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Audiência de custódia: previsão normativa e aplicabilidade no regime jurídico brasileiro

Audiência de custódia: previsão normativa e aplicabilidade no regime jurídico brasileiro

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Pontos relevantes sobre o instituto da audiência de custódia e sua respectiva disciplina frente à persecução penal brasileira da atualidade.

Introdução.

O Código de Processo Penal vem passando por sucessivas modificações nos últimos anos, com o objetivo de adequar a persecução penal aos padrões estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. A tarefa tem sido árdua, notadamente porque o nosso Código de Processo Penal de 1941 foi concebido dentro de uma atmosfera autoritarista.

Com efeito, o Decreto-lei nº 3.689, de 3.10.1941[1] (CPP), nasceu sob a égide da Constituição Federal de 1937, que fora outorgada pelo então Presidente Getúlio Vargas em plena ditadura e teve forte influência da Constituição polonesa fascista de 1932, o que chegou a lhe render o apelido pejorativo de “Constituição Polaca”. Foi um período conturbado da nossa recente história, no qual os direitos e garantias individuais não receberam a devida atenção.

Como se não bastasse o regime de exceção do Estado Novo instalado por Getúlio Vargas, o nosso Código ainda teve como fonte de inspiração o Código Rocco italiano de 1930, também influenciado pelo regime fascista de Benedito Mussolini, conforme anotou Francisco Campos na exposição de motivos do Código de Processo Penal pátrio.

O Título IX do Código de Processo Penal, p. ex., cuja denominação original era “da prisão e da liberdade provisória”, em sua redação inicial evidenciava bem o perfil autoritário do Processo Penal brasileiro, uma vez que disciplinava um sistema cautelar bipolar, ou seja, tendo como extremos a prisão e a liberdade que seria sempre provisória.

Pela sistemática originária, a pessoa autuada em flagrante delito permaneceria presa, em regra, com fundamento nessa modalidade de prisão, mesmo durante a fase processual. O delegado de polícia, após a lavratura do auto de prisão em flagrante, encaminhava os documentos para que o juiz, no prazo de 24h, decidisse sobre a legalidade da prisão (homologação da prisão legal ou relaxamento da prisão ilegal). O juiz somente poderia conceder liberdade provisória se o crime fosse afiançável ou se a conduta do increpado estivesse amparada por alguma causa excludente da ilicitude.

Ainda que fosse proferida uma sentença absolutória, nos termos da antiga redação do art. 596 do CPP, dependendo do grau de apenação da infração penal, não seria suficiente para se restituir a liberdade do réu.

Percebe-se, portanto, que a liberdade era a exceção daquele sistema concebido em bases notoriamente autoritárias, revelando total falta de sintonia com os direitos e deveres individuais consagrados pela Constituição Federal 1988 e pelos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos incorporados ao sistema jurídico pátrio. Como bem lembra Eugêncio Pacelli, o princípio fundamental que norteava o Código de Processo Penal era o da presunção de culpabilidade[2].

O resultado não poderia ter sido outro: o precário sistema carcerário brasileiro passou a abrigar ao longo dos anos a terceira maior população carcerária do mundo, conforme dados contabilizados pelo Conselho Nacional de Justiça em 2014. Para piorar a situação, os índices de criminalidade aumentaram vertiginosamente ao longo dos anos.

A adequação do Código de Processo Penal aos ditames constitucionais era, portanto, imperiosa.

Nesse sentido, a iniciativa de regulamentar a audiência de custódia no Brasil segue o espírito de adequação do direito processual penal brasileiro aos preceitos consagrados pela Constituição Federal de 1988 e documentos internacionais sobre direitos humanos incorporados ao sistema jurídico pátrio.


Definição de audiência de custódia.

Segundo Aury Lopes Jr. e Caio Paiva, a audiência de custódia:

“consiste, basicamente, no direito de (todo) cidadão preso ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz para que, nesta ocasião, (i) se faça cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, também, (ii) para que se promova um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão”[3].

Embora a nomenclatura mais utilizada seja “audiência de custódia”, há quem prefira a denominação “audiência de apresentação”, como, p. ex., o Min. Luiz Fux do STF, para evitar a ideia de que a finalidade da audiência seja custodiar alguém.


Previsão normativa da audiência de custódia.

