitucional apresenta uma redação incompleta, restringindo o espírito que emana do contexto da norma. Por isso se faz necessária a construção de um sentido hermenêutico que abarque todos os atos e procedimentos administrativos praticados por autoridades da Inspeção do Trabalho frente a um empregador. A partir desse raciocínio pode-se deduzir a seguinte norma do inciso VII do art. 114 da CF: compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações relativas aos atos de poder de polícia administrativa praticados pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho em face do empregador no contexto de relações de trabalho.

É certo que a competência ditada pelo inciso VII do art. 114 da CF se dá em razão da pessoa (União). Mas a interpretação não pode ir além dos limites circunscritos à competência da Justiça laboral, sob pena de ocorrer a invasão de competências da Justiça Federal fixada pelo inciso I do art. 109 da CF.


3 – O caráter exceptivo do inciso VII do art. 114 da CF e sua aplicação restritiva

Carlos Maximiliano, em sua obra Hermenêutica e Aplicação do Direito[22], leciona que são consideradas excepcionais as disposições que “dão competência excepcional” ou que “introduzem exceções, de qualquer natureza, a regras gerais, ou a um preceito da mesma lei, a favor, ou em prejuízo, de indivíduos ou classes da comunidade.” Aplica-se então o postulado de que as exceções devem ser interpretadas restritivamente. No item 270 de seus estudos o autor traça uma identificação de uma regra excepcional:

270. Em regra, as normas jurídicas aplicam-se aos casos que, embora não designados pela expressão literal do texto, se acham no mesmo virtualmente compreendidos, por se enquadrarem no espírito das disposições: baseia-se neste postulado a exegese extensiva. Quando se dá o contrário, isto é, quando a letra de um artigo de repositório parece adaptar-se a uma hipótese determinada, porém se verifica estar esta em desacordo com o espírito do referido preceito legal, não se coadunar com seu fim, nem com os motivos do mesmo, presume-se tratar-se de um fato da esfera do Direito Excepcional, interpretável de modo restrito.

No mesmo item 272 o autor, com fonte em Domat[23], trata da interpretação restritiva com estas palavras:

272. As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente.

Sob a luz desses preceitos, arrazoa-se que estender a aplicação da competência ditada pelo inciso VII do art. 114 da CF para além dos limites da norma, extrapolando os atos de poder de polícia de autoridades fiscais frente a um empregador a ponto de alcançar o controle jurídico-administrativo ou jurídico-estatutário de autoridades da Inspeção do Trabalho, viola o postulado hermenêutico da interpretação restritiva de regras de exceção.

O acórdão do TRT-18 referido anteriormente tem um de seus lastros nesse argumento. O desembargador do Trabalho Daniel Viana Júnior, relator do RO da União nos autos da ACP no TRT-18, assentou, em seu voto, seu entendimento da excepcionalidade com respaldo na jurisprudência (pág. 16):

Cumpre registrar, ainda, a baliza hermenêutica de que se vale o c. STJ, no julgamento dos conflitos de competência que lhe são submetidos, segundo a qual "As normas restritivas - como as que determinam a competência jurisdicional – requerem interpretação igualmente restritiva. Logo, não se pode atribuir à Justiça do Trabalho competência que não encontre fundamento imediato no rol exaustivo do artigo 114 da Constituição Federal" (excerto do aresto proferido no CC 130.946/CE, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24-9-2014, DJe 30-9-2014).

É esse entendimento que se endossa neste artigo. Nesse ponto, desenvolve-se um pouco mais esse argumento.

Para uma melhor interpretação do inciso VII do art. 114 da CF propõe-se fixar a atenção nas excepcionalidades do inciso I, parte final, do art. 109 da CF, que estabelece as competências dos juízes federais[24]. É o próprio dispositivo constitucional que classifica como exceção à competência da Justiça Federal as causas em que a União é parte interessada e que se sujeitam à competência da Justiça do Trabalho. Trata-se de uma exceção à regra geral de competência da primeira parte do inciso I do art. 109 (competência em razão da pessoa). Daí se poder falar em competência excepcional negativa à regra geral do inc. I do art. 109 da Carta. A ela corresponde uma competência excepcional positiva na Justiça do Trabalho, que se encontra no inciso VII do art. 114 da CF. Com efeito, se a execução da Inspeção do Trabalho é competência privativa da União (CF, art. 21, XXIV), os litígios envolvendo atos de autoridades da Inspeção do Trabalho seriam atraídos para a Justiça Federal não fosse a força exceptiva do inciso VII aludido.

A justificativa para o inciso VII do art. 114 da CF repousa no fato de que a ação dos órgãos de fiscalização do trabalho (União) está voltada para a garantia do Direito do Trabalho em sua natureza material. O interesse da União se assenta exclusivamente na verificação, pelos auditores-fiscais do trabalho, do cumprimento da legislação trabalhista por parte de um empregador. Daí a pertinência com a Justiça especializada, cuja competência é fixada em razão da matéria (Direito do Trabalho). Pode-se dizer, assim, que o que identifica o caráter de excepcionalidade positiva para a Justiça laboral é a existência de uma ação judicial cuja causa de pedir e pedidos se originam da relação jurídico-administrativa de uma autoridade da Inspeção do Trabalho frente a um empregador no contexto de uma relação de trabalho. O interesse da União não decorre das relações jurídico-administrativas com seus servidores (auditores-fiscais do trabalho), mas sim de relações jurídico-administrativas praticadas por seus servidores em face de um empregador em um contexto fático-jurídico de fiscalização de uma relação de trabalho. Não existindo esses fatores, não há que se falar em competência da Justiça do Trabalho.

Naturalmente que o magistrado do Trabalho, ao julgar a causa, aplicará as normas do Direito Administrativo que regulam os atos de poder de polícia das autoridades da Inspeção do Trabalho frente ao empregador. Nesse caso, ele examinará a competência, a forma, a finalidade, o motivo e o objeto desses atos administrativos. Por evidente, o objeto do ato administrativo envolve matéria do Direito do Trabalho, razão fundamental para que a causa seja julgada na Justiça especializada.

Os limites para a competência excepcional da Justiça obreira são delimitados, portanto, pelos atos de polícia administrativa da Inspeção do Trabalho frente a um empregador no contexto da fiscalização das relações de trabalho. Além desse limite se esgota a exceção e impera a competência da Justiça Federal.

Nessa linha argumentativa, podemos estabelecer então essa importante distinção: a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar os atos de polícia administrativa de autoridades da Inspeção do Trabalho praticados no curso de uma ação fiscal diante de um empregador em face uma relação de emprego cujos direitos trabalhistas são tutelados pelo Estado. Não havendo empregador como parte na ação judicial, não há direito trabalhista a ser tutelado pela Justiça laboral. Se a causa não está fundada, não é derivada ou não é oriunda da relação de emprego, não há que se falar em competência da Justiça especializada (STJ, Primeira Seção. CC 51.791/CE. Rel. min. Teori Zavascki. DJe 15/05/2006).

É o caso das ACPs em exame. Nelas não se identifica objetivamente um empregador ou empregadores como parte, mas apenas a União como ré em ações ajuizadas pelo MPT. E o objeto das ACPs é a adequação da conduta funcional de autoridades da Inspeção do Trabalho, e não o descumprimento de direitos trabalhistas por parte de um empregador. A conduta funcional dos servidores públicos federais são regidas por normas inerentes às relações jurídico-estatutárias típicas do Direito Administrativo e, por isso, estranhas ao Direito do Trabalho. Se um auditor-fiscal do trabalho lavrar auto de infração em desacordo com as normas legais, poderá sobrevir a decretação de nulidade do auto de infração por parte da Justiça do Trabalho. Mas eventual medida de sua responsabilização ou de sua adequação funcional é discutida na Justiça Federal. Como bem argumentado pelo desembargador Viana Júnior, “ainda que eventual resolução do mérito [da ACP] tenha o potencial de gerar reflexos nas relações de trabalho de todo o país, e ainda que para a solução da lide seja necessário interpretarem-se normas de natureza eminentemente trabalhista”, tal circunstância não atrai a competência da Justiça do Trabalho.


4 – Da incompetência do Ministério Público do Trabalho e a usurpação de competência do Ministério Público Federal

Outra forma de examinarmos a competência da Justiça do Trabalho na questão tematizada é averiguar a legitimidade do MPT para a propositura das ações civis públicas em questão. Para tanto, novamente a dúvida será dirimida pela causa de pedir e pelo pedido da ação judicial.

