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A aproximação da verdade através da cognição da cena de crime.

Aspectos investigativos ligados à preservação e verificação do local de crime

A aproximação da verdade através da cognição da cena de crime. Aspectos investigativos ligados à preservação e verificação do local de crime

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O local do crime equivale ao prelúdio fundamental de qualquer investigação criminal, não sendo aceitável qualquer procedimento investigatório que prescinda do prévio comparecimento ao sítio dos fatos.

1. Conceituação:

A Criminalística, enquanto ciência autônoma que se ocupa do estudo, análise e interpretação dos elementos deixados pelo crime no local em que a ação delitiva ocorreu, objetiva a comprovação da existência de um fato a ser investigado, bem como a identificação de seu autor.

Não deve ser confundida com a Criminologia que, em seu turno, conforme aduz Sérgio Salomão Shecaira (2014, p. 35), caracteriza-se como uma expressão utilizada para a designação de um grupo de temas estritamente ligados, são eles: o estudo e a explicação da infração legal; os meios formais e informais de que a sociedade se utiliza para lidar com o crime e com os atos desviantes; a natureza das posturas com que as vítimas desses crimes serão atendidas pela sociedade; o enfoque sobre o autor desses fatos desviantes.

O 1º Congresso Nacional de Polícia Técnica, realizado em São Paulo no ano de 1947, definiu a Criminalística nos seguintes termos (apud STUMVOLL, 2014, p. 2):

Disciplina que tem por objetivo o reconhecimento e interpretação dos indícios materiais extrínsecos relativos ao crime ou à identidade do criminoso. Os exames dos vestígios intrínsecos (na pessoa) são da alçada da Medicina Legal.

Destarte, à Criminalística incumbe a análise vestigial com dinamismo, estabelecendo ligações e interpretações, não devendo ater-se, tão somente, à descrição estática da apresentação dos vestígios expostos no palco em que o crime se deu.

De acordo com os escritos deixados por Públio Cornélio Tácito, historiador, orador e político romano, é possível sustentar que o primeiro exame direto de local de crime foi realizado na Roma Antiga por César, em momento ainda embrionário e pré-científico da Criminalística. Segundo consta, Plantius Silvanus fora levado à presença do Imperador sob a suspeita de ter defenestrado sua mulher, Aprônia, de uma janela. Deste modo, visando, através da análise dos elementos deixados na cena, formar sua convicção acerca do que efetivamente ocorreu e exarar sua decisão, César diligenciou ao quarto do casal e nele encontrou sinais de violência. Neste sentido, Gilberto Porto (1976, p. 24): “Ora, se o exame do local é parte integrante da Criminalística, foi o ato de César, talvez, o primeiro passo para a aplicação do método do exame direto de um local de crime, para verificação do ali ocorrido”.

Na obra “Elementos de Criminalística”, Carlos Kehdy define local de crime como sendo “toda área onde tenha ocorrido qualquer fato que reclame as providências da polícia”, dividindo-as em áreas imediatas, onde o fato efetivamente se deu, e em áreas mediatas, correspondendo estas às adjacências da primeira (apud STUMVOLL, 2014, p. 55).

Em seu turno, Eraldo Rabello no artigo “Contribuição ao estudo dos locais de crime” estabelece o local de crime como (1968, p. 77):

[...] porção do espaço compreendida num raio que, tendo por origem o ponto no qual é constatado o fato, se estenda de modo a abranger todos os lugares em que, aparente, necessária ou presumivelmente, hajam sido praticados, pelo criminoso, ou criminosos, os atos materiais, preliminares ou posteriores, à consumação do delito, e com este diretamente relacionados.

Tem-se, assim, que o local de crime equivale a toda área física ou geográfica, seja ela interna ou externa, onde se sucedeu acontecimento cuja ocorrência resultou na produção de vestígios, os quais, por sua natureza ou circunstâncias que o revestem, reclama a presença policial para seu fiel e cabal esclarecimento. 

