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O financiamento privado de campanha política e a dignidade cívica

O financiamento privado de campanha política e a dignidade cívica

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Se o dinheiro comprasse apenas iates, viagens e mansões, não haveria motivo para nos preocupar. No entanto, a partir do momento em que o dinheiro compra coisas como cidadania, liberdade de expressão, políticos, direitos civis e garantias fundamentais, bem como a própria democracia, então passamos a ter um grande problema.

“Os cidadãos votam uma vez, as empresas todos os dias.” (Diego Q. Souza)

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Resumo

Esse breve estudo visa trazer a lume aquelas coisas comuns a todos nós e sobre as quais a força de mercado não deveria se imiscuir. Coisas que não poderíamos abrir mão. Trata-se de coisas como direito ao voto, supremacia do interesse público sobre o privado, dignidade da pessoa humana, vida cívica e participação pública. Em síntese, trata-se de democracia. Queremos provocar o leitor, para que saia do senso comum dos debates da conhecida polarização partidária, da luta ideológica entre esquerda e direita, com intuito de enxergar-se como coautor da história, das transformações que se passam em nosso país a nível político, jurídico, econômico e social.

Nossa pretensão é a de gerar inquietamento e traçar um panorama ético sobre essas questões que dizem respeito a todos nós - indivíduos em sociedade. A partir do estudo sobre as revelações da operação Lava-Jato, mais especificadamente sobre a empresa Odebrecht e sua influência no jogo político e democrático, descortinaremos o rombo cívico - pouco falado atualmente - provocado pela empresa que conseguiu aparelhar quase que totalmente o poder estatal. Neste sentido partiremos das seguintes questões: Existem limites para o poder dos mercados em uma sociedade democrática? Se existem, quais seriam eles e quais ferramentas jurídicas, políticas e sociais seriam capazes de frear a onda dos mercados em nossa vida cívica?


A sociedade de mercado

Com a derrocada do Estado de Bem Estar Social e a consequente ascensão do neoliberalismo nos países ocidentais, vimos cada vez mais o Estado se apartar de seus compromissos públicos com saúde, educação, moradia, segurança e delegar aos indivíduos o cuidado privado com essas questões. Aquilo que parecia um sonho do liberalismo - liberdade individual, direitos subjetivos, liberdade para contratar e vender livremente sua mão de obra - tem-se tornado um pesadelo. Agora são os indivíduos que devem cuidar de sua própria segurança, pagar pela educação de seus filhos se quiserem que eles tenham um espaço no acirrado mercado de trabalho etc. A tendência crescente dos indivíduos que podem pagar para blindar seus carros, erguer os muros de suas casas e bancar as escolas caras para seus filhos revela a importância crescente que o dinheiro tem tomado em nossas vidas, e ao mesmo tempo, a tragédia na vida daqueles que não o possuem. Outra coisa, o espírito cívico, tem se perdido por conta do aumento do poder econômico em todas as esferas da vida.

Se o dinheiro comprasse apenas iates, viagens caras, carros de luxo e mansões em regiões nobres não haveria tanto motivo para nos preocupar. No entanto, a partir do momento em que o dinheiro passa a comprar coisas como cidadania, liberdade de expressão, políticos, direitos civis e garantias fundamentais, bem como a própria democracia, então passamos a ter um grande problema.

Cada vez mais somos chamados a resolver individualmente os problemas socialmente/mundialmente criados. Com isso, a desigualdade entre os que podem subsistir dignamente nessa sociedade, e os que nada possuem a não ser a esperança de que o Estado lhes estenda os braços sempre que dele precisem se torna cada vez mais premente. Vivemos numa época em que quase tudo pode ser comprado e vendido. Nas três ultimas décadas, os mercados – e os valores de mercado – passaram a governar nossa vida como nunca. Não chegamos a essa situação por escolha deliberada. É quase como se a coisa tivesse se abatido sobre nós.

