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Inexistência do direito ao crédito do IPI decorrente de operações isentas, imunes ou sujeitas à alíquota zero

Inexistência do direito ao crédito do IPI decorrente de operações isentas, imunes ou sujeitas à alíquota zero

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Na iminência do julgamento pelo STF da questão envolvendo os "créditos" de IPI decorrentes de operações anteriores isentas, imunes ou sujeitas a alíquota zero, há uma estranhíssima "unanimidade doutrinária" acerca do assunto.

Sumário: I – Introdução; II - A regra-matriz de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e a regra-matriz do direito à crédito III – Da impossibilidade de aproveitamento de "créditos" de IPI cuja operação anterior seja imune, isenta ou sujeita a alíquota zero; IV - Conclusão


I - Introdução

Ante a iminência do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da questão envolvendo os "créditos" de IPI decorrentes de operações anteriores isentas, imunes ou sujeitas a alíquota zero, e, principalmente, considerando-se a existência de uma estranhíssima "unanimidade doutrinária" acerca de tal assunto, optamos por tecer algumas considerações com o único escopo de vislumbrar um outro ângulo da questão.

Deveras, é interessante notar que em campo tão fértil do direito, como o é o Direito Tributário, possa existir algum assunto em que praticamente inexista discussão doutrinária, como é o caso dos créditos do IPI nas hipóteses acima descritas.

É importante considerar que o tema que desenvolveremos envolve, no campo de sua concretude, relações jurídicas em que milhões de reais estão em jogo, acarretando, por óbvio, grande interesse tanto por parte dos contribuintes como do próprio ente arrecadador.

Neste diapasão, revela-se por demais interessante que a única voz que encontramos para apregoar a inexistência do aludido direito ao crédito seja do eminente jurista Vittorio Cassone, coincidentemente um digníssimo Procurador da Fazenda Nacional. Noutro giro, autores de renome nacional como o professor Paulo de Barros Carvalho, dentre ouros, revela-se absolutamente favorável à manutenção de tais créditos.

Diante de tal quadro, como intérpretes e operadores do direito, e, mais do que isso, na condição de apaixonados pelo estudo e correta intelecção do ordenamento jurídico, optamos por tecer breves considerações atinentes a matéria, ousando, em grande parte, divergir do posicionamento que hoje impera quase uníssono em nossa doutrina.


II – A regra-matriz de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e a regra-matriz do direito à crédito

Antes de iniciarmos nossa explanação, mister estabelecermos alguns conceitos doutrinários que entendemos ser relevantíssimos para travar qualquer discussão que se pretenda adjetivar de científica.

Do magistério do Prof. Paulo de Barros Carvalho adotamos a estruturação dos tipos tributários na forma da chamada "regra matriz de incidência tributária" (RMIT), que pode ser definida como uma "norma de comportamento" na qual encontramos uma proposição-hipótese (antecedente), descrevendo determinados fatos aptos a promover o nascimento da obrigação tributária, e, uma proposição-tese (conseqüente) onde há a prescrição de uma relação jurídica, isto é, os efeitos jurídicos que advirão ante o acontecimento daquilo que se encontra descrito no antecedente.

A regra-matriz de incidência, portanto, encontra-se diretamente relacionada com a criação ou instituição da obrigação tributária, no sentido de apontar aquela hipótese fática que, uma vez ocorrida no mundo físico e trazida ao mundo jurídico mediante a linguagem competente, faz nascer a obrigação tributária por excelência, ou, na linguagem do Código Tributário Nacional, a "obrigação tributária principal" (art. 113).

Concordamos com o posicionamento do Prof. Paulo de Barros Carvalho no sentido de que existem, em verdade, duas regras-matrizes a serem analisadas nas operações envolvendo produtos industrializados. Uma RMIT atinente ao IPI propriamente dito (regra-matriz de incidência do IPI), e outra envolvendo o direito ao crédito (regra-matriz do direito ao crédito).

A Constituição Federal, em seu artigo 153, inciso IV, estabelece que compete à União instituir impostos sobre: "produtos industrializados", prevendo, ainda, que este "não será cumulativo, compensando-se que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores" (art. 153, § 3º, II, CF).

