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Governança global, legitimidade e segurança

desafios do direito internacional contemporâneo

Governança global, legitimidade e segurança: desafios do direito internacional contemporâneo

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Saiba o que significa governança, legitimidade e accountability, e como esses conceitos estão relacionados com o processo que, em oposição à perspectiva realista tradicional, resultou na centralidade das operações de paz no direito internacional, cujos aspectos mais relevantes foram aprofundados pelo processo de globalização.

Introdução

As relações internacionais contemporâneas são resultado direto dos fatos ocorridos na última década do século 20. A queda do muro de Berlim, a dissolução da União Soviética e o conseqüente fim da bipolaridade, que havia marcado o período da guerra fria, são aspectos que determinaram a constituição de nova ordem mundial. Esta, a despeito dos fatos relevantes que caracterizaram a primeira década do século 21, ainda apresenta características indefinidas. No plano epistemológico, as tentativas de apreensão dessa realidade, por sua vez, ainda não foram exitosas no afastamento das teorias clássicas, as quais continuam influentes. As perspectivas concebidas após o fim da guerra fria - como evidenciadas, por exemplo, nos trabalhos de Huntington e de Fukuyama, autores que formularam, respectivamente, a teoria do choque das civilizações e a teoria do fim da história – não foram confirmadas nos anos subsequentes, a despeito de sua popularidade e de sua influência sobre alguns tomadores de decisão.

Apesar das incertezas e das perplexidades que ainda perduram nas reflexões dos analistas, algumas constatações podem ser feitas acerca dessa realidade internacional contemporânea. Em primeiro lugar, deve-se notar que o fim da tensão bipolar e do equilíbrio do terror, que frequentemente eram expressos pela ameaça do confronto nuclear, possibilitou a criação de instrumentos que reforçam a governança internacional, conceito que, como se verá adiante, embora denote entendimento e cooperação, não é unívoco e igualmente percebido pelos internacionalistas. As grandes conferências internacionais[1], a criação da Organização Mundial do Comércio[2], e os tratados START I e II[3], sobre limitação de armas estratégicas, seriam, aparentemente, indícios efetivos da governança global do período que se seguiu à guerra fria.

Em segundo lugar, merece destaque, igualmente, a prevalência dos princípios políticos liberais e democráticos, mesmo que de forma menos peremptória do que a proposta por Fukuyama. Essa predominância, por sua vez, e esse é o terceiro aspecto a ser ressaltado, tornou-se progressivamente mais relevante, não apenas no interior dos Estados, mas, também, no âmbito das relações internacionais. As demandas por uma governança global mais democrática, por conseguinte, implicam alterações no que se entende por legitimidade nas relações internacionais e no que se consideram mecanismos democráticos de accountability das instituições internacionais. Essa dinâmica - que apresenta, simultaneamente, uma dimensão real e outra conceitual – será analisada e exemplificada, neste artigo, sob a perspectiva da segurança.

O presente trabalho está divido em três seções e uma conclusão. Na primeira seção, serão tratados os conceitos fundamentais de governança, de legitimidade e de accountability no âmbito internacional, a fim de fundamentar teoricamente as discussões seguintes. Na segunda, pretende-se analisar, de forma diacrônica, as alterações na área de segurança internacional, bem como verificar a maneira como os mencionados conceitos, que também foram modificados após a dissolução da ordem bipolar, são aplicados ao estudo das instituições de segurança. Na terceira parte, verificar-se-á a hipótese segundo a qual essa nova percepção da legitimidade, vinculada aos princípios democráticos, afeta as peace keeping operations (PKOs) - maior esforço de instrumentalização da governança no âmbito da segurança coletiva - de duas formas distintas: por um lado, exigem-se amplos mecanismos de transparência e de controle das missões, por outro, requer-se, mediante da conversão das PKOs em instrumento policial e militar da sociedade internacional, a extensão desse tipo de operação coletiva a situações de conflitos militares mais graves (e.g. guerras generalizadas) e a casos de violações domésticas aos direitos humanos (intervenções humanitárias).


1. Legitimidade e accountability como pressupostos da governança global

1.1. Governança e ordem na política internacional

Preliminarmente, deve-se explicar que o conceito de governança não pode ser confundido com o de governo, ainda que ambos tenham relação com a ideia de ordem no interior de um sistema. Enquanto o governo é baseado na existência de autoridade formal, constituída para garantir a prática de atividades políticas determinadas, a governança, por sua vez, na qualidade fenômeno mais amplo e complexo, é sustentada pelo compartilhamento de objetivos, de expectativas e de valores entre os atores, os quais cumprem compromissos, regras e princípios sem necessidade de imposição de poder formal[4]. A governança, dessa forma, deve ser compreendida como fenômeno cuja premissa é a existência de rede intersubjetiva de finalidades, as quais influenciam arranjos políticos, destituídos de executividade centralizada, ainda que dotados de graus variados de obrigatoriedade consentida.

O aspecto mais relevante acerca do conceito de governança está relacionado à ideia de ordem no âmbito do sistema internacional[5]. A ordem pode ser compreendida de duas formas distintas[6]: como determinado estado de coisas ou como arranjo específico com o propósito de alcançar fins preestabelecidos. Enquanto, na primeira perspectiva, a ordem, em razão de sua imanente neutralidade axiológica, pode ser vislumbrada em quaisquer sistemas, mesmo naqueles aparentemente anômicos, na segunda, a ordem pressupõe arranjo harmonizado com princípios e adequado à consecução de certos objetivos[7]. Nessa segunda concepção de ordem, a qual é constituída com base na ação intencional dos atores do sistema[8], quando verificada no âmbito internacional, indicia a chamada governança global. A relação entre ordem e governança é, portanto, intensa e complexa, pois, segundo Rosenau, elas atuam, mutuamente, como causa e consequência uma da outra: sem ordem, não existe governança, e esta constitui pressuposto para ordem intencionalmente criada[9].

Os arranjos ou as disposições que caracterizam a ordem no sistema internacional, que são sustentados por aspectos cognitivos, comportamentais e jurídicos[10], podem ser de dois tipos: fundamentais, como, por exemplo, a distribuição e o equilíbrio de poder entre os atores estatais, as perspectivas dos Estados em relação ao uso da força, a prática reiterada da diplomacia; ou mera expressão de práticas rotinizadas, como, por exemplo, comércio, serviço postal e atividades consulares[11]. Rosenau, além disso, explica que esses arranjos e disposições podem ser espontâneos, decorrentes da convergência de decisões individuais (como a determinação dos preços na situação de equilíbrio de mercado), ou podem originar-se de atividades coordenadas, desenvolvidas justamente para manter o sistema em estabilidade[12]. Essa última expressão da ordem, visto que formulada por manifestação volitiva dos atores, relaciona-se mais diretamente ao conceito de governança internacional.

Dessa ordem intencional, denominada governança, cujos aspectos mais relevantes foram aprofundados pelo processo de globalização, tem-se demandado, progressivamente, a conformidade com os princípios democráticos. Como explicado por Nanz e Steffek[13], na realidade internacional que se seguiu ao fim da guerra fria, a legitimidade de instituições internacionais baseia-se na existência de mecanismos democráticos (ex parte populi) de participação e de controle[14].

1.2. Legitimidade democrática da governança global

Hodiernamente, dois outros conceitos estão estreitamente relacionados à ideia contemporânea de governança: legitimidade e accountability. Se a governança é resultado da ação conjunta da pluralidade de atores no sistema internacional, torna-se freqüente questionar a legitimidade desses atores e de suas ações. A legitimidade, no entendimento de Buchanan e de Keohane[15], pode apresentar dois sentidos distintos: normativo e sociológico. Enquanto o primeiro sentido implica o direito de governar e de produzir regras, o segundo refere-se à crença na existência desse direito. O sentido normativo, portanto, é verificado mediante análise formal da instituição e de sua produção normativa; o sentido sociológico, diferentemente, busca aferir a crença coletiva no suposto direito de criação de regras vinculantes.

