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Multiparentalidade e seus efeitos no direito sucessório

Multiparentalidade e seus efeitos no direito sucessório

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A multiparentalidade, bem como a paternidade socioafetiva, vem sendo tema recorrente nos tribunais do país. Apesar de ainda ser cedo para dizer que há entendimento pacífico, já se percebe uma tendência no Judiciário de compreender a figura do afeto como mais importante do que a própria relação de sangue entre ascendentes e descendentes. Isso é bom. Mas ainda não é suficiente. Saiba um pouco mais sobre o tema e como a questão vem sendo enfrentada à luz do Direito Sucessório.

RESUMO: O presente trabalho visa a estudar a estrutura e a regulamentação formal e jurídica do instituto da multiparentalidade, bem como verificar os efeitos sucessórios no sentido da isonomia filial, independentemente da origem. Para tanto, utiliza-se primordialmente o procedimento bibliográfico. Inicialmente, analisa-se a evolução histórica do conceito de família, filho e afeto, tanto nos primórdios do direito romano quanto no ordenamento jurídico pátrio, para, enfim, analisar o inovador instituto da parentalidade socioafetiva e a existência da multiparentalidade nas famílias atuais. O trabalho sustenta-se em princípios constitucionais, como o da isonomia filial e do livre planejamento familiar, para demonstrar a proteção constitucional do instituto multiparental. Ainda, a ausência de dispositivos proibitivos legais também embasa o reconhecimento de direitos e deveres ao filho que possui múltiplos pais ou mães, inclusive no que tange ao direito sucessório. A análise do posicionamento jurisprudencial dos tribunais brasileiros também será utilizada como método para se observar a aceitação do ordenamento jurídico com relação à presença de novos e cada vez mais frequentes institutos dentro do próprio direito de família. Por fim, analisa-se os reflexos da multiparentalidade dentro do mundo jurídico, principalmente na seara do direito sucessório, por meio de doutrinas como Christiano Cassetari, Belmiro Pedro Welter e Carlos Roberto Gonçalves.

Palavras-chave: Multiparentalidade. Sucessão. Isonomia filial. Socioafetividade.

ABSTRACT: This study aims understand the structure and the legal and formal regulation of the institute of multiparentality, as well as verify succession effects in the sense of filial isonomy, regardless of origin. For this, the bibliographic procedure is used primarily. Initially, it analyzes the historical evolution of the concept of family, son and affection, both in the beginnings of Roman law and in the juridical legal order, in order to analyze the innovative institute of socio-affective parenting and the existence of multiparentality in the present families. The research is based on constitutional principles, such as filial isonomy and free family planning, to demonstrate the constitutional protection of the multiparental institute. Moreover, the absence of prohibitive legal devices also encapsulates the recognition of rights and duties to the child who has multiple fathers or mothers, including with regard to inheritance law. The analysis of the jurisprudential positioning of the Brazilian courts will also be used as a method to observe the acceptance of the legal system in relation to the presence of new and increasingly frequent institutes within the family law itself. Finally, we analyze the reflexes of multiparentality within the juridical world, especially in the area of ​​inheritance law, through such doctrines as Christiano Cassetari, Belmiro Pedro Welter and Carlos Roberto Gonçalves.

Keywords: Multiparentality. Succession. Isonomia filial. Socio-activity.


1 INTRODUÇÃO              

O instituto da multiparentalidade começou a ganhar força com o advento da Constituição Federal de 1988, que trouxe consigo os institutos da isonomia filial e do livre planejamento familiar. Juntamente com tais institutos, começou a se observar a figura da família não só no aspecto biológico, mas também nos aspectos afetivos. A ideia do afeto como pilar para a consolidação do instituto familiar passou a ser observada sob um viés que pouco se falava antes, dando lugar ao instituto da parentalidade socioafetiva como forma de reconhecimento da filiação. Assim, o direito brasileiro passou a admitir outra modalidade de parentalidade, que não a biológica ou a adotiva. Sob essa ótica, podemos afirmar que o ordenamento jurídico passou a tratar a questão afetiva, inclusive no Estatuto da Criança e do Adolescente, como fator, muitas vezes, mais importante do que a própria relação biológica.

A multiparentalidade, bem como a paternidade socioafetiva, têm sido temas cada vez mais presentes nos tribunais de todo país, sendo certo que, apesar da divergência jurisprudencial, a figura do afeto tem se mostrado, por muitas vezes, mais importante para o Poder Judiciário do que a própria relação de sangue entre ascendentes e descendentes.