A audiência de custódia encontra guarida em dois importantes documentos internacionais sobre direitos humanos, a saber:

a) Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos - PIDCP, adotado na XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidade, em 16 de dezembro de 1966, que estabelece em seu art. 9º, §3º, que:

“qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença”.

b) Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH, adotada no âmbito das Organizações dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, que prevê em seu art. 7º, §5º, que:

“toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.

Vale ressaltar que o PIDCP foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, ao passo que a CADH foi incorporada no mesmo ano por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Ambos possuem eficácia jurídica supralegal dentro do ordenamento jurídico brasileiro[4].

Muito embora o Brasil tenha aderido voluntariamente aos termos dos citados documentos internacionais sobre direitos humanos, por mais de vinte anos se omitiu em relação à efetivação da audiência de apresentação no país, contentando-se com a mera análise documental da situação da pessoa presa em flagrante delito[5].

O Partido Socialismo e Liberdade – PSOL ajuizou perante o STF a Ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 347, com pedido de medida liminar, para que fosse reconhecida a figura do “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro e a adoção de providências estruturais em face de lesões a preceitos fundamentais dos presos, que alega decorrerem de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal.

Em setembro de 2015, o STF analisou parcialmente a cautelar solicitada na ADPF nº 347 e votou, em síntese, no sentido de determinar aos juízes e tribunais a realização de audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão.

Em 15 de dezembro de 2015, o Conselho Nacional de Justiça - CNJ aprovou a Resolução 213, para dispor finalmente sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24h, bem como estipulou prazo de 90 dias para que todos os Tribunais se adequassem ao procedimento.

Muito se questionou sobre a possibilidade de se regulamentar um tema de tamanha importância por meio de resolução ou provimento. No Estado de São Paulo, p. ex., uma Resolução conjunta do TJ/SP e da Corregedoria Geral de Justiça de SP, que implantou de forma pioneira no Estado a realização das audiências de custódia, foi alvo da Ação direita de Inconstitucionalidade – ADI nº 5.240, ajuizada perante o STF pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, sob o argumento, dentre outros, de que a audiência de custódia somente poderia ter sido criada por lei federal e jamais por intermédio de provimento autônomo do Tribunal, já que a competência para legislar sobre a matéria é da União, por meio do Congresso Nacional.

O STF, no entanto, julgou essa ação improcedente, porque, segundo entendimento dos Ministros, o procedimento apenas disciplinou normas vigentes, não tendo havido qualquer inovação no ordenamento jurídico, já que o direito fundamental do preso de ser levado sem demora à presença do juiz está previsto na Convenção Americana dos Direitos do Homem, internalizada no Brasil desde 1992, bem como em dispositivos do CPP[6].

Não obstante a regulamentação da audiência de custódia pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio de resolução, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que objetiva positivá-la no Código de Processo Penal. Com efeito, em 30 de novembro de 2016 o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei do Senado - PLS 554/11 e o encaminhou para a Câmara dos Deputados, propondo a alteração dos artigos 304 e 306 do CPP, conforme noticiado no sítio do Senado Federal[7].

Percebe-se, portanto, que o Brasil está apenas regulamentando tardiamente um direito fundamental consagrado em documentos internacionais vigentes, sobretudo na Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH. Dessa forma, é importante salientar que as disposições da CADH, mormente na parte que dispõe sobre a audiência de custódia, devem ser interpretadas à luz do entendimento jurisprudencial da Corte Interamericana de Direitos Humanos, seu interprete originário, e não com base no direito interno, conforme ressaltado por Andrey Borges de Mendonça[8].

Com efeito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se debruçou sobre o tema da audiência de custódia diversas vezes, máxime quando instada a se manifestar diante das violações a direitos humanos que ocorreram nas ditaduras da América Latina, onde a prisão foi indubitavelmente um instrumento de expressão do autoritarismo. Em vários julgados, a Corte destacou a importância da realização da audiência de custódia, porque o momento da prisão é um momento de especial vulnerabilidade da pessoa em que diversos bens jurídicos se encontram em risco, razão pela qual merece um controle especial.