Além disso, Buchanan e Keohane, ao referirem-se às organizações internacionais, explicam que a legitimidade pode ser seccionada em, pelos menos, dois pontos de vista distintos: o dos Estados e o dos indivíduos[16]. As diferenças entre essas duas perspectivas podem ocasionar situações em que a atuação da OI é considerada legitima pelos Estados, mas é classificada como ilegítima por indivíduos e por entidades representantes de agrupamentos não estatais de pessoas. Na realidade, podem-se vislumbrar, em certos casos, muitas outras perspectivas de avaliação da legitimidade. Organizações da sociedade civil, por exemplo, em razão de suas especializações temáticas, podem dispor de parâmetros próprios de verificação de legitimidade, os quais podem divergir daqueles normalmente usados na perspectiva estatal e do indivíduo. As empresas transnacionais, igualmente, com sua capacidade de adequar condutas às rápidas mudanças de mercado, expressas nas demandas do consumidor, podem dispor de visões de legitimidade opostas àquelas adotadas pelos outros atores.

Em vista dessa pluralidade de perspectivas - situação que poderia acarretar incertezas acerca legitimidade das instituições internacionais[17] e, por consequência, instabilidade no sistema – Buchanan e Keohane[18] propõem um padrão complexo de aferição de legitimidade. Segundo esse padrão, as instituições devem apresentar as seguintes características: razoável suporte moral e da opinião pública, consonância com padrões disseminados de justiça, consentimento de Estados democráticos, conformidade com as demandas democráticas, mutabilidade de meios e de objetivos, capacidade de equacionar o problema da discricionariedade burocrática e da precariedade da representação política em certos Estados.

Como é possível notar, por meio da análise desses princípios, a perspectiva de Buchanan e Keohane, apesar de complexa, é a da democracia liberal[19], visto que indicia a preponderância do indivíduo, na qualidade de participante ativo da política e de principal interessado no funcionamento das instituições. Dessa forma, para que seja legítima, não basta, por exemplo, que a instituição seja autorizada pelo Estado soberano; este deve ser democrático, e dotado de mecanismos amplos de representação políticas, inclusive para estrangeiros.

E, mesmo assim, esse consentimento estatal não constitui, isoladamente, condição suficiente para garantir a legitimidade da instituição, uma vez que esta, em razão de mandatos amplamente discricionários[20] ou da impossibilidade de alterar seus propósitos constitutivos iniciais[21], pode destoar dos princípios prevalecentes de justiça e de democracia, bem como pode desagradar à opinião pública internacional[22]. Nessa perspectiva elaborada pelos dois autores, portanto, corrobora-se que a legitimidade depende de uma combinação de aspectos, que convergem para o princípio liberal, originário do pensamento de Kant e dos teóricos da economia política clássica, de supremacia do indivíduo[23].

Mesmo com critérios bem definidos de legitimidade, esta apenas é consolidada, em seu sentido sociológico, caso seja aferida pelos interessados, especialmente pelos indivíduos.  Por isso, no âmbito das relações internacionais, a legitimidade das instituições, independentemente da perspectiva adotada, está relacionada à possibilidade de revisão crítica de seus procedimentos e de seus objetivos por atores externos à entidade[24]. Esse raciocínio faz remissão ao conceito de transparência e de controle heterônomo, aspectos que podem ser sintetizados na ideia de accountability.

 1.3. Accountability democrática na governança global

A legitimidade, em razão da predominância contemporânea dos preceitos democráticos - pelo menos no âmbito deontológico -, depende, progressivamente, do efetivo controle e da supervisão, por parte de interessados (especialmente dos indivíduos), das ações adotadas pelos atores do sistema. Esse tipo de controle - que implica a disponibilidade, para atores externos à instituição, de mecanismos de intervenção, bem como o compromisso de transparência por parte dos controlados - é expresso na palavra inglesa accountability[25], cuja tradução é irredutível a um único vocábulo de língua portuguesa, mas que indica a formalização de mecanismos de conferência e de controle de conduta institucional.

Em tese, accountability pode ser direcionada a qualquer tipo de instituição. Grant e Keohane[26] descrevem quatro grandes modelos de accountability para os Estados nacionais, os quais constituiriam as instituições em que o processo de accountability seria mais aperfeiçoado e evidente. Os autores, em primeiro lugar, dividem o processo de accountabiliy em participação e delegação, gêneros que, posteriormente, são bipartidos em espécies qualificadas. Participação pode ser subdividida em participação por democracia direta, em que interessados e tomadores de decisão se confundem, e participação populista, na qual o líder político promove consultas públicas eventuais. A delegação, por sua vez, pode ocorrer no modelo principal-agente, derivado da microeconomia, ou no modelo trustee, mediante o qual se confere maior discricionariedade ao delegado. Todas essas formas referentes ao processo de accountability direcionado ao Estado possibilitam, em escala variável, que os indivíduos controlem as ações da instituição ou que, no âmbito da administração pública, superiores controlem as ações de seus subordinados.

No que concerne aos instrumentos específicos de accountability existentes na política internacional, Grant e Keohane[27] identificam sete mecanismos diferentes: hierárquico, de supervisão, fiscal, legal, de mercado, paritário e reputacional. Esses mecanismos não são encontrados em todas as instituições, e seu grau de constrangimento varia consideravelmente. Ao lado disso, os beneficiários ou controladores dos mecanismos nem sempre são plenamente identificáveis, o que dificulta a análise da efetividade da accountability. Se é evidente que a existência do mecanismo de hierárquico na relação entre o Secretariado-Geral das Nações Unidas e outras agências da organização implica subordinação destas, não é tão evidente que o público difuso se beneficie de um mecanismo reputacional de controle de todas as instituições internacionais que façam uso do soft power.

No âmbito da política internacional, a manifestação dessas formas de accountability é menos evidente e mais complexa do que se verifica no interior dos Estados nacionais, uma vez que existem proposições teóricas díspares sobre o assunto. Se fossem adotadas as premissas do realismo clássico[28], segundo as quais os Estados, entidades soberanas e monolíticas, são os únicos atores relevantes do sistema internacional, seria desnecessário analisar quaisquer formas de accountability. Nessa perspectiva, mesmo em caso de delegação de poder às organizações formalmente constituídas, devidamente dotadas de personalidade jurídicas, não haveria, na verdade, espaço para ação autônoma dessas entidades internacionais, as quais seriam, na qualidade de ficções legais, a simples expressão da vontade, singular ou coletiva, dos Estados.

Essa perspectiva reducionista formulada pelos realistas, a qual, após o fim da guerra fria, se tornou progressivamente mais insustentável, não é adequada à realidade internacional contemporânea, caracterizada pela multiplicidade de atores, de interesses e pela constante e efetiva cooperação, em áreas diversas, entre Estados, OIs, ONGs e empresas. Nessa realidade internacional complexa, a accountability é aspecto relevante e, muitas vezes, eficiente, ainda que seja fenômeno de difícil equacionamento teórico, em razão da diversidade de interações entre atores que podem demandar e ser objeto de accountability.

Em sua forma tradicional, fundamentada no conceito de sujeito de direito internacional público, accountability implica o dever de prestação de contas das OIs, instituições internacionais por excelência, para com os Estados, seus criadores formais e, em certas situações, como por exemplo, em casos de ajustes fiscais exigidos pelo FMI, o dever de Estados prestarem contas à OI. Como, na política contemporânea, outros atores apresentam relevância crescente nas decisões internacionais, surgem novos objetos e demandantes da accountability.