Pais biológicos e socioafetivos, que, por muitas vezes, se vêem em figuras de pessoas absolutamente distintas, passaram a estar no mesmo patamar e ter a mesma importância para o mundo jurídico, apesar da existência de impeditivos culturalmente criados por nossa sociedade. Com esse reconhecimento parental, nascem direitos e deveres, inclusive no universo do direito sucessório, o que será amplamente abordado no presente estudo.

Através de doutrinas, como Belmiro Pedro Welter (2009) e Christiano Cassetari (2014), bem como por meio de julgados, busca-se verificar como fica regulamentada a questão sucessória nos casos de filhos que possuem mais de um pai ou mais de uma mãe.

A partir da ótica já mencionada, o estudo divide-se em três momentos diferentes: primeiramente, apresenta-se uma evolução histórica da filiação, tanto no direito romano como no Brasil, e um breve apanhado acerca da teoria tridimensional do direito de família; após, verifica-se o posicionamento dos tribunais brasileiros acerca do reconhecimento da multiparentalidade e da filiação socioafetiva, principalmente no que tange à eficácia desses fenômenos e, finalmente, verifica-se a possibilidade legal de concessão do direito sucessório aos filhos multiparentais.


2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RELAÇÃO DE PARENTESCO

Christiano Cassetari (2014) ensina que na Roma antiga, o parentesco, para efeitos civis, não se baseava em laços sanguíneos, mas sim no poder (potestas), ou seja, as pessoas que estivessem sob o poder do mesmo pai (pater) eram consideradas parentes, ligadas pelo parentesco masculino. Esses indivíduos eram chamados de agnadas e essa relação de parentesco denominava-se agnatio, ou seja, membros de um mesmo grupo que possuem um ancestral masculino em comum.

O parentesco pela relação sanguínea, com relação à família materna ou paterna, era denominado cognatio (consanguíneo) e não produzia qualquer efeito civil. Era considerada uma espécie de parentesco natural.

No direito romano havia três categorias de filhos. As duas primeiras no direito clássico e a última no direito pós-clássico: a) Os iusti ou legitimi, ou seja, legítimos, que eram os filhos provenientes de um casamento legal (iustae nuptiae), os adotivos e, no direito pós-clássico, os legitimados; b) Os uulgo quaesiti, uulgo concepti ou spurii, ou seja, bastardos, que eram os filhos advindos de uma união ilegítima. Estes não possuíam juridicamente um pai. Além disso, não existia no direito romano a possibilidade de o pai natural os reconhecer ou legitimar, não havendo entre eles direitos ou deveres; c) Os naturales liberi, que eram os filhos nascidos do concubinato. Estes poderiam, a partir do Baixo Império, se tornar filhos através da legitimação através do posterior casamento entre os pais, por ordem do imperador ou por oferecimento à cúria, estando sujeitos a regime especial. Além disso, entre o pai e o filho legitimado havia direito de alimentos e sucessão legítima.

Sob o regime potestas, cabia ao pai resolver quais bens atribuiria a cada filho, qual profissão e educação deveriam ter e com quem se casariam. No universo desse poder, chegava-se ao extremo de decisões acerca da vida e da morte dos descendentes fossem tomadas pelo pater.

Esse rígido processo foi lentamente se transformando, em virtude da atuação do pretor, que era o magistrado encarregado de aplicar a justiça e influência da filosofia grega durante a República e o Império. Foi durante o império de Justiniano que o parentesco pela cognação passou a ser aceito em definitivo pelas Novelas 118 e 127, dos anos 543 e 547, respectivamente. Assim, o parentesco civil, que era a agnatio no início da República, passou a ser a cognatio durante a República e o Império, pois a partir daí os parentes maternos estavam em situação idêntica aos paternos.

No Brasil, as Ordenações Filipinas vigoraram até o início da vigência do Código Civil de 1916. Neste período, os filhos eram classificados como legítimos ou ilegítimos, sendo os últimos divididos em espúrios e naturais. Os filhos ilegítimos espúrios, que eram os incestuosos, adulterinos ou sacrílegos, podiam, no máximo, promover a ação de investigação de paternidade para a obtenção de alimentos, uma vez que não era reconhecido o direito à sucessão. Já os filhos ilegítimos naturais, que eram diferenciados entre filhos de pessoas da nobreza e filhos de plebeus, possuíam direito à sucessão testamentária, porém lhes era proibida a sucessão legítima.

A Lei 463 de 1847 extinguiu a diferença entre filhos de nobres e filhos de plebeus para fins de sucessão. No ano de 1858 houve a publicação da Consolidação das Leis Civis de Augusto Teixeira de Freitas, que ainda distinguia os filhos como em legítimos ou ilegítimos, admitindo-se a sucessão legítima para os filhos legítimos e para os ilegítimos, desde que reconhecidos pelo pai.