Interpretando os citados dispositivos é possível aduzir que o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) incide sobre a realização de operações tendo por objeto produtos industrializados, envolvendo a transferência de sua posse ou propriedade.

Assim, a RMIT do IPI tem como hipótese de incidência o ato de realizar operação (negócio jurídico real ou ficto, translativo de sua posse ou propriedade) com produtos industrializados, e tem como conseqüente o dever de recolher determinada quantia aos cofres públicos.

A regra matriz do direito ao crédito, por seu turno, é extraída do art. 153, § 3º, II da CF (o IPI "será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores"), e tem no antecedente a conduta de "adquirir produto industrializado em relação ao qual tenha sido apurado determinado crédito tributário". Já no conseqüente dessa norma encontramos o direito do sujeito passivo de valer-se do crédito apurado, opondo-o contra o Fisco, ou, em outra leitura, o dever do Fisco de conceder tal crédito.

É assente na doutrina, por outro lado, que o citado dispositivo constitucional não pode ser interpretado de forma literal, de forma a que o vocábulo "cobrado" indique que o direito ao crédito somente surgirá se ocorrido o pagamento do imposto na operação anterior.

O significado, portanto, do termo "cobrado", estaria mais próximo da idéia de "valor do imposto incidente na operação anterior" ou "valor do imposto apurado na operação anterior".

Nesse sentido, o comentário do Prof. Paulo de Barros Carvalho:

"Só uma interpretação que mantenha o intérprete atrelado à mera literalidade do texto normativo poderá vislumbrar o direito ao crédito limitado à circunstância de ter havido, concretamente, o recolhimento do imposto devido na operação anterior. Uma leitura mais séria e atenta do art. 153, § 3º, II, da Constituição Federal, entretanto, apontará para outra direção, reclamando tão só a existência de operação anterior com tributo apurado, para que se possa isolar, com liquidez e certeza, o montante a ser abatido na operação subseqüente" (in: "Isenções Tributárias do IPI, em Face do Princípio da Não-Cumulatividade. Revista Dialética de Direito Tributário nº 33 – p. 164). Negritamos.

Outro não é o entendimento de Reinaldo Pizolio, em artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário intitulado "Alíquota Zero e Direito de Crédito, "in verbis":

"Parece-nos que, em verdade, o que deve ser considerado é o valor do imposto "incidente" sobre as operações anteriores e posteriores e não o valor do imposto devido, cobrado ou pago, sendo tal exegese aceita pela doutrina e pela jurisprudência sem maiores controvérsias" (RDDT nº 47 – p. 107). Grifamos.

Desta feita, se o real significado do vocábulo "cobrado" deveria ser o de imposto "apurado" ou "incidente" - implicando na conclusão de que o fato hipoteticamente descrito no antecedente da regra-matriz de direito ao crédito seria a conduta de "adquirir produto industrializado em relação ao qual tenha sido apurado (incidido) determinado crédito tributário" – resta certo que encontramos nesta descrição constante do antecedente normativo o fato que dará origem à relação jurídica de direito ao crédito, qual seja, a incidência ou apuração do imposto na operação anterior.

A própria regra-matriz do direito ao crédito é clara no sentido de exigir, como condição para a sua concessão, que tenha ocorrido a "incidência" ou "apuração" do tributo na operação anterior. Tal conclusão é relevantíssima já nos permite vislumbrar a inafastável impropriedade de pretender-se a obtenção de créditos quando, em momento anterior, nada foi apurado.


III – Da impossibilidade de aproveitamento de "créditos" de IPI cuja operação anterior seja imune, isenta ou sujeita a alíquota zero

Mister estabelecer, "ab initio", as diferenças existentes entre imunidade e isenção, bem como apresentar, nesse contexto, o que seria a "alíquota zero".

a) Imunidades:

Refere-se às normas constitucionais de estrutura que objetivam auxiliar no delineamento do campo de competência das entidades tributantes (pessoas políticas de direito constitucional interno). Atuam obstando a atividade legislativa impositiva, impedindo que legislem, em matéria tributária, sobre determinados fatos, bens, pessoas ou situações.

