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Acordo de leniência na Lei Anticorrupção e a intervenção do Ministério Público

Acordo de leniência na Lei Anticorrupção e a intervenção do Ministério Público

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Examina-se o acordo de leniência, previsto na Lei Anticorrupção, e a intervenção do Ministério Público já nesta fase administrativa, buscando-se perfil pragmático à eficácia da colaboração premial, nas esferas penal e da improbidade administrativa, sob a ótica da teoria da agência.

1. Introdução

O presente artigo analisa a operacionalidade na celebração do acordo de leniência previsto na Lei Anticorrupção brasileira – como instrumento de colaboração premial posto ao alcance das pessoas jurídicas corruptoras, para reduzir a extensão das sanções previstas no regime jurídico anticorrupção – com a interface de atuação do Ministério Público.

A Lei nº 12.846/13, editada pelo parlamento brasileiro no âmago das manifestações cidadãs de 20132, veio a integrar o chamado “microssistema de enfrentamento à corrupção” (DINO, 2016), inovando o ordenamento jurídico ao integrar a esfera de responsabilização da pessoa jurídica corruptora – até então inexistente – em complemento à eficácia legal específica da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), dos crimes contra a Administração Pública e da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93).

Alinhando o sistema normativo brasileiro às convenções e tratados internacionais de combate à corrupção (Convenção Interamericana contra à Corrução – OEA, Convenção sobre a Corrução de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais – OCDE e Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção), a lei brasileira anticorrupção possui similitude com a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) do direito norte-americano (EUA), com a Bribery Act do direito inglês (Reino Unido) e com o Decreto Legislativo nº 231/2001 Della Responsabilitá Amministrativa delle persone giuridiche, delle societá e delle associazioni anche prive di personalitá giuridica (Itália).

A Lei Anticorrupção prevê, portanto, um regime de responsabilização da pessoa jurídica autônoma, ao lado da responsabilização individual dos agentes corruptos e corruptores (perseguidos processualmente segundo a legislação penal e de improbidade administrativa), inovando a normatividade com a introdução de sanções civis e administrativas calcadas na responsabilidade objetiva da empresa.

As sanções previstas na lei anticorrupção, em face das práticas corruptoras das pessoas jurídicas (art. 5º da Lei nº 12.846/13) – condutas previstas nos incisos I a V, que espelham praticamente as mesmas espécies típicas previstas nos Crimes contra a Administração Pública, nos Delitos de Lavagem de Dinheiro, Crimes Licitatórios e Fraudes Contratuais, Obstrução à Justiça e outros – residem no perdimento de bens, direitos e valores obtidos da infração, suspensão ou interdição parcial das atividades da pessoa jurídica, proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, multas, publicação da decisão sancionatória a expensas da empresa, podendo culminar, inclusive, no extremo da dissolução compulsória da pessoa jurídica.

Atento aos graves e nefastos efeitos que possam decorrer para a organização empresarial que se depara com contingência dessa ordem praticada por seus agentes, de forma isolada ou desconectada dos propósitos sócio-econômicos diretivos e de governança da corporação, o legislador criou o instituto do acordo de leniência, previsto no art. 16 da Lei nº 12.846/13.

O acordo de leniência visa a evitar que a pessoa jurídica seja severamente sancionada, de modo a isentá-la das sanções previstas no inciso II do art. 6º (publicação extraordinária da decisão condenatória) e no inciso IV do art. 19 (proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo de 1 a 5 anos), possibilitando também a redução do valor da multa aplicável em até 2/3 (dois terços).

Por se tratar de instituto de direito premial, a concessão dos benefícios legais convencionados no acordo de leniência pressupõe que a pessoa jurídica processada colabore efetivamente com as investigações e com o processo administrativo, de modo que desta colaboração resultem a identificação dos demais atores envolvidos na infração e a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.