Quando a guerra fria acabou, os mercados e o pensamento pautado pelomercado passaram a desfrutar de um prestígio sem igual, e muitocompreensivelmente. Nenhum outro mecanismo de organização da produção e distribuição de bens tinha se revelado tão bem-sucedido na geração e afluência e prosperidade. Mas, enquanto um número cada vez maior de países em todo o mundo adotava mecanismos de mercado na gestão da economia, algo mais também acontecia. Os valores de mercado passavam a desempenhar um papel cada vez maior na vida social e política. A política tornou-se um domínio imperial da economia. Hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo.


A Odebrecht e a Lava-Jato

A Odebrecht, dentre outras empresas, como sabemos, estão envolvidas num dos maiores escândalos de corrupção já vistos no Brasil. Estima-se que o dinheiro desviado só no período entre 2006 e 2014 chegou a R$ 10,6 bilhões. Existia um “setor de propina” na Odebrecht, que cuidava da origem, destino e finalidade do dinheiro advindo da corrupção. Era um departamento organizado para distribuir as propinas a políticos em troca de favores. Tais favores iam desde ganhos nas licitações, até favorecimento em obras que seriam superfaturadas e leis feitas sob medida para pagar menos impostos, dentre outros. Quando questionado, Emílio Alves Odebrecht, engenheiro e Presidente do Conselho de Administração da Organização Odebrecht, disse categoricamente: “Isso acontece há mais de 30 anos”!

A referida empresa desviava dinheiro de obras públicas para distribuir a políticos de diversas formas (doação oficial, caixa dois, pagamentos no exterior..) no intuito de beneficiar-se com as decisões de governo. O sistema de governo trabalhava, neste sentido, não em prol do povo, mas para satisfazer interesses da Odebrecht.

Eram três os pontos em comum no caminho para desviar o dinheiro público:

1.      Parte do dinheiro de contratos com o poder público era desviado para o Setor de Operações Estruturadas, mais conhecido como "departamento de propina";

2.      O dinheiro era distribuído a políticos de acordo com os pedidos deles e os interesses da empresa;

3.      A empreiteira era beneficiada pelo poder público (nem sempre o ganho era "concreto", podia ser uma expectativa de benefício futuro).

A Odebrecht doava a políticos dos mais variados partidos. Essa disposição para "ajudar" a todos foi admitida pelo próprio Emilio Odebrecht, pai de Marcelo Odebrecht, em depoimento em março ao juiz Sérgio Moro, responsável por julgar casos da Lava Jato que não envolve pessoas com foro privilegiado. 

Segundo os depoimentos e delações premiadas, estima-se que a Odebrecht tenha financiado campanhas das mais diversas. Seja para senadores, deputados federais, governadores e até para Presidente da República. Siglas como PMDB, PT, PSDB foram citadas inúmeras vezes por delatores da empresa. Não há que se falar, portanto, em opção ideológica.

O esquema bilionário envolvia outras empresas, que formavam cartéis entre si para recebimento de vantagem indevida. A Odebrecht era quem comandava esses cartéis. A perspicácia administrativa era assustadora: Notas superfaturadas, empresas de consultoria fantasmas, comissões inexistentes, dossiês eleitorais, tudo muito bem organizado e articulado.


O problema da cidadania

Como vimos acima, à medida que há uma ingerência do poder econômico no controle político da administração pública, a democracia tende a se desmoronar.

A soberania popular, decorrente da democracia, deixa de ser exercida por aqueles legitimados constitucionalmente e passa a ser comandada por grupos de poder econômico e político. Eis o problema causado pela Odebrecht. Além de provocar um desfalque bilionário ao erário público, houve um desfalque muito maior e que indenização nenhuma é capaz de pagar – o desfalque cívico.