Considerando a extensão territorial e os vestígios por ela espalhados, de acordo com o Caderno Temático de Referência do Ministério da Justiça "Investigação Criminal de Homicídios" (2014, p. 41/42), é possível estabelecer uma classificação dos locais de crime em:

  1. Local imediato: aquele abrangido pelo corpo de delito e o seu entorno, sendo, em regra, onde está depositada a maioria dos vestígios materiais que servirão de base para as atividades periciais que subsidiarão o esclarecimento do delito;
  2. Local mediato: é a área adjacente, espacialmente próxima, ao local imediata e a ele geograficamente ligada, passível de conter vestígios relacionados com o crime e que também serão foco da atividade pericial;
  3. Local relacionado: qualquer local que possa conter vestígios relacionados ao crime, mas que não guarde relação de continuidade espacial com os locais imediato e mediato.

Deste modo, deve-se abandonar a ideia corriqueira de que o local de crime constitui apenas a região onde constatou-se o fato, devendo ser ampliada para todo e qualquer local onde existam vestígios relacionados com o evento, procedendo à salvaguarda da totalidade de vestígios do crime. É cediço que o local do crime equivale ao prelúdio fundamental de qualquer investigação criminal, não sendo aceitável qualquer procedimento investigatório que prescinda do prévio comparecimento ao sítio dos fatos.

De acordo com o “Guide for law enforcement” (2000, p.13) do Federal Bureau of Investigation (FBI), os investigadores devem abordar a investigação da cena do crime como se fosse a única oportunidade de preservar e recuperar essas pistas físicas, considerando outras informações de caso ou declarações de testemunhas ou suspeitos cuidadosamente em sua avaliação objetiva da cena. Tendo em vista que, as investigações podem mudar de curso na medida em que pistas físicas, inicialmente consideradas irrelevantes, podem tornar-se cruciais para uma resolução bem-sucedida do caso[1].

Isto posto, a investigação de local é o ponto de encontro entre a ciência, a lógica e a lei, cujo o transcurso temporal é o maior inimigo, pois o tempo institui regência no meio social e em matéria penal é fulcral na estrutura da “persecutio criminis”. Na medida em que tanto cria como mata o direito, ou seja, o avançar do tempo simboliza o escape da realidade e a perda da pretensão punitiva estatal, diante do desaparecimento dos efeitos do crime para a sociedade.

Ergue-se, então, em termos processuais, um paradoxo temporal que é ínsito ao ritual judiciário, conforme aduz Aury Lopes Júnior (2014, p. 549/552):

[...] um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã) [...] Em suma, o processo penal tem uma finalidade retrospectiva, em que, através das provas, pretende-se criar condições para a atividade recognitiva do juiz acerca de um fato passado, sendo que o saber decorrente do conhecimento desse fato legitimará o poder contido na sentença.

Nesta medida, a instrução probatória na persecução penal equivale a recolher elementos que possibilitem a máxima aproximação à realidade investigada, uma tarefa que possui como principal algoz o transcurso do tempo, pois é este inimigo silencioso que vai, aos poucos, diluindo verdades no implacável caminhar dos ponteiros.

Fala-se em “aproximação à realidade” e não a famigerada “verdade real”, esta última um grande mito que paira sobre o Processo Penal. Isto porque, historicamente sempre buscou-se de forma desmedida uma verdade material e consistente e a ausência de limites na atividade de busca, admitindo inclusive a tortura como meio de prova, produziu uma “pseudo verdade” de baixa qualidade. Portanto, o mito da verdade real nasce na inquisição e, desde então, presta (des)serviços como instrumento capaz de justificar atos estatais abusivos.

A caçada pela verdade real foi o norteador do Processo Penal durante longo período da história humana, caracterizava-se por um processo de reconstrução histórica dos fatos. Na lição de Carrara “a certeza está em nós, a verdade está nos fatos” (apud NUCCI, 2011, 115).  Também conhecido como princípio da verdade material ou da verdade substancial, hoje é teoria superada, asseverava que o fato investigado no processo deve corresponder ao que está fora dele, sem artifícios, presunções ou ficções. Esse verdadeiro mito encontra suas raízes no Sistema Inquisitório, ligado à concepção de um Estado Autoritário. Em contraposição a este princípio hoje se fala em verdade processualmente válida. A verdade almejada no processo não há de ser uma verdade absoluta, mas sim uma verdade judicial, prática, não aquela obtida a todo preço, mas aquela processualmente válida.