A imunidade pode ser estabelecida em relação a determinado sujeito (ex: pessoas políticas), ou pode ser fixada em função de um bem (ex: imunidade dos livros). Importante destacar que, nestes casos, o instrumento normativo que institui o tributo não poderá alcançar as hipóteses de imunidade.

b) Isenções:

Refere-se às normas de estrutura (preceitos jurídicos que visam modificar regras existentes no sistema) que objetivam provocar modificações na regra-matriz de incidência, investindo contra um ou mais de seus critérios de forma a retirar sua eficácia técnica, impedindo que o fato nela descrito tenha o condão de, assim que ocorrido, gerar os efeitos previstos.

Pressupõe um encontro normativo entre a regra de isenção e a regra-matriz de incidência tributária, operando como redutor do campo de abrangência dos critérios constantes da hipótese ou da conseqüência. O efeito prático é impedir o nascimento da obrigação tributária.

c) Alíquota Zero:

Entendemos não haver distinção entre isenção e alíquota zero. No caso da alíquota zero, esta também uma fórmula de suspensão de um dos critérios da regra matriz de incidência tributária, qual seja, o da alíquota (critério quantitativo). Não há o nascimento da relação jurídica tributária, posto que não é possível estabelecer no conseqüente, qualquer que seja a base de cálculo utilizada, o objeto jurídico da relação tributária.

Na lição do Prof. Aires Barreto: "... a designada alíquota zero representa nítida isenção, mercê do aniquilamento do critério quantitativo" (Base de Cálculo, alíquota e princípios constitucionais – RT, 1987, p. 44/45). Não nos é possível vislumbrar qualquer diferença em determinar o legislador que determinado produto seja isento do IPI, ou, que a alíquota sobre tal produzo é igual a zero, posto que, de uma forma ou de outra, o produto não sofrerá qualquer incidência tributária.

Em suma, e como bem assevera o Prof. Ives Gandra da Silva Martins (in: RDDT nº 44/166), tratar-se, em verdade, de diferentes formas de desoneração do contribuinte, posto que, muito embora com estrutura jurídica diversa, implicam na mesma conseqüência prática, qual seja, ausência do dever de pagar tributo.

Complementaríamos tal raciocínio afirmando que seja em razão da imunidade, isenção ou alíquota zero, o efeito prático comum é a inexistência da obrigação tributária de forma a que muito embora o sujeito pratique determinado fato, ou ocorra determinado evento, inexistirá o nascimento da obrigação tributária.

Firmada tal premissa, passamos a analisar o "direito ao crédito" do IPI para que possamos alcançar o objetivo proposto no presente trabalho.

É cediço que o "direito ao crédito" é construído a partir do princípio constitucional da "não-cumulatividade", segundo o qual o sujeito passivo do IPI teria o direito de "compensar" o valor devido com aquele "cobrado" nas operações anteriores.

No tópico anterior adotamos o entendimento segundo o qual o vocábulo "cobrado", não poderia ser traduzido por "pago", pois inviabilizaria o instituto ao impor, a cada nova operação, que sujeito ativo do direito ao crédito questionasse daquele com quem transaciona se os tributos foram efetivamente pagos, exigindo que lhe fossem apresentadas as provas do pagamento (sendo que, mesmo neste caso, não haveria segurança quanto ao pagamento do tributo).

No mesmo sentido o comentário do Prof. Alcides Jorge Costa, ao analisar os efeitos da não-cumulatividade sobre o ICM:

Nesse linha de raciocínio, poderíamos seguramente afirmar que para que o adquirente de produtos industrializados tenha direito ao crédito, far-se-ia necessário tão somente que tenha havido, na operação anterior, a incidência e conseqüente apuração do IPI, o que, conforme vimos, não ocorre nos casos de operação imune, isenta, ou mesmo sujeita a alíquota zero, haja visto que nestes casos não há o nascimento da obrigação tributária.

