Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/58155
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Liberdade aos cracudos e aprisionamento do cidadão?

Uma Justiça de valores invertidos...

Liberdade aos cracudos e aprisionamento do cidadão? Uma Justiça de valores invertidos...

Publicado em . Elaborado em .

A Cracolândia é um problema de saúde e de segurança pública! A internação compulsória é criticada por muitos, mas o Estado pode determinar medidas coercitivas com o fito de preservação da vida.

Difundido pela imprensa a ação policial na Cracolândia da capital de São Paulo, local marcado pela inospitalidade desde os idos de 90, onde se concentram verdadeiros zumbis humanos para o consumo coletivo de drogas. Extremados entre o estágio da extrema euforia causado pela abrupta liberação de dopamina pelo organismo nos minutos após o consumo do crack e o profundo ostracismo até que uma nova dose de ingestão da droga faça novamente disparar o nível de dopamina. Em comunhão de ações Governo e Prefeitura de São Paulo, com o apoio das forças policias – Civil e Militar – implementaram a realização de uma tentativa de “higienização” do local.

É um problema de saúde pública ou de segurança pública? A Cracolândia é um problema de saúde e de segurança pública! A internação compulsória tão criticada por muitos, inclusive MP e DP que segundo as nobres Casas interferiria no direito de ir e vir dos cracudos (assim reconhecidos os consumidores de crack). MP com o apoio da DP e organizações de direitos humanos interpuseram recurso com o fim de paralisar as intervenções referidas, até então permitidas em juízo de 1º grau de jurisdição. Sim, de fato é o direito de ir a vir tão achincalhado por omissão do Estado em relação aos cidadãos que não apresentam como pauta de cidadania uso da violência como modus operandi e que cada vez mais excluído do espaço urbano tomado pelo medo, que continua tolhido por decisão em 2ª grau de jurisdição.

Nunca é demais lembrar que a lei 10216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, estabelece que a internação psiquiátrica poderá ser: voluntária, quando receber a anuência do usuário; involuntária, quando se dá sem o consentimento do usuário e sim a pedido de terceiro; compulsória, quando ocorrer determinação judicial e somente será determinada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Art. 5o O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário.

Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:

I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e

III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

Não se discute o direito da pessoa humana se manifestar, desde que revele capacidade e condições de discernimento suficientes. Não preenchida a condição de autogoverno e autodeterminação, como é o caso do dependente de drogas pesadas como é o crack, a representação passa para os familiares e, na ausência, para terceiros juridicamente legitimados, como a própria Justiça. O dependente de crack abdica de sua condição de cidadão por não mais cumprir os seus deveres de cidadão. Assim, é lícito ao Estado intervir e determinar medidas coercitivas com o fito de preservação da vida, na esteira da dignidade da pessoa humana, opção feita pela Constituição Federal, já que o detentor da cidadania não se encontra mentalmente apto para o exercício de seus direitos e necessita da aplicação de medidas protetivas específicas.

Lembramos, que tornar-se um drogado é menos uma sujeição e mais uma opção de vida, que em verdade, via de regra é uma opção de morte. Nesse sentido uma internação compulsória para os que se recusarem revelar-se-ia sim, o meio adequado de ação do Estado na tentativa de recuperar a degradação do homem tomado pelas drogas, para inseri-lo em programas sociais e ao saudável convívio social após processo completo de recuperação. É o Estado na forma da Constituição Federal tutelando vidas na forma do art. 5º, caput da CF.

Apesar destes espaços destinados ao consumo de drogas pesadas representarem “terras sem lei”, onde crimes são planejados e praticados à margem da sindicância do Estado, de fato, não defendemos o uso da violência extrema para o combate, mas da força que se denote suficiente para a manutenção da ordem e incolumidade pública com o encaminhamento dos perturbadores em uma caracterização individualizada para tratamento ou encarceramento.

A inversão de valores que a grande parcela dos órgãos de direitos humanos e seus seguidores procuram nos entubar é de uma irresponsabilidade demagógica com o interesse público primário e secundário que verdadeiramente causa sérios danos ao convívio no espaço público. Há um verdadeiro processo de vitimização do agente nocivo à sociedade que precisa ser temperado pela razoabilidade.