Com o advento do Código Civil de 1916, os filhos continuaram a ser diferenciados, sendo denominados legítimos, ilegítimos, ou legitimados. Ressalte-se que os filhos ilegítimos eram divididos em naturais e espúrios e estes últimos eram divididos em incestuosos e adulterinos.

O Código Civil de 1916 proibia o reconhecimento de filhos adulterinos e incestuosos, e o filho ilegítimo, ainda, não tinha direito à investigação de maternidade.

Com a Constituição Federal de 1.937 igualou de forma definitiva os filhos ilegítimos e legítimos, em seu artigo 126: “Aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurará igualdade com os legítimos, extensivos àqueles os direitos e deveres que em relação a estes incumbem aos pais.” (BRASIL, 1988)

Com efeito, a Lei 6.515 de 1977 (Lei do Divórcio) deu um grande passo no que tange à isonomia filial, alterando dispositivos da Lei 883 de 1.949, dando direito à igualdade na herança entre os filhos havidos ou não na constância do casamento, a possibilidade de o filho ilegítimo ser reconhecido em testamento cerrado e o direito aos alimentos.

Todavia, foi a Constituição Federal de 1988 que trouxe expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade e, em 17 de Outubro de 1989 foi aprovada a Lei 7.841, revogando o artigo 358 do Código Civil, permitindo o reconhecimento dos filhos espúrios.

O artigo 227, §6º da atual Constituição Federal expressa o princípio da isonomia filial:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Com efeito, o artigo 1.593 do atual Código Civil inovou ainda mais dentro do instituto da filiação, possibilitando o parentesco independentemente da origem: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.”

Por fim, cumpre consignar a grande conquista que a Lei 8.068 de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) trouxe no que tange ao reconhecimento filial, em seus artigos 26 e 27:

Art. 26. Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação.

Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar descendentes.

Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.

Assim, resta claro que o pensamento, tanto da sociedade quanto do legislador após a Constituição de 1988, evoluiu de uma corrente extremamente discriminatória, como, por exemplo, no caso dos filhos “bastardos”, para uma corrente absolutamente humanista, levando-se em conta não somente a questão biológica ou genética, mas também levando em consideração a figura do afeto.


3 DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE FAMÍLIA: O MUNDO GENÉTICO, O MUNDO DES-AFETIVO E O MUNDO ONTOLÓGICO

A teoria tridimensional do direito de família baseia-se na ideia de que:

O humano habita, ao mesmo tempo, os mundos genético, (des)afetivo e ontológico, porque: a) é um ser humano genético como todos os outros seres vivos (mundo biológico); b) é um ser humano que convive em compartilha no mundo familiar e social (mundo des-afetivo); c) é um ser humano que se relaciona em seu próprio mundo da vida, um ser-em-si mesmo (mundo ontológico). (WELTER, 2009, p.20).

Podemos dizer que é o mundo natural, que envolve as necessidades biológicas, instintos e impulsos. É o mundo das leis e dos ciclos naturais. Esse é o mundo em que o indivíduo existiria mesmo que não fosse dotado de autoconsciência. A importância do mundo genético é indubitável, uma vez que transmite todas as características biológicas e um complexo que influencia o ser humano em suas atividades, movimentos e comportamentos.

Desde o início dos tempos, o direito de família foi observado apenas através do mundo genético, de onde saíram os principais direitos desse segmento, como por exemplo, a herança, filiação, guardas e visitas. Todavia, a ligação sanguínea é apenas um dos três modos de ser-no-mundo, onde, através da reprodução, há a continuação da linhagem.

Pode-se afirmar que é o mundo dos relacionamentos entre os seres humanos, onde as categorias de adaptação e ajustamento não são exatas. Isso porque o afeto pode transformar-se em desafeto, uma vez que, ao mesmo tempo, ilumina e cega os humanos, fazendo parte do modo de ser no mundo afetivo e des-afetivo.

A dignidade humana é o critério pelo qual a Constituição proporciona a proteção do afeto, sendo este um direito fundamental de afeiçoar-se com outro ser humano. A Carta Magna estabelece a proporção entre os interesses individuais e os deveres sociais dentro do universo do direito de família. O reconhecimento das garantias e direitos fundamentais é um dos pilares da dignidade da pessoa humana, sendo uma compreensão tridimensional, composta pelo mundo genético, des-afetivo e ontológico. O princípio da dignidade da pessoa humana acolhe, simultaneamente, a igualdade e a própria diversidade humana tridimensional, vez que determina que o humano seja cuidado como tal.