Desta feita, a única conclusão possível, de acordo com o próprio princípio da não-cumulatividade, é a de que inexiste crédito a ser compensado quando a operação anterior estiver sujeita a alíquota zero, ou mesmo quando for imune ou isenta de tributação.

Continuando na fundamentação de nossa conclusão, entendemos pertinente apresentar, e, se possível, refutar os argumentos que justificariam a utilização de eventual crédito decorrente de operações anteriores imunes, isentas ou sujeitas à alíquota zero. São eles:

1. O IPI é um imposto sobre o valor agregado;

2. A negativa de crédito implica em considerar a isenção, alíquota zero e imunidade como sendo meras hipóteses de diferimento do imposto, tornando o IPI um imposto cumulativo;

3. A Constituição Federal expressamente veda o crédito no caso do ICMS, mas, nada diz em relação ao IPI, o que justificaria a sua manutenção, ainda que a operação anterior não seja tributada.

Iniciemos a análise, um a um, dos aludidos argumentos.

1. "O IPI é um imposto sobre o valor agregado"

Frase que certamente todo estudante de graduação ouviu acerca do IPI e do ICMS é que tais tributos incidem sobre o valor agregado do bem. Todavia, após melhor análise da questão, não nos é possível corroborar tal assertiva.

De fato, como bem reconheceu o Sr. Ministro Nelson Jobim, relator do Recurso Extraordinário nº 350.446, duas são as formas de se aplicar o primado da "não-cumulatividade":

"A primeira, tributando-se somente o valor agregado em cada elo da cadeia produtiva.

A segunda fórmula se compõe de dois momentos:

(a) fazer incidir a alíquota do tributo sobre o valor total em todos e cada um dos elos da cadeia produtiva; e

(b) assegurar o abatimento no elo subsequente.

No Brasil, por conveniência, adotou-se a segunda fórmula.

Em ambas as fórmulas, o objetivo é evitar-se a cumulação."

A Constituição Federal, portanto, ao tratar do princípio da não-cumulatividade, deixa nítida a forma adotada para materializar a incidência não-cumulativa do tributo, qual seja, pelo sistema de compensação dos impostos incidentes na operação anterior com aqueles a serem pagos nas operações subseqüentes (art. 153, § 3º, II).

Desta forma, não nos parece aceitável que o crédito seja apurado, apenas nos casos de isenção, imunidade e alíquota zero, por meio do critério "valor agregado", obtido pela confrontação entre o custo da mercadoria vendida e o custo dos insumos adquiridos, aplicando-se a alíquota da saída sobre a diferença.

O Prof. Vittorio Cassone, no Parecer PGFN Nº 405/2003 datado de 12 de março de 2003, cita o comentário de Hamilton Dias de Souza, que bem elucida a questão:

"Na verdade, nos tributos não cumulativos, o montante devido resulta, ou do valor agregado em cada operação, ou da diferença entre o imposto devido na operação posterior e o exigido na anterior. No primeiro caso, subtrai-se do valor da operação posterior o da anterior, ou ainda, diminui-se do total das ventas o total das compras (dedução da base). No segundo, subtrai-se do imposto devido na operação anterior, o que foi exigível na anterior (dedução do imposto). (57) Aparentemente os dois sistemas produzem resultados idênticos. Tal, porém, não ocorre necessariamente, pois eventuais diferenças de alíquotas ou isenções nas fases precedentes alteram a carga tributária final conforme se adote um ou outro sistema.

No Brasil, adotou-se o sistema de dedução de imposto, não de dedução da base. Como salientamos em trabalho anterior, (59), o I.C.M. não é imposto sobre o valor agregado, mas sim tributo multifásico não cumulativo por dedução do imposto exigível nas operações precedentes, o que não significa que incida necessariamente sobre o acréscimo de valor em cada operação" (fonte:www.pgfn.fazenda.gov.br/publica/pareceres/2003/pa040503.asp).