Assim, organizações da sociedade civil, por exemplo, demandam informações de políticas externa e doméstica de Estados, inclusive daqueles países em que não estão sediadas. Essas ONGs, além disso, exigem das OIs maior transparência e processos decisórios mais democráticos. As empresas transnacionais, por um lado, reivindicam direito de participarem das negociações no âmbito das OIs econômicas, mas, por outro, são por estas acusadas de falta de transparência e de obstrução à participação democrática. Nas relações internacionais, portanto, accountability diz respeito a uma pluralidade de atores, de naturezas jurídicas diversas, que exercem papéis intercambiáveis e que são mutuamente conectados por uma rede de relações formais e informais.

A concepção de governança, na qual legitimidade e accountability dependem da participação de atores não estatais, como destacado supra, não é suficientemente estudada pelo arcabouço teórico do realismo clássico e do neorealismo. Essas perspectivas não abarcam, de forma plena, a complexidade da ordem internacional decorrente da governança contemporânea, especialmente aspectos referentes à gradação vinculativa das diversas fontes legais, aos mecanismos difusos de compliance e às demandas de atores não estatais, como, por exemplo, entidades da sociedade civil, empresas transnacionais e organizações internacionais dotadas de autonomia burocrática.

Essa limitação das teorias centradas no Estado soberano não seria problemática, se estas não fossem predominantes nos estudos de segurança internacional e na perspectiva adotada por muitos tomadores de decisão na área de defesa. A despeito de alguns autores desenvolverem metodologias e abordagens distintas - baseadas, por exemplo, na discussão conceitual e discursiva da construção teórica, na expansão do objeto dos estudos de segurança (mediante inserção de atores não estatais) e na contestação da objetividade científica do realismo[29] -, a perspectiva realista ainda exerce considerável influência na área da segurança internacional.

A predominância do realismo no âmbito dos estudos de segurança enseja alguns questionamentos: essa característica da área de segurança constituiria empecilho à governança internacional?  Caso a governança, de fato, seja verificada no âmbito da segurança, não seria natural que apresentasse peculiaridade em razão da natureza dessa área das relações internacionais? A governança, quando manifestada na área específica da segurança, não se confundiria com o conceito de regime internacional de segurança? Quais são as características da legitimidade e da accountability no âmbito da segurança? Essas questões serão tratadas na seção seguintes.


2. Governança na área de segurança internacional

2.1. Governança e regimes internacionais

Deve-se destacar, de antemão, que os conceitos de governança e de regimes internacionais são, com freqüência, confundidos, em razão das semelhanças em algumas de suas características, embora sejam diversos em sua amplitude e em sua forma de funcionamento. Como a governança, os regimes são constituídos de normas, de princípios e de procedimentos, para os quais convergem as expectativas dos atores (sejam estes estatais e não-estatais), os quais atuam em sistema internacional destituído de autoridade suprema, apta para tomada de decisões em última instância e dotada de capacidade executiva.

Diferentemente da governança, entretanto, os regimes referem-se apenas a áreas específicas das relações internacionais, como, por exemplo, biodiversidade, direitos humanos, comércio. Os regimes, além disso, como concernem a assuntos delimitados, diferentemente da governança global, costumam apresentar tendência à centralização, sob autoridade de organização internacional (caso da OMC no regime de comércio internacional) ou de tratado multilateral abrangente que, por meio de suas periódicas conferências das partes, possibilita a continuidade da produção normativa e a permanente ação coordenada dos atores (e.g. Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas).

James Rosenau[30], após admitir pontos de intersecção relevantes entre os conceitos de governança e de regimes, explica que a primeira ocorre nas áreas de interstícios (lacunas) entre os regimes, nas quais, ocorre, portanto, carência de normas formalmente estabelecidas. O autor revela também que a governança pode ser percebida nos casos de sobreposição entre dois regimes em temas limítrofes entre duas áreas. Essas situações, que podem acarretar colisão (antinomia) de regras e de princípios, são comuns no âmbito de organizações internacionais que apresentam escopo abrangente, capaz de afetar áreas distintas de seu objeto precípuo.

O caso da OMC é ilustrativo desse tipo de situação, uma vez que a organização, por causa das sucessivas expansões de seu mandato, extrapola a esfera do comércio internacional e afeta área distintas, como, por exemplo, biossegurança e direitos humanos. A fim de precisar devidamente os conceitos, pode-se considerar a governança como fenômeno mais amplo que, a despeito de abarcar os regimes internacionais, não pode ser reduzida ao simples conjunto desses regimes, uma vez que se estende inclusive às áreas destituídas de qualquer tipo de regramento formal, nos mencionados interstícios entre regimes.

Especificamente na área da segurança internacional, podem ser identificados diversos regimes, como, por exemplo, o de não proliferação de armas nucleares, o de armas leves, o das operações de manutenção da paz. Esses regimes, todos eles concernentes ao tema da segurança, apresentam, em regra, um tratado multilateral guarda-chuva (umbrella treaty), sob o qual são criados outros acordos, formulados princípios específicos e estabelecidas normas de conduta para os atores interessados. O propósito dessa seção, entretanto, não é analisar, sob a perspectiva interna, o funcionamento de cada um desses regimes relativos à segurança, pois isso destoa das preocupações amplas acerca da governança. Diferentemente, o objetivo do autor, nessa parte do trabalho, é perquirir como a governança se manifesta no âmbito da segurança, esfera das relações internacionais que abarca os diversos regimes supra mencionados, e que, tradicionalmente, tem sido dominada pelo pensamento teórico realista.

2.2. Apropriação pelo realismo dos estudos de segurança

Nas relações internacionais, a área da segurança apresenta algumas especificidades que devem ser mencionadas, pois tornam a governança, concomitantemente, mais necessária e mais difícil. Acerca dessa especificidade, Celso Lafer, inspirado na literatura política clássica de Martin Wight, elabora instrutiva taxonomia para as dimensões da ordem internacional, a qual pode ser adotada como ponto de partida para o entendimento do problema da segurança. As relações internacionais, para Lafer, podem ser analisadas em três grandes dimensões: dimensão das relações econômicas, dimensão dos valores e dimensão estratégico-militar. Em cada da uma delas, predominaria uma perspectiva distinta, originária de um autor seminal da ciência política. Nas relações econômicas, por causa das necessidades convergentes de trocas comerciais e de investimentos recíprocos, predominaria a visão grociana de cooperação e de colaboração entre os Estados.

Na dimensão dos valores, a busca pela concretização de grandes ideais humanos (e.g. plena garantia dos direitos humanos, desenvolvimento econômico sustentável) determinaria a predominância da perspectiva liberal e utópica, decorrente do Projeto da Paz Perpétua, de Immanuel Kant. Na dimensão estratégico-militar, por fim, a qual abarca os assuntos de paz e de guerra, predominaria a perspectiva hobbesiana, origem do pensamento realista. Como os assuntos, nessa dimensão, estão relacionados a situações limite, que envolvem a própria sobrevivência do Estado na forma de coletividade soberana, este, membro originário do sistema internacional vestfaliano, tenderia a agir conforme os preceitos do realismo, impulsionado pela esperança de ganhos relativos, em detrimento de seus pares[31].

Nessa visão tripartite, adotada por Lafer, a governança - ainda que presente nas relações dos agentes econômicos, na cooperação jurídica entre atores internacionais e nas preocupações dos Estados sobre segurança - não se manifestaria da mesma forma nas três dimensões da ordem internacional. Na área econômica e valorativa, a colaboração entre os protagonistas, a aceitação de novos atores, a produção e o cumprimento de normas, seriam mais freqüentes. Diferentemente, na área de segurança, os atores estatais, em especial as grandes potências, ao conservarem o monopólio efetivo da força, afastariam os atores não estatais e determinariam a manutenção de arranjo institucional, baseado, exclusivamente, no poder dos Estados.