Dada a independência e autonomia das esferas legais de responsabilização dos atos corruptores (administrativa, cível e penal) e, principalmente, das chamadas “condições de eficácia”, não se torna difícil divisar que o resultado do acordo de leniência poderá implicar sérias conseqüências para a viabilidade persecutória criminal, principalmente. E o produto resultante do acordo de leniência (elementos de prova carreados pela pessoa jurídica, que se voltem a propiciar a identificação dos demais envolvidos na infração e que comprovem o ilícito sob apuração) haverá de influir nas demais esferas processuais de responsabilização.

Além disso, a pessoa jurídica corruptora haverá de exigir segurança jurídica para seus dirigentes, agentes e demais gestores, sob pena de não pretender correr o risco de, celebrado o acordo de leniência, ver-se surpreendida com atos autônomos de persecução noutras searas de responsabilidade não vinculadas ao ato bilateral, notadamente nos processos penal e de improbidade administrativa.

Desse panorama é que surge o problema cuja solução se pretende apresentar no presente artigo.

A Lei Anticorrupção, em seu art. 16, refere que a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos corruptivos. A “autoridade máxima” a que alude o art. 16 faz crer que se trata da mesma “autoridade máxima” elencada no art. 8º, responsável por instaurar e julgar o processo administrativo para apuração da responsabilidade da pessoa jurídica corruptora, que causou lesão à Administração Pública, sendo, portanto, a autoridade administrativa que, organicamente, estiver designada pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, no âmbito de suas esferas exclusivas de competência, tanto no âmbito federativo da União como dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

Como já referido, na esfera administrativa, o acordo de leniência estará estrito a eximir (isentar) a pessoa jurídica das sanções correspondentes à publicação extraordinária da decisão condenatória, proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, e redução do valor da multa.

A literalidade da regra legal omite a possibilidade de intervenção do Parquet nos acordos de leniência firmados pela Administração Pública. Ademais disso, a regra prevista no art. 15 da lei anticorrupção3, afeta à necessidade de persecução penal dos fatos apurados no processo administrativo sancionatório, demanda a necessidade de se descortinar solução para a falta de regra explícita de intervenção do Parquet nesse escopo de atuação.

Cabe, portanto, indagar se, a despeito da ausência de previsão legal expressa, é possível a celebração de acordo de leniência pelo poder público com a pessoa jurídica corruptora sem a participação do Ministério Público? Noutras palavras, seria conveniente alijar o Ministério Público da celebração dos acordos de leniência quando encetados pela esfera administrativa dos demais poderes estatais?

Procuraremos sustentar que a falta de interveniência do Parquet nos acordos de leniência entabulados pela Administração Pública constitui fator de desestímulo à medida premial, à luz da teoria da agência, considerando que o Ministério Público está menos infenso às contingências políticas (se comparado aos demais órgãos vinculados ao poder executivo, principalmente), a par de a titularidade privativa da ação penal pública e o protagonismo nas ações de improbidade administrativa serem fatores que estimulam a necessidade de participação do Ministério Público nos acordos de leniência, como forma de alcançar a desejada segurança jurídica por parte das pessoas jurídicas e a efetividade dos resultados no combate à corrupção.


2. Teoria da agência

Uma relação de agência é aquela que se estabelece, segundo a ótica da economia e das organizações societárias, entre um principal (titular do interesse ou direito) e um agente (delegatório escolhido pelo principal para maximizar a concretização do interesse ou direito do principal).

Segundo Posner (2000), o principal se beneficia quando o agente executa uma tarefa de interesse do principal com diligência, cuidado e esforço, de modo a maximizar os resultados esperados pelo titular do interesse velado.

Usemos um exemplo citado por Posner em seu artigo intitulado Agency Models in Law and Economics4.

Suponhamos que alguém pretenda vender sua propriedade imobiliária (casa), mas não tem conhecimento do mercado nem experiência nas formalidades e negociações típicas da seara imobiliária. Especialmente, essa pessoa (principal) não conhece os contatos certos a quem ofertar a casa. Por isso, o principal contrata um agente imobiliário, dele esperando que atuem com cuidado e, ao mesmo tempo, despendendo esforço possível e necessário para mostrar a casa para os compradores potenciais.