Convém relembrar que o magistrado da Vara do Trabalho de Anápolis/GO, na parte expositiva de sua sentença, extraiu da ACP a causa de pedir apresentada pelo MPT, segundo a qual, “a ré não vem realizando, com a eficiência esperada, a fiscalização das relações de trabalho”. Os procuradores do Trabalho entenderam então que lhes cabia exercer o controle da eficiência da Inspeção do Trabalho como forma de garantir os direitos constitucionais dos trabalhadores. De fato, em ambas as ACPs tomadas como paradigmas e que partem de interpretações do art. 628 da CLT se tem como causa de pedir supostas condutas inadequadas de autoridades da Inspeção do Trabalho que militariam em desfavor dos direitos sociais constitucionalmente assegurados aos trabalhadores. E os pedidos formulados buscam adequar o exercício de uma função pública por parte de órgãos e servidores públicos aos ditames da lei e da Constituição, como bem identificado pelo desembargador do Trabalho Daniel Viana Júnior.

Porém, o controle do funcionamento dos órgãos federais é da competência do Ministério Público Federal (MPF), e não do MPT. Conforme o art. 128, I, da CF/88, o Ministério Público da União (MPU) compreende o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério Público Militar e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Mas o § 5º desse artigo constitucional remete para a lei complementar o estabelecimento das atribuições de cada Ministério Público, entre outras definições.

O comando constitucional foi cumprido na Lei Complementar n.º 75, de 20/05/1993. Ela dispõe sobre a organização e o estatuto do MPU, distribuindo ao longo de seus artigos as competências genéricas da instituição entre os seus quatro ramos, conforme regrado no Título II da Lei Complementar. Pode-se argumentar que a sistematização da LC n.º 75/93 dá origem a uma espécie de especialidade a cada ramo do MPU. Ou seja, as disposições que atribuem competências a cada ramo são especiais a cada um individualmente, não podendo ser cometidos por outros, sob pena de usurpação de competências. A aplicação das disposições da Lei Complementar deve, portanto, obediência ao critério hermenêutico da especialidade.

No que interessa objetivamente ao caso concreto, examina-se o caput e o inciso II do art. 39 da LC n.º 75/93[25]. Segundo esses dispositivos, revestidos do caráter de especialidade interna ao MPU, compete ao MPF exercer a defesa dos direitos constitucionais do cidadão, sempre que se cuidar de garantir-lhes o respeito pelos órgãos da administração pública federal direta ou indireta. Ou seja, se um órgão da administração pública federal não está respeitando os direitos constitucionais do cidadão, cumpre ao MPF exercer suas competências legais a fim de ajustar as condutas orgânico-funcionais das autoridades desse órgão de modo que os direitos dos cidadãos sejam respeitados. E o fará por meio dos instrumentos de ação descritos no art. 6º da LC n.º 75/93, entre os quais a ação civil pública (inc. VII). Tem-se por evidente que esse controle se dá sob a matriz de relações jurídico-estatutárias ou jurídico-administrativas que sujeitam os servidores civis federais.

A função de exercer o controle externo da atividade policial federal, por exemplo, é competência do MPU (LC n.º 75/93, art. 3º). Esse dispositivo poderia ensejar a interpretação de qualquer órgão do MPU poderia exercer o controle externo da atividade policial federal. Porém, como já dito, a distribuição das normas gerais ao longo da LC atribui prerrogativas de caráter especial a cada ramo do MPU. Por isso é que o art. 38, inciso IV, da LC atribui essa competência apenas ao MPF. E quando se examina as funções atribuídas ao MPT nos artigos 83 e 84 da LC não se encontra qualquer referência ao controle externo das atividades policiais, e muito menos das atividades da Inspeção do Trabalho. Todas as competências institucionais do MPT estão vinculadas às competências da Justiça do Trabalho. Alude-se então ao silêncio eloquente da LC em relação ao MPT quanto a qualquer iniciativa tendente a controlar as atividades da Inspeção do Trabalho ou mesmo do Ministério do Trabalho ou de qualquer órgão público, exceto se envolver empregados públicos regidos pelas normas da CLT.

Sob tal premissa legal, não cabe ao MPT usar dos instrumentos administrativos ou jurídicos que lhe são outorgados pela LC 75/93 para adequar o exercício das funções da Inspeção do Trabalho ou de suas autoridades aos ditames da lei e da Constituição. Tal competência é reservada ao MPF.

 Levando em conta então que o objeto das ACPs veicula uma suposta ineficiência da União na fiscalização das relações de trabalho, e tendo em vista a norma que emana do inciso II do art. 39 da LC n.º 75/93, então podemos concluir que a matéria vertida na ACP é da alçada do MPF, e não do MPT. E, por isso, o foro apropriado para o ajuizamento da ACP é uma vara da Justiça Federal, e não da Justiça do Trabalho.

Se o controle do funcionamento dos órgãos federais cabe ao MPF, surge então, nos casos concretos, um conflito de competências entre órgãos do MPU.

O STF, ao julgar as ações cíveis ordinárias (ACO) n.º 924 e 1.394 e as Petições n.º 4.706 e 4.863, manifestou-se, por maioria, pela competência do procurador-geral da República (PGR) para dirimir conflitos de atribuições entre instituições do Ministério Público. Os ministros da Corte Suprema entenderam que o conflito de atribuições entre instituições do MP é matéria administrativa, e não jurisdicional.

Cabe ao PGR, portanto, atuar para dirimir conflitos de competências vertidos nos casos examinados.


5 – Descumprimento de dever funcional e sua natureza jurídico-estatutária: uma argumentação ablativa

Nos fatos sob exame, as causas de pedir das ACPs se assentam no dever de controle de uma autoridade federal (secretário de Inspeção do Trabalho) sobre servidores civis federais (auditores-fiscais do trabalho). Que esse controle só é possível sob a matriz de relações jurídico-estatutárias é a tese forte defendida.

Com efeito, da leitura da ACP se constata que os próprios autores afirmam que a medida judicial “está voltada para o cumprimento de um dever específico, incumbido legalmente à Auditoria do Trabalho e à autoridade de direção da Inspeção do Trabalho” (sem o destaque no original). Alegam, porém, que esse dever “não está previsto em norma de caráter geral (estatuto dos servidores públicos), mas sim em normas especiais, quais sejam a CLT e demais legislação trabalhista, que regulam especificamente a matéria relativa às penalidades administrativas a serem impostas a empregadores.” Dai concluem que, não obstante se tratar de um dever, “o fato é que se cuida de matéria específica”. E arrematam: “E, portanto ante o critério hermenêutico da especialidade, resta evidente que a competência para a matéria é inegavelmente da Justiça do Trabalho e a correlata atribuição deste Ministério Público do Trabalho.” (destaques no original). E observam:

“De fato, os pedidos e a causa de pedir vinculados nesta Ação Civil Pública em momento algum se esteiam em irregularidades relativas a remunerações, indenizações, diárias, gratificações e adicionais, férias ou licenças de servidores federais (art. 40 e segs. da Lei 8112/90); nem mesmo se fundamentam em descumprimento de deveres gerais também previstos no referido estatuto, pois não se cuida de verificar se os citados servidores são leais às instituições a que servem, se cumprem as ordens superiores, se atendem com presteza ao público em geral, se zelam pela economia do material e a conservação do patrimônio público, se são assíduos e pontuais ao serviço etc (art. 116 e segs. da Lei 8112/90).” (destaque agora acrescentado).

Em suma: segundo o entendimento jurídico dos procuradores do Trabalho, pelo fato de o art. 628 estar contido na CLT, tida como a lei especial no Direito do Trabalho, e diante da inexistência de descumprimento de deveres gerais da lei geral dos servidores federais (Lei 8.112/90), prevalece o critério hermenêutico da especialidade, daí que “resta evidente que a competência para a matéria é inegavelmente da Justiça do Trabalho e a correlata atribuição deste Ministério Público do Trabalho.”

Todavia, demonstra-se que a ACP cuida de descumprimento de dever estatutário que, talvez por conveniência, não foi referido na inicial. Confira-se o arrazoado.

A Lei n.º 8.112/90 é norma geral para os servidores civis federais e, portanto, para os AFTs. A legislação especial que rege a atuação dos AFTs compreende a Convenção n.º 81 da Organização Internacional do Trabalho (C. 81), que dispõe sobre a inspeção do trabalho na indústria e comércio, e a Lei n.º 10.593/2002, cujos artigos 9º a 11 organizam a carreira Auditoria-Fiscal do Trabalho.

No que diz respeito à CLT, ainda que se possa falar em disposições especiais para os AFTs e demais autoridades do Ministério do Trabalho contidas em seu Título VII (sobre processo de multas administrativas), tal característica não tem o efeito de se sobrepor à Lei Estatutária.