Cidadania significa atribuir direitos e deveres, meios e recursos capazes de dar às pessoas possibilidade de exercer ativamente da vida e do governo de seu povo. Sem cidadania não temos possibilidade de nos autodeterminar como cidadãos, passamos a ser indivíduos invisíveis em uma pólis sobre a qual não nos enxergamos como parte e nem muito menos deliberamos sobre seus rumos. Isso porque nos foi retirado de nossas mãos as ferramentas constitucionais de representação. Não nos enxergamos como donos da cidade ou participantes da construção da nação. A cidade passa a nos ser estranha, perigosa e ofensiva. Sem cidadania, deixamos de ser transeuntes livres e autônomos nas cidades e passamos a ter medo do outro, visto que não o vemos mais como indivíduo co-participante do espírito comunitário que une a todos.

A tendência é a do apartamento da participação política ao mesmo tempo em que se exacerba o individualismo. A polarização extremada em que o País vive nada mais é do que o reflexo da perda do espírito comunitário. Muito disso foi gerado pelo descrédito com a política depois das revelações da corrupção e do caráter hediondo da maioria dos partidos envolvidos nos esquemas de propina. Mas não se trata apenas da decepção generalizada quanto à imoralidade da política no Brasil. Pode-se notar que de alguns anos pra cá, a participação popular têm diminuído, ao mesmo tempo em que a influência do poder econômico passa a fazer frente cada vez maior nas decisões políticas, que dizem respeito a todos nós, definindo os rumos da nação.

A atuação civil não se reduz a mero sentimento patriotista, a noção de cidade e de país que queremos não pode ser desvencilhada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, sistema de governo, tecnologias e do próprio ser que desejamos. O direito cívico e político são muito maiores do que o simples acesso aos recursos urbanos ou de políticas públicas. É o direito de mudar a nós mesmos pela mudança do Estado. É um direito comum e não simplesmente individual, é ativo e não passivo. Essa transformação depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo, de moldar o processo político e conformá-lo ao nosso bem viver.

O desfalque cívico é revelado em pelo menos três aspectos: o poder de voto, a participação no processo político e a democracia.


O poder de voto

O voto não é apenas um mero direito, e sim um poder. Tal poder é dado a cada cidadão para que vote de maneira responsável, tendo em vista que o candidato representará uma coletividade.

Conforme disposto no artigo 14 da nossa Constituição Federal de 1988: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei”, vemos que o voto é a própria materialização da soberania popular. Não obstante, uma vez que uma empresa financia a campanha de inúmeros “candidatos em potencial” Brasil afora, acaba por corromper a própria autenticidade do voto. Ele deixa de ter “valor igual para todos” e passa a ter valor maior para aqueles que fazem disso um negócio.

Permitir que os mercados adentrem a esfera pública, elegendo candidatos com a força do dinheiro, é com outras palavras, chancelar um sistema de governo que irá cuidar dos interesses dos grandes grupos econômicos, muitas vezes, em detrimento do povo. É a transmutação da democracia para uma cleptocracia ou plutocracia. É o desmantelamento da supremacia do interesse público em favor do interesse privado. O próprio Estado perde sua legitimidade.

Cleptocracia, é um termo de origem grega, que significa, literalmente, “governo de ladrões”. O objetivo é o do espólio de capital financeiro de um país e do seu bem-comum. A cleptocracia ocorre quando uma nação deixa de ser governada por um Estado de Direito imparcial e passa a ser regida pelo poder discricionário de pessoas que tomaram o poder político nos diversos níveis e que conseguem transformar esse poder político em valor econômico, por diversos modos.

O voto é uma função pública, portanto, um exercício de soberania dado a cada um dentro de um Estado Democrático de Direito, a fim de que decidam os rumos da própria nação em que habitam, trabalham, exercem cidadania, se locomovem e existem.

Este poder perde sua eficácia e razão de ser, pois os candidatos ao se tornarem parlamentares, passam a serem marionetes nas mãos dessas empresas. Passamos a ter então, de um lado, cidadãos sem ter a quem recorrer, e de outro, políticos prestando contas às empresas que financiaram suas campanhas. Elas quem ditarão as regras do jogo político a partir de então, e isso é um ultraje à nossa democracia.