Ainda dentro do mundo afetivo, cumpre citar que os princípios da razoabilidade e proporcionalidade também estão inseridos neste universo. Belmiro Pedro Welter conceitua referidos princípios sob os seguintes argumentos:

a) Razoabilidade é prudência, ponderação, sapiência, tolerância, equilíbrio (...)

(...) b) Proporcionalidade quer dizer avaliação entre os custos e benefícios das medidas e restrições impostas, proporção, medida ou solução justa, adequada e necessária, máximo de benefício com o mínimo de sacrifício. (WELTER, 2009, p. 58 e 59).

Desta feita, podemos afirmar que não seria razoável e nem proporcional observar o ser humano apenas na normatização genética, deixando para trás o fato de se tratar de uma totalidade, uma circunstância, um acontecer tridimensional. Contudo, deve-se atentar para o fato de que o afeto e o desafeto estão presente na vida do ser humano a todo momento, e por essa razão, segundo Welter (2009), “a razoabilidade e a proporcionalidade somente estarão observadas quando o intérprete estiver numa situação de hermenêutica afetiva.”

Por fim, necessário se faz mostrar a desnecessidade de legislação infraconstitucional para o acolhimento da teoria da tridimensionalidade humana, uma vez que esta já encontra-se implícita em nosso ordenamento jurídico-social, como por exemplo no parágrafo único do artigo 1.584 do Código Civil, que concede a guarda do filho, quando não aos pais, a terceiros, umbilicalmente ligados pelo afeto ou, ainda, dentro do artigo 1.593 do mesmo diploma legal, que determina que o parentesco é natural (genético) ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem, como por exemplo a filiação afetiva. Assim, resta claro que a própria lei, indiretamente, trata das mais diversas formas de parentalidade e filiação.

Completando sua tridimensionalidade, o ser humano é também ontológico, vez que se relaciona e se comporta em um mundo sem divisões, sendo um ser único, tridimensional, que compartilha do mundo da ancestralidade sanguínea, do relacionamento sócio-familiar e de seu próprio mundo.

Esse mundo próprio pressupõe a autoconsciência, o auto relacionamento. É a percepção do que uma coisa qualquer significa para quem a mira. Todavia, esse é o mundo menos compreendido dentro da psicologia moderna e tal atitude de deixa-lo esquecido tem a ver com o fato de que, nos dias atuais, as pessoas estão propensas a perder o senso de realidade em suas experiências.

Uma vez apresentados os três mundos que compõem a teoria tridimensional do direito de família, cumpre-nos deixar claro que, apesar de distintos, esses mundos estão diretamente ligados, condicionados um ao outro. Não se deve compreender o direito de família apenas pelo prisma genético ou afetivo, mas sim pela tridimensionalidade humana.


4 A MULTIPARENTALIDADE NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

A alteração da realidade fática da sociedade e as revolucionárias ideias de doutrinadores foram, cada vez mais, ganhando espaços dentro das cortes brasileiras, sendo primordial destacar alguns casos desse processo de renovação e atualização dentro do Direito de Família frente aos Tribunais.

O Superior Tribunal de Justiça vem reconhecendo a parentalidade sociafetiva, passo primordial anterior ao reconhecimento da multiparentalidade. É o que mostra o julgamento do Recurso Especial 450.566, da Ministra Nancy Andrighi: “ A filiação socioafetiva encontra amparo na cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade da criança. (ANDRIGHI, 2011, p. 1).

O tema também já foi discussão dentro das jornadas de Direito Civil I e IV, as quais editaram, respectivamente, os enunciados 103 e 339:

103 - O Código Civil reconhece, no artigo 1593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vinculo parental decorrente das técnicas de reprodução assistida heretóloga relativamente ao pai (ou a mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.

339 - A paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho.

Acerca da multiparentalidade, o julgamento da apelação cível 0006422-26.2011.8.26.0286, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, relator Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior, julgada em 14 de agosto de 2012, é o primeiro exemplo, conforme segue a ementa:

EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA  Preservação da Maternidade Biológica  Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade  Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade  Recurso provido. (SILVA JÚNIOR, 2012, p. 1).

No presente caso, o menor perdeu sua mãe biológica três dias após o parto, devido a um acidente vascular cerebral. Após alguns meses, o pai do menor conhecer uma mulher, ora requerente. Estes se casaram quando a criança contava com dois anos de idade e foi, por esta mulher, criado como filho, com quem convivia até a época do julgamento. Assim, os desembargadores decidiram dar provimento ao reconhecimento da maternidade sociafetiva da requerente ante o menor, independentemente de vínculos biológicos, devendo constar seu nome do assento de nascimento, sem prejuízo e concomitantemente com a maternidade biológica.