O princípio da verdade real restou-se obsoleto, sobretudo, diante da impossibilidade de se alcançar uma verdade absoluta. Desde a antiguidade que os filósofos debatem essa questão da verdade. Em voto do ministro do STJ Felix Fischer, no Habeas Corpus 155.149, encontramos citação do jurista Jorge Figueiredo Dias, em excepcional conceituação: “A verdade material que se busca em processo penal não é o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, que todos sabem escapar à capacidade do conhecimento humano”.

A descoberta da verdade será sempre relativa, pois cada parte no litígio judicial penal terá a sua verdade, sua visão acerca do que aconteceu. Cabe aos envolvidos na lide trazerem ao processo sua versão fundada em provas lícitas, juridicamente aceitas, para que, com isso, possam chegar ao convencimento do magistrado da ocorrência factual sob o seu prisma.


2. Provas, indícios e vestígios:

Na doutrina temos três sentidos para esta terminologia “prova”, são elas: o ato de provar, o meio de prova e o resultado da ação de provar. Na lição de Antônio Magalhães Gomes Filho, os dois primeiros sentidos se referem à ótica objetiva da prova, enquanto o terceiro refere-se à ótica subjetiva, decorrente da atividade probatória desenvolvida. Isto é, o ato de provar e o meio de prova se materializam como sendo, efetivamente, a atividade probatória das partes processuais, as quais buscam através dos mecanismos legais demonstrar seus argumentos, alegações e versões dos fatos. Já o resultado da ação de provar, é o efeito que essa prova encontra no âmago do magistrado, o qual formará sua convicção pela livre apreciação da prova, tendo que fundamentar sua decisão em provas produzidas diante de contraditório judicial (1997, p. 33-34).

A terminologia origina-se do latim “probatio” que pode ser traduzida como experimentação, verificação, exame, confirmação, reconhecimento, confronto, dando origem ao verbo “probare”. De acordo com Nicola Malatesta (1995, p. 19) "a prova é o meio objetivo pelo qual o espírito humano se apodera da verdade". Juridicamente, as provas são os atos e meios utilizados pelas partes e formalmente admitidos pelo Magistrado como sendo a fidedignidade dos fatos alegados em juízo, ou seja, meio utilizado pelo homem para demonstrar uma verdade através de sua percepção.

Existem basicamente três formas de manifestação probatórias na persecução penal:

  1. Provas Testemunhais - assentada de testemunhas, declarações da vítima, acareações etc.
  2. Provas Instrumentais (ou Documentais) – escritos públicos ou particulares, cartas, livros comerciais, notas fiscais etc.
  3. Provas Materiais – exames periciais de corpo de delito, instrumento do crime, vistorias etc.

O objeto da prova é o fato cuja a existência deseja-se reconhecer, deste modo, pode ser direta, referindo-se de forma imediata ao fato a ser provado, ou indireta, caso afirme outro fato, a partir do qual seja possível chegar à prova através de raciocínio indutivo, assim, são provas indiretas as presunções e os indícios, pois demandam a formulação de hipóteses, exclusões e aceitações para a formação da conclusão final.

Presunções são opiniões pessoais, convicções ou suspeitas que formam-se na consciência do investigador, acerca da existência de um fato ou circunstância desconhecidos, diante de outros fatos ou circunstâncias conhecidos. De outro lado, indícios são todos e quaisquer fatos, sinais, marcas ou vestígios, que, por sua relação com fato desconhecido, prova ou leva à presunção da existência deste. À vista disso, toda presunção é gerada a partir de indícios ou circunstâncias.

O art. 239 do Código de Processo Penal define indício como sendo “a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. Por sua vez, o ordenamento jurídico brasileiro não cuidou de definir vestígio, porém, de acordo com o “Novo Dicionário da Língua Portuguesa” (2004, p. 478) trata-se de “sinal que homem ou animal deixa com os pés no lugar por onde passa; rastro, pegada, pista; no sentido figurado, indício, sinal, pista, rastro”.