A Odebrecht não apenas revelou o tamanho da fraude ao erário público, mas também a fragilidade de nosso espírito cívico, nosso direito de participação na esfera pública. O financiamento privado nas campanhas eleitorais e o posterior apoderamento do espaço público avilta a dignidade que existe na vida pública e participativa. O direito de votar e ser representado em suas demandas por este ou aquele candidato nos é usurpado por empresas que querem tão somente locupletar-se a expensas do Estado.

Quando a cidadania, o direito de voto, de representação, a participação cívica pode ser comprada e vendida não há mais Estado Democrático de Direito.

Por isso é que as últimas décadas se têm revelado particularmente difíceis para as famílias pobres e de classe média. Não há sistema representativo autêntico. A Odebrecht é um caso sintomático daquilo que está errado em nosso sistema representativo. O livre-mercado não deveria solapar os direitos fundamentais, políticos e a própria dignidade da pessoa humana, mudando as regras do jogo democrático. Pelo contrário, o mercado deveria cuidar daquilo que lhe diz respeito – transacionar mercadorias. A beleza da democracia é justamente a possibilidade do povo (entendido como reunião de cidadãos em um território) deliberar sobre a forma de Estado que desejam e mais coadunam com sua natureza humana.

Michael Sandel, em seu livro “O que o dinheiro não compra”, nos alerta para uma mutação dos mercados. Segundo o autor: “Estamos saindo de uma economia de mercado, onde bens, serviços e produtos são transacionados para satisfazer as necessidades das pessoas, para uma sociedade de mercado onde tudo pode ser colocado à venda”. Financiamento privado de campanha política deveria ser coibido justamente por ferir o núcleo central da democracia, que é o direito à participação de todos de forma isonômica.  


Dignidade cívica

No plano dos direitos políticos, a dignidade se expressa como autonomia pública, identificando o direito de cada um participar do processo democrático. Entendida a democracia como uma parceria de todos em um projeto de autogoverno, cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de influenciar o processo de tomada de decisões, não apenas do ponto de vista eleitoral, mas também através do debate público e da organização social.

Assim, em algumas circunstâncias é legítima a restrição à autonomia privada para proteção dos direitos civis constitucionalmente garantidos. Essa imposição de determinados valores fundamentais é o que corrobora o Estado Democrático de Direito.

Há possibilidade teórica de se legitimar restrições à liberdade com fundamento na proteção à dignidade cívica, definida com base em valores socialmente compartilhados, como é o caso de se mitigar o direito das pessoas jurídicas de financiar campanhas políticas ou de fazer doações a partidos políticos, bem como a proibição ou maior fiscalização frente a formação de “bancadas" no Congresso Nacional representantes de grupos econômicos de grande influência.

Deve haver restrição à autonomia privada quando a intenção for proteger direito de terceiros, ou imposição de determinados valores cívicos. Vale ressaltar que não se quer proibir o desenvolvimento econômico do País, realizando uma ruptura incomunicável entre público e privado, quer-se simplesmente, traçar diretrizes para que o processo político ocorra da forma mais transparente e democrática possível.

Existem pelo menos três motivos contundentes para serem levados em conta quanto à escolha pela imposição coercitiva dos valores sociais, políticos e civis em nome dessa dimensão comunitária da dignidade: a) a existência de um e mais direitos fundamentais em questão; b) a existência de consenso social forte em relação ao tema; e c) a existência de risco efetivo para a democracia. A dignidade da vida cívica jamais deverá ser suprimida, seja por ação própria ou de terceiros. A todos deve ser dado o direito de participar da vida pública em igualdade de condições.

O que é mais saudável para uma democracia? Que todos participem da vida pública com paridade de armas ou que uns tenham mecanismos mais potentes capazes de manipular e influenciar o jogo democrático?