Outro exemplo claro de que a multiparentalidade tem ganhado cada vez mais espaço nos órgãos do Poder Judiciário é a apelação cível 7006269876, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relator Desembargador José Pedro de Oliveira Eckert, julgada em 12/02/2015. Neste caso, os requerentes, duas mulheres e um homem, requereram que fosse deferido o registro civil de uma menor recém nascida como filha dos três autores. O juízo de primeiro grau indeferiu a petição inicial, alegando impossibilidade jurídica do pedido devido à falta de amparo legal. Todavia, os desembargadores reformaram referida decisão, fundamentando que a ausência de lei para regência de novos e cada vez mais recorrentes fatos sociais decorrentes das instituições familiares, não é indicador necessário para impossibilidade jurídica do pedido e determinaram que o nome dos três requerentes como genitores, bem como de todos os avós da criança, deveriam constar no registro de nascimento.

Por fim, a apelação cível 70029363918, também do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relator Desembargador Claudir Fidelis Faccenda, julgada em 07 de maio de 2009, conciliou os institutos da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva com a teoria tridimensional do direito de família. No presente julgado, o Ministério Público interpôs apelação em defesa de interesses de uma menor que propôs ação de investigação de paternidade visando o reconhecimento de sua filiação biológica, sem afastar a socioafetiva já consolidada. Para sanar tal questão, o relator aplicou a teoria tridimensional, que reconhece conjuntamente os direitos de filiação genético e afetivo, conforme se observa em um trecho da ementa do referido acórdão:

Nem a paternidade socioafetiva e nem a paternidade biológica podem se sobrepor uma à outra. Ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas porque fazem parte da condição humana tridimensional, que é genética, afetiva e ontológica. (FACCENDA, 2009, p.1).

 O apelo foi provido, determinando a declaração da paternidade biológica, mantendo o registro de nascimento da menor, onde consta o pai socioafetivo. Assim, quando for maior e capaz, poderá postular a alteração de seu registro civil, onde poderá escolher o nome de seu genitor biológico ou afetivo. 


5 MULTIPARENTALIDADE E O DIREITO SUCESSÓRIO

Após verificarmos a posição jurisprudencial dos tribunais brasileiros acerca da aceitação da multiparentalidade, passamos a observar como esse instituto se encaixa dentro do universo do direito sucessório.

Todavia, antes de adentrarmos no cerne da questão, cumpre explanar como o ordenamento jurídico estrutura o direito sucessório e qual a ordem de sucessão determinada pelo Código Civil em seu Livro V.

O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 1.784, determina que a herança transmite-se aos herdeiros legítimos (que serão observados no tópico a seguir) e testamentários a partir do momento da abertura da sucessão, ou seja, a partir da morte de um indivíduo.

Ressalte-se que, no momento em que a lei trata da palavra “herança”, deve-se haver uma interpretação extensiva desse termo, incluindo-se tanto bens como dívidas, conforme ensina Gonçalves (2012, p. 26): “a herança é, na verdade, um somatório, em que se incluem os bens e as dívidas, os créditos e os débitos, os direitos e as obrigações, as pretensões e ações de que era titular o falecido, e as que contra ele foram propostas, desde que transmissíveis.”

Desta feita, podemos concluir que referido artigo nos traz a informação de que a morte, a abertura da sucessão e a transmissão da herança ocorrem no mesmo momento, dando origem à sucessão, seja ela testamentária ou legítima, conforme veremos a seguir.

Já a sucessão legítima recebe este nome pois decorre da própria ordem legal, ou seja, cabe à lei indicar a ordem de vocação hereditária. Essa hipótese existe, por exemplo, no caso de o falecido não deixar nenhum ato de última vontade, sendo essa vontade substituída pela lei.

O artigo 1.829 do Código Civil Brasileiro estipula a ordem de sucessão legítima nos seguintes termos:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

O inciso I trata que, na falta de disposição de última vontade do indivíduo, deverão receber a herança os descendentes, que em sua maioria se caracterizam na figura dos filhos e netos, juntamente com o cônjuge sobrevivente

Já o inciso II expressa que, na falta de descendentes, terão direito a suceder os ascendentes (pais, avós e etc.), também conjuntamente com o cônjuge sobrevivente.

O inciso III traz a hipótese de não haverem descendentes ou ascendentes do falecido, caso em que o único herdeiro legítimo será o cônjuge sobrevivente.

Por fim, o inciso IV traz os parentes colaterais, que são os últimos a terem preferência na linha sucessória. Estes são aqueles parentes que não possuem qualquer relação de ascendência ou descendência, mas possuem um ancestral em comum com o falecido.