A simples leitura do parágrafo acima pode conduzir o leitor à errônea concepção de que vestígios e indícios são sinônimos (ou quase isso), mas, em verdade, sob o prisma da Criminalística e do Processo Penal, há cristalina delimitação e diferenciação. Qualquer elemento detectado em local onde houve a prática de crime será considerado, “a priori”, um vestígio. Todavia, após análise, interpretação e associação a exames periciais e dados colhidos na investigação, estabelecendo relação inequívoca com o fato delituoso ele será transmutado em indício, ou seja, “o vestígio encaminha; o indício aponta” (PORTO, 1968, p. 74). Sendo assim, em uma cena de crime, em princípio, todos os vestígios não podem ser preliminarmente descartados, pois poderão demonstrar sua utilidade posteriormente.

Vestígio é todo o objeto ou material em seu estado bruto que fora constatado e/ou recolhido em local de crime para sua ulterior análise, ou seja, elementos que podem vir a ser tecnicamente transformados em indícios capazes da comprovação da natureza do fato investigado e de suas causalidades. Entre os mais típicos vestígios encontrados em uma cena incluem-se: resíduos deixados por disparos de arma de fogo, gotas de tinta, cacos de vidro, produtos químicos desconhecidos, drogas, impressões digitais, pegadas, marcas de ferramentas, fluidos corporais, cabelos, pelos etc. Por seu turno, o vestígio em que, após as devidas análises e pesquisas, constata-se sua relação com o crime investigado, de forma técnica e científica, passa a ser apontado com evidência. 

Objetivando segurança e integridade do valor probatório do que fora arrecadado na cena, estes devem ser protegidos em sua integralidade, sob os pontos de vista científico e jurídico. Alterações das características vestigiais podem ocorrer por causas naturais, como exposição a altas temperaturas ou umidade; causas acidentes, oriundas de falhas na proteção dos indícios; e causas propositais, como a destruição dolosa por parte de pessoas interessadas na impunidade do crime investigado.

Acerca da cadeia de custódia da prova Geraldo Prado (2014, p.7) preleciona que:

O rastreamento das fontes de prova será uma tarefa impossível se parcela dos elementos probatórios colhidos de forma encadeada vier a ser destruída. Sem esse rastreamento, a identificação do vínculo eventualmente existente entre uma prova aparentemente lícita e outra, anterior, ilícita, de que a primeira é derivada, dificilmente será revelado. Os suportes técnicos, pois, têm uma importância para o processo penal que transcende a simples condição de ferramentas de apoio à polícia para execução de ordens judiciais.’   

Deve-se dispensar zeloso tratamento aos vestígios em geral, revestindo-se de uma série de precauções para que não pairem dúvidas, técnicas ou legais, sobre as informações por eles trazidas. Entre estes cuidados possuem especial importância a detecção, coleta, preservação, armazenamento, embalagem, identificação (etiquetamento) e o acondicionamento final.

Parte importante da preservação vestigial é consequência do adequado isolamento e delimitação da área, através da vigilância policial, vedando todo e qualquer acesso no interior da extensão restrita. Este cenário propicia ao Perito Criminal deparar-se com a cena do crime idônea, isto é, tal qual como fora deixada pelos sujeitos ativo e passivo, possibilitando, deste modo, condições técnicas aptas à análise de todos os elementos nela contidos. Além disso, constitui garantia para a investigação como um todo, pois angaria-se mais elementos probatórios para sua inserção no bojo do Inquérito Policial para que seja possível subsidiar a existência de relação processual futura.


   3. Custódia policial do local de crime:

A preservação e isolamento correto e completo do local é fulcral para a investigação, pois é através do guarnecimento que se propiciam as condições necessárias para o levantamento eficaz e apto à obtenção de elementos probatórios.

Sob este prisma procedimental é possível classificar os locais de crime como (STUMVOLL, 2014, p. 58):

  1. Preservados, idôneos ou não violados – mantidos na integralidade e originalidade como foram deixados pelo agente, após a prática criminosa, até a chegada dos peritos criminais;
  2. Não preservados, inidôneos ou violados – foram devassados após a pratica da infração e antes do comparecimento pericial.