Esse arranjo, por sua vez, por interesse dos próprios Estados, seria pouco transparente e isento de controle por entidades da sociedade civil e por outros atores não estatais. A legitimidade e a accountability das instituições de segurança, por sua vez, estariam subordinadas aos interesses imediatos dos Estados nacionais. Estes, ao dificultarem o desenvolvimento de autonomia burocrática, determinariam, em última instância, o parâmetro aceitável de abertura democrática dessas instituições.

2.3. Perspectiva diacrônica da segurança internacional

De forma diversa, Krause e Williams,[32] ao discorrerem acerca das possibilidades de expansão e de aprofundamento dos estudos sobre segurança, suscitam dúvidas sobre a adequação da teoria realista ao mundo dos anos posteriores à guerra fria, caracterizada pela emergência de temas e de atores diversos dos que predominaram no intervalo de bipolaridade que se seguiu ao término da Segunda Guerra Mundial. Na perspectiva dos autores, a segurança internacional não deve ser reduzida às possibilidades de conflito e de cooperação entre Estados soberanos, uma vez que, no mundo pós-guerra fria, as entidades estatais não podem ser consideradas as únicas merecedoras das ações internacionais de segurança. Diferentemente, portanto, do que se infere da sistematização de Lafer, Krause e Williams desvinculam o realismo do tema da segurança, contestando a ideia segundo a qual ambos expressariam um conúbio indissolúvel.

Esse afastamento da perspectiva realista dos estudos de segurança ocorre por meio de argumentos construtivistas, que possibilitam a problematização de conceitos e a análise do discurso subjacente às construções teóricas. Krause e Williams, com o propósito de desenvolver sua concepção complexa de segurança, explicam que existe diferença entre segurança do Estado e segurança da sociedade[33]: se a primeira, na qualidade de conceito tradicional no âmbito dos estudos internacionais, concerne à soberania do Estado; a segunda refere-se à identidade coletiva, que, por sua vez, está sujeita a ameaças muito distintas dos tradicionais perigos militares.

Os autores destacam, por meio de perspectiva diacrônica, a ausência de neutralidade política no discurso acerca da segurança, uma vez que existem aspectos culturais e fortes interesses que condicionam a construção do conceito de ameaça. Este, durante muito tempo, fundamentou-se na concepção de perigo soviético, formulada, com base em documentos da OTAN, no decorrer do período de guerra fria[34]. Essa construção da ideia de ameaça soviética, materializada em narrativas sobre o totalitarismo do regime comunista e sobre o suposto expansionismo global da URSS, influenciou a concepção estatista de segurança e possibilitou a predominância da perspectiva realista no tema militar. No entendimento de Krause e Williams - autores que compreendem a forma como a dinâmica histórica afeta aspectos e conceitos básicos das relações internacionais - se esse pensamento foi apropriado à realidade bipolar, ele não é mais adequado ao mundo contemporâneo.

Com base em interpretação das duas posições expostas, pode-se afirmar que a governança internacional, na área de segurança, deve ser compreendida mediante síntese seletiva das ideias desenvolvidas, de um lado, por Lafer e, de outro, por Krause e Williams. A segurança, de fato, como destaca Lafer, concerne a aspectos basilares dos Estados nacionais, que buscam manter seu controle sobre a estruturação internacional dos diversos regimes de segurança. Em consonância com Krause e Williams, entretanto, essa situação, em parte, vinha sendo sustentada por um discurso no qual o Estado soberano, entidade política surgida após a Paz de Vestfália, na qualidade de locus mais adequado ao desenvolvimento humano, ao ser protegido de ameaças externas, contribui, por consequência, para o bem-estar do indivíduo. Dessas duas concepções, nota-se que os objetos de análise e os conceitos de trabalho do internacionalista são dinâmicos e, por isso, devem ser compreendidos de forma contextualizada.

2.3.1 Governança, legitimidade e segurança durante o período de guerra fria

Durante a guerra fria, duas instituições, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Pacto de Varsóvia, sob liderança das duas superpotências, e constituídas sob a forma de alianças militares, determinavam as precárias condições de convivência entre os membros dos dois blocos antagônicos. Em razão disso, a ideia de governança, ainda que não estivesse ausente - como indiciado, por exemplo, na cooperação sobre não proliferação e sobre redução de mísseis -, era subordinada aos interesses estratégico das superpotências. Estas, por meio de cálculo realista, além dissuadirem os aliados de adotarem posição autônoma, controlavam, de forma inflexível, as principais instituições multilaterais de segurança, principalmente por meio da ação do Conselho de Segurança da ONU, órgão no qual EUA e URSS tem direito de veto. Mesmo outros aspectos da agenda política internacional eram, em grande parte, subordinados às preocupações estratégico-militares da guerra fria.

Nesse contexto de equilíbrio bipolar, em que as manifestações de governança eram constrangidas pela disputa entre as superpotências, as ideias de legitimidade e as demandas por accountability (que se restringia ao controle das instituições pelos Estados) também eram, em regras, influenciadas pela clivagem ideológica. Fonseca Jr.[35] explica que, em períodos de destruição iminente, como o da guerra fria, a legitimidade é subordinada a segurança, a qual, por sua vez, nessas situações limite, é monopolizada pelo Estado. O diplomata, assim como Lafer, influenciado pelas ideias de Martin Wright, explica que, no concernente ao período específico da guerra fria, a legitimidade decorria da adesão às posições de poder das superpotências, as quais eram revestidas por uma mensagem universal (democracia-capitalismo ou socialismo-comunismo) que elas tinham a missão de propagar[36]. Nesse mundo de polaridades definidas[37], os parâmetros de legitimidades coincidiam, portanto, com bipartição ideológica do mundo.

2.3.2 Legitimidade, governança e segurança no mundo pós-guerra fria

Entretanto, principalmente em razão do processo de globalização, que se intensificou após o fim da guerra fria, esse discurso, arvorado na suposta centralidade do Estado no sistema internacional, tem sido contestado e classificado como anacrônico. A porosidade das fronteiras nacionais, a disseminação de projetos de integração econômica, a emergência de grandes temas internacionais (e.g. aquecimento global, direitos humanos, terrorismo, narcotráfico), a criação de instituições de vocação universal e dotadas de capacidade de intrusão na esfera doméstica (e.g. OMC), a materialização de uma sociedade civil transnacional[38] são aspectos que tornam a concepção clássica de Estado nacional progressivamente mais obsoleta. Ao mesmo tempo, como consequência direta dessa obsolescência, as instituições de segurança passam ser objeto de novas demandas (formuladas, inclusive, por atores não estatais), em que, diferentemente das tradicionais, o Estado não é mais o único objeto a ser protegido em seus elementos fundamentais (território, população e soberania). Essa mudança no objeto merecedor da proteção no âmbito das relações internacionais acarreta, por conseguinte, alteração no próprio conceito de segurança internacional.

O resultado mais importante dessa alteração no conceito de segurança é a graduação e a individualização do ser humano, o qual, dessa forma, passa a ser o beneficiário final e imediato da segurança internacional, independentemente de seu vínculo com o Estado. A função mediadora deste, por consequência, perde sua essencialidade, e é vista como problemática nas situações em que seus habitantes são oprimidos por seus próprios governos. O padrão dúplice de legitimidade, por sua vez, estreitamente vinculado a visão restrita de segurança estatal, é progressivamente uniformizado sob a forma dos princípios democráticos e liberais.

Os Estados autocráticos, por exemplo, contemplam o declínio inexorável de sua legitimidade como atores internacionais aceitáveis, e passam a enfrentar a crescente oposição da opinião pública, a qual exige, em nome da defesa dos direitos humanos e com base em normas internacionais positivadas, a intervenção da sociedade internacional, mesmo que em flagrante violação da soberania do Estado nacional. Esse enfraquecimento da soberania reforça a perspectiva da segurança destacada por Williams e Krause, segundo a qual o realismo, mesmo na versão estrutural Waltz, não é suficiente para analisar a complexidade da política internacional pós-guerra fria, pois seus adeptos, em regra, trabalham com a ideia de atores estatais monolíticos, o que depende da efetividade da soberania como atributo inflexível e inviolável do Estado nacional.