O principal espera que o agente estimule os potenciais compradores a fazerem boas propostas, em razão da habilidade de o agente em fazer ver aos interessados que a casa possui vários atrativos e poucos defeitos, capazes de a tornar cobiçada no mercado imobiliário e, em razão disso, maximizar o valor final da transação – objetivo relevante do principal.

Na dinâmica dessa relação poderá ocorrer uma série de variantes e dissintonias, todas aptas a desencadear o que a doutrina chama de “conflito de agência”. Por exemplo, o agente pode não ter interesse em despender seus melhores esforços quanto o principal espera que ele o faça. O proprietário da casa (principal) gostaria que o agente trabalhasse na prospecção de interessados na compra durante o dia todo, manhã e tarde, mas o agente entende que o melhor horário para abordar o público-alvo é no horário noturno, quando as pessoas estão mais cansadas e, portanto, com suas defesas mais vulneráveis.

Mas o agente pode não querer trabalhar à noite, dedicando esse tempo aos seus filhos. Ou ele pode ser preguiçoso ou não querer se dedicar à venda da sua casa, por entender que outras são mais atrativas para venda. Desse modo, o principal teria dificuldade em conseguir um agente que se dedique com afinco para a venda da sua casa e, além disso, quando conseguisse um agente, teria dificuldade em monitorar o seu esforço para vender a casa.

Mas, como monitorar esse agente? Poder-se-ia pensar, por exemplo, em instalar um gravador ambiental para detectar as vezes em que o agente entra na casa para a apresentar aos interessados. Nessa investida, suponhamos que o principal constate que o agente, no dia anterior, mostrou a casa a apenas uma pessoa interessada. Confrontado com a informação, o agente poderia dizer que a maioria dos clientes a quem ele anunciou a propriedade estava preferindo, naquele momento, visualizar casas em valores menores. Como saber se o agente está mentindo ou falando a verdade?

Outra solução possível é esperar por algum tempo mais para que a casa seja vendida e dispensar o agente, em caso de não se obter êxito na venda imobiliária. Novamente, supondo que o principal aguarde um mês e a casa não é vendida. Indagado, o agente responde que o mercado imobiliário não está “aquecido” (propenso a vendas, retraído), mas sabe que algumas pessoas interessadas poderiam pagar um preço mais baixo pelo imóvel do principal; entretanto, o agente está confiante que, por mais um tempo de dedicação, encontrará um comprador que aceite pagar um valor mais elevado, o que viria a satisfazer melhor as expectativas do principal.

Percebe-se, desse modo, que o grande dilema na relação encetada entre o principal e o agente reside na dificuldade que o principal tem de avaliar o agente, justamente porque o principal não é um especialista no mercado habitacional; e, ainda que o fosse, possivelmente, não teria tempo para acompanhar o trabalho daquele. Mais: ainda que fosse especialista e tivesse tempo, não haveria sentido em contratar o agente, pois o proprietário, diretamente, poderia se encarregar de buscar o melhor negócio.

O problema, assim, no conflito de agência é a dificuldade de o principal observar diretamente os esforços do agente. Por conta disso, o principal não consegue inferir a partir do resultado do trabalho do agente (venda ou não-venda da casa dentro de um certo período de tempo) se pode continuar nele confiando, pois não conhece a influência da sorte e de outros fatores estranhos na venda da sua casa.

Esse é um exemplo simplificado para explicar no que consiste a teoria da agência, bastante aplicada nas relações de índole privada, as quais se resolvem, via de regra, na celebração de contratos de risco, cujas cláusulas abarcam estímulos e compensações variáveis negociadas para incentivar o agente a despender seus melhores e mais efetivos esforços, buscando uma solução eficiente ao negócio, assim entendida como aquela obtida em menor tempo e com o mais significativo resultado econômico possível.

A teoria da agência – na órbita das relações jurídicas de direito privado – aplica-se à relação entre acionistas e diretores de uma corporação, na qual os acionistas representam o principal, que contratam diretores para atuarem como agentes, na expectativa de que estes empreendam e maximizem cuidados e esforços na consecução dos objetivos societários (lucro), de modo que o principal se beneficie diretamente dos resultados advindos da atuação do agente.