Ante o disposto no Código de Processo Penal, a Autoridade Policial, tão logo tome conhecimento da ocorrência de suposta infração penal, deverá dirigir-se ao local, providenciando para que não sejam alterados o estado e conservação das coisas até a chegada da equipe pericial. Além disso, deverão ser apreendidos todos os objetos que tiverem relação com o fato, após estes serem liberados pelos peritos (vide arts. 6º, I, II e 169 do CPP).

É importante salientar que a negativa de atuação por parte do corpo técnico-pericial ante a alterações de vestígios não poderá ser invocada, pois se houve a alteração de alguns elementos, outros tantos encontram-se presentes no sítio, cuja análise poderá ser, ainda, cabal para a compreensão da dinâmica dos fatos.

O isolamento é o ato de impossibilitar o acesso de pessoa não autorizada à área considerada cena do crime, para que seja garantida a preservação dos vestígios deixados pela ação delituosa. Deste modo, a preservação é uma consequência do isolamento.

No tocante à cadeia de custódia de vestígios, e os procedimentos nela envolvidos, a Secretaria Nacional de Segurança Pública editou a Portaria n.º 82 em 16 de julho de 2014, por meio da qual estabeleceu diretrizes de atuação, tendo em vista sua fundamental função para a garantia da idoneidade e a rastreabilidade dos vestígios, com vistas a preservar a confiabilidade e a transparência da produção da prova pericial até a conclusão do processo judicial.

De acordo com a Portaria em questão, a cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte. O seu início se dá com a preservação do local de crime e/ou com procedimentos policiais ou periciais nos quais seja detectada a existência de vestígio e compreende o rastreamento do vestígio nas  etapas externas e internas.

Em relação à fase externa, esta compreende todos os passos entre a preservação do local de crime ou apreensões dos elementos de prova e a chegada do vestígio ao órgão pericial encarregado de processá-lo, compreendendo a preservação do local de crime, bem como a busca, reconhecimento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte e recebimento do vestígio.

No que tange a fase interna, depreende todas as etapas entre a entrada do vestígio no órgão pericial até sua devolução juntamente com o laudo pericial, ao órgão requisitante da perícia, ou seja, a  recepção, conferência, classificação, guarda e/ou distribuição do vestígio,  análise pericial propriamente dita, guarda e devolução do vestígio de prova, guarda de vestígios para contraperícia e, por fim, o registro da cadeia de custódia.


4. A atividade policial de preservação de local do crime no Estado de São Paulo: Resolução SSP n.º 382/99

No âmbito do Estado de São Paulo, a Secretaria Estadual de Segurança Pública editou a Resolução n.º 382 em 01 de setembro de 1999, pela qual foram estabelecidas diretrizes a serem seguidas no atendimento de locais de crime, alterando e aprimorando procedimentos anteriores previstos na Resolução n.º 177 de 8 de setembro de 1992 da mesma Secretaria.

O aprimoramento destes procedimentos leva à rápida e efetiva atuação das Polícias Civil, Militar e do Setor de Perícias no atendimento a locais de crimes, propicia o sucesso da investigação criminal e o bom resultado dos exames periciais. Para isso, o conhecimento de conceitos sobre local de crime facilita o entendimento das normas relativas a sua preservação.

Assim, na Seção VI da Resolução foram estabelecidos alguns noções, cujas compreensões são basilares para o fiel cumprimento da tarefa da salvaguarda da área objeto da investigação (arts. 18 “usque” 23):

  1. Local de Crime - todo o sítio onde tenha ocorrido um evento que necessite de providência da polícia, devendo ser preservado pelo policial que comparecer até sua liberação pela autoridade;
  2. Local de Crime Interno - todo sítio que abrange ambiente fechado;
  3. Local de Crime Externo - todo sítio não coberto;
  4. Locais de Crime Relacionados  - são dois ou mais sítios interligados entre si e que se relacionam com um mesmo crime;
  5. Área imediata ao local de crime  - é aquela onde ocorreu o evento.
  6. Área mediata ao local de crime - é aquela que cobre as adjacências ou cercanias de onde ocorreu o evento.