Com um exemplo quem sabe imaginamos nos faremos ainda mais claros. Como deveríamos tratar terroristas se este fosse um problema real do Brasil? São pessoas psicologicamente dentes que precisam de tratamento? Sim, achamos que disto não se duvida. Nossos amigos dos Direitos Humanos por certo lhes tratariam como vítimas sociais, necessitados dos mais diversos projetos inclusivos que os inserissem na sociedade, já que estariam à margem dela, quando o aspecto segurança da sociedade restaria renegado a um 2º, quiçá 3º plano. Eles matam? Sim, desta feita precisariam de acolhimento, tratamento para que restassem recuperados. Caso se negassem ao tratamento não caberiam medidas compulsórias. Um tanto patético, não?

A principal crítica a operação implementada pelo estado de São Paulo – governo e prefeitura em conjunto após meses de estudos de inteligência – foi trazendo o argumento de que o problema Cracolândia seria de saúde pública e não de segurança pública. Será que onde existe uma “terra de ninguém” repleta de traficantes e violentos usuários de droga, que fazem da região e adjacências um lugar absolutamente inóspito de violência, não existe problema de segurança pública?

A partir do momento que os freqüentadores destes “espaços sem lei” inadmitem qualquer tratamento, intervenção do Estado para enfrentamento de seus problemas de dependência química, o problema deixa de ter os caracteres de um caso de saúde pública e passa a ser em absoluta prioridade um problema de segurança pública sim! Em se inadmitindo intervenção para avaliação compulsória dos dependentes químicos e muito menos internação compulsória em caso de necessidade – já inferimos que a lei permite -, o Estado-Juiz diz à sociedade e ao estado-administração que inadmite qualquer solução efetiva e factível, e que a sociedade deve manter-se excluída dos espaços sem lei e sob a égide do terror.

Não é demais lembrar, que cada frequentador destes espaços abdicou de seu direito a dignidade humana, do uso de sua cidadania plena ao optar pelo uso de uma droga que mata, não mais se autodetermina, não mais se autogoverna. O Papel do Estado seria justamente o acolhimento destes para tratamento, ou percebendo tratar-se de um desviado da lei o encarceramento para posterior tratamento. É verdade que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei – art. 5º, II, CRFB, mas desde que se autodetermine e se autogoverne. Lembremos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XV - e livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

A partir de um tom que nos parece hipócrita e irresponsável, a Constituição é por vezes utilizada pelo intérprete de maneira desviada de uma de suas finalidades sistemáticas precípua, que é de tutela do interesse público primário e de manutenção ou restabelecimento da paz e harmonia social. Ao contrário, porém, coloca em sistemático estado de perigo o cidadão, a parcela da sociedade cumpridora dos seus deveres e que oferta seu contributo à paz social. O intento parece ser o de desviar a melhor aplicação constitucional para socialmente vitimizar os que escolheram o “lado negro da força” como modus vivendi os deixando ao abandono viver uma forma de vida anárquica paralela até as suas mortes. Drogar-se, promover o caos urbano, impedir o acesso do Estado e o direito de ir e vir do cidadão aos locais de “domínio paralelo”, praticar crimes e negar-se ao tratamento para recuperação da dependência química é sim, em regra, uma escolha, não uma imposição social. Em regra são menos vítimas e mais agentes do terror que necessitam da intervenção do Estado.

Concluímos, que as gestões estadual e municipal do estado de São Paulo estão sim no sentido constitucional da tutela dos interesses da sociedade de mãos dadas para promoverem por ação a restauração da ordem pública e da paz social naquela região e adjacências, ainda que necessitem de ajustes pontuais. A justiça, embriagada pela perversão de valores opacos, sombrios, parece preferir a omissão e abdica de sua responsabilidade de ponderar interesses com equidade, temperança e justiça, fazendo-se efetiva.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARMENTO, Leonardo. Liberdade aos cracudos e aprisionamento do cidadão? Uma Justiça de valores invertidos.... Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5080, 29 maio 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58155. Acesso em: 29 mar. 2024.