No modelo de relação de agência, em sua dinâmica, poderá ocorrer o chamado “risco moral” (POSNER, 2000), compreendida como a situação em que o agente pode prometer dispensar determinada carga de esforço, mas essa promessa não é executável. A menos que o principal tenha meios de controlar o agente e observar seus níveis de esforço, o principal não terá motivos para não acreditar na promessa do agente – a qual, repita-se, é inexeqüível.

Em qualquer relação de agência, por conseguinte, o problema de agência decorre da chamada “assimetria de informação”, cuja solução passa pelo conceito de “custos de agência”, solvidos, em regra, pela contratualização antes referida, que engendre um sistema de compensações ao agente. A solução também pode advir do monitoramento da atividade do agente, com o emprego de sistemas e procedimentos de controle.

Transpondo-se o conceito e as características da teoria da agência para o setor público. O Estado e a sociedade são os atores dessa relação. A sociedade, credora de direitos e garantias fundamentais, situa-se no pólo do 'principal'. O Estado, de seu turno, será considerado o 'agente', no seu moderno papel prestacional dos direitos de primeira, segunda e terceira dimensões (vida, liberdade, propriedade, saúde, educação, segurança pública, meio-ambiente e saúde pública sadios, probidade administrativa, etc) titulados pelos indivíduos em particular e pela sociedade em geral.

O Estado executa, densifica, os direitos fundamentais diretamente por seus 'agentes' (e, nesse prisma, poder-se-ia dizer que o Estado também é o principal na relação com os seus agentes diretos, o servidores públicos em geral).

Entretanto, busca-se jogar luz na complexa relação que se estabelece, de um lado, entre a sociedade (principal) e as agências estatais (agente), especificamente pelo flanco descortinado com a nova lei anticorrupção, que estabeleceu a responsabilização objetiva da pessoa jurídica corruptora, impondo severo sancionamento, cujo potencial retributivo é capaz de impor sensíveis efeitos negativos ao pleno desenvolvimento do objeto social da empresa (multas pecuniárias e proibição de contratar com o poder público), quiçá conduzindo à dissolução compulsória nos casos mais extremos.

Ao tratar da responsabilidade administrativa, a lei anticorrupção trata do processo administrativo, conduzido, na administração pública direta federal, segundo o Decreto nº 8.420/15, pela Controladoria-Geral da União, atual Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle.

Nos termos do art. 29 do Decreto nº 8.420/15, caberá à CGU celebrar acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo Federal, no âmbito do chamado Processo Administrativo de Responsabilização – PAR, voltado à aplicação das sanções administrativas à pessoa jurídica corruptora.

Ao largo da responsabilização administrativa da pessoa jurídica corruptora, flui de forma autônoma o processo judicial de aplicação das sanções à pessoa jurídica corruptora (art. 19 da Lei nº 12.846/13), cuja legitimidade ativa é concorrente entre os Entes Federados (por suas advocacias públicas) e o Ministério Público.

Para além dessas duas esferas de responsabilidade da pessoa jurídica corruptora, não se pode olvidar a responsabilização criminal das pessoas físicas autoras dos atos de corrupção. De um lado, os catalisadores do ato, indivíduos que agiram investidos da condição de agentes da pessoa jurídica corruptora (funcionários, gerentes, diretores, etc), a responderem, hipoteticamente, pelo delito de corrupção ativa (art. 333, Código Penal); de outro, os funcionários públicos lato sensu recebedores ou que aceitaram a promessa de vantagem indevida (art. 317, Código penal). Nessa relação processual, de natureza sancionatória penal, o titular privativo é o Ministério Público (art. 129, I, Constituição Federal).

Não se pode deixar de mencionar, igualmente, a responsabilidade subjetiva dos mesmos indivíduos pela ação civil de improbidade administrativa, comumente5 aparelhada pelo Parquet (art. 17 da Lei nº 8.429/92).