O Policial que proceder o primeiro atendimento ao local deverá isolar e preservar adequadamente a área imediata e, se possível, a mediada, evitando modificações e o acesso de qualquer pessoa, mesmo familiares da vítima ou, até mesmo, outros policiais que não façam parte da equipe especializada. Enquanto perdurar a necessidade de preservação, o local não poderá ser abandonado em qualquer hipótese, devendo estar guarnecido, no mínimo, por um Policial. Após a efetivação das medidas atinentes à preservação, providenciar-se-á o registro da ocorrência em solo Policial Civil.

O art. 5º da Resolução SSP n.º 382/99 estabelece algumas normas a serem adotadas pelo Policial que efetuar o primeiro atendimento à cena do crime, sob pena de responsabilidade:

  1. se o local for de difícil acesso, acionar o Corpo de Bombeiros;
  2. preservar o local, não lhe alterando a forma em nenhuma hipótese, incluindo-se nisso:
  3. não mexer em absolutamente nada que componha a cena do crime, em especial não retirando, colocando, ou modificando a posição do que quer que seja;
  4. não revirar os bolsos das vestes do cadáver, quando houver;
  5. não recolher pertences;
  6. não mexer nos instrumentos do crime, principalmente armas;
  7. não tocar no cadáver, principalmente não movê-lo de sua posição original;
  8. não tocar nos objetos que estão sob guarda;
  9. não realizar a identificação do cadáver, a qual ficará a cargo da perícia;
  10. não fumar, nem comer ou beber nada na cena do crime;
  11. em locais internos, não usar o telefone, sanitário ou lavatório eventualmente existentes;
  12. em locais internos, manter portas, janelas, mobiliário, eletrodomésticos, utensílios, tais como foram encontrados, não os abrindo ou fechando, não os ligando ou desligando, salvo o estritamente necessário para conter risco eventualmente existente;
  13. tomar o cuidado de afastar animais soltos, principalmente em locais externos e, em especial, onde houver cadáver.

Na esteira das determinações do Código de Processo Penal, a Resolução Secretarial institui o imediato deslocamento da Autoridade Policial ao sítio dos fatos tão logo seja recebida a comunicação da ocorrência no Distrito Policial, devendo, além de proceder fielmente às normas prescritas no art. 5º supra, verificar qual a natureza da ocorrência (homicídio, suicídio, morte natural, morte acidental, acidente de trânsito ou outra). Tratando-se de crime, deve o Delegado de Polícia analisar se é de autoria conhecida ou desconhecida, procedendo, em seguida, as comunicações formais pertinentes.

Por fim, em suas disposições finais, a Resolução, acertadamente, estabelece que a Polícia como um todo e seus integrantes, individualmente, cada um dentro de sua parcela são responsáveis pelo rápido e correto atendimento de local de crime. Sendo que o rápido e correto atendimento do local de crime tem por objetivos contribuir para o sucesso da investigação criminal, minimizando a angústia das partes envolvidas.


5. Recognição visuográfica de local de crime

Ao longo da história da investigação policial inúmeras técnicas investigativas somaram-se para propiciar a mais eficiente apuração de resultados, valendo-se para tanto dos ensinamentos trazidos pela Criminalística, da Criminologia e da Medicina Legal, aliados aos ditames da dogmática penal.

A pesquisa de campo sempre foi uma técnica metodológica relevante nas pesquisas científicas, através da observação de fatos e fenômenos exatamente como ocorrem concretamente, procedendo à coleta, análise e interpretação de dados, com base numa fundamentação teórica consistente, objetivando compreender e explicar o problema pesquisado.

O estudo de caso se insere nesta esfera como uma modalidade de pesquisa amplamente utilizada nas ciências sociais (GIL, 2007, p. 54), caracteriza-se como sendo um estudo de uma entidade bem definida. Possui como fulcro de atuação atingir o profundo conhecimento de uma determinada situação, buscando deslindar sua essência e características. Contudo, “o pesquisador não pretende intervir sobre o objeto a ser estudado, mas revelá-lo tal como ele o percebe” (FONSECA, 2002, p. 33).