A única relação existente entre a CLT e a Lei n.º 8.112/90 se estabelece entre o Título VII do código laboral (do processo de multas administrativas) e o Título IV da Lei estatutária (do regime disciplinar). Essa relação estabelece um liame de complementariedade. A norma celetista complementa um tipo disciplinar, mais precisamente o art. 116, inciso III, dos Estatutos, segundo o qual, é dever do servidor público federal “observar as normas legais e regulamentares.”

Deveras, a relação de complementariedade entre o caput do art. 628 celetista e o inciso III do art. 116 estatutário é a mesma que existe entre uma norma penal em branco e aquela que lhe complementa a descrição da conduta proibida. Nas palavras de Fabio Medina Osório, “sustenta-se, em doutrina, a ideia de que não há diferenças substanciais entre normas penais e normas administrativas sancionadoras” (Osório 2015, 120).

O que se quer dizer com isso é que a conduta funcional do AFT que descumpre o disposto no caput do art. 628 da CLT nada mais é do que violar o dever estatutário de observar as normas legais e regulamentares insculpido na Lei n.º 8.112/90, art. 116, inciso III. Além disso, deixar de lavrar auto de infração configura conduta que, em certas circunstâncias, viola o dever de exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo (Lei 8.112/90, art. 116, I), bem como, no plano teórico, o dever de manter conduta compatível com a moralidade administrativa (idem, inciso IX). Tais deveres são próprios do regime estatutário que rege os servidores civis federais.

Descumprimento de dever é ato interno ao agente e que se vincula à disciplina funcional da Administração. Nas lições de José dos Santos Carvalho Filho (Filho 2001, p. 47), a disciplina funcional é “a situação de respeito que os agentes da Administração devem ter para com as normas que os regem, em cumprimento aos deveres e obrigações a eles impostos”. Segundo o administrativista,

“A disciplina funcional resulta do sistema hierárquico. Com efeito, se aos agentes superiores é dado o poder de fiscalizar as atividades dos de nível inferior, deflui daí o efeito de poderem eles exigir que a conduta destes seja adequada aos mandamentos legais, sob pena de, se tal não ocorrer, serem os infratores sujeitos às respectivas sanções”

A expressão “normas legais e regulamentares” que está no tipo administrativo do inciso III do art. 116 estatutário é qualquer norma que obriga o servidor. No magistério de José Armando da Costa, “o tipo em comento (art. 116, inciso III) refere-se à lei e ao regulamento em suas acepções formais.” (Costa 2009, 334). É o caso do art. 628, caput, da CLT, que veicula um dever para os AFTs.

O resultado prático dessa argumentação é que as disposições do art. 628 trabalhista, ainda que contidas na CLT, originam obrigações jurídico-estatutárias para os AFTs.

Por isso, quando os procuradores do Trabalho afirmam que a conduta não se enquadra como descumprimento de dever previsto na norma geral (L. n.º 8.112/90), desconsideraram, inescapavelmente, as normas emanadas dos incisos I, III e IX do art. 116 dos Estatutos, que não foram citados na inicial. São justamente esses dispositivos estatutários que remetem a causa de pedir e o pedido para a órbita do Direito Administrativo. Aventa-se então à hipótese de uma argumentação ablativa[26], ou seja, a omissão dos incisos aludidos nos fundamentos apresentados pelo MPT.

O arrazoado do MPT pode confundir um leitor desatento e pouco conhecedor da matéria disciplinar que rege a conduta funcional dos servidores civis federais. Por esse ponto de vista, ganha relevância a observação feita pelo desembargador do Trabalho Viana Júnior, do TRT-18, em alusão indireta ao voto da ministra do STF Carmem Lúcia no julgamento do RE 573.202/AM, segundo a qual, o pedido pode ser feito de tal forma que seja encaminhado à Justiça que convém ao interessado. Uma argumentação ablativa se presta a esse fim.

Resta dizer que aquele raciocínio exposto na ACP – qual seja, se o dever descumprido está previsto na CLT, então a competência para processar e julgar o caso é da Justiça do Trabalho –, acarreta situações insólitas.


6 – Justiça do trabalho e o julgamento de condutas de autoridades da Inspeção do Trabalho: violação da isonomia, da coerência e da integridade do Direito.

Lenio Luiz Streck, um dos juristas e doutrinadores que vem proclamando com ênfase a necessidade da coerência e da integridade nas decisões judiciais, escreveu artigo sobre os mecanismos do novo Código de Processo Civil para combater decisionismos e arbitrariedades[27]. Entre esses mecanismos o jurista cita a coerência e a integridade da e na jurisprudência. Para o professor e doutrinador, “haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos”. Quanto à integridade o autor leciona:

Já a inte­gri­da­de é dupla­men­te com­pos­ta, con­for­me Dworkin: um prin­cí­pio legis­la­ti­vo, que pede aos legis­la­do­res que ten­tem tor­nar o con­jun­to de leis moral­men­te coe­ren­te, e um prin­cí­pio juris­di­cio­nal, que deman­da que a lei, tanto quan­to pos­sí­vel, seja vista como coe­ren­te nesse sen­ti­do. A integridade exige que os juí­zes construam seus argu­men­tos de forma inte­gra­da ao con­jun­to do direi­to, constituindo uma garan­tia con­tra arbi­tra­rie­da­des inter­pre­ta­ti­vas; colo­ca efe­ti­vos ­freios, atra­vés des­sas comu­ni­da­des de princípios, às ati­tu­des solip­sis­tas-volun­ta­ris­tas. A integridade é antitética ao voluntarismo, do ativismo e da discricionariedade. Água e azeite.

Tendo isso em perspectiva, parte-se para um exercício didático.

Na hipótese de o secretário da Receita Federal do Brasil (RFB) deixar de exercer o controle das atividades dos auditores-fiscais da RFB, dever previsto no art. 45 do Anexo I ao Decreto n.º 7.482/2011 (aprova a estrutura regimental do Ministério da Fazenda), acarretando ineficiência na arrecadação de tributos federais, indaga-se: qual órgão do Ministério Público da União (MPU) é competente para ajuizar ação civil pública com pedido para que o secretário seja obrigado a exercer o controle efetivo das atividades dos auditores-fiscais da RFB? Seria um procurador da República ou um procurador do Trabalho?

Não se cogita divergência quanto à conclusão de que compete ao procurador da República acionar judicialmente a União com o pedido mencionado. E o foro apropriado para ajuizar a ACP é, sem dúvida, a Justiça Federal. Procurador da República não oficia na Justiça do Trabalho.

Considerando-se agora a situação concreta em que o secretário da Inspeção do Trabalho figura como autoridade demandada na ACP firmada por um grupo de procuradores do Trabalho, pela qual buscam impor obrigação de fazer consistente em exercer controle sobre atos dos AFTs, fazem-se outras indagações: por qual razão o órgão do MPU que ajuíza a ACP contra o secretário da Receita é um procurador da República e o que ajuíza ACP contra o secretário da Inspeção do Trabalho é um procurador do Trabalho? E por que motivo o juiz competente para processar e julgar a ACP contra o Secretário da Receita é um juiz federal e aquele que processa e julga ACP contra o secretário da Inspeção do Trabalho é um juiz do Trabalho? Não há fundamento jurídico e racionalidade para tal diferenciação.

Tal exemplo demonstra as violações da coerência e da integridade do Direito por parte de sentenças de juízes do Trabalho que condenam a União a promover medidas administrativas para ajustar a atuação de autoridades do Ministério do Trabalho ao controle pretendido pelo MPT.

A leitura que procuradores do Trabalho fazem do art. 628 da CLT também conduz a resultados inusitados e absurdos.

O artigo celetista elenca vários deveres para os AFTs além daquele de lavrar auto de infração a cada constatação de irregularidade. Assim, se prevalecer a argumentação dos procuradores do Trabalho (deveres contidos na CLT devem ser julgados pela Justiça laboral), então esses outros deveres também se sujeitam à Justiça especializada. Convém, portanto, reproduzir excertos do art. 628, com os destaques acrescidos, para demonstrar, a um simples olhar, a extravagância da tese do Parquet laboral:

Art. 628.  Salvo o disposto nos arts. 628 e 628-A, a toda verificação em que o Auditor-fiscal do trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração.

        § 1º (...);

        § 2º (...);

        § 3º Comprovada má fé do agente da inspeção, quanto à omissão ou lançamento de qualquer elemento no livro, responderá ele por falta grave no cumprimento do dever, ficando passível, desde logo, da pena de suspensão até 30 (trinta) dias, instaurando-se, obrigatoriamente, em caso de reincidência, inquérito administrativo.