Por conta desse arranjo normativo constitucional e legal, surgem diversas controvérsias a respeito da formalização do acordo de leniência, principalmente quanto a que “agência” estatal seria mais conveniente atuar em tais colaborações, dadas as repercussões que os fatos possam gerar, por exemplo, na esfera de responsabilidade criminal.

Muito embora a lei anticorrupção seja taxativa quanto à celebração do acordo de leniência entre a pessoa jurídica corruptora e a administração pública (“autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública” - art. 16 da LAC), não se pode afastar a possibilidade concreta de os elementos de prova entregues pela pessoa jurídica como condição para receber os benefícios legais serem reveladores de fatos criminosos.

De que forma, então, a Controladoria-Geral da União6, órgão puramente executor de atribuições do Poder Executivo, poderia barganhar a modulação de sanções penais, se não possui titularidade para a lide penal? O Ministério Público, frente a um acordo de leniência ao qual teve conhecimento somente após a sua perfectibilização (por força do art. 15, LAC), estaria obrigado a acatar, sem questionamentos, a colaboração premial celebrada na órbita administrativa? E a pessoa jurídica e seus agentes criminosos, que segurança jurídica teriam de que o processo penal seria conduzido de forma mitigada e condicionado pelos termos de modulações do acordo de leniência, no qual o titular da ação penal pública não teve oportunidade de intervir?

Eis alguns dos problemas em que a teoria da agência – adequada ao campo publicístico – pode auxiliar na solução.

E a solução traspassa a necessidade de determinar qual “agente” público encontra-se normativa e funcionalmente melhor vocacionado para atender aos interesses e anseios do 'principal', sem descurar e sem violar a separação dos poderes, de modo, a um só tempo, a conferir também a segurança jurídica para a pessoa jurídica e aos seus representantes e funcionários envolvidos nesse processo.


3. Autonomia constitucional e independência do Ministério Público

Ao dispor sobre o Ministério Público, a Constituição Federal Brasileira preleciona que o MP “é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, CF).

Para Assunção e Silva (2013), o Ministério Público passou da condição de órgão administrativo (da formatação anterior à Constituição de 1988) para a de instituição política, pois deixou de ser defensor do Estado para agir em defesa dos interesses da sociedade e dos direitos sociais, podendo, a tanto, atuar de forma preventiva ou repressiva.

Entende o citado doutrinador, inclusive, que a Constituição de 1988 “transformou o Ministério Público num verdadeiro poder, ao desvinculá-lo dos outros e prever como crime de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem contra o livre exercício do Ministério Público”

Simbolizado pelo Moisés de Michelangelo (ASSUNÇÃO E SILVA, 2013), o Ministério Público, tal com o libertador dos hebreus recebeu no Monte Sinai as tábuas da lei, recebeu da Constituição Federal a missão de fiscalizar o cumprimento da lei (principalmente da Constituição), devendo defender a ordem pública e também buscar a transformação da sociedade mediante o correto cumprimento da lei.

Efetivamente, os princípios constitucionais que norteiam a morfologia e a atuação do Parquet conferem à Instituição envergadura e musculatura para atuar em prol dos interesses e direitos sociais de forma independente e infensa a injunções e pressões de ordem política ou administrativa.

O princípio da independência funcional significa que o Membro do Ministério Público não se submete a autoridades internas ou externas ou a qualquer tipo de hierarquia, de molde a garantir à sociedade que o agente ministerial atue somente conforme sua própria consciência e de acordo com os ditames legais, na defesa da Constituição e do interesse público (ASSUNÇÃO E SILVA, 2013).

Desse modo, procuradores e promotores são considerados agentes políticos, pois agem como órgãos independentes do Estado, posicionados no topo da esfera hierárquica de suas área de competência – do mesmo modo que os agentes do Executivo, Legislativo ou Judiciário – razão por que decidem com plena liberdade funcional (MAZZILLI, 2007).

Para densificar tal princípio da independência funcional, a Constituição Federal reconheceu aos membros do Ministério Público algumas garantias e vedações, dentre elas a da inamovibilidade do agente ministerial (art. 128, I, 'b', CF), que assegura a permanência do Membro do Ministério Público no órgão de sua titularidade, do qual somente será removido caso o deseje ou, excepcionalmente, de forma compulsória, quando o interesse público o exigir (GARCIA, 2015).