O óbice à adoção da fórmula "dedução de base" encontra-se na própria redação do art. 153, § 3º, II da Constituição Federal que, como dito, não adotou tal mecanismo para implementar a não-cumulatividade, resultando, se aceita tal hipótese, em construção extra-jurídica apresentada tão somente para justificar a utilização do crédito (fundamento econômico), com o que, como juristas e aplicadores do direito, não podemos compactuar.

Não nos parece menos equivocada a alternativa apresentada por parte da doutrina, e pelo próprio STF, ao valer-se, para obtenção de crédito nas operações não tributadas (isentas, imunes ou sujeitas à alíquota zero), da aplicação, sobre o valor de aquisição do produto, da alíquota aplicável quando de sua ulterior venda, após a industrialização.

Exemplificando, se "A" vende para "B" um produto isento (que, ao nosso sentir não geraria crédito), o crédito a ser utilizado por "B" seria obtido aplicando-se a alíquota que incidirá quando este for vender o produto para "C" sobre o valor da mercadoria que adquiriu de "A".

Em verdade, o crédito seria reconhecido à base da alíquota da operação subseqüente (no constatamos, "a priori", o problema que existiria quando esta operação também fosse isenta).

O empecilho que entendemos existir para a adoção de tal técnica seria a inafastável natureza legislativa atribuída ao Poder Judiciário, principalmente considerando-se que estamos tratando de fixação de alíquota onde esta originalmente não existia, tão somente para o fim de conceder determinado crédito.

Outro aspecto a ser considerado é que o crédito concedido com base em tal mecanismo é um crédito não real, isto é, um "crédito presumido", que não guarda relação com a realidade fática, haja vista que não decorre de uma efetiva incidência do imposto sobre determinada operação, o que nos leva a crer que há aqui também clara ofensa ao artigo 150, § 6º da CF, o qual estabelece que "qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativo a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal (...)".

Assim, nos parece absolutamente inconstitucional que o Poder Judiciário atue como legislador ordinário, fixando alíquotas onde estas não existem e concedendo créditos presumidos, sem que exista lei autorizadora.

2. A negativa de crédito implica em considerar a isenção, alíquota zero e imunidade como sendo meras hipóteses de diferimento do imposto, tornando o IPI um imposto cumulativo

Não nos parece sensata a assertiva segundo a qual a não concessão do suposto "crédito" decorrente de operações isenta, imunes ou sujeitas a alíquota zero, implique em tornar o IPI um imposto cumulativo, muito embora tal vedação implique realmente em diferimento do imposto.

De fato, se, por política econômica, o ente tributante opta por conceder isenção em determinada etapa do processo de industrialização, pouco importando se é na aquisição dos insumos ou em qualquer outra etapa intermediária, resta certo que se tal medida não for acompanhada da concessão de um crédito presumido, e, segundo-se à risca o princípio da não-cumulatividade, haverá, sim, diferimento da carga tributária que será suportada integralmente na operação posterior.

Todavia, os problemas que tal diferimento possa acarretar, como, por exemplo, tornar menos vantajoso para o adquirente do produto que o faça da zona franca de Manaus (acobertada pela isenção), deverão ser solucionados pelo próprio ente tributante com medidas como a concessão de "crédito presumido", mas não pelo Poder Judiciário, desenvolvendo teorias que não se coadunam com a lógica do ordenamento vigente.

A interpretação que se pretende dar ao princípio da não-cumulatividade busca justamente usurpar uma atribuição que não é conferida ao Judiciário, qual seja, a de analisar a conveniência econômica e extra-fiscal de tributar ou não determinada operação e conceder ou não o "crédito presumido".

Se o ente tributante opta por isentar determinada situação, e, ao mesmo tempo, não conceder o "crédito presumido", resta patente que o faz para beneficiar não toda a cadeia, mas, tão somente a operação isenta.

Pertinente, uma vez mais, o comentário do Prof. Vittorio Cassone:

"(...) cabe ao Poder Executivo estabelecer, através de atos próprios (Decreto, Portaria), e com base ‘nos limites e condições estabelecidos em lei’ (art. 153, § 1º), instrumentos de política econômica. (...)