        § 4º A lavratura de autos contra empresas fictícias e de endereços inexistentes, assim como a apresentação de falsos relatórios, constituem falta grave, punível na forma do § 3º.

Como se percebe, os parágrafos do art. 628 estabelecem não apenas deveres aos auditores como também tipificam condutas ilícitas passíveis de responsabilidade civil, penal e administrativa, conforme admitido pelo art. 121 da Lei n.º 8.112/90. Como é do senso comum, as responsabilidades civil, penal e administrativa de servidores não estão sujeitas às competências da Justiça do Trabalho.

Se a omissão da lavratura de auto de infração envolve ato doloso para obter vantagem pessoal ilícita para o agente fiscal, estar-se-á diante de violação de proibições (Lei n.º 8.112/90, art. 117), como valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública (inc. IX); receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições (inc. XII); ou proceder de forma desidiosa (inc. XV). Tais violações de proibições são condutas que, provadas no devido processo legal, levam objetivamente à pena disciplinar de demissão (Lei n.º 8.112/90, art. 132), como a prática de crime contra a administração (inc. I); improbidade administrativa (inc. IV); corrupção (inc. XI) e transgressões dos incisos IX a XVI do art. 117 dos Estatutos.

No plano da realidade, AFTs foram de fato punidos administrativamente com a pena de demissão por lançarem falsos relatórios de inspeção no sistema Sfit, bem como em razão da omissão de lavratura de auto de infração com a finalidade de obter vantagem para si, caracterizando os ilícitos administrativos de corrupção (Lei n.º 8.112/90, art. 132, inciso XI) e de improbidade administrativa (idem, inciso IV).

Em contraposição, nenhum AFT foi penalizado por deixar de lavrar auto de infração em razão do saneamento da irregularidade trabalhista por parte do empregador faltoso, pois a não lavratura não resultou de pedido ou de aceitação de propina, mas de uma resposta saneadora por parte do empregador em benefício direto para os empregados prejudicados. Não se trata sequer de crime de prevaricação, como pensam alguns, porquanto não há a satisfação de interesse ou sentimento pessoal para o auditor. Exceto a satisfação íntima de garantir o cumprimento de um direito trabalhista ao empregado desassistido.

Considerando-se esse quadro e aplicando-se a tese do MPT, se poderia obter o convencimento de que as ações de improbidade administrativa contra os AFTs deveriam ser ajuizadas pelo MPT junto à Justiça do Trabalho. E mais: o MPT poderia até mesmo ajuizar ação de dano moral coletivo contra os auditores ímprobos, ante o dano praticado contra a coletividade dos trabalhadores. Afinal, os membros do Parquet laboral advogam a competência da Justiça do Trabalho para tratar de causas do Direito Administrativo de forma ampla, e não apenas limitada aos casos expressos no art. 114, VII, da CF. Essa tese até poderia ser amparada em analogia com o inciso VI do art. 114 da CF, que trata das ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho. Com efeito, se a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ações de natureza indenizatória decorrentes da relação de trabalho, nada mais certo – ainda segundo a tese originalíssima – do que fazer o mesmo em relação às condutas de AFTs que, pelo exercício irregular de suas funções, causam danos morais e patrimoniais a trabalhadores e ao erário no contexto de relações de trabalho. E se a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar o secretário de Inspeção do Trabalho por deixar de exercer o controle de legalidade de cada ação fiscal realizada no País (dever que não está previsto na CLT), entre elas o dever de cada auditor-fiscal de lavrar auto de infração a cada vez que constatar infração trabalhista (CLT, art. 628, caput), então ela será competente para processar e julgar o AFT que não lavrou o auto de infração quando a lei assim o exigia, dever esse prescrito na CLT.

Da aceitação dessa tese resultaria um efeito prático absurdo: os AFTs seriam os únicos servidores civis federais do País a se submeterem ao julgamento da Justiça do Trabalho pelo exercício irregular de suas atribuições, diferentemente de todos os demais servidores, que, por essas ações, são processadas e julgadas pela Justiça comum.

Tais resultados não apenas violariam a integridade e a coerência do Direito, mas implicariam na quebra da isonomia entre servidores federais.

Como já demonstrado, o dever específico do caput do art. 628 da CLT nada mais é do que a norma secundária que complementa o tipo administrativo aberto do inciso III do art. 116 da Lei n.º 8.112/90. Sendo um dever previsto nos Estatutos dos servidores civis federais, então são típicos das relações jurídico-administrativas, alcançados, portanto, pelos efeitos vinculantes da ADI 3.395, ou seja, não se submetem à competência da Justiça do Trabalho.

Mas os problemas não se resumem a isso.


7. Ilegitimidade passiva do Secretário de Inspeção do Trabalho

Outro ponto a ser considerado é que o art. 628 da CLT impõe deveres aos auditores-fiscais, e não ao secretário de Inspeção do Trabalho.

As competências do secretário estão ditadas nos artigos 14 e 28 do Anexo ao Decreto n.º 5.063/2004[28] (Regimento Interno do MTb). Essas competências são primordialmente de formular e propor diretrizes para a Inspeção do Trabalho (Dec. 5.063/2004, Anexo, art. 14, incisos I, II, VI, e VIII). Não consta o dever de controlar as ações fiscais. Esse dever de controle é exercido pelos diretores do Departamento de Fiscalização do Trabalho (idem, art. 15, III) e do Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho (idem, art. 16, II), subordinados ao secretário.

Certamente será levantada a objeção de que a falta de expressa previsão legal para que o secretário de Inspeção do Trabalho exerça o controle das ações fiscais não o exime desse dever, pois isso lhe é ínsito em face da hierarquia ascendente sobre os diretores obrigados a esse dever, e que, indiretamente por meio da cadeia hierárquica, alcança todos os AFTs individualmente. Estar-se-ia argumentando com base na responsabilidade hierárquica ascendente, significando que o superior hierárquico deve controlar os atos de seus subordinados. Além disso, como autoridade hierárquica superior, o secretário tem o poder de expedir ordens aos seus subordinados.

Tal entendimento não merece reparos, não fosse o fato de que a ACP que versa sobre a imposição de regras de negócio no sistema Sfit esbarra em duas impropriedades legais.

A primeira delas é que o secretário de Inspeção do Trabalho não possui competências em matéria de informática no âmbito do MTb. Essa matéria específica está subordinada ao secretário-executivo conforme art. 4º, inciso III, do Anexo ao Decreto n.º 5.063/2004, tomado por referência em razão da contemporaneidade da proposição e julgamento da ACP.

No plano orgânico da Secretaria Executiva, as atividades relacionadas à área de informática perpassam as competências da Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração – Spoa (Portaria n.º 483/2004, anexo II, art. 23, I e II). E subordinada à SPOA está a Coordenação-Geral de Informática – CGI, a quem compete, em caráter especial para o contexto aqui analisado, orientar o desenvolvimento das ações de informática e “co-gerenciar tecnicamente contratos e convênios relativos à tecnologia da informação” (Port. 483/2004, Anexo II, art. 24, inc. I e VI, sem o destaque inserido). Vale lembrar que o sistema Sfit é desenvolvido e mantido pelo Serpro com base em contrato administrativo.

Diante dessas competências regimentais, qualquer alteração a ser feita no sistema Sfit exige a manifestação técnica da CGI. E se a CGI não aprovar as medidas, a questão será decidida por outra autoridade, de modo que o secretário de Inspeção do Trabalho não é competente para “implementar” as medidas de inserção de Regras de Negócio no sistema Sfit, ou em qualquer outro que venha a substituí-lo.

Tanto se assevera quanto à procedência desse argumento que a Recomendação Ministerial n.º 2.294/2014 expedida a autoridades do então MTE pelos procuradores do Trabalho anteriormente à propositura da ACP foi dirigida ao secretário de Inspeção do Trabalho e ao subsecretário de Planejamento, Orçamento e Administração do MTE. Eis a transcrição do trecho da aludida Recomendação, com a ênfase agora acrescentada:

“RESOLVE recomendar ao Ministério do Trabalho e Emprego, através (sic) de sua Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração e de sua Secretaria de Inspeção do Trabalho, que adote as seguintes medidas:”

Se os procuradores do Trabalho entenderam necessário recomendar o subsecretário, é porque reconheceram a sua competência na matéria. Mas ele não foi incluído no rol das autoridades demandadas na ACP. Isso, em tese, inquinaria de ilegalidade a determinação judicial para que o secretário de Inspeção do Trabalho, que não tem competências legais na área de informática do MTb, implemente regras de negócio ao gosto dos procuradores do Trabalho.