Dessa forma, a Corte Interamericana estabeleceu alguns parâmetros que devem ser observados no que tange ao momento da prisão, em especial para cumprir a garantia do art. 7º, §5º da CADH, sintetizados em quatro requisitos cumulativos, a saber:

  1. Que seja apresentada perante um juiz ou autoridade judiciária;
  2. Que esse controle seja efetivo;
  3. Que não haja demora no controle;
  4. Que o imputado seja apresentado pessoalmente e seja ouvido.


Finalidades da audiência de custódia.

A audiência de custódia objetiva, basicamente, atingir duas finalidades, a saber: a) promover um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão; b) coibir eventuais atos de tortura ou de maus tratos.

Nesse sentido, o PLS 554/11 prevê a inclusão de um §7º no art. 306 do CPP, aduzindo que a oitiva do preso apresentado na audiência de custódia “versará, exclusivamente, sobre a legalidade e a necessidade da prisão, a ocorrência de tortura ou de maus-tratos e os direitos assegurados ao preso e ao acusados”.

Assim, ao analisar a legalidade da prisão, o juiz deve garantir que o procedimento de privação da liberdade seja regular, isto é, com observância das disposições constitucionais, convencionais e legais, afastando qualquer tipo de ilegalidade ou arbitrariedade. Caso perceba que a prisão em flagrante seja ilegal, cabe ao juiz relaxá-la, consoante art. 310, I, do CPP.

No que tange a necessidade da prisão, a audiência de custódia objetiva basicamente garantir a revisão jurisdicional do ato prisional, fazendo com que a “detenção policial” se transforme em “detenção judicial”. Em outras palavras, o juiz deverá aplicar o art. 310 do CPP, incisos II e III, ao realizar a audiência de custódia, para converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos dessa prisão cautelar e se revelarem inadequados ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Também caberá ao magistrado observar, quando entrevistar pessoalmente o preso, se houve respeito à sua integridade física e moral, em atenção ao art. 5º, XLIX, da CF. Havendo indícios da prática de tortura ou maus tratos contra o preso, deverá o magistrado determinar a apuração do ilícito.

Nesse ponto, a efetivação dessa garantia de apresentação do preso revela particularmente importância nos Estados em que há um específico perigo de brutalidade policial ou tortura.

A tendência é que, com o tempo, a implantação da audiência de custódia atinja, por via obliqua, outro anseio do Conselho Nacional de Justiça: a diminuição do número de presos provisórios no Brasil. Acredita-se que o contato pessoal estabelecido entre o juiz e o preso fatalmente enriquecerá essa relação com mais elementos concretos, possibilitando ao julgador tirar suas próprias impressões pessoais sobre o custodiado ao decidir sobre a necessidade da prisão, o que era prejudicado pela mera análise documental do auto de prisão em flagrante[9].


Pressuposto para a realização da audiência de custódia.

Somente haverá necessidade de se realizar a audiência de custódia se a prisão ainda estiver em vigor. Caso o delegado de polícia tenha concedido a liberdade provisória mediante fiança[10] ou tenha relaxado a prisão/captura, porque não restaram fundadas as suspeitas contra o capturado que foi conduzido à Delegacia (CPP, art. 304, §1º, a contrário senso), não haverá necessidade de se realizar a audiência de custódia.

Para quais espécies de prisão se aplica a audiência de custódia?

Em regra, aplica-se para a hipótese de prisão em flagrante delito[11], mormente porque nesse tipo de prisão não há uma ordem judicial prévia. Nesse sentido caminha a redação do art. 1º da Res. 213/15 do CNJ.

O artigo 13 da Res. 213/15 do CNJ, no entanto, ampliou a hipótese de realização da audiência de custódia para as pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva.

Nesse caso, Segundo Andrey Borges de Mendonça, a realização da audiência de custódia teria dupla importância: 1) verificar se houve o regular cumprimento do mandado e se o preso foi informado sobre os seus direitos; e 2) a depender do tipo de prisão: 2a) para o caso de prisão cautelar (temporária ou preventiva), assegurar o contraditório para essa prisão decretada, conforme prevê a nova redação do art. 282, §3º, do CPP (contraditório pós-medida), de forma que o preso possa exercer a autodefesa em forma de “contraditório argumentativo”; 2b) em hipótese de prisão definitiva, a audiência de custódia serviria para verificar a vigência do mandado de prisão e a identidade da pessoa presa[12].

É necessária a realização de audiência de custódia para outras espécies de prisão, como, p. ex., do devedor de pensão alimentícia ou para fins de extradição?