A concepção alargada e modificada de segurança que resultou do fim da guerra fria, bem como a nova ideia de legitimidade democrática, afetou as diversas instituições internacionais. As organizações internacionais, as práticas e os procedimentos dos atores, a opinião pública, as demandas da sociedade civil transnacional passaram a basear sua atuação nessa nova realidade.


3. PKOs, legitimidade e segurança: simetria de dinâmicas

O fim da guerra fria, que consolidou a predominância das ideias da democracia liberal, gerou, na área da segurança, o alargamento de seu objeto e, concomitantemente, ensejou demandas por novas formas de legitimação das instituições internacionais. Em razão disso, instituições relativas à segurança desapareceram (e.g. Pacto de Varsóvia), surgiram (e.g. Tribunal Penal Internacional, Conselho de Direitos Humanos) e foram reestruturadas (e.g. OTAN), a fim de se adaptarem ao mundo despido de polaridades definidas. Além disso, instituições outrora secundárias – por causa de sua irrelevância dentro do antagonismo bipolar - adquiriram maior importância e, ao mesmo tempo, apresentaram alterações significativas em sua essência e em seu modus operandi.

As operações de paz das Nações Unidas (peace keeping operations, PKOs) são exemplo de instituição que, no decorrer dos anos 1990, adquiriu maior relevância e, por causa disso, passou a ser mais demandada de duas formas distintas: os atores, estatais e não estatais, começam a requerer, com maior freqüência, a criação de PKOs; essas intervenções passaram a ser requeridas em situações cada vez mais perigosas e contrárias à proposta de neutralidade nos conflitos, o que tem acarretado modificação na essência dessas operações. Em decorrência das mudanças na concepção internacional de legitimidade, as operações tornam-se, progressivamente, mais relacionadas à realização de certos objetivos considerados essenciais pela sociedade internacional, como, por exemplo, promoção da democracia e proteção dos direitos humanos. Concomitantemente, a atuação dessas missões torna-se objeto de interesse público e suscita questionamentos variados da sociedade civil e de alguns Estados, os quais cobram a existência de mecanismos mais efetivos de accountability no âmbito das PKOs.

3.1. As Operações de Manutenção de Paz das Nações Unidas (Peace Keeping Operations, PKOs)

As Operações de Paz das Nações Unidas foram concebidas como forma de uso legal e limitado do uso da força no âmbito internacional, com a finalidade de prevenir a deflagração, a disseminação e a intensificação de conflitos armados. Embora tenham sido freqüentes desde a fundação da ONU, as operações não estão expressamente previstas na Carta de São Francisco. Sua legalidade decorre, por conseqüência, de interpretação sistemática do documento constitutivo da ONU, principalmente daquelas regras referentes à amplitude da competência da Assembléia Geral (art. 11, 1, da Carta da ONU)[39] e do Conselho de Segurança (art. 24, 1, da Carta da ONU)[40]. Este, especialmente, constitui órgão fundamental na execução de quaisquer medidas coercitivas, inclusive nos casos de uso moderado da força pelos empreendimentos de promoção e de construção da paz, operações que, na atualidade, são consideradas multidimensionais (ou complexas), uma vez que envolvem, em grande medida, finalidades múltiplas e recursos humanos civis.

Em suas versões iniciais, as PKOs objetivavam apenas atuações pontuais e preventivas. Em termos materiais, por isso, eram caracterizadas pelo porte de armamentos defensivos e por limitados contingentes militares, os quais eram adequados à realização de missões simples, expressamente consentidas e, em alguns casos, apoiadas pelas partes em conflito. A experiência das primeiras operações de paz (e.g. UNTSO, Oriente Médio, 1948; UNEF I, Sinai/Faixa de Gaza, 1956; ONUCA, Congo, 1960; UNYOM, Iêmen, 1963; UNFICYP, Chipre, 1964; UNIPOM, fronteira entre Índia e Paquistão, 1965), ainda durante o interstício de guerra fria, possibilitou a formulação de princípios que deveriam reger as sua ações militares. Esses princípios, segundo Eugênio Diniz[41], podem ser sistematizados da seguinte forma:

a) condução pelos funcionários da ONU: os efetivos militares pertencem aos Estados, mas eles agem em nome das Nações Unidas, ainda que, em caso de infração à norma de conduta militar, sejam julgados pela jurisdição de seus respectivos países;

b) consentimento das partes envolvidas no conflito: a interferência da ONU deve ser legitimada pelas autoridades locais, sob pena de violação do inciso 7 do art. 2.º da Carta[42];

c) imparcialidade em relação às partes em conflito: os contingentes da ONU não atuarão como aliados de nenhuma das partes, ainda que objetivem a minimização das baixas de ambas;

d) uso restrito da força: os militares da ONU só poderão agir em legítima defesa e nos limites do mandato da missão.

Marrack Goulding, que presidiu o Departamento de Operações de Paz da ONU, acrescenta, ao lado dos princípios mencionados acima, a contribuição militar estatal. Como as Nações Unidas não dispõem de exército regular, as forças armadas dos Estados - trajadas, na maior parte das vezes, com partes de indumentária que remetem à organização (capacetes azuis) - devem ser usadas na execução das operações, após a conclusão de acordo entre o Conselho de Segurança e o Estado militarmente engajado.

Como é possível inferir desses princípios, as PKOs tinham atuação limitada, e seu papel, no âmbito da segurança internacional, era secundário. Considerando que a lógica de poder da guerra fria perpassava todas as instituições internacionais (principalmente as diretamente relacionadas à segurança), não havia, em regra, espaço político para o exercício multilateral da força, se destituído dos fundamentos ideológicos predominantes nos blocos antagônicos.

Principalmente após o final da bipolaridade, as características das operações de paz tradicionais foram sendo substancialmente alteradas. Marrack Goulding[43], por exemplo, em classificação elaborada na primeira metade da década de 1990, influenciada pela ascensão desse novo fenômeno, descreve seis modalidades distintas de operações, muitas delas diretamente baseadas nos dispositivos do Cap. VII:

A primeira modalidade consiste no posicionamento preventivo das tropas da ONU antes do início das hostilidades armadas. Esse tipo de ação, que coincide com o conceito de diplomacia preventiva do relatório, objetiva aumentar o custo político da agressão para as partes antagônicas.

O segundo tipo são as tradicionais operações de manutenção de paz, cujo período de maior desenvolvimento foi durante a guerra fria. O objetivo dessas operações clássicas é a criação de condições para a negociação política. Esse tipo de missão pode ser subdividido em três outros: b1) missões de observação, como na região da Kashemira; forças armadas de infantaria, como no Chipre, na Síria, no sul do Líbano e na Croácia; e operações (armadas ou desarmadas) adjuntas às missões de imposição de paz, como estabelecida na fronteira entre Iraque e Irã.

A terceira modalidade é constituída de operações para apoiar a execução de entendimento abrangente, acordado, em momento anterior, pelas partes adversárias. Entre as atividades concernentes a essa espécie de operação, podem ser citadas: o monitoramento de armistícios, a destruição de armas, o treinamento de novas forças armadas e de contingente policial, a supervisão do funcionamento da administração pública, a verificação do respeito aos direitos humanos. Goulding admite que o cumprimento desse tipo de missão é, muitas vezes, incompatível com a observância do princípio da imparcialidade.

A quarta modalidade é composta de missões de proteção ao fornecimento de ajuda humanitária durante o conflito armado, da forma como foi intentada na Somália e na Bósnia e Herzegovina. Nas duas situações, as forças da ONU enfrentaram a resistência de grupos armados que atuavam além do controle dos governos locais, aspecto que dificultou a consecução dos mandatos.