A segunda impropriedade legal envolve as responsabilidades do ministro do Trabalho. Conforme art. 4º, inciso II, do Anexo I ao Decreto n.º 5.063/2004, compete ao secretário-executivo “assistir ao Ministro de Estado na supervisão e coordenação das atividades das Secretarias integrantes do Ministério e da entidade a ele vinculada” (g.n.). Se o secretário-executivo deve apenas assistir ao ministro nessa supervisão e coordenação, é porque  não pode exercer diretamente essa supervisão e coordenação. E não se poderia concluir de forma diferente, porquanto essa competência ministerial tem origem na Constituição Federal, art. 87, parágrafo único, inciso I. Na hipótese de negativa da CGI em face de questões técnicas, o conflito será decidido pelo ministro de Estado.

Ao fim dessa trilha de competências legais devemos então retomar a análise da objeção que possa surgir em torno da responsabilidade hierárquica ascendente. Ou seja, a falta de expressa previsão legal para o dever de controlar não exime o secretário de Inspeção do Trabalho desse dever, pois lhe é ínsito em face da hierarquia ascendente em relação aos diretores sobre os quais recai esse dever de controle. Ora, se essa objeção for procedente, e dado que o secretário de Inspeção não tem competências em matéria de informática, então não seria ele a figurar como autoridade demandada na ACP aforada pelo MPT, mas sim o então ministro do Trabalho e Emprego à época. Com efeito, a implantação das “regras de negócio” descritas no pedido da ACP exige a coordenação de dois órgãos do MTb: a Secretaria de Inspeção do Trabalho e a Secretaria Executiva. Nenhum de seus titulares tem poder hierárquico sobre o outro. E nos termos da CF, quem coordena, orienta e supervisiona os órgãos do Ministério é o ministro de Estado. Como autoridade máxima do Ministério, o ministro exerce o poder de controle sobre seus subordinados hierárquicos. Logo, o destinatário dos provimentos judiciais requeridos pelo MPT deveria ser o ministro de Estado, não o secretário de Inspeção do Trabalho. Na hipótese de o coordenador-geral de Informática, na condição de co-gestor do contrato administrativo com o Serpro, manifestar-se pela inviabilidade técnica ou econômica das medidas e o agora ministro do Trabalho decidir acolher a manifestação, o titular da SIT não poderia ser condenado por descumprimento de determinação judicial.


8 – Da tese da inaplicabilidade dos efeitos da ADI 3.395 nos casos examinados

Conforme deduzido na inicial, a ACP ajuizada em Anápolis/GO está voltada para um cumprimento de um dever, mas esse dever não está previsto na norma geral (Lei n.º 8.112/90), mas em lei especial (CLT). Logo, não se aplicam os efeitos da ADI 3.395. Com base no raciocínio exposto os autores impugnaram a contestação da União afirmando que não se aplicam os efeitos da ADI n.º 3.395, pois a “ACP não cuida de qualquer direito, vantagem, obrigação ou dever previsto na norma geral (Lei 8112/90) que rege as relações estatutárias existentes entre os Auditores-Fiscais do Trabalho e a União” (g.n.).

Se esse raciocínio estiver correto, então se pode concluir, a contrário senso, que se o dever reclamado está previsto na Lei estatutária, então incidem os efeitos da ADI 3.395. Demonstrar-se-á que esse é o caso nas duas ACPs.

Por sua vez, o desembargador do Trabalho Daniel Viana Júnior, relator do RO da União na ACP sentenciada pelo juiz da 2ª Vara do Trabalho de Anápolis/GO, do TRT-18ª Região, ao fundamentar seu voto, sustentou que não se aplicam ao caso os efeitos da ADI 3.395, pois a questão não envolve litígio entre servidores e órgãos públicos regidos por relações estatutárias.

O posicionamento do desembargador do Trabalho procede quando se examina o inciso I do art. 114 da CF, que confere à Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar ações oriundas das relações de trabalho. A ADI diz que as relações estatutárias não estão incluídas no conceito de relações de trabalho que se submetem à competência da Justiça especializada.

Mas a interpretação que se extrai da ADI 3.395 não fica limitada ao sentido semântico da expressão “relações de trabalho” contido no inciso I do art. 114 da CF. Tal leitura implicaria em dizer que somente as ações movidas por servidores contra a União para reclamar direitos é que estariam sujeitas à Justiça Federal.  Ou da União contra seus servidores.

Argumenta-se, porém, que a razão de decidir que se pode extrair do julgamento do STF é que os litígios que envolvam relações jurídicas no serviço público são próprios da Justiça comum, e não da Justiça do Trabalho. Os litígios em que servidores reclamam direitos são apenas um dos fatos que são abarcados por essa razão de decidir, mas não os únicos.

Esse efeito ampliado das decisões da Corte Suprema foi tema no voto do  ministro Gilmar Mendes, relator na Reclamação n.º 4.335. O ministro mencionou uma postura significativamente ousada do Tribunal nas hipóteses de declarações de inconstitucionalidade de leis municipais, “conferindo efeito vinculante não só à parte dispositiva da decisão de inconstitucionalidade, mas também aos próprios fundamentos determinantes.” Não há razão para que esse efeito fique restrito à inconstitucionalidade de leis municipais. Confira-se ementa do acórdão proferido no julgamento da Reclamação mencionada, com a ênfase agora acrescentada:

Reclamação. 2. Progressão de regime. Crimes hediondos. 3. Decisão reclamada aplicou o art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.072/90, declarado inconstitucional pelo Plenário do STF no HC 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 1.9.2006. 4. Superveniência da Súmula Vinculante n. 26. 5. Efeito ultra partes da declaração de inconstitucionalidade em controle difuso. Caráter expansivo da decisão. 6. Reclamação julgada procedente. (STF, Pleno, Recl. 4.335, rel. min. Gilmar Mendes).

Na ADI 3.395, o STF, aplicando a interpretação conforme a Constituição, decidiu que a expressão “relações de trabalho” do inciso I do art. 114 d CF não abarca as relações jurídico-estatutárias ou jurídico-administrativas próprias do serviço público. Pelo caráter expansivo da decisão, seus efeitos alcançam toda e qualquer situação em que a causa de pedir e os pedidos devem ser decididos na matriz jurídico-estatutária.

Nesse sentido, como as causas de pedir e os pedidos das ACPs analisadas envolvem obrigações de fazer voltadas para o controle de servidores públicos civis federais (AFTs), e tendo em vista que tal controle só é possível por meio de normas jurídico-estatutárias, conclui-se que os efeitos vinculantes da ADI 3.395 se projetam sobre essas  ACPs, afastando, por conseguinte, a competência da Justiça do Trabalho.

Há indicativo nesse sentido no próprio STF, embora se trate de medida precária ainda sujeita a julgamento.

O município de Salvador/BA, por meio de seu procurador-geral, promoveu representação junto ao STF[29], com pedido de medida cautelar, contra o processamento de ACP ajuizada pelo MPT na 28ª Vara do Trabalho de Salvador/BA. Segundo o Município, “a pretensão do MPT é imiscuir-se no modo como deve ser gerida a máquina pública”. O principal pedido da ACP é que o Município de Salvador seja condenado a adotar todos os procedimentos administrativos necessários à preservação dos direitos laborais dos trabalhadores terceirizados, quando forem efetuadas licitações e contratações de obras e serviços promovidos por todos os órgãos e instâncias administrativas da Prefeitura mediante uma séria de medidas de cunho administrativo elencadas na peça inicial.

O presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, em análise superficial própria no julgamento de uma liminar, entendeu que “o processamento da referida reclamação [ACP] na Justiça do Trabalho afronta a decisão desta Corte [STF] proferida na ADI 3.395/DF, Rel. Min. Cezar Peluso.” Em face disso, o presidente do Tribunal concedeu liminar determinando a suspensão da ACP até o julgamento final da reclamação constitucional e sem prejuízo de melhor exame da questão pelo Relator sorteado (min. Dias Toffoli).

A ACP afetada pela decisão monocrática do min. Ricardo Lewandowski não envolve servidores públicos municipais e a Prefeitura. E processos licitatórios e contratos administrativos não resultam de relações de trabalho. São atos tipicamente administrativos. Mesmo assim o presidente do STF viu, na ocasião, indícios da violação dos efeitos da ADIN 3.395.

Esse quadro litigioso é análogo ao que cerca as ACPs do MPT contra a União: procuradores do Trabalho querem que a Justiça do Trabalho imponha obrigação de fazer de natureza administrativa à União para determinar modos de atuação das autoridades da Inspeção do Trabalho com vistas a, supostamente, garantir direitos trabalhistas aos empregados, os quais não têm vínculo com a União.