A doutrina é silente. O Prof. Andrey Borges de Mendonça entende que sim, conforme já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos[13]. A audiência tem cabimento sempre que houver uma ordem de prisão, não devendo ficar restrita a prisão penal ou processual penal.


Prazo para apresentação do preso.

A CADH exige a realização da audiência “sem demora”, sem estipular um prazo. Assim o fez considerando a realidade de cada Estado signatário. Essa cláusula geral, no entanto, deve ser interpretada no sentido de que a pessoa seja apresentada no menor prazo possível perante o juiz, sem delongas desnecessárias.

Pelo que se extrai das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o prazo máximo para a apresentação do preso perante o juiz seria de 4 (quatro) dias.

O art. 1º da Res. 213/15 do CNJ prevê um prazo de 24h da “comunicação” do flagrante à autoridade judicial competente. Considerando que o delegado de polícia tem 24h para lavrar o auto de prisão em flagrante, expedir nota de culpa e comunicar o juiz, o prazo para a realização da audiência de custódia, então, pode ser de até 48 da prisão em flagrante (24h + 24h).

Na prisão decorrente de ordem judicial, o art. 13 da mesma Resolução estipula o prazo de 24h do cumprimento do mandado.

Essa é a regra. Não obstante, o prazo pode ser aumentado de acordo com as peculiaridades do caso concreto, sempre de forma excepcional, como, p. ex., no caso de uma pessoa ser presa pela tripulação de um navio que navega em alto mar (caso concreto analisado pela Corte Europeia de Direitos Humanos). Outro exemplo, mais comum, seria a situação de preso alvejado em confronto com policiais e que permanece internado em hospital.

Há entidades de classe, como a CONAMP, que, diante da realidade brasileira, sugere um prazo de 72h.

O PLS 554/2011, que agora carece de aprovação da Câmara dos Deputados, estabelece o prazo de 24h para apresentação do preso, podendo esse prazo ser estendido até 72h, mediante decisão fundamentada do juiz, em decorrência de dificuldades operacionais da autoridade policial.

Conforme o PLS 554/2011, tratando-se de organização criminosa, a autoridade policial poderá deixar de cumprir os prazos previstos (24h ou 72h, nos termos do mesmo projeto de lei), desde que, dentro desses prazos, designe, em acordo com o juiz competente, data para apresentação do preso em no máximo 5 (cinco) dias.


Autoridade competente para realizar a audiência de custódia.

Conforme entendimento uniforma da Corte Interamericana de Direitos Humanos, somente o juiz, imparcial e independente, pode presidir a audiência de custódia. Membros do Ministério Público ou delegado de polícia não satisfazem essa garantia.

Vale frisar que o juiz (natural do fato) que participa da audiência de custódia não fica impedido ou comprometido para o julgamento do fato posteriormente. O juiz sempre analisou a legalidade da prisão em flagrante, ao receber a comunicação do auto de prisão em flagrante, e nem por isso foi considerado “contaminado”.

Quanto ao local de realização da audiência, em regra, deve-se realiza-la na sede do juízo competente, conforme estabelecido pela Lei de Organização Judiciária de cada Estado ou Provimento dos Tribunais. Normalmente os Tribunais têm destacado juízes especialmente para a realização das audiências de custódia, de forma que esse juiz não será o juiz do fato.

A Res. 213/15 do CNJ prevê a possibilidade do juiz ir até o preso, como, p. ex., na hipótese de preso internado em hospital após ser alvejado durante a sua captura. O juiz poderia, portanto, realizar a audiência de custódia no Hospital.

Discute-se sobre a possibilidade de se deprecar a realização de audiência de custódia, mormente nas hipóteses de cumprimento de mandado. Alguns juízes têm adotado essa postura na prática, muito embora os Tribunais superiores entendam que o exercício da jurisdição é indelegável, em razão do princípio do juiz natural. Nesse sentido, Andrey Borges de Mendonça entende que a carta precatória deve ficar restrita ao cumprimento de questões meramente executórias, o que denota a sua incompatibilidade com a realização da audiência de custódia, porquanto abrange atos decisórios (análise da legalidade e necessidade da prisão)[14].


Rito da audiência de custódia.