Dentro da sucessão legítima, Tartuce e Simão (2013) ensinam que existem duas regras fundamentais. A primeira baseia-se no fato de que a ordem do chamamento dos parentes, cônjuge ou companheiro do falecido decorre da presunção legal de afetividade que estes possuíam com o falecido, ou seja, os parentes a quem o de cujus oferecia mais proximidade e afeto têm preferência a linha sucessória. Assim, a primeira regra ensina que a existência de herdeiros de uma determinada classe, automaticamente exclui do chamamento à sucessão os herdeiros da classe seguinte.

Todavia, como em toda regra, existem diversas exceções para este caso, consoante os ensinamentos de Tartuce e Simão:

Como primeira exceção, haverá concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes do falecido em certas situações, dependendo do regime de bens do casamento (art. 1.829, I, do CC/2002). Ato contínuo, haverá concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e os ascendentes do falecido qualquer que seja o regime de bens (art. 1.829, II, do CC/2002). Também haverá concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os descendentes do falecido sobre os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável (art. 1.790, I e II, do CC/2002). Não obstante tudo isso, haverá concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e ascendentes ou colaterais do falecido sobre os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável (art. 1.790, I e II, do CC/2002). Por fim, haverá o direito real de habitação ao cônjuge, independentemente do regime de bens e de sua participação na herança (art. 1.831 do CC/2002). (TARTUCE e SIMÃO, 2013, p. 209).

A segunda regra leciona que, dentro de uma determinada classe de herdeiros, os de grau mais próximo excluem da sucessão os de grau mais remoto. Assim, mesmo que, por exemplo, tenhamos vários descendentes em linha reta do falecido, aqueles que estiverem em um grau de parentesco mais próximo excluirão os herdeiros de grau mais longínquo.

Assim, conclui-se que, mesmo indiretamente, a figura do afeto foi levada em conta pelo legislador no momento da edição da norma, uma vez que os parentes que são mais próximos do indivíduo que vier a falecer terão preferência na linha sucessória.

Apesar de o Código Civil brasileiro permitir que o indivíduo deixe um ato de última vontade, como por exemplo um testamento, essa permissão não pode ser total. Isso porque o próprio Código Civil garante aos herdeiros necessários, em seu artigo 1.846, a metade dos bens da herança, o que chamamos de legítima: “Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.”

Isso quer dizer que o testador apenas pode dispor da metade dos bens que possui, sendo obrigado a deixar a outra metade aos herdeiros necessários que cita o artigo 1.845: “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

Assim, caso o testador não possua nenhum herdeiro necessário, terá plena liberdade para dispor da totalidade de seus bens em seu testamento, sendo desnecessária a reserva da legítima.

Conforme expresso no artigo acima, apenas serão herdeiros necessários os descendentes, ascendentes e cônjuge. Todos os demais parentes serão considerados herdeiros facultativos, que serão os parentes colaterais até o quarto grau e o eventual companheiro do falecido. Ocorre que existe uma discussão doutrinária acerca da classificação do companheiro do falecido. A corrente majoritária defende a ideia que este companheiro efetivamente pertence à classe dos herdeiros facultativos. Todavia, apesar de minoritária, existe uma corrente que alega que este companheiro deve pertencer à classe dos herdeiros necessários, comparando-se à figura do cônjuge do falecido.

A principal diferença dos efeitos sucessórios entre as duas classes de herdeiros é que o herdeiro necessário possui pleno direito à metade dos bens do falecido, apenas sendo excluído da sucessão em um dos casos listados no artigo 1.814 do Código Civil:

Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;

II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;

III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.

 Já o herdeiro facultativo herda apenas se o falecido não houver deixado ato de última vontade dispondo em contrário, conforme o artigo 1.850 do mesmo diploma legal: “Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar.”

Assim, conclui-se novamente que aqueles parentes com uma relação afetiva mais próxima do falecido têm grande preferência na linha sucessória. Além da preferência, a figura do afeto mostra-se tão presente no direito sucessório a ponto de diferenciar, dentro dos sucessores legítimos, aqueles mais próximos do de cujus, tornando-os herdeiros necessários e concedendo-lhes, automaticamente, direito à metade dos bens da herança.

Superadas as questões genéricas do direito sucessório, passemos a analisar a questão de isonomia entre os herdeiros descendentes do falecido, mais especificamente dos eventuais filhos que este possa ter.

Conforme visto na evolução histórica de filiação, a Constituição Federal, em seu artigo 227, §6º, garante a isonomia filial, sejam estes filhos provenientes ou não do casamento.

A igualdade de que trata a Constituição Federal deve ser interpretada de forma ampla, não devendo os filhos apenas terem tratamento igual enquanto o pai ou a mãe estiverem vivos. Essa igualdade deverá continuar mesmo após a morte do genitor ou genitora, na forma de quinhões igualitários a cada filho, ressalvados eventuais adiantamentos da herança.