Se o presidente do STF, ainda que em análise superficial próprio da decisão de medidas liminares, entendeu que se aplicam os efeitos da ADI 3.395 no caso de Salvador, é lícito admitir que incidam também nos casos das ACPs movidas pelo MPT contra a União.

A Primeira Seção do STJ oferece outro exemplo elucidativo em matéria que envolve litígios entre sindicatos de servidores públicos e o Poder Público que se circunscreve nos efeitos da ADI 3.395.

Antecipa-se, para efeito de contextualização e para afastar eventual entendimento de contradição, que o STJ firmou entendimento de que as ações envolvendo sindicatos e servidores para cobrança da contribuição sindical previsto no art. 578 da CLT é da competência da Justiça do Trabalho, sendo “desinfluente, para fins de definição do juízo competente, aferir a natureza do vínculo jurídico existente entre a entidade pública e os seus servidores” (STJ, Primeira Seção. CC 147.099. Rel. min. Assusete Magalhães, julgamento em 10/08/2016, DJe de 22/08/2016). Ou seja, não se aplica a ADI 3.395. A votação foi unânime, dela participando o min. Mauro Campbell.

No entanto, ao julgar o Conflito de Competência (CC) 145.847/RJ com caso semelhante em novembro de 2016, mas dessa feita envolvendo a cobrança da contribuição sindical facultativa, a mesma Primeira Seção do STJ aplicou os efeitos da ADI 3.395.

Eis trecho da ementa do acórdão, em que foi relator o min. Mauro Campbell:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRIBUIÇÃO FACULTATIVA DEVIDA POR SERVIDOR PÚBLICO FILIADO À ENTIDADE SINDICAL. DISCUSSÃO DE ATO DO PREFEITO DA MUNICIPALIDADE QUE IMPEDIU DESCONTO EM FOLHA AUTORIZADO PELOS   SERVIDORES FILIADOS. RELAÇÃO JURÍDICO-ESTATUTÁRIA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM.

1.  A demanda adjacente ao presente conflito de competência não discute a sujeição passiva dos servidores públicos à contribuição sindical compulsória, de natureza tributária, nem  trata da representatividade do referido  sindicato para receber os repasses das  referida contribuição. Antes, discute tão somente ato do Prefeito da municipalidade que impediu o desconto em folha de CONTRIBUIÇÕES FACULTATIVAS devidas pelos servidores que se filiaram voluntariamente ao sindicato impetrante.

2.  A atuação do sindicato impetrante na hipótese não veicula apenas interesse da entidade sindical, mas também dos servidores a ele filiados e que já autorizaram de antemão o desconto em folha das contribuições facultativas previstas no estatuto da entidade.

3.  O Supremo Tribunal Federal já se manifestou nos autos da Medida Cautelar  na  ADI  3395  MC/DF  para,  em relação ao art. 114, I, da CF/88,  suspender  a  "...  apreciação  ...  de causas que ... sejam instauradas   entre  o  Poder  Público  e  seus  servidores,  a  ele vinculados  por  típica  relação  de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo",   razão  pela  qual,  em  casos  que  tais (contribuição  sindical  facultativa  e  não  imposto  sindical),  a competência   para   julgamento   de  tema  circunscrito  à  relação jurídico-estatutária  entre  os  servidores  e  o  Poder  Público em relação ao qual possuem vínculo foi atribuída à Justiça Comum.

(...).

(STJ, Primeira Seção. CC 145.847/RJ. Rel. min. Mauro Campbell Marques. Julgamento em 23/11/2016. DJe de 01/12/2016. Julgamento unânime).

No caso julgado, tratou-se de um ato administrativo do prefeito para restringir direito dos servidores municipais, caracterizando um litígio de natureza jurídico-administrativa.

Considerando que as ACPs objeto deste estudo versam sobre o cumprimento de deveres por parte de autoridades da Inspeção do Trabalho, e dado que esses deveres fazem parte da matriz normativa de natureza jurídico-estatutária ou jurídico-administrativa, então incidem os efeitos da ADI 3.395, de modo que a causa de pedir e os pedidos devem ser julgados pela Justiça Federal.


9– Violação do princípio da separação dos poderes

A tentativa de influenciar a forma de atuação da Inspeção do Trabalho por meio de ACPs viola também o princípio da separação dos poderes (CF, art. 2º). O Poder Judiciário tem rejeitado ações judiciais que impõem ao Executivo a forma e o modo como autoridades federais devem exercer a administração pública.

Endossa esse entendimento a decisão da juíza do trabalho Maria Rafaela de Castro, da Vara do Trabalho de Porto Velho/RR, que julgou improcedente a ACP que busca a declaração da atribuição privativa dos AFTs para os atos de interdição e embargo. Em sua sentença, a magistrada, entre outros argumentos, arrazoou que “seria verdadeira afronta à Tripartição dos Poderes (...) determinar que a União adaptasse regulamentos, portarias e demais atos normativos infralegais, nos termos da alínea ‘b’ da exordial e, por consequência, a alínea ‘c’ dos pedidos do MPT.” Todavia, a decisão foi reformada no TRT da 14ª Região, como referido anteriormente.

A Justiça Federal segue a mesma linha.

O Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região julgou improcedente ACP que buscava impor à União a obrigação de realizar concurso para cargos em hospital vinculado à Universidade Federal de Alagoas[30]. Merece destaque trecho do voto do desembargador federal Vladimir Souza Carvalho. Ele sustentou que não vê “como transformar o Judiciário em órgão a ditar, a pedido do Ministério Público, as condutas administrativas que devem ser executadas pela administração pública”. Ora, é exatamente o que o MPT busca por meio dessas ACPs.

No STF prevalece o mesmo entendimento.

A ministra Carmem Lúcia, na condição de relatora, converteu o Agravo de Instrumento 850.020 em Recurso Extraordinário para submeter ao procedimento de repercussão geral caso envolvendo hipótese de violação do princípio da separação dos poderes.

No caso concreto do agravo, o município do Rio de Janeiro insurgiu-se contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) que julgou mandado de segurança impetrado pelo Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro e determinou que o Município garantisse número mínimo de profissionais na área de saúde para o regular funcionamento do novo setor de emergência do Hospital Salgado Filho, com fornecimento de medicamentos e demais insumos indispensáveis ao atendimento dos pacientes. Segundo relatório da ministra Carmem Lúcia, o Município sustentou que a decisão do TJ/RJ configuraria nítida ofensa ao princípio da separação dos poderes e que o Poder Judiciário não poderia substituir os Poderes Executivo e Legislativo e determinar a forma, a área beneficiada e o momento em que serão disponibilizados recursos para atender às necessidades da população municipal. Em sua argumentação, a ministra relatora realçou que o STF “assentou haver contrariedade ao art. 2º da Constituição da República na determinação judicial de realização de obras em cadeias públicas”. Sustentou seu entendimento em decisões monocráticas com trânsito em julgado sobre a matéria.

A partir desses casos paradigmas, argumenta-se que as ACPs ajuizadas pelo MPT para que autoridades da Inspeção do Trabalho adotem medidas administrativas para melhor controle e aplicação das disposições do caput do art. 628 da CLT atentam contra o princípio da separação dos poderes. A Justiça do Trabalho, de fato, não pode ditar à União como o MTb deve adequar o exercício da função pública dos auditores-fiscais do trabalho aos ditames da lei.


10– Dos precedentes que corroboram a incompetência da Justiça do Trabalho na matéria

Destoando da iniciativa dos procuradores do Trabalho autores das ACPs que buscam impor obrigações a autoridades da Inspeção do Trabalho, a realidade mostra que há órgãos do MPT que estão conscientes das limitações legais para sua atuação e buscam trilhar o caminho ditado pelo ordenamento jurídico. É o caso do procurador do Trabalho Francisco Breno Barreto Cruz, da Procuradoria Regional do Trabalho no Amapá. Com base no § 5º do art. 5º da Lei n.º 7.347/1985[31], ele buscou o litisconsórcio facultativo com o MPF para, mediante ACP[32], imporem à União a obrigação de fazer consistente em prover os cargos vagos de AFTs mediante concurso público, em face da drástica redução dos quadros funcionais da Inspeção do Trabalho nos últimos anos. Na ACP, o MPF, agindo por meio do procurador da República Filipe Pessoa de Lucena, exerceu a atribuição institucional cometida ao Parquet federal pelo art. 39, caput e inciso II, da LC n.º 75/93. Ou seja, ambos, MPT e MPF, atuando sob a forma de litisconsórcio facultativo, uniram forças para obter um provimento judicial nos termos da legislação que assegure o respeito aos direitos constitucionais dos trabalhadores mediante a atuação mais efetiva e eficiente de um órgão federal, no caso, o Ministério do Trabalho. O MPT entrou com o conhecimento específico sobre a Inspeção do Trabalho e seu papel constitucional na defesa e promoção dos direitos dos trabalhadores, e o MPF lançou mão de suas atribuições institucionais de controle dos órgãos da administração pública federal para o intento conjunto. Outro fato relevante é que essa ACP foi ajuizada na Justiça Federal, e não na Justiça do Trabalho. E o juiz federal não se declarou incompetente em processar e julgar a ação e tampouco atribuiu a competência a um juiz do Trabalho. Uma nota à margem: há dúvidas se o MPT seria parte legítima a figurar como litisconsorte facultativo perante a Justiça Federal.