Não se quer, com esse entendimento, legitimar a ditadura da maioria ou mesmo os perigos do moralismo, e nem muito menos, o enfraquecimento de direitos fundamentais em seu embate com as “razões do Estado”. O que se deseja é justamente a efetivação da participação democrática dando sentido e abrangência ao sistema representativo. Em última análise quer-se concretizar o pluralismo político.


A dignidade cívica e as decisões jurídicas dos casos que envolvam o mercado

O STF está orientado no sentido de que ao se perceber - colisões entre normas constitucionais e direitos fundamentais – como, por exemplo, entre direito de voto (direito político dado tanto a pessoas físicas quanto jurídicas) e dignidade da pessoa humana (em sentido lato, consubstanciado na dignidade cívica), deve-se fazer predileção pela dignidade.

Deste modo, o artigo 14 da Constituição Federal estabelece que: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”.

Nesse sentido, prescreve o artigo 1º da Constituição Federal: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Ambos os dispositivos são normas constitucionais, não há hierarquia entre eles, entretanto quando suscitamos o princípio da dignidade da pessoa humana, consubstanciada na dignidade cívica que todo cidadão em sociedade possui, devemos fazer um juízo de ponderação a fim de eliminar esse conflito e buscar a saída mais eficiente, aquela que expressa melhor o “espírito da constituição”.

De um lado, conforme versado pelo artigo 14 da CF/88, temos que “o voto tem valor igual para todos”, isso incluiria pessoas físicas e jurídicas na participação democrática do sufrágio universal. De outro lado, segundo o artigo 1º o legislador coloca que “todo poder emana do povo”. Povo neste contexto deve ser entendido como conjunto de pessoas que vivem em comunidade em um determinado território. São os indivíduos os detentores de direitos políticos e não as pessoas jurídicas, abstratas por natureza.

Só podemos resolver esse imbróglio jurídico e institucional adotando um princípio norteador suficientemente eficaz para guiar a interpretação da norma. E este princípio é o da dignidade da pessoa humana, mais precisamente, a dignidade cívica.

A dignidade cívica e seu conteúdo devem ser usados como fio condutor da decisão, especialmente em casos verdadeiramente difíceis em que a ingerência do poder econômico ameaça a efetivação dos direitos políticos.

O Ministro Barroso do STF percebe como um dos conteúdos mínimos da dignidade, o valor comunitário. Para Barroso é importante dar ao intérprete da norma, quando surpreendido em disputas judiciais envolvendo colisões de direitos ou desacordos morais, a possibilidade de solucioná-las, valendo-se desse supra princípio, inclusive para verificar se seus argumentos são laicos, politicamente neutros e universalizáveis. Essa é a real imparcialidade que todos esperam de um juiz. Não se quer retirar a subjetividade do intérprete, mas apenas conduzi-lo ao caminho democraticamente mais justo de se decidir.

A dignidade da pessoa humana é um valor moral que, absorvido pela política, tornou-se um valor fundamental dos Estados democráticos em geral. A eficácia interpretativa significa que as normas jurídicas devem ter o seu sentido e alcance determinados da maneira que melhor realize a dignidade humana, que servirá, ademais, como critério de ponderação na hipótese de colisão de normas. Por fim, a eficácia negativa paralisa, em caráter geral ou particular, a incidência de regra jurídica que seja incompatível – ou produza, no caso concreto, resultado incompatível – com a dignidade humana.

A autonomia tem uma dimensão privada, subjacente aos direitos e liberdades individuais, e uma dimensão pública, sobre a qual se apóiam os direitos políticos, isto é, o direito de participar do processo eleitoral e do debate público. Condição do exercício adequado da autonomia pública e privada é o mínimo existencial, isto é, a satisfação das necessidades vitais básicas. (Barroso)


Mecanismos jurídicos para defesa dos direitos políticos

Cada vez mais a política tem-se tornado um mercado privado de grandes empresários. O financiamento privado nas campanhas eleitorais é um ultraje a nossa democracia, pois entendemos que os deveres cívicos não devem ser encarados como propriedade privada, mas sim como responsabilidade pública.