Segundo os ensinamentos de Francisco José Cahali (2012, p.176), “hoje, o status de filho é o que basta para a igualdade de tratamento, pouco importando se o fruto ou não do casamento de seus pais, e independentemente do estado civil dos progenitores.”

Além disso, o direito à herança é visto como garantia fundamental, positivado no artigo 5º, XXX da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXX - é garantido o direito de herança;

Nesta ótica, a partir do momento que um filho é reconhecido, passará a ter os mesmos direitos sucessórios dos outros filhos que o indivíduo eventualmente possa ter, independentemente do tempo que haja transcorrido entre o reconhecimento e a morte do indivíduo.

O próprio Código Civil garante esta isonomia em seu artigo 1.835: “Na linha descendente, os filhos sucedem por cabeça, e os outros descendentes, por cabeça ou por estirpe, conforme se achem ou não no mesmo grau.”

Nessa seara, podemos dizer, por exemplo, que se o falecido possuía apenas um apartamento, não era casado, não tinha companheira e possuía quatro filhos, dois biológicos e dois adotados, cada filho terá direito a uma quota igualitária de 25% (vinte e cinco por cento) do valor do referido imóvel.

O princípio da isonomia filial está intimamente ligado com o mais importante princípio de um estado democrático de direito, que é o princípio da dignidade da pessoa humana. Afinal, não há que se falar em dignidade uma vez que não exista a igualdade entre indivíduos que ocupam a mesma classe.

Desta forma, podemos concluir que a igualdade entre os filhos deve existir em todo e qualquer caso, sendo vedada qualquer discriminação quanto à natureza dessa filiação, ainda que esta não tenha decorrido do vínculo biológico ou de um processo de adoção, como por exemplo no caso da filiação socioafetiva.

Segundo ensina Paulo Nader:

O avanço que se constata com a desbiologização do parentesco em prol de vínculos socioafetivos não deve situar-se exclusivamente no plano teórico, afirmação de princípios, mas produzir efeitos práticos no ordenamento jurídico como um todo, repercutindo, inclusive, no âmbito das sucessões. (NADER, 2009, p.261).

Acertadamente o autor expressa que os efeitos do reconhecimento de vínculos sociafetivos devem transbordar o plano teórico, atingindo o cerne do ordenamento jurídico.

Conforme já verificado anteriormente, o reconhecimento filial de qualquer natureza gera consequências, e estas não podem simplesmente estarem expressas na lei, mas devem surtir efeitos dentro dos casos concretos.

Neste sentido, apesar de já havermos verificado as posições jurisprudenciais acerca do tema, cumpre trazer o julgamento da apelação cível 1.0024.03.186.459-8/001, da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que teve como relator o Desembargador Moreira Diniz, publicado em 23/03/2007:

Direito processual civil – Direito de família – Ação de investigação de maternidade, cumulada com retificação de registro e declaração de direitos hereditários – Impossibilidade jurídica do pedido – Art. 267, inc. IV, do Código de Processo Civil – Extinção do processo sem resolução do mérito.

Dá-se a impossibilidade jurídica do pedido, quando o ordenamento jurídico abstratamente vedar a tutela jurisdicional pretendida, tanto em relação ao pedido mediato quanto à causa de pedir. Direito civil – Apelação – Maternidade Afetiva – atos inequívocos de reconhecimento mútuo – testamento – depoimento de outros filhos – parentesco reconhecido – recurso desprovido. A partir do momento em que se admite no Direito Pátrio a figura do parentesco socioafetivo, não há como negar, no caso em exame, que a relação ocorrida durante quase dezenove anos entre a autora e a alegada mãe afetiva se revestiu de contornos nítidos de parentesco, maior, mesmo, do que o sanguíneo, o que se confirma pelo conteúdo dos depoimentos dos filhos da alegada mãe afetiva, e do testamento público que esta lavrou, três anos antes de sua morte, reconhecendo a autora como sua filha adotiva (TJMG; Ap. Cível 1.0024.03.186.459-8/001; 4ª C.C.; Rel. Des. Moreira Diniz; publicado em 23.3.2007).

Resta claro que o julgado acima concretiza a teoria suscitada pelo professor Paulo Nader, vez que gerou efeitos em um tema que, até então, existia apenas no mundo teórico.

Com efeito, superada a ideia de que a parentalidade socioafetiva também já é aceita em nosso ordenamento jurídico como forma de reconhecimento de paternidade, é indubitável dizer que aos parentes socioafetivos devem ser conferidos exatamente os mesmos direitos que possuem os parentes consanguíneos e adotivos.