Nesta senda, surgiu na Polícia Civil do Estado de São Paulo, pelas mãos do ex-Delegado Geral e Diretor da Academia de Polícia Dr. Marco Antônio Desgualdo, a idéia de que a vivência da Autoridade Policial, enquanto pesquisador da criminalidade, pudesse ser exprimida graficamente em peça documental única, traduzindo o acompanhamento de circunstâncias e fatos, método que ficou conhecido doutrinariamente como “Recognição Visuográfica de Local de Crime”.

Em seu trabalho “Recognição Visuográfica de Local de Crime”, publicado pela Revista Brasileira de Ciências Criminais do IBCCRIM n.º 13º, publicado janeiro de 1996, Desgualdo preleciona que a peça não encontra as limitações inerentes a um laudo pericial, pois o pesquisador “carreia para ele muito de sua experiência e militância profissional e que pode ser complementada, na coincidência de detalhes, pela confissão do criminoso” (1996, p. 246).

O exame do bojo da peça permite a verificação de elementos importantes e necessários à correta compreensão da dinâmica criminosa, tais como: local, hora, dia do fato e da semana, condições climáticas e meteorológicas no momento do crime, subsídios coletados em campo pelo pesquisador, observação do cadáver, identidade, possíveis hábitos, características comportamentais, croqui descritivo e fotografação.

Recomenda-se que o investigador de campo busque descrever, de forma concisa, objetiva e resumida, fatores objetivos de relevância para a indicação da autoria e demais circunstâncias que orbitam o crime.

Buscando amparo nas lições de Desgualdo, Carlos Alberto Marchi de Queroz (2004, p. 289) estabelece que:

A recognição visuográfica do local do crime, no magistério do citado autor, apresenta várias facetas ou fatores objetivos. A primeira delas, em casos de homicídio, é o corpo estirado no local do crime, e seus dados periféricos, que devem ser reproduzidos, com prioridade, na recognição.  Outro fatos objetivo, segundo o estudioso, são as condições meteorológicas, de tempo, de pressão atmosférica, bem como levantamento sobre o dia da semana, hora, local, e se possível, a fase lunar, tudo acompanhado de croqui e fotografação. Constituem, outrossim, fatores objetivos de relevante importância na elaboração da recognição visuográfica o calibre da arma utilizada pelo criminoso; o número de tiros desfechados, a região atingida detalhes que irão revelar o maior ou menor grau de intensidade emocional que conduziu o sujeito ativo à prática da infração penal. Nesse momento, o pesquisador ou investigador de campo, recomenda Desgualdo, irá buscar e, igualmente, descrever, de forma concisa e resumida, junto a familiares, amigos, e até mesmo desafetos do pesquisado, seus hábitos, vícios, virtudes e tudo mais que possa servir para que seja delineado seu perfil psicológico, enquanto vítima, de tal sorte que a investigação possa concluir sobre as probabilidades do fato ter acontecido desta ou daquela forma.

Para a correta interpretação é indispensável que a cognição destes elementos seja feita através da utilização de métodos de raciocínio indutivos, dedutivos, abdutivos e analógicos, capazes de conduzir os investigadores à completa elucidação do fato.

Esclarece Desgualdo (apud QUEIROZ, 2004, p. 289) que “em princípio, a recognição visuográfica busca apoio junto à Estatística e à lei das probalidades, delineando, ademais, o perfil psicológico do criminoso dentro do contexto do princípio da verdade real”. Tendo em vista que, que a compreensão do fato criminoso parte do ponto de convergência entre a conduta e os antecedentes próximos e remotos, inclusive suas causas motivadoras.

Isto posto, o procedimento insere-se no âmbito das investigações conduzidas pela Polícia Judiciária, acrescentando detalhes e certezas acerca do criminoso, perfil psicológico, seu comportamento e motivação. Portanto, corresponde à tentativa de “reconstrução do todo por um fragnmento ou parte conhecida” (QUEIROZ, 2004, p. 293).