O quinto tipo, na verdade, não é exatamente missão de manutenção da paz, uma vez que envolve medidas impositivas de força. Esse tipo de operação ocorre em países nos quais as instituições públicas foram largamente desestruturadas, resultando em elevado grau de anarquia e de anomia. As missões do Congo e da Somália apresentaram essas características.

A sexta modalidade, novamente, não pode ser classificada como missão de manutenção de paz, pois é constituída de elevado grau de emprego da força. Essas operações, chamadas de imposição de cessar-fogo. São diferentes do terceiro tipo, uma vez que implicam a possibilidade do uso da força mesmo na ausência de acordo formal entre as partes.

Essa classificação de Goulding consiste na tentativa de compreender, com maior precisão, o fenômeno das PKOs, que se alterou profundamente ao longo do tempo. Ela, entretanto, não é suficiente para compreender as conexões contemporâneas entre as operações de paz e as novas demandas da segurança contemporânea.

3.2. Novo papel das PKOs na segurança internacional

A complexidade dos cenários de conflito, a observância dos preceitos da Carta de São Francisco (e.g. promoção dos direitos humanos, art. 1.º da Carta[44]) e os insucessos de algumas operações foram determinantes para que esses princípios fossem reinterpretados. Em determinadas situações, a imparcialidade na zona de combate, por exemplo, poderia significar a conivência em relação a atos violadores de direitos humanos, o que contrariaria preceito basilar da organização. O consentimento das partes, por sua vez, não poderia ser requisito absoluto para ação, uma vez que, em certas situações, a segurança da população civil e o fornecimento de ajuda humanitária mínima não são autorizados pelas lideranças combatentes. Os princípios das operações, por conseqüência, tiveram de ser readaptados às situações mais complexas e violentas, a fim de que a busca por resultados concretos não colocasse em risco os componentes da operação e as populações afetadas pelo conflito.

Essa readaptação dos princípios regentes das PKOs deve, entretanto, ser compreendida no contexto de grandes mudanças internacionais, as quais acarretaram a redefinição do conceito de segurança e da concepção de legitimidade. Como o objeto da segurança foi ampliado, tornou-se juridicamente viável a adoção de medidas de força com a finalidade de proteger valores e instituições diferentes do Estado. As PKOs, por isso, passam a ser direcionadas à consecução de situações e de valores compatíveis com a nova concepção de legitimidade, mesmo que, para isso, afaste-se ideia de diplomacia preventiva, expressa no Cap. VI da Carta da ONU. Se considerada a classificação de Goulding, nota-se a progressiva tendência de aproximação de uma das partes em conflito, geralmente daquela qualificada como legitima, conforme os padrões internacionalmente vigentes. Ao lado disso, a admissão de operações de imposição de paz implica o aumento da letalidade das forças militares, bem como o claro uso do Cap. VII da Carta da ONU, o que pressupõe autorização do Conselho de Segurança. As PKOs, dessa forma, ao apresentarem características de verdadeira intervenção militar, tornam-se instrumentos de grande relevância na governança da segurança internacional.

Corroborando esse raciocínio, pode-se afirmar que as missões decorrentes de Resoluções do Conselho de Segurança que, expressamente, citam o capítulo VII, como, por exemplo, UNMIBH (Resolução 1088/1996 do CS, Bósnia Herzegovina)[45], UNMIS (Resolução 1590/2005, Sudão)[46], MINUSTAH (Resolução, 1608/2005, Haiti)[47], estão em desconformidade com os princípios tradicionais das operações de paz e com as disposições do Cap. VI, em especial com o princípio da neutralidade, pois assume-se, nesses casos, que uma das partes do conflito, geralmente aquela em sintonia com os pressupostos de legitimidade internacional pós-guerra fria, está correta e, por isso, deve ser favorecida.

Além disso, deve-se notar que, se atuarem com fulcro no Capítulo VII, as forças da ONU são autorizadas a usar os meios necessários para cumprimento do mandato, inclusive o uso quase irrestrito de força militar, o que torna difícil diferenciar a PKO do simples uso de força autorizado pelo CS como ocorreu na Guerra do Golfo. Essas novas modalidades de PKOs, ressalvadas suas especificidades, são, em seus aspectos formais (autorização legal por órgão competente) e materiais (grande letalidade, tipo de armamento, estratégia de combate), instrumentos de intervenção humanitária.

A nova percepção da legitimidade e a redefinição do conceito de segurança, além disso, afetam as PKOs de duas formas distintas: por um lado, requer-se, por meio da conversão concomitante das PKOs em polícia e exército da sociedade internacional, a progressiva extensão desse tipo de operação coletiva a situações de conflitos militares mais graves (e.g. guerras generalizadas) e a casos de violações domésticas aos direitos humanos (intervenções humanitárias), por outro, exigem-se amplos mecanismos de transparência e de controle das missões. A primeira consequência pode ser inferida da ideia cada vez mais disseminada de responsabilidade de proteger (responsibility to protect, R2P)[48], que consiste no dever dos Estados e da sociedade internacional em salvaguardar os indivíduos contra graves contra quatro tipos penais: genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade.

Essa tipologia coincide, quase integralmente, com as previsões do Estatuo de Roma, documento de instituiu o Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia. A segunda consequência pode ser exemplificada pela proposta brasileira de responsabilidade ao proteger (responsibility while protect, RWP)[49], que, na qualidade de desdobramento da R2P, exige a criação de parâmetros claros para todos os tipos de intervenções militares, bem como mecanismos de accountability específicos para essas operações.

As ideias de responsabilidade de proteger e de responsabilidade ao proteger concernem diretamente ao tipo de PKO constituído no período que se seguiu ao fim da guerra fria. Ambas não podem ser compreendidas sem o entendimento da dinâmica das relações internacionais que resultou na mudança na concepção de legitimidade internacional, desvinculada dos preceitos realistas, e no alargamento da perspectiva de segurança em direção à proteção do ser humano.


Conclusão

A governança global, na qualidade de fenômeno complexo e multifacetado, está estreitamente relacionada à ideia de ordem. Esta, entretanto, não se refere a qualquer tipo de arranjo dotado de permanência e de funcionalidade. A ordem referente à governança deve ser caracterizada por aspectos valorativos e por objetivos estabelecidos e realizados por seus constituintes. Esse tipo de ordem apresenta padrões de legitimidade específicos e concepções próprias do que constituem ameaças à segurança dos atores e do próprio sistema.

 No decorrer do texto, demonstrou-se que, em período recente, o sistema internacional foi caracterizado por dois tipos distintos de ordem e, consequentemente, por duas espécies diversas de governança, separadas, historicamente, pelo fim da guerra fria. Constatou-se, igualmente, que a modificação no tipo de ordem implicou alteração nos valores predominantes no sistema e, por consequência, afetou os padrões de legitimidade vigentes nas relações internacionais. Notou-se que, em consequência dessa variação nos padrões de legitimidade, houve alargamento da perspectiva de segurança, a qual deslocou seu foco do Estado nacional para o ser humano individual.

A comprovação dessas transformações, na perspectiva da segurança, foi feita por meio da análise de instituição específica - as PKOs -, em dois momentos distintos: durante a guerra fria e após seu término. Dessa análise, concluiu-se que as alterações ocorridas, no âmbito internacional, referentes à emergência de nova ordem e de nova governança e ao alargamento do conceito de segurança, são simétricas à evolução ocorrida nas características das operações de paz. Estas ganham centralidade na área da segurança, em detrimento das alianças militares tipicamente realistas (e.g. OTAN, Pacto de Varsóvia), mas, ao mesmo tempo, são desafiadas por novas demandas, concernentes a maior efetividade em situações de afronta aos valores (democrático-liberais) vigentes e ao seu efetivo controle, mediante mecanismos de accountability, por atores interessados.