O objetivo da inamovibilidade é o de evitar que pressões externas ao membro ministerial influam sobre sua atuação funcional, de modo a conferir liberdade ao agente ministerial e coartar que os juízos valorativos formados pelo agente sejam norteados pelo receio de ser removido (GARCIA, 2015).

Da Constituição Federal extraem-se outros princípios, garantias e vedações ao Membros do Ministério Público, assim como da legislação orgânica podem-se observar regras procedimentais que colmatam o regime jurídico do Parquet.

Para o presente ensaio, contudo, bastam as considerações antes esposadas para se concluir que o Ministério Público está institucionalmente situado em regime jurídico-constitucional que imuniza tanto a Instituição frente aos demais poderes como os seus agentes individualmente considerados.

Esta imunidade funcional, conjugada ao seu papel de defensor da ordem jurídica e do regime democrático, faz com que o Ministério Público seja considera a agência estatal que menores riscos traz em sua atuação em prol dos interesses sociais, comunitários.

O Ministério Público, posicionado esquematicamente numa relação de agência, tal como a delineamos no item anterior, posta-se como agente da sociedade (principal), ao passo que a Controladoria-Geral da União situa-se como agente do Estado (principal).

A Administração Pública, ao contrário do Ministério Público, irá buscar atingir ou preservar os interesses do Estado, que nem sempre coincidem com o interesse público e social primário. Válida, nesse ponto, a diferenciação entre interesse público primário e interesse público secundário ofertada por Barroso:

O interesse público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário que seja parte da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas.

Nessa perspectiva, o Estado nem sempre irá perseguir o chamado interesse público primário, pois, via de regra, contentar-se-á com a satisfação do interesse fiscal e pecuniário, de materialização menos complexa se comparado ao interesse primário, da sociedade.

Ademais disso, os servidores da Controladoria-Geral da União não contam com a independência funcional e com as demais garantias dos agentes ministeriais, situação que não os alberga das ingerências e injunções de ordem política que possam advir de seus superiores hierárquicos.


4. Atuação nas searas criminal e improbidade administrativa

Cabe considerar as atribuições do Ministério Público nos círculos de responsabilização criminal e da improbidade administrativa.

Nos termos do art. 129, inciso I, da Constituição Federal, o Ministério Público é o titular privativo da ação penal pública, o que significa que cabe ao Parquet, unicamente, decidir, frente a uma investigação criminal ou notícia de crime, se instaura ou não a ação penal pública, buscando perante o Poder Judiciário a concretização da pretensão punitiva estatal decorrente da prática do ilícito criminal.

Segundo Garcia (2015), a propositura da ação penal, como projeção da soberania estatal, é atribuição que se confunde com a própria existência do Ministério Público, dístico presente em todos os países que adotaram esse modelo institucional. Tal modelo privilegia o sistema acusatório e preserva a imparcialidade do órgão judicial.

Ao abolir os procedimentos penais ex officio (que podiam ser instaurados e julgados pelo mesmo órgão judicial), assim como os procedimentos judicialiformes (instaurados e instruídos pelo delegado de polícia), a Constituição Federal excluiu a possibilidade de qualquer outra estrutura estatal ajuizar a ação penal pública – assim como a qualquer do povo7.

Decorre da construção constitucional que o Ministério Público será o condutor das ações penais e, por conta disso, o coordenador da fase pré-processual, investigatória, com a finalidade de coletar as provas e evidências pertinentes, adequadas e legítimas para comprovação do fato criminoso e da sua autoria.

A investigação poderá ser conduzida diretamente pelo Parquet, em razão da instrumentalidade da investigação criminal, bem como poderá ser acompanhada a colheita de provas realizada no âmbito do inquérito policial – condição em que o agente ministerial será o coordenador mediato da investigação.

Na fase investigatória, via de regra, a coleta de evidências e provas que constituirão o supedâneo fático para a propositura (ou não) da ação penal perante o Estado-juiz é marcada pelo timbre da sigilosidade, a teor tanto do artigo 20 do Código de Processo Penal.