Se tal política cabe ao Poder Executivo, e se o Poder competente não concede o ‘crédito presumido’ nas hipóteses de aquisição de insumos à alíquota zero, parece-nos evidente que, nesse conjunto de atos reguladores, legais e constitucionais, acha-se estabelecida a política extra-fiscal reguladora do mercado interno e/ou externo.

Trata-se de uma discricionariedade conferida pela Constituição ao Poder Executivo, o qual tem o "poder", e o "dever" de governar." (Parecer PGFN nº 405/2003 – p. 18)

Por outro lado, revela-se em verdade falacioso o argumento seguindo o qual a inexistência de crédito implicaria em tornar o IPI um imposto cumulativo. Para refutar tal teoria bastaria apresentar os seguintes exemplos:

Tabela A - Incidência cumulativa do IPI

 

1ª Operação

3ª Operação

3ª Operação

4ª Operação

Valor da Operação

100,00

300,00

500,00

700,00

IPI – alíquota 10%

10,00

30,00

50,00

70,00

Crédito

--------

--------

--------

--------

Débito

10,00

30,00

50,00

70,00

Imposto

10,00

30,00

50,00

70,00

Total de Imposto a Recolher à 10,00 + 30,00 + 50,00 + 70,00 = 160,00

Tabela B - Incidência não-cumulativa do IPI

 

1ª Operação

3ª Operação

3ª Operação

4ª Operação

Valor da Operação

100,00

300,00

500,00

700,00

IPI – alíquota 10%

10,00

30,00

50,00

70,00

Crédito

--------

10,00

30,00

50,00

Débito

10,00

30,00

50,00

70,00

Imposto

10,00

20,00

20,00

20,00

Total de Imposto a Recolher à 10,00 + 20,00 + 20,00 + 20,00 = 70,00

Tabela C - Incidência não-cumulativa do IPI, e operação isenta com crédito presumido:

 

1ª Operação

Operação Isenta

3ª Operação

4ª Operação

Valor da Operação

100,00

300,00

500,00

700,00

IPI – alíquota 10%

10,00

--------

50,00

70,00

Crédito

--------

10,00

30,00

50,00

Débito

10,00

--------

50,00

70,00

Imposto Devido

10,00

--------

20,00

20,00

Total de Imposto Devido à 10,00 + 0,00 + 20,00 + 20,00 = 50,00

Tabela D - Incidência não-cumulativa do IPI, e operação isenta sem crédito presumido:

 

1ª Operação

Operação Isenta

3ª Operação

4ª Operação

Valor da Operação

100,00

300,00

500,00

700,00

IPI – alíquota 10%

10,00

--------

50,00

70,00

Crédito

--------

10,00

--------

50,00

Débito

10,00

--------

50,00

70,00

Imposto Devido

10,00

--------

50,00

20,00

Total de Imposto Devido à 10,00 + 0,00 + 50,00 + 20,00 = 80,00

Como se pode notar, muito embora a ausência de crédito presumido implique em valor final do tributo superior àquele que seria pago caso não houvesse operação isenta (Tabela D, IPI de 80,00 x Tabela B, IPI de 70,00), resta certo que tal não implica dizer que o IPI deixou de ser não-cumulativo, principalmente considerando ser muito superior o valor que seria devido no caso de verdadeira incidência do imposto de forma cumulativa (Tabela A, IPI de 160,00).

Por outro lado, também pode ser observado que a teoria do crédito presumido implica em arrecadação inferior àquela que ocorreria se não houvesse isenção, (Tabela C, IPI de 50,00 x Tabela B, IPI de 70,00), acarretando a imposição de gravame financeiro ao ente tributante, que, em última análise, pretendeu tão somente desonerar determinada etapa produtiva e não arrecadar menos do que arrecadaria se não concedesse a isenção.

De igual sorte, se analisarmos o tema enfocando a operação não tributada como sendo a primeira do ciclo, mais patente fica a inexistência de violação ao primado da não-cumulatividade.