Além disso, trata-se de instrumento que tente à evolução através do avanços tecnológicos, conforme o próprio pioneiro dispõe:

O certo é que se está enveredando por um caminho de amplas perspectivas no qual ciências humanas, como o Direito e a Psicologia se confundem com as exatas, estatísticas e probabilidades, para o resultado final que é contribuir para a apuração do fato e o esclarecimento de autoria (DESGUALDO, 1996, p. 246)

A essência da recognição é o próprio cerne do persecução penal, um “instrumento de retrospecção, de reconstrução aproximativa de um determinado fato histórico” (LOPES, 2014, p. 549). Segundo o escólio de Franco Cordeiro (2000, p. 44) é admissível em processo penal tudo aquilo que não for vedado, ou seja, todo signo útil ao juízo histórico, desde que não incorra em violação às garantias do cidadão, são as chamadas provas inominadas e a recognição visuográfica insere-se nesta categoria.


Conclusão:

É basilar para a investigação, bem como para a persecução penal como um todo, a cognição de que a cena do crime, enquanto matriz inicial do fenômeno criminal, deve ser analisada com pormenores, cautela e zelo por parte do pesquisador policial. Tendo em vista que no instante em que qualquer ação humana se opera, esta acaba por deixar rastros e vestígios onde aconteceu e em suas imediações, estes fragmentos da verdade factual serão capazes da condução à aproximação máxima da autenticidade dos acontecimentos.

O trabalho de campo do investigador assume contornos relevantíssimos, na medida que o transcurso do tempo acaba, inexoravelmente, por apagar, desviar ou mesmo transformar os elementos abandonados pelos envolvidos na cena criminal, dificultando, sobremaneira, a possível elucidação delituosa. O avançar das horas representa a fluidificação da verdade.

Entretanto, o tempo não é o único algoz da investigação policial, a má preservação de um local de crime presta enorme desserviço neste sentido, colaborando, em muito, para a impunidade. São corriqueiros na rotina policial relatos de locais de crime repletos de populares curiosos, policiais não envolvidos na ocorrência, jornalistas ávidos por “furos” de reportagem etc. Enfim, personagens que ali estão por motivos outros e acabam por conduzir ao local componentes que acabarão turbando a investigação. Especialmente, em razão de que ali não deveriam estar, posto que não tem qualquer relação com a primordial e, por que não dizer, única urgência daquele momento: a apuração do crime.

Instrumentos como a recognição visuográfica do local de crime devem ser valorizados e o seu ensino difundido nas Academias de Polícia de todo país, pois mostra-se uma construção de doutrina policial eficiente, atenta aos ditames impostos ao hábil combate da criminalidade contemporânea e dirigida à imperiosa necessidade da associação dos métodos científicos ao raciocínio lógico e indutivo por parte do policial moderno.


REFERÊNCIAS:

CORDERO, Franco. Procedimento penal. Trad. Jorge Guerrero. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000

DESGUALDO, Marco Antonio. Recognição Visuográfica e a Lógica na Investigação, 2006

__________, Marco Antonio. Recognição visuogrática de local de crime, Revista Brasileira de Ciências Criminais do Ibccrim, n.º 13, janeiro/março de 1996

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Notas

[1]“Investigators should approach the crime scene investigation as if it will be their only opportunity to preserve and recover these physical clues. They should consider other case information or statements from witnesses or suspects carefully in their objective assessment of the scene. Investigations may change course a number of times during such an inquiry and physical clues, initially thought irrelevant, may become crucial to a successful resolution of the case”.


A porta da verdade estava aberta

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só conseguia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia os seus fogos.

Era dividida em duas metades

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era perfeitamente bela.

E era preciso optar. Cada um optou

conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

(DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Verdade. In Corpo – Novos Poemas, Editora Record)


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERGAL, Sandro. A aproximação da verdade através da cognição da cena de crime. Aspectos investigativos ligados à preservação e verificação do local de crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5184, 10 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57684. Acesso em: 28 mar. 2024.