A Res. 213/15 do CNJ previu um rito para a realização da audiência de custódia, uma espécie de “procedimento incidental de liberdade”, conforme entende parte da doutrina.

Segundo o rito estabelecido, devem estar presentes na audiência de custódia o Ministério Público e a Defensoria Pública, caso o preso não tenha advogado constituído.

Também deve estar presente o detido, mesmo contra a vontade dele, tamanha é a importância dessa garantia. Caso o preso não possa ser apresentado, v. g., por estar internado no hospital, deve-se aguardar a sua liberação para que seja finalmente realizada a audiência de custódia.

A Res. 213/15 do CNJ silenciou a respeito da participação de eventual vítima (do crime que ensejou a prisão do custodiado) na audiência de custódia. Andrey Borges de Mendonça entende que é possível a participação da vítima, notadamente nos casos de violência doméstica, até como forma de se observar o CPP, que determina que a ofendida deva ser comunicado dos atos processuais, notadamente quando o preso for libertado[15].

Segundo o art. 4º, par. ún., da Res. 213/15 do CNJ, é vedada a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação durante a audiência de custódia. Nesse sentido também caminha o PLS 554/2011, com redação parecida.

Definidos os personagens da audiência de custódia, inicia-se o rito propriamente dito, sendo que, antes, o preso tem o direito de se entrevistar prévia e reservadamente com seu defensor.

Na sequência, o juiz inicia a audiência expondo ao preso sobre (i) a imputação que está sofrendo, (ii) a finalidade do ato e (iii) seus direitos, devendo, para tanto, utilizar uma linguagem acessível ao preso.

A próxima etapa é o “interrogatório de garantia”, chamado de entrevista pelo art. 8º da Res. 213/15 do CNJ, no qual o preso irá exercer a ampla defesa e o seu contraditório argumentativo, basicamente sob dois pontos: a) sobre a legalidade da prisão e o respeito à sua integridade física e b) a posterior necessidade de aplicação de uma medida cautelar.

O juiz não deve analisar o mérito da imputação, mas apenas focar na análise da legalidade e necessidade da prisão. Se a questão for teleologicamente vocacionada às finalidades da audiência de custódia, o juiz poderá tomar conhecimento dos fatos.

Após esse interrogatório de garantia, serão possibilitadas perguntas às partes (acusação e defesa) que também não poderão entrar no mérito da imputação, salvo se vocacionadas às finalidades da audiência de custódia.

Depois das perguntas das partes, serão possibilitados requerimentos às partes.

Por fim, o juiz decidirá obrigatoriamente na audiência se a constrição da liberdade do preso foi legal e se foram respeitados seus direitos fundamentais, bem como decidirá sobre eventual imposição de medida cautelar diversa de prisão, quiçá decretação da prisão preventiva.

Quais as consequências da não realização da audiência de custódia?

Segundo decisões do STJ, prisões em flagrantes não podem ser consideradas ilegais pela mera ausência da realização da audiência de custódia, sobretudo quando são respeitados os direitos constitucionais e o CPP.

Em São Paulo, por exemplo, durante todo o ano de 2016, as audiências de custódia foram realizadas de segunda-feira à sexta-feira. Aos finais de semana, as prisões em flagrante foram analisadas pelo plantão ordinário, no qual o juiz fez a análise sem a presença do preso (mera análise documental). O mesmo ocorreu no recesso de fim de ano, sob críticas do Prof. Guilherme de Sousa Nucci, publicadas em sua página do Facebook no dia 17.12.2017.

Em 2016, o Min. Edson Fachin do STF, ao analisar o HC 135.575/RJ, no qual se questionava, dentre outas questões, a ausência da realização da audiência de custódia, muito embora tivesse sido feita a comunicação da prisão em flagrante, concedeu uma ordem de habeas corpus para que fosse realizada a audiência de custódia no prazo de 24 horas[16].


Conclusão.

Novos tempos acenam para um processo penal mais humanitário, fruto de uma evolução natural que exige uma releitura da persecução penal mais sintonizada com as disposições constitucionais e convencionais.

A realização da audiência de custódia, portanto, é uma garantia fundamental de toda pessoa presa que se tornou uma realidade no Brasil, tardiamente, diga-se de passagem. Esse contato direto entre juiz e preso certamente permitirá um controle judicial imediato, tornando-se um importante meio idôneo para coibir prisões arbitrárias e ilegais.