Tabela A - Incidência não-cumulativa do IPI

 

1ª Operação

3ª Operação

3ª Operação

4ª Operação

Valor da Operação

100,00

300,00

500,00

700,00

IPI – alíquota 10%

10,00

30,00

50,00

70,00

Crédito

--------

10,00

30,00

50,00

Débito

10,00

30,00

50,00

70,00

Imposto

10,00

20,00

20,00

20,00

Total de Imposto a Recolher à 10,00 + 20,00 + 20,00 + 20,00 = 70,00

Tabela C - Incidência não-cumulativa do IPI, e operação isenta com crédito presumido:

 

1ª Operação

Operação Isenta

3ª Operação

4ª Operação

Valor da Operação

100,00

300,00

500,00

700,00

IPI – alíquota 10%

--------

30,00

50,00

70,00

Crédito

--------

10,00

30,00

50,00

Débito

--------

30,00

50,00

70,00

Imposto

--------

20,00

20,00

20,00

Total de Imposto a Recolher à 0,00 + 20,00 + 20,00 + 20,00 = 60,00

Tabela D - Incidência não-cumulativa do IPI, e operação isenta sem crédito presumido:

 

1ª Operação

Operação Isenta

3ª Operação

4ª Operação

Valor da Operação

100,00

300,00

500,00

700,00

IPI – alíquota 10%

10,00

30,00

50,00

70,00

Crédito

--------

--------

30,00

50,00

Débito

--------

30,00

50,00

70,00

Imposto

--------

30,00

20,00

20,00

Total de Imposto a Recolher à 0,00 + 30,00 + 20,00 + 20,00 = 70,00

Neste caso, portanto, a operação não-cumulativa pura (com incidência do tributo em todas as fases) e a operação isenta sem crédito presumido equivalem-se (Tabela a, IPI de 70,00 e Tabela C, IPI de 70,00), não sendo possível verificar uma carga tributária que, de qualquer forma, prejudique o consumidor final, como apregoam os defensores do crédito presumido "ex lege".

Há sim, e isso não se pode negar, claro diferimento do imposto, haja vista que o IPI acaba por ser integralmente cobrado na operação seguinte, mas, entendemos que tal conseqüência é intrínseca ao próprio mecanismo na "não-cumulatividade" adotada por nosso legislador constituinte, encontrando-se ao livre alvedrio do ente tributante a opção por manter tal caráter ou afastar o diferimento com a singela previsão normativa de concessão de crédito presumido, escolha esta que se encontra visceralmente ligada ao próprio ônus de governar, e que será feita com base em análises econômicas, sociais e políticas.


3. A Constituição Federal expressamente veda o crédito no caso do ICMS, mas, nada diz em relação ao IPI, o que justificaria a sua manutenção, ainda que a operação anterior não seja tributada

De fato, a Constituição Federal determinou, expressamente, que no caso do ICMS a concessão de isenção ou a não-incidência implica em anulação dos créditos eventualmente obtidos nas operações anteriores, bem assim na inexistência de crédito para compensação nas operações posteriores (art. 155, § 2º, II), salvo disposição de lei em sentido contrário.

Todavia, será que a existência de tal dispositivo implicaria na conclusão segundo a qual no caso do IPI, imposto igualmente não-cumulativo, por inexistir qualquer menção específica o crédito estaria automaticamente autorizado? Entendemos que não.

Ora, nenhum jurista que se preze defenderia que a manutenção do crédito do IPI obtido na operação anterior, ainda que a posterior seja, por exemplo, isenta, decorre da inexistência de previsão expressa proibindo tal crédito, tal como ocorre no caso do ICMS (primeira hipótese do inciso II, § 2º, art. 155), e isso se dá por uma razão muito simples, qual seja, o direito ao crédito é conseqüência lógica do primado da "não-cumulatividade", uma vez que, incidente o tributo na operação anterior, resta certo o direito ao crédito, ainda que a operação posterior seja imune, isenta ou sujeita a alíquota zero.

Da mesma forma, é também lógico que se na operação anterior não houve incidência (apuração) do tributo, não há que se falar em crédito a ser aproveitado, salvo se a lei dispuser de forma diversa, concedendo, por exemplo, um crédito presumido para evitar a repercussão econômica da isenção nas operações posteriores.