A segregação da informação quanto aos termos, extensão e objetividade investigadas também decorre, especialmente, de diversas leis esparsas que tratam de medidas investigatórias especiais e invasivas que, in re ipsa, devem ser conduzidas com discrição, sob pena de ineficácia da colheita de provas e elementos de convicção, a exemplo das buscas e apreensões, interceptação telefônica, telemática, infiltração de agentes, etc.

Consideradas tais premissas, imaginemos um cenário em que determinado fato (ou multiplicidade de fatos) considerado “corrupção”8, envolvendo agentes públicos e privados (estes, na condição de empregados de determinada pessoa jurídica), esteja sendo investigado em inquérito policial sigiloso, acompanhado pelo Parquet, com medidas invasivas autorizadas judicialmente.

Suponhamos que a investigação esteja transcorrendo há significativo período de tempo, durante o qual foram angariados diversas evidências da prática corruptora.

Neste mesmo cenário, imaginemos que, internamente, a empresa envolvida nos atos de corrupção praticados por seus prepostos, descubra os fatos praticados e, na ânsia de se precatar, acessa a Controladoria-Geral da União9, aviando requerimento para, espontaneamente, relatar os fatos de que tomou conhecimento e, ato contínuo, proceder à celebração de acordo de leniência, para evitar a aplicação de sanções mais graves.

Como tanto a empresa como a CGU não possuem conhecimento da investigação criminal que já caminha a passos largos, ambos ajustam as bases da colaboração premial, na qual a empresa, por força da lei, compromete-se a colaborar com a investigação, entregando provas dos fatos ao poder público.

Reconhecendo que, a um só tempo, o Ministério Público não foi chamado a intervir na pactuação do acordo de leniência (por falta de previsão legal explícita), nem a CGU detinha conhecimento da tramitação da investigação criminal, muito provavelmente será levado a efeito acordo de leniência inútil, inadequado e sem valor para a Administração Pública. As provas que a empresa corruptora vier a entregar serão redundantes e desinteressantes para a Administração Pública, pois as mesmas (ou maiores) evidências foram ou serão coletadas no inquérito policial. Neste contexto, a Administração Pública estará renunciando à aplicação de sanções de forma pueril e açodada, evitável se tivesse conhecimento da tramitação do inquérito policial via intervenção do Ministério Público.

Outro cenário – este de desigualdade e insegurança para a pessoa jurídica – poder-se-ia reconhecer na situação em que a apuração dos fatos reveladores da “corrupção” tivesse sua gênese no processo administrativo iniciado pela Administração Pública. Neste cenário hipotético, inexiste qualquer inquérito ou investigação criminal a respeito dos mesmos fatos em tramitação sob a batuta do Ministério Público.

Imaginemos que, sem a interveniência do Parquet, as partes (pessoa jurídica e Administração Pública) avancem para a celebração do acordo de leniência, no qual a empresa compromete-se a entregar provas do fato e colaborar para que os responsáveis sejam identificados e processados pelo Estado.

Finalizado o processo administrativo, e identificada a prática de crimes contra a Administração Pública, a autoridade administrativa processante haverá de encaminhar cópia para o Ministério Público, por força do art. 15 da lei anticorrupção.

Aportada a cópia do processo administrativo ao Parquet, o Ministério Público entende que os fatos têm outra conformação legal ou visualiza que o acordo de leniência fora firmado em bases e sob condições contra legem10, e decide impugnar judicialmente o ato administrativo, na defesa do patrimônio público. Ou, ainda, decide por ingressar em juízo com ação penal pública em razão da prática de outros fatos, diversos dos constatados no processo administrativo.

A pessoa jurídica, muito possivelmente, sentir-se-á vítima de um défice de segurança jurídica, pois imaginava estar negociando a redução das sanções, quiçá a imunidade ampla perante o Estado.