Curiosamente, procuradores do Trabalho já intentaram ACP com o mesmo objetivo quanto à realização de concurso público para o cargo de AFT. E o resultado corrobora a tese defendida neste artigo.

Deveras, antes da iniciativa acima mencionada, procuradores do Trabalho buscaram o mesmo objetivo por meio de ACP na Justiça laboral em Aracaju/SE. A juíza do Trabalho Marta Cristina Santos, da 9ª Vara do Trabalho de Aracaju, extinguiu o feito sem resolução do mérito por convencimento de que a ação deve ser julgada na Justiça Federal. Segundo a magistrada, a questão tem natureza administrativa, pois envolve a criação e o provimento de cargos públicos. Pondera ainda que a omissão da União deve ser conhecida e julgada pela Justiça Federal, “uma vez que em nenhuma das situações constitucionalmente previstas como de competência da Justiça do Trabalho se extrai, seja da causa de pedir, seja dos pedidos articulados na exordial, elementos indicadores da competência material, a teor do que dispõe o art. 114 da Constituição Federal de 1988.” A magistrada ainda assevera que “não é concebível, juridicamente, uma interpretação ampliativa dos preceitos constitucionais relativos à competência sem que se fira de morte a Unidade Constitucional, como propõe o Ministério Público do Trabalho ao ajuizar a presente demanda.”

O MPT interpôs recurso ao TRT da 20ª Região, mas a 1ª Turma do Tribunal negou-lhe provimento, sendo relator o desembargador Josenildo dos Santos Carvalho. A Turma acolheu os fundamentos da sentença de primeiro grau, convencidos da incompetência ratione materiae da Justiça do Trabalho.


Conclusão

Apresenta-se à crítica, neste artigo, a argumentação de que sentenças mandamentais proferidas por magistrados do trabalho em desfavor de autoridades do Ministério do Trabalho com a finalidade de ajustar condutas funcionais de auditores fiscais do trabalho violam (a) os limites hermenêuticos do inciso VII do art. 114 da CF, (b) os efeitos da ADI 3.395, que exclui da Justiça do Trabalho as causas que envolvam relações jurídico-estatutárias, e, por fim, (c) o princípio da separação dos poderes. Daí porque a competência para processar e julgar atos de poder de polícia administrativa de autoridades da Inspeção do Trabalho não se confundem com o processamento e julgamento de atos funcionais dessas autoridades.

Por conta disso, falta competência também ao MPT tanto para ajuizar ações civis públicas quanto expedir recomendações com a mesma finalidade.

Sustenta-se que a norma emanada do inciso VII do art. 114 da CF é uma exceção à regra de competência material da Justiça especializada, e sendo exceção, sua interpretação deve ser restritiva, conforme fundamentação aplicada pela 1ª Turma do TRT da 18ª Região. Nesse sentido, o alcance da norma do inciso VII do art. 114 da CF fica limitado à lide que discute tão-somente atuação de autoridades da Inspeção do Trabalho frente a um empregador no contexto de fiscalização das relações de trabalho. Em tais casos, a lide envolve a União, na figura de um AFT, e um empregador, tendo por causa de pedir o cumprimento de normas trabalhistas. Esse marco constitucional abarca tão somente autos de infrações, notificações fiscais, laudos técnicos, decisões de imposição de multas e decisões de decretação de embargos e interdições e todo e qualquer ato administrativo que sujeite o empregador.

A segunda fundamentação se alicerça na ofensa da autoridade da decisão do STF emanada do julgamento da ADI 3.395, que exclui do conceito de relações do trabalho as relações jurídico-administrativas ou jurídico-estatutárias próprias do Direito Administrativo. Nos dois casos paradigmas analisados neste artigo, tem-se presentes litígios que buscam a sujeição de servidores civis federais aos normativos que regulam o serviço público federal, o que só é possível sob a matriz jurídico-estatutária, própria do Direito Administrativo. Não há relação de trabalho em discussão, ainda que o objeto discutido (conduta de autoridades da Inspeção do Trabalho) produza efeitos nas relações de emprego. 

A terceira fundamentação é a preservação da separação dos poderes. O Judiciário não pode determinar ao Executivo como administrar os seus órgãos e seus servidores, em especial ao ponto de descer a minudências de indicar quais regras de negócio devem ser inseridas em sistemas de informática. Parafraseando o desembargador federal Vladimir Carvalho, do TRF da 5ª Região, o MPT quer transformar a Justiça do Trabalho em órgão a ditar as condutas administrativas das autoridades do Ministério do Trabalho.

A iniciativa de procuradores do Trabalho, alguns deles ex-auditores-fiscais do trabalho, de ajuizarem quatro ações civis públicas em distintas regiões da Justiça do Trabalho buscando sentenças mandamentais em desfavor de autoridades do Ministério do Trabalho e da Inspeção do Trabalho sugere uma pretensão de influenciar ou mesmo exercer um controle externo da Inspeção do Trabalho, atribuição que a Lei Complementar n.º 75/93 não lhes conferiu.

Na 18ª Região o intento malogrou, pois a 1ª Turma do TRT declarou a incompetência da Justiça especializada para processar e julgar a ação que cuidava de obrigar o MTb a exercer melhor controle das atividades funcionais dos AFTs e a reformular o sistema de informática utilizado pela Inspeção do Trabalho, de modo que fossem obrigados a seguir a interpretação literal do art. 628 da CLT,.

A ACP que tramita no TRT da 20ª Região e que também parte de interpretações do art. 628 celetista teve sentença de mérito que julgou os pedidos improcedentes, sendo que a incompetência da Justiça do Trabalho não foi discutida. O MPT manejou recurso ordinário oposto com contrarrazões da União. O processo encontra-se concluso para julgamento. Considerando-se o precedente do Tribunal Regional sobre a incompetência ratione materiae da Justiça do Trabalho para julgar ACP que visa à realização de concurso público para os cargos vagos de AFT, é pouco provável que o recurso do MPT seja provido.

Mencionada em plano secundário, a ACP que mira os atos de embargos e interdições resultou na condenação da União aos pedidos formulados pelo MPT. Não foi discutida a competência da Justiça do Trabalho. Em relação a ela, o autor apontou em outro artigo a impropriedade da ACP, pois ela busca, por via indireta, expurgar o art. 161 celetista do ordenamento jurídico, produzindo os efeitos de uma ADI, o que resulta em usurpação, por parte do MPT, de competência do procurador-geral da República, e, por parte dos magistrados do Trabalho, da competência constitucional do STF.

Os casos mencionados e as decisões judiciais neles proferidas demonstram que a Justiça do Trabalho ainda oscila quanto à sua competência para processar e julgar autoridades da Inspeção do Trabalho ou matérias de cunho administrativo que, mesmo com reflexos nas relações de trabalho, adentram na competência da Justiça Federal.

O MPT é instituição imprescindível para a garantia dos direitos fundamentais dos trabalhadores, assim como o são a Inspeção do Trabalho e a Justiça do Trabalho. Mas deve atuar nos limites que lhe foram estabelecidos na Lei Complementar n.º 75/93 e prestando obediência às decisões vinculantes do STF e respeitando as competências próprias do MPF. O mesmo se deve dizer quanto à Justiça do Trabalho.

Considerando que o MPT estaria propenso a exercer uma espécie de controle externo da Inspeção do Trabalho, avançando sobre competências do MPF, surge a hipótese de a União, por meio da Advocacia-Geral da União, promover representação ao PGR suscitando o conflito de atribuições entre o MPT e o MPF nas matérias examinadas, entre outras que possam surgir. Evitar-se-ia movimentar a Justiça do Trabalho com ações que se mostram impróprias para suas as competências, obtendo-se igual proveito quanto ao desperdício de recursos financeiros e humanos tanto da Justiça do Trabalho quanto do próprio MPT.

Outro remédio jurídico é a reclamação ao STF para preservar a competência da Justiça Federal e a garantia da eficácia da decisão da Corte proferida no julgamento da ADI 3.395, que afasta a competência da Justiça do Trabalho das questões envolvendo relações jurídico-administrativas ou estatutárias típicas do Direito Púbico. Tal medida provocaria a manifestação do STF sobre essa questão específica, qual seja, fixar a interpretação e o alcance da norma insculpida no inciso VII do art. 114 da CF.