Ainda que determinada pessoa não seja expressamente reconhecida como filho pelo eventual parente socioafetivo, se esse cuidou publicamente desse indivíduo, sem qualquer formalidade, suprindo-lhe todas as suas necessidades, não restam dúvidas que a relação pai/filho ou mãe/filho se faz presente. Consequentemente, uma vez presente o estado de filho, o direito sucessório é indiscutível.

Portanto, resta evidente que os filhos socioafetivos, devido à isonomia filial, são possuidores dos mesmos direitos (e deveres) de todos os demais filhos, independentemente da natureza dessa filiação, sendo absolutamente possível a sucessão por parte de um indivíduo que veio a tornar-se filho do falecido devido aos laços afetivos que com este criou.

Uma vez superada a questão sobre a aceitação da possibilidade de um filho socioafetivo herdar bens de seu pai, passamos a analisar a possibilidade de um único indivíduo ser herdeiro de mais de um pai ou mais de uma mãe.

Primeiramente devemos observar que o ordenamento jurídico não colocou nenhum óbice nesta questão, ou seja, não existe vedação legal acerca desse tipo de sucessão. Parte-se do princípio de que tudo aquilo que não é proibido, é permitido.

Além disso, uma vez que o Direito Pátrio passou a aceitar a ideia de um único indivíduo possuir diversos pais ou diversas mães, deve-se entender que essa aceitação trará todas as consequências jurídicas englobadas no direito de família.

Como vimos anteriormente, a lei veda a discriminação entre os filhos. Assim, analogicamente podemos afirmar que a mesma lei também não admite discriminação entre os pais, mesmo que o ordenamento não trate expressamente sobre o tema.

Com efeito, um indivíduo que possua, por exemplo, dois pais, não pode ser privado de seu direito de herdar bens de ambos, uma vez que, aos olhos do próprio ordenamento jurídico, a filiação é absolutamente legítima. Ademais, limitar o direito sucessório deste indivíduo seria ferir a própria lei, caracterizando uma espécie de discriminação absolutamente infundada.

Contudo, devemos ressaltar que, ao indivíduo que possua múltiplos genitores ou genitoras, é ressalvado o direito de renúncia, ou seja, ele possui plenamente o direito de herdar de todos os pais e mães, porém também possui o direito de renunciar a essa herança.

Ressalte-se que a renúncia à herança é assunto absolutamente distinto de uma eventual proibição legal. Conforme dito anteriormente, propositada ou impropositadamente, o ordenamento jurídico não veda que um único indivíduo herde bens de múltiplos pais ou mães, porém a este indivíduo é assegurado o direito de, imotivadamente, renunciar a essa eventual sucessão.

Assim, conclui-se que a possibilidade de herança nos casos de multiparentalidade não apenas é permitida, mas é medida de igualdade entre os indivíduos, ressalvado o direito de renúncia.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das considerações apresentadas no presente estudo, resta claro que o ordenamento jurídico caminhou a passos largos para grandes evoluções, passando a aceitar institutos jurídicos inovadores.

Juntamente com essas evoluções, casos cada vez mais complexos tomam conta das ações propostas perante o Poder Judiciário que, por sua vez, deve resolver tais questões de modo a não prejudicar a sociedade.

Pudemos observar que atualmente a relação sanguínea, por algumas vezes, fica em segundo plano se comparada com os laços afetivos criados pelos indivíduos.

No caso em tela, o grande desafio é conceituar e quantificar o afeto, que é o principal requisito para o reconhecimento das filiações socioafetivas e da multiparentalidade. Assim, com a aceitação desses institutos, nasce a possibilidade jurídica do reconhecimento do inerente direito sucessório.

Todavia, apesar das teses aqui apresentadas e da aceitação por parte do Poder Judiciário, é necessário que as novas ideias ultrapassem as muralhas desse Poder e passem a ser efetivamente praticadas e asseguradas a todos.

Ainda é cedo para afirmarmos que existe um pacífico reconhecimento e plena eficácia acerca da socioafetividade, porém é necessário que a evolução mostre-se sempre presente. A questão é polêmica e merece ser olhada com cautela pelos órgãos julgadores, a fim de conceder a tutela jurisdicional àqueles que efetivamente a merecem e excluir do Judiciário aqueles que visam valer-se desses institutos para se beneficiar sem fundamentos.

Mais do que direitos sucessórios, o que aqui se discute é a concessão de direitos fundamentais, devidamente positivados na Constituição Federal, mas que ainda sofrem para serem aceitos por parte de uma sociedade que, diferentemente das leis, parou no tempo e no espaço.


REFERÊNCIAS

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