Essas duas demandas foram exemplificadas pela disseminação dos conceitos complementares de responsabilidade de proteger e de responsabilidade ao proteger, os quais afetam diretamente as finalidades e o modus operandi das PKOs. A forma como serão tratadas essas novas demandas é condição para o fortalecimento, enfraquecimento ou extinção de instituição, que representa o mais desenvolvido esforço de coordenação universal na área da segurança internacional.


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Notas

[1] A década de 1990 foi, segundo Lindgren Alves, a década das conferências, em razão do grande número de eventos desse tipo sobre temas globais: Cúpula Mundial sobre a Criança (Nova Iorque, 1990), Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992), Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, 1993), Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995), IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995), Conferência da ONU sobre Assentamentos Humanos (Istambul, 1996). (Lindgren Alves, José Augusto. Relações Internacionais e temas sociais: a década das conferências. Brasília, FUNAG, 2001)

[2] Criada, na Rodada Uruguai do GATT, por meio do Acordo de Marraquech, em vigor desde 1995.

[3] Strategic Arms Reduction Treaty. O primeiro foi assinado em 1991; o segundo, em 1992.

[4] “[B]ut government suggests activities that are backed by formal authority, by police powers to insure the implementation of duly constituted policies, whereas governance refers to activities backed by shared goals that may or may not derive from legal and formally prescribed responsibilities and that do not necessarily rely on police powers to overcome defiance and attain compliance. Governance, in other words, is a more encompassing phenomenon than government.” (Rosenau, James “Governance, order, and change in world politics”. Rosenau, James & Czempiel, Ernst-Otto. Governance without Government: Order and Change in World Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 4).

[5] Idem, p.5.

[6] Hurrel, Andrew. “Order and Justice in International Relations: What is at Stake?” Foot, Rosemary, Gaddis, John L. & Hurrell, Andrew (eds.). Order and Justice in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2003, pp. 25.

[7] Hedley Bull distingue a ordem internacional da ordem mundial. A primeira seria “um padrão ou disposição das atividades internacionais que sustentam os objetivos elementares, primários ou universais de uma sociedade de estados”; a segunda, por sua vez, seriam “os padrões ou disposições da atividade humana considerada em seu conjunto” (A sociedade anárquica. São Paulo: IPRI, UnB, IOE, 2008, p. 23 e p. 26).

[8] Rosenau, James “Governance, order, and change in world politics”. Rosenau, James & Czempiel, Ernst-Otto. Governance without Government: Order and Change in World Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 5)

[9] Idem, p. 8.

[10] “The numerous patterns that sustain global order can be conceived as unfolding at three basic levels of activity: (1) at the ideational or intersubjective level of what people dimly sense, incisively perceive, or otherwise understand are arrangements through which their affairs are handled; (2) at the behavioral or objective level of what people regularly and routinely do, often unknowingly, to maintain the prevailing global arrangements; and (3) at the aggregate or political level where governance occurs and rule-oriented institutions and regimes enact and implement the policies inherent in the ideational and behavioral patterns” (Idem, p. 14)

[11] Idem.

[12] Idem, pp. 5-6.

[13] “The increasing capacity of international governance regimes to generate law and regulations biding all citizens has come to conflict with this problem of democratic legitimacy. The idea of democratic legitimacy is that the citizens decide for themselves the content of the laws that organize and regulate their political association”. (Nanz, Patrizia & Steffek, Jens. “Global Governance, Participation and the Public Sphere”. Government and Opposition – An International Journal of Comparative Politics, vol. 39, no 4, 2004, p.

[14] Acerca das demandas por maior legitimidade democrática nas organizações internacionais econômicas, vide: Kahler, Miles. “Defining accountability up: the Global Economic Multilaterals”. Government and Opposition – An International Journal of Comparative Politics, vol. 39, nº 2, Spring 2004, pp. 132.

[15] Buchanan, Allen e Robert O. Keohane. The Legitimacy of Global Governance Institutions, p. 405

[16] Idem, p. 411.

[17] O conceito de instituição deve ser em sentido amplo, não apenas referente às entidades formalmente constituídas. Robert O. Keohane distingue duas perspectivas acerca das instituições internacionais: racionalista e reflexiva. Conforme a primeira, as instituições são formadas com base no cálculo racional dos atores, os quais antecipam as consequências positivas decorrentes da institucionalização: queda nos custos de transação em áreas específicas, oferecimento de maior segurança aos atores e de instrumentos para o cumprimento de normas e de acordos. Na perspectiva reflexiva, por sua vez, seus adeptos destacam a espontaneidade do surgimento das instituições, bem como a historicidade inerente a elas. Os seguidores dessa corrente teórica, além de identificarem problemas do racionalismo, asseveram que as instituições decorrem do compartilhamento intersubjetivo de valores, de normas e de práticas, que se manifestam, com freqüência, em contextos previamente institucionalizados. John Duffield, por sua vez, com base em preceitos do construtivismo, afirma que essa inter-subjetividade é o compartilhamento de modelos mentais entre os atores (Duffield, John. “What are International Institutions” in International Studies Review, Vol. 9 (Keohane, Robert, “International Institutions: Two Approach”, p. 386; What Are International Institutions?, 2007, p. 8).

[18] Buchanan, Allen e Robert O. Keohane. The Legitimacy of Global Governance Institutions, p. 417.

[19] Alguns autores como, por exemplo, Andrew Moravsik, trabalham como as diferentes concepções de democracia (liberaria, pluralista, social e deliberativa) podem gerar visões distintas acerca da legitimidade (Vide: Moravscik, Andrew. “Is There a ‘Democratic Deficit’ in World Politics? A framework for Analysis”. Government and Opposition Opposition – An International Journal of Comparative Politics, vol. 39, no 2, 2004, pp. 336-363).

[20] Esse é o caso do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, nas visões de Guimarães (Guimarães, Feliciano de Sá. “A autonomia burocrática das organizações financeira internacionais: um estudo comparado entre o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional”, tese de doutorado, FFLCH-USP, 2010) e de Martin (Martin, Lisa. “Distribution, Information and Delegation to International Organizations: The case of IMF Conditionality” in Delegation and Agency in International Organizations in Hawkins, Darren G., Lake, David A.; Nielson, Daniel L.; Tierney, Michael J. (orgs.), Cambridge, UK, pp. 140-164), respectivamente.

[21] O Banco Mundial é exemplo de instituição que, progressivamente, alterou seus objetivos iniciais: os propósitos de financiamento à reconstrução dos países destruídos pela guerra foram substituídos pelo objetivo do financiamento ao desenvolvimento.

[22] Esse foi o caso da OMC durante a Conferência Ministerial de Seattle (Narlikar, Amrita. The World Trade Organization: a very short introduction. Oxford, Oxford University Press, 2005, pp. 133-138).

[23] “Sabemos que a preocupação central dessa tradição [o liberalismo] é com a liberdade do indivíduo. Trata-se de uma preocupação essencialmente moderna, herdeira do Iluminismo, que afirma que os seres humanos são capazes, por intermédio do uso da razão, de definir seu destino de maneira autônoma. Em outras palavras, os indivíduos não dependem de forças extraterrenas (divinas) e de seus representantes (a Igreja) ou de senhores feudais ou monarcas para decidir como viver suas vidas neste mundo” (Nogueira, João Pontes & Messari, Nizar. Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro, Elsevier, 2005, pp. 58-59)

[24] “Essential to our account is the idea that to be legitimate a global governance institution must posses certain epistemic virtues that facilitate the ongoing critical revision of its goals, through interaction with agents and organizations outside the institution” (Idem, p. 406)

[25] “Accountability, as we use the term, implies that some actors have the right to hold other actors to a set of standards, to judge whether they have fulfilled their responsibilities in light of these standards, and to impose sactions if they determine that these responsibilities have not been met” (Grant, Ruth W. & Keohane, Robert. “Accountability and Abuses of Power in World Politics”. The American Political Science Review, vol. 99, nº 1, February 2005, pp. 29.