Também cabe reclamação ao STF para a preservação de sua competência quanto ao controle da constitucionalidade do art. 161 da CLT, já que a ACP que veicula a pretensão de invalidade do artigo celetista tem efeito erga omnes em controle abstrato, assumindo características de uma ADI, ou, mais precisamente, de uma ADPF.


Notas

[1] BRASIL. TRT da 18ª Região. Processo nº 0010325-27.2015.5.18.0052 (Ação Civil Pública) –http://sistemas.trt18.jus.br/consultasPortal/pages/Processuais/DetalhaProcesso.seam?p_num_pje=174542&p_grau_pje=1&popup=0&tipo_proc=ACP&cid=8965

[2] Atualmente denominado Ministério do Trabalho (MTb).

[3] Principais pedidos: a) assegurar que nenhuma fiscalização seja encerrada sem o registro do respectivo auto de infração, sempre que o auditor-fiscal do trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal, admitindo-se apenas as exceções expressamente previstas em lei (art. 628 da CLT); b) assegurar que nenhuma fiscalização seja encerrada sem a lavratura do respectivo auto de infração para os casos de falta de registro de empregado, falta de anotação da CTPS; c) assegurar a observância do critério da dupla visita nos casos previstos em lei, d) que nenhuma ação fiscal seja encerrada sem que haja registro de todos os dispositivos legais que tenham sido regularizados, a fim de que o empregador não seja novamente beneficiado pela dupla visita em ações futuras quanto aos mesmos dispositivos legais já regularizados, de modo que seja autuado se incorrer em novo descumprimento; e) registrar os casos de reincidência do empregador infrator: registrar outras hipóteses que afastam o benefício da dupla visita (fraude, resistência ou embaraço à fiscalização), bem como o procedimento da mesa de entendimento (art. 627-A da CLT).

[4] Meicivan Lemes Lima Mastrella, Ilan Fonseca de Souza, Paulo Douglas Almeida de Moraes e Vanessa Patriota da Fonseca.

[5] Sfit – Sistema Federal de Inspeção do Trabalho. Sistema informatizado desenvolvido e mantido pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Sepro) para uso exclusivo da Inspeção do Trabalho. Nele são registrados, armazenados e processados todos os eventos ocorridos em cada ação fiscal realizada no País, bem como as atividades especiais, como análise de processos, atividades internas, férias, licenças, chefias, exercidas por auditores-fiscais do trabalho. 

[6] BRASIL. CLT. “Art. 628.  Salvo o disposto nos arts. 627 e 627-A, a toda verificação em que o Auditor-fiscal do trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.164-41, de 2001).”

[7] BRASIL.  Lei n.º 7.855, de 24.10.1989. “Art. 6º (...). § 3º Será observado o critério de dupla visita nas empresas com até dez empregados, salvo quando for constatada infração por falta de registro de empregado, anotação de sua Carteira de Trabalho e Previdência Social e na ocorrência de fraude, resistência ou embaraço à fiscalização. (...).”

[8]BRASIL. Lei Complementar n.º 123, de 14.12.2006.

“Art. 55.  A fiscalização, no que se refere aos aspectos trabalhista, metrológico, sanitário, ambiental, de segurança e de uso e ocupação do solo das microempresas e empresas de pequeno porte deverá ter natureza prioritariamente orientadora, quando a atividade ou situação, por sua natureza, comportar grau de risco compatível com esse procedimento.        (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)

§ 1º Será observado o critério de dupla visita para lavratura de autos de infração, salvo quando for constatada infração por falta de registro de empregado ou anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS, ou, ainda, na ocorrência de reincidência, fraude, resistência ou embaraço à fiscalização. (...).”

[9] BRASIL. STJ. Primeira Seção. CC 116.282/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, julgado em 24/08/2011, DJe 06/09/2011.

[10] BRASIL. TST - RR -206000-32.2006.5.11.0053 , Relatora Ministra: Rosa Maria Weber, Data de Julgamento: 6-10-2010, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 15-10-2010)

[11] BRASIL. CNMP. http://aplicativos.cnmp.mp.br/consultaProcessual/consultaProcesso.seam. Processo 0.00.000.001403/2014-80. Arquivado.

[12] Conforme art. 154 do Regimento Interno do CNMP, o prazo de recurso é de cinco dias. No caso, o período para recurso teve inicio em 18/02/2015 (quarta-feira) e findou em 23/02/2015 (segunda-feira). Como o recurso foi postado no correio no dia 20/02/2015, chegou ao Órgão em 25/02/2015, tendo sido considerado intempestivo.

[13] BRASIL. TRT da 20ª Região. Processo eletrônico n.º 0000063-80.2016.5.20.0002. https://pje.trt20.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/ConsultaProcessual.seam

[14] BRASIL. TRT da 14ª Região. 8ª Vara do Trabalho de Porto Velho/RO - Processo eletrônico 0010450-12.2013.5.14.0008.

[15] SINAIT. Notícias. Disponível em: https://www.sinait.org.br/site/noticiaView/14139/embargo%20e%20interdicao%20assinatura%20do%20termo%20de%20conciliacao%20e%20transferida%20para%20abril

[16] “Art. 18. Compete aos Auditores-Fiscais do Trabalho, em todo o território nacional:

(...).

XIII - propor a interdição de estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, ou o embargo de obra, total ou parcial, quando constatar situação de grave e iminente risco à saúde ou à integridade física do trabalhador, por meio de emissão de laudo técnico que indique a situação de risco verificada e especifique as medidas corretivas que deverão ser adotadas pelas pessoas sujeitas à inspeção do trabalho, comunicando o fato de imediato à autoridade competente;”

[17] CUTY, Jose. Ministro do Trabalho fará acordo judicial com MPT que pode virar aventura jurídica. Disponível em: https://josecuty.jusbrasil.com.br/artigos/436571393/ministro-do-trabalho-fara-acordo-judicial-com-mpt-que-pode-virar-aventura-juridica

[18] BRASIL. TRT da 10ª Região. 11ª Vara do Trabalho de Brasília. ACP 0001704-55.2016.5.10.0011.

[19] BRASIL. Ministério do Trabalho. Cadastro de Empregadores. Disponível em: http://trabalho.gov.br/component/content/article?id=4428

[20] BRASIL. CLT, art. 634, caput, e art. 636

[21] BRASIL. Lei n.º 8.036/90, art. 23, § 1º, inc. V

[22] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011. Pp. 183-194.

[23] DOMAT. Teoria da Interpretação das Leis, trad. Correia Teles, inserta no Código Filipino, de C. Mendes, vol. III, p. 435, XVI, apud  MAXIMILINAO, Carlos, op. cit.

[24] BRASIL.  Constituição Federal, art. 109: “Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes do trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.” (g.n.).

[25] BRASIL. Lei Complementar n.º 75/93. “Art. 39. Cabe ao Ministério Público Federal exercer a defesa dos direitos constitucionais do cidadão, sempre que se cuidar de garantir-lhes o respeito: I – (...); II - pelos órgãos da administração pública federal direta ou indireta;”

[26] O termo “interpretação ablativa” (cortar, extrair) foi utilizado pelo ministro Gilmar Mendes ao expor seu voto no julgamento da ADPF 378, fazendo referência à leitura que o ministro Luis Roberto Barroso fez do inciso III do art. 118 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, na qual suprimiu a parte final do dispositivo. Confira a gravação na marca de 1h38min40seg no vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U4p_n0J8r6g

[27] STRECK, Lenio Luiz. Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades? Revista Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-arbitrariedades.

[28] Aprova o Regimento Interno do Ministério do Trabalho e Emprego

[29] BRASIL. STF. Representação n.º 16.080/BA.

[30] BRASIL. TRF 5ª Região. Segunda Turma. Apelação 31.987/AL – proc. 0004788-54.2011.4.05.8000. Rel. Des. Vladimir Souza Carvalho. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/7/art20160721-03.pdf.  

[31] BRASIL. Lei n.º 7.347/85, art. 5º, § 5º: “Admitir-se-á o litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta lei.”

[32] BRASIL. TRF-1: Processo 0007137-55.2015.4.01.3100. Disponível em: http://processual.trf1.jus.br


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Adelar Cuty da. Impossibilidade jurídica de sentença mandamental da Justiça Trabalhista para adequar condutas funcionais de autoridades da Inspeção do Trabalho e do Ministério do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5029, 8 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56979. Acesso em: 28 mar. 2024.