Referência

Cunha, Rogério Sanches. Temas de Processo Penal – Audiência de Custódia. Acessível em, 2016.

Barroso, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

Bonfim, Edilson Mougenot. Reformas do Código de Processo Penal. Comentários à Lei n. 12.403, de 04 de maio de 2011. São Paulo: Saraiva, 2011.

Lopes Jr., Aury, e Paiva, Caio. Audiência de custódia aponta para a evolução civilizatória do processo penal. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao-processo-penal.

Mendonça, Andrey Borges de. Audiência de Custódia. 7º Congresso Jurídico Online de Ciências Criminais – CERS, 2016.

Moura, Maria Thereza Rocha de Assis. As reformas no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 21ª Ed. São Paulo: Atlas, 2017.


Notas

[1] Em que pese tenha nascido para o mundo jurídico meio de Decreto-lei, espécie normativa vigente à época, o Código de Processo Penal foi recepcionado por ser materialmente compatível com as Constituições posteriores, inclusive com a Constituição Federal de 1988 que lhe atribui a natureza de lei ordinária.

[2] Curso de Processo Penal, 21ª Ed. São Paulo: Atlas, 2017.

[3] Lopes Jr., Aury, e Paiva, Caio. Audiência de custódia aponta para a evolução civilizatória do processo penal. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao-processo-penal.

[4] O STF firmou entendimento no sentido de que os tratados internacionais sobre direitos humanos devidamente ratificados e internalizados na ordem jurídica brasileira, porém não submetido ao processo legislativo estipulado pelo novel artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal, possuem posição hierárquica supralegal, ou seja, estão abaixo da Constituição e acima da lei. Esse status normativo paralisa a eficácia de toda a legislação infraconstitucional conflitante, bem como impede que o Estado afronte as disposições dos citados tratados com a edição de novas leis.

[5] A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem decidido reiteradamente que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente” (Corte IDH. Caso Acosta Caldeón Vs. Equador. Sentença de 24.06.2005).

[6] Nesse sentido, o Ministro Luiz Fux afirmou que o provimento questionado não regulou normas de Direito nem interferiu na competência de outros Poderes, na medida em que apenas promoveu atos de autogestão do tribunal, estipulando comandos de mera organização administrativa interna.

[7] Conforme noticia o sitio da Câmara dos Deputados, a sua mesa diretora decidiu apensar o texto final do PLS 554/11 (agora PL 6.620/16) ao projeto que trata da reforma do Código de Processo Penal (PL nº 8.045/2010), em 12 de dezembro de 2016. Essa medida da mesa direto da Câmara dos Deputados certamente acarreta uma análise muito mais extensão ao projeto de lei de regulamentação da audiência de custódia, que já havia tramitado durante cinco anos no Senado Federal.

[8] Audiência de Custódia. 7º Congresso Jurídico Online de Ciências Criminais – CERS, 2016.

[9] Impressões pessoais dificilmente são fielmente registradas com a mesma vivacidade nas frias laudas que compõem um auto de prisão em flagrante delito. Por mais hábil que seja com as palavras, o delegado de polícia dificilmente terá tempo suficiente nos tumultuados plantões policiais para redigir um auto de prisão em flagrante delito com exatamente todas as suas minúcias.

[10] Na hipótese de concessão de liberdade provisória pelo delegado de polícia em sede policial, nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 anos (CPP, art. 322), a prisão deverá ser comunicada ao juiz, ao Ministério Público e ao Defensor (constituído ou público), mediante os respectivos ofícios.

[11] O PLS pretende positivar a audiência de custódia apenas no Capítulo do CPP que trata da prisão em flagrante.

[12] Idem.

[13] Idem.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] Segundo o Min. Edson Fachin, “a interpretação da jurisprudência da Corte permite a conclusão de que a audiência de apresentação constitui direito subjetivo do preso e, nessa medida, sua realização não se submete ao livre convencimento do Juiz, sob pena de cerceamento inconvencional. Prova disso é que, ultrapassando a recomendação exarada na ADI 5240/SP, a Corte, na ADPF 347/DF, tendo como condicionamento único o prazo de 90 (noventa) dias, determinou que Juízes e Tribunais ‘devem’ realizar o ato em apreço” (HC 135.575/RJ).


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