Cuida-se, assim, de situações problemáticas, em tudo aplicáveis considerando a ótica de responsabilização subjetiva dos agentes públicos e privados prevista na Lei de Improbidade Administrativa (LIA – Lei nº 8.429/92), cujos tipos abertos elencados nos arts. 9º, 10 e 11 abarcam o enquadramento de todos os crimes contra a administração pública na condição de conduta ímproba, sujeita ao sancionamento cominado nos diversos incisos do art. 12 da lei.


5. Conclusão

A análise da interface de atuação do Ministério Público no chamado “microssistema de enfrentamento à corrupção”, especialmente na novel lei anticorrupção, permite divisar vários caminhos que recomendam a intervenção do Parquet na fase administrativa de elaboração dos acordos de leniência.

Em primeiro lugar, a Controladoria-Geral da União e seus congêneres, nas demais esferas federativas, não possuem competência legal para barganhar a modulação de sanções penais, uma vez que não possuem legitimidade ativa para a titularidade da lide penal.

Ao depois, o Ministério Público, frente a um acordo de leniência do qual não teve conhecimento prévio, não está jungido aos termos do ajustado, podendo, por conta de ilegalidades, buscar a invalidação da colaboração premial na via judicial.

Nesse contexto, a pessoa jurídica e seus agentes criminosos não teriam qualquer segurança jurídica de que eventual ação penal, versando os mesmos fatos, seria conduzida de forma mitigada e condicionada pelos termos do acordo de leniência, pois o titular da ação penal pública não teve oportunidade de intervir no acordo.

Conclui-se, dessa forma, que não é conveniente alijar o Ministério Público da celebração dos acordos de leniência encetados na esfera administrativa dos demais poderes estatais, pois a ausência de intervenção do Ministério Público pode trazer prejuízo tanto para o poder público e para a sociedade (na ampla e integral tutela de seus interesses), como para a pessoa jurídica corruptora e para seus prepostos individualmente considerados.


6. Referências Bibliográficas

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POSNER, Eric. Agency Models in Law and Economics. The Coase Lecture, Winter 2000. The law school the University of Chicago, Chicago. http://papers.ssrn.com/paper.taf?abstract_id=204872.


Notas

2 Quando a Nação acompanhava com expectativa a tendência de aprovação da chamada PEC nº 37, que sepultaria a possibilidade de investigação criminal direta pelo Ministério Público.

3 Art. 15. A comissão designada para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica, após a conclusão do procedimento administrativo, dará conhecimento ao Ministério Público de sua existência, para apuração de eventuais delitos.

4 The Coase Lecture, Winter 2000. The law school the University of Chicago, Chicago. http://papers.ssrn.com/paper.taf?abstract_id=204872

5 O dia a dia forense demonstra que a grande maioria das ações de improbidade administrativa são aforadas pelo Ministério Público, notadamente pelo fato de já se encontrarem em seu aparato os elementos de prova dos fatos ímprobos, colhidos em inquérito policial que investiga o crime contra a administração pública, ou em inquéritos civis.

6 E os demais Entes Federados e autoridades máximas dos poderes legislativo e judiciário, na dicção do art. 16 da Lei nº 12.846/13.

7 Exceção feita aos crimes de ação penal privada, de iniciativa do ofendido, nenhum cidadão possui legitimidade, por exemplo, para iniciar ação penal pública para expor alguém a situações vexatórias, com espírito emulativo, o que reforça o rol de direitos fundamentais.

8 Lato sensu, assim considerado todo e qualquer delito praticado em face da Administração Pública, em seu prejuízo.

9 Ou o órgão estatal simetricamente postado no Estado ou Município.

10 Ad exemplum, o órgão público estatal abre mão e deixa de consignar nos termos do acordo a obrigação legal de reparar o dano – art. 16, §3º, da Lei nº 12.846/13.


Autor

  • Alexandre Schneider

    Procurador da República, docente da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasilia (UCB), integrante do Grupo de Apoio ao Tribunal do Júri (GATJ) do Ministério Público Federal (MPF).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHNEIDER, Alexandre. Acordo de leniência na Lei Anticorrupção e a intervenção do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5090, 8 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58307. Acesso em: 29 mar. 2024.