O caráter mercadológico da vida pública tem afastado grupos sociais inteiros da participação política efetiva. O Judiciário deve ser o poder responsável por colocar limites morais no mercado, não permitindo que ele invada searas e valores sociais que não é chamado. Mas como fazê-lo? Quais mecanismos jurídicos capazes de frear essa incursão dos mercados no domínio público?

Um deles certamente é o da proibição dos investimentos privados em campanhas políticas. O STF já deu um passo importante nesse sentido ao votar a ADIN 4650

Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Ministro Relator, julgou procedente em parte o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizavam as contribuições de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais, vencidos, em menor extensão, os Ministros Teori Zavascki, Celso de Mello e Gilmar Mendes, que davam interpretação conforme, nos termos do voto ora reajustado do Ministro Teori Zavascki. O Tribunal rejeitou a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade por não ter alcançado o número de votos exigido pelo art. 27 da Lei 9.868/99, e, consequentemente, a decisão aplica-se às eleições de 2016 e seguintes, a partir da Sessão de Julgamento, independentemente da publicação do acórdão. Com relação às pessoas físicas, as contribuições ficam reguladas pela lei em vigor. Ausentes, justificadamente, o Ministro Dias Toffoli, participando, na qualidade de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, do Encontro do Conselho Ministerial dos Estados Membros e Sessão Comemorativa do 20º Aniversário do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA Internacional), na Suécia, e o Ministro Roberto Barroso, participando do Global Constitutionalism Seminar na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 17.09.2015. (http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4650&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M)

Segundo o voto vencedor, do ministro Luiz Fux, “a doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, antes de refletir eventuais preferências políticas, denota um agir estratégico destes grandes doadores, no afã de estreitar suas relações com o poder público, em pactos, muitas vezes, desprovidos de espírito republicano”.

O relator aponta que, no modelo então vigente, cerca de 20 mil pessoas jurídicas — menos de 0,5% do total de empresas brasileiras —financiavam campanhas políticas. Fux diz ainda que “uma mesma empresa contribui para a campanha dos principais candidatos em disputa e para mais de um partido político, razão pela qual a doação por pessoas jurídicas não pode ser concebida, ao menos em termos gerais, como um corolário da liberdade de expressão”.

A vida é corrompida quando transformada em mercadoria. Desse modo, para decidir em que circunstâncias o mercado faz sentido e quais aquelas em que deveria ser mantido à distância, temos de decidir que valor atribuir aos bens em questão – cidadania, direitos políticos, deveres cívicos e assim por diante. São questões de ordem moral, política e especialmente jurídica, e não apenas econômicas. Para resolvê-las, precisamos debater sobre o novo papel do judiciário frente à essa ascensão dos mercados na vida social.

A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu Título II, os Direitos e Garantias Fundamentais, subdivididos em cinco capítulos, vamos elencar três deles:

Direitos individuais e coletivos – ligados ao conceito de pessoa humana e à sua personalidade, tais como a vida, à igualdade, à dignidade, à segurança, à honra, à liberdade e à propriedade.

Direitos sociais – O Estado Social de Direito deve garantir as liberdades positivas aos indivíduos. Esses direitos são referentes à educação, saúde, trabalho, previdência social, lazer, segurança, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Sua finalidade é a melhoria das condições de vida dos menos favorecidos, concretizando portanto a igualdade social.

Direitos políticos - permitem ao indivíduo, através de direitos públicos subjetivos exercer sua cidadania, participando de forma ativa dos negócios do Estado.

Pode-se notar que essas três esferas de direitos estão sendo abaladas pela força impetuosa dos mercados de penetrar em áreas que até então estavam de fora. É fácil perceber que as relações de mercado sobrepujam as normas alheias a ele. O financiamento privado nas campanhas ferem tanto os direitos individuais, sociais quanto os políticos como um todo.