Assim, não parece razoável que a opção do legislador por externar seus medos e anseios em relação a determinado tributo (ainda que a boa lógica jurídica e as garantias constitucionais já existentes não o recomendassem), positivando o óbvio, implique em que o intérprete possa, a partir do chamado raciocínio "a contrário sensu" montar um verdadeiro sofisma jurídico, apenas com o escopo de justificar a conclusão que pretende ver reconhecida como verdadeira.


IV – Conclusão

Em suma, é possível sintetizar nosso pensamento na seguinte frase: "não há direito a crédito de IPI quando as operações anteriores foram imunes, isentas ou sujeitas a alíquota zero".

O direito, a lógica, a coerência do raciocínio e o bom senso caminham de mãos dadas para a obtenção de tal conclusão, sendo desnecessário - a contrário do que ocorre com os que defendem a existência do direito ao crédito - buscar malabarismos mentais ou argumentações surreais para fundamentar nosso posicionamento.

Os principais pontos a serem sopesados são os seguintes:

I-Ao tratarmos do direito ao crédito do IPI temos de ter em mente que estamos diante de duas regras-matrizes distintas, uma relativa a própria incidência do imposto e outra atinente ao direito ao crédito;

II-A RMI do direito ao crédito é extraída do art. 153, § 3º, II da CF, sendo esta a principal premissa a nortear toda e qualquer intelecção que se pretenda fazer sobre o tema, não sendo possível, por óbvio, afastar ou mitigar a aplicação do citado dispositivo constitucional;

III-O direito ao crédito é operacionalizado, conforme previsão constitucional, "compensando-se o valor devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores", entendendo-se o vocábulo cobrado na acepção de "incidente" ou "apurado", conforme melhor doutrina;

IV-Analisando-se a natureza e os efeitos práticos da imunidade, isenção e alíquota-zero, resta inconteste que em nenhum destes casos ocorre a apuração ou incidência do imposto na respectiva operação, razão pela qual não seria possível a utilização de um "crédito" que sequer chegou a nascer como tal;

V-Os argumentos daqueles que defendem a manutenção do crédito, mitigando a expressa previsão constitucional, não se sustentam ante análise mais acurada, haja vista que 1º) o IPI não é um imposto sobre valor agregado, sendo o princípio da "não-cumulatividade" operacionalizado pela adoção da fórmula "dedução de bases" de forma a que, se não há base apurada, nada há que ser deduzido; 2º) A negativa de crédito não transforma o IPI em um imposto cumulativo, ocorrendo, neste caso, exclusivamente o diferimento do imposto, onerando a etapa seguinte por opção do ente tributante, o qual, ademais, poderá anular tal efeito com a concessão de um crédito presumido (mas, frise-se, trata-se de opção do próprio ente, que não pode ser substituída pela vontade dos contribuintes ou por decisão do Poder Judiciário), ademais, no campo da realidade fática, o efeito econômico em toda a cadeia de incidência do imposto em muito se distancia daquele que eventualmente ocorreria caso a incidência se desse de forma cumulativa; 3º) A inexistência de vedação expressa quanto a utilização dos aludidos créditos na Carta Magna, tal qual ocorre com o ICMS, não implica em permissão de seu uso, principalmente considerando-se que a própria lógica do sistema da não-cumulatividade não corrobora tal raciocínio.

A conclusão, portanto, independentemente do que restar decidido pelo Supremo Tribunal Federal, é no sentido de que ressalvado a hipótese de uma defesa sega e inconseqüente dos interesses de grandes empresários, não vislumbramos coerência e juridicidade na tese segundo a qual há "crédito" a ser aproveitado nas operações envolvendo IPI quando, na relação anterior, houver a desoneração do contribuinte decorrente de regra envolvendo imunidade, isenção ou alíquota zero.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONFIM, Paulo Andreatto. Inexistência do direito ao crédito do IPI decorrente de operações isentas, imunes ou sujeitas à alíquota zero. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 447, 27 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5739. Acesso em: 26 abr. 2024.