As liberdades individuais entram em rota de colisão com os direitos individuais e sociais, toda vez que os mercados passam a invadir a vida social modificando os próprios valores dos bens com os quais transaciona. A liberdade do indivíduo frente à sociedade e o Estado não deve ser total e absoluta, uma vez que o livre-mercado, como vimos, corrompe valores morais tão caros ao convívio em sociedade.


A participação no processo político

Todos estão insatisfeitos com os rumos que a política tem tomado no Brasil, mas quando nos perguntam nas ruas quais os principais culpados dos problemas, a resposta é quase unânime: “o governo e os políticos”. E se perguntamos qual a solução, ouvimos depressa “eles deveriam fazer alguma coisa”. É compreensível que uma sociedade que não é ativamente participativa atribua a um Juiz a solução para todo imbróglio institucional que está estabelecido. Decisões sobre os rumos da política não podem ser subtraídas do cidadão sem violar seus direitos civis e políticos.

Obviamente que excluir o financiamento por pessoas jurídicas “não ensejará consequências sistêmicas sobre a arrecadação de recursos, seja porque se mantém o acesso aos recursos do fundo partidário e à propaganda eleitoral gratuita, seja porque persistiria o financiamento por pessoas naturais”, como afirmou o ministro Fux em seu voto.

Por esse motivo, para coibir que a invasão dos mercados na vida pública se perpetue, o caminho mais acertado é o da participação política. A culpa por este estado de coisas não está só na classe política, mas em nós. Quem possui a responsabilidade final em um país democrático é o cidadão e não o político. Tal responsabilidade vai além de apertar um botão na cabine de votação a cada interregno de tempo e permitir que os políticos sigam ao seu próprio arbítrio como se fossem máquinas pré-programadas.

O pacto social democrático é justamente o de participar ativamente das decisões que me dizem respeito e a toda a coletividade da qual participo. De nada adianta pedirmos por mais transparência, aumento de pena para corruptos, financiamento público para campanhas, mecanismos jurídicos de controle se não houver participação ativa da comunidade na busca por seus direitos civis. É hora de mudarmos o discurso e falarmos também sobre as grandes questões que verdadeiramente importam: justiça, moral, o papel do governo, democracia.  

Em sua origem histórica, a ideia de dignidade, dignitas, esteve associada à de status, posição social ou a determinadas funções públicas. Dignidade, portanto, tinha uma conotação aristocrática ou de poder, identificando a condição superior de certas pessoas ou dos ocupantes de determinados cargos. No século XXI a dignidade é valor de máxima grandeza, significando respeito, direitos e garantias reconhecidos a todos. Destarte, de nada adianta ter o direito sem utilizá-lo, sem lutar por ele.

Caberá a nós, em última instância, traçar limites morais ao mercado. O filósofo Kant, um dos propugnadores do conceito de dignidade, dizia que coisas são permutadas no mercado e o ser humano deve ser tratado como um fim em si mesmo. Para Kant, coisas tem preço, pessoas não, pessoas tem dignidade. As palavras de Kant vão de encontro aos interesses espúrios dos mercados em invadir searas da vida reservadas aos bens inalienáveis. Neste século XXI temos corrido o risco da própria democracia se transformar em um mecanismo de mercado, e o sistema político e representativo se decompor em um balcão de compra e venda. Todos nós sabemos que a democracia, a dignidade cívica e o espírito comunitário, assim como várias outras coisas na vida não têm preço. Presenciando atônitos, os desdobramentos da Operação Lava Jato, podemos constatar, diferente do que se imaginava, que o mercado não tem resposta para tudo. O debate que está faltando é: onde o mercado serve ao bem comum e onde ele não serve? O fato é que os mercados chegaram à vida pública, solapando nossos direitos políticos e o espírito comunitário. Está na hora de perguntarmos se queremos viver assim.


Referências:

http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/viewFile/2195/pdf_233

http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Diego Quixabeira e. O financiamento privado de campanha política e a dignidade cívica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5365, 10 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58189. Acesso em: 28 mar. 2024.