[26] Idem, pp. 30-33.

[27] Idem, p. 35-37.

[28] “Na visão dos realistas, o Estado é o ator central das relações internacionais. O que se estuda na disciplina – como o próprio nome indica – são as relações entre um tipo específico de ator: os Estados. (...) De forma geral, os realistas tomam o Estado como uma ‘caixa preta’ e o encaixam dentro do que chamam de modelo da ‘bola de bilhar’ (billiard ball). Isso os leva a abstrair os processos internos de tomada de decisão e as motivações políticas que levam os Estados a agir no plano internacional e a destacar exclusivamente a dinâmica da relação entre essas ‘caixas’ ou essas ‘bolas’. (Nogueira, João Pontes & Messari, Nizar. Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro, Elsevier, 2005, pp. 24-25)

[29] Krause e Williams, p. 232.

[30] James Rosenau explica que “governance in a global order is not confined to a single sphere of endeavor. It refers to the arrangements that prevail in the lacunae between regimes and, perhaps more importantly, to the principles, norms, rules, and procedures that come into play when two or more regimes overlap, conflict, or otherwise require arrangements that facilitate accommodation among the competing interests” ( “Governance, order, and change in world politics”. Rosenau, James & Czempiel, Ernst-Otto. Governance without Government: Order and Change in World Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 9).

[31] Lafer, Celso, p. 184

[32] Krause e Williams, p. 230

[33] Idem, 243.

[34] Idem 245-247.

[35] Fonseca Jr, Gelson. Legitimidade e outras questões internacionais – poder e ética entre as nações. 2ª ed., Paz e Terra: São Paulo, 2004, p. 149.

[36] “Nesse sentido, a fonte da ‘legitimidade’, com as devidas aspas, é diretamente a posição de poder, porém de um poder que, tanto no caso dos EUA quanto da URSS, encarna e difunde uma mensagem universal. E essa identificação com uma mensagem universal passa a ser manipulada como atributo de legitimidade. O argumento é simples: seria possível superar a norma, a não-intervenção, porque existe um valor maior (democracia-capitalismo ou socialismo-comunismo) que corresponde a uma lei superior e ao caminho ideal para garantir a paz entre as nações (democracias não guerreiam – o socialismo comunismo leva à extinção do Estado e, portanto, da fonte última da guerra), a riqueza (o livre-comércio traz riqueza para todos – o socialismo, pela via do planejamento, é o instrumento de criação da riqueza para todos) e, finalmente, a realização individual (livre manifestação e direitos humanos – a verdadeira liberdade só se alcança com o fim das instituições burguesas) etc.” (Idem, p. 191).

[37] Lafer

[38] “What of transnational civil society? This term refers to those self-organized intermediary groups that are relatively independent of both public authorities and private economic actors, that are capable of taking collective action in pursuit of their interests or values, and that act across state borders” (Hurrell, Andrew. “Order and Justice in International Relations: What is at Stake?” Foot, Rosemary, Gaddis, John L. & Hurrell, Andrew. Order and Justice in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2003, Pp. 37-38)

[39] “ARTIGO 11 - 1. A Assembléia Geral poderá considerar os princípios gerais de cooperação na manutenção da paz e da segurança internacionais, inclusive os princípios que disponham sobre o desarmamento e a regulamentação dos armamentos, e poderá fazer recomendações relativas a tais princípios aos Membros ou ao Conselho de Segurança, ou a este e àqueles conjuntamente”.

[40] “ARTIGO 24 - 1. A fim de assegurar pronta e eficaz ação por parte das Nações Unidas, seus Membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade o Conselho de Segurança aja em nome deles”.

[41] Diniz, Eugênio. “O Brasil e as operações de paz”. In. Henrique Altemani e Antônio Carlos Lessa (org.). Relações internacionais do Brasil: temas e agendas. São Paulo: Saraiva, 2006.

[42] ARTIGO 2 – 7 da Carta da ONU: “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII”

[43] GOULDING, Marrack. “The evolution of United Nations Peacekeeping”. International Affairs, Vol. 69, N.º 3, 1993.

[44] ARTIGO 1 da Carta da ONU – “Os propósitos das Nações unidas são: 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião;”

[45] “Authorizes the Member States acting under paragraph 18 above to take all necessary measures to effect the implementation of and to ensure compliance with Annex 1-A of the Peace Agreement…”

[46] 16. “Acting under Chapter VII of the Charter of the United Nations, (i) Decides that UNMIS is authorized to take the necessary action, in the areas of deployment of its forces and as it deems within its capabilities, to protect United Nations personnel, facilities, installations, and equipment, ensure the security and freedom of movement of United Nations personnel, humanitarian workers, joint assessment mechanism and assessment and evaluation commission personnel, and, without prejudice to the responsibility of the Government of Sudan, to protect civilians under imminent threat of physical violence;”

[47] “Acting under Chapter VII of the Charter of the United Nations, as described in Section 1 of operative paragraph 7 of resolution 1542 (2004), 1. Decides to extend the mandate of MINUSTAH, as contained in resolution 1542 (2004), until 15 February 2006, with the intention to renew for further periods”;

[48] “A R2P abrange quatro ameaças: genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Em 2008, o secretário-geral das Nações unidas, Ban Ki-Moon, e seu primeiro representante especial para a r2P, Edward C. Luck, desenvolveram uma ‘abordagem baseada  em três pilares’, de modo a melhor conceituar as diferentes dimensões da r2P. O primeiro pilar ressalta que os Estados têm como principal responsabilidade proteger as populações dentro dos limites de suas fronteiras. o segundo pilar se refere ao dever da comunidade internacional de prestar assistência aos Estados que tentam construir capacidade de proteger suas populações. o terceiro pilar diz respeito a responsabilidade da comunidade internacional de ‘em tempo hábil, tomar medidas firmes’ para evitar e pôr fim ao genocídio, aos crimes de guerra, à limpeza étnica e aos crimes contra a humanidade”. (BENNER, Thorsten. “O Brasil como um empreendedor normativo: a Responsabilidade ao Proteger” in Política Externa, Vol. 21 Nº 4 abr/mai/jun 2013, p. 36).

[49] “Para se contrapor a essa percepção, o Brasil sugere complementar a R2P com os princípios centrais da ‘responsabilidade ao Proteger’ então sendo proposta.

a) Os três pilares da r2P ‘devem seguir uma linha estrita de subordinação política e sequenciamento cronológico’ (§ 6); b) Todos os meios pacíficos devem ser esgotados; ‘uma análise ampla e judiciosa das consequências da ação militar’ (§ 7) deve preceder o exame da possibilidade de uso da força; c) Apenas o Conselho de Segurança pode autorizar o uso da força, nos termos do Capítulo VII da Carta, ou (o que é digno de nota) ‘em circunstâncias excepcionais, a assembleia Geral, em consonância com a resolução 377 (V)’ (§ 11 c); d) A autorização para o uso da força deve ‘se limitar a seus elementos jurídicos, operacionais e temporais’, e seu cumprimento deve se ater ‘à letra e ao espírito’ do mandato explícito (§ 11 d); e) Para garantir o acompanhamento adequado e avaliação da interpretação e aplicação da responsabilidade ao Proteger, ‘é necessário que os procedimentos do Conselho sejam aperfeiçoados’ (§ 11h). O Conselho de Segurança também é obrigado a ‘assegurar que aqueles a quem for outorgada autoridade de decisão pelo uso da força sejam responsabilizados por seus atos’ (§ 11i). (Idem, pp. 36-37)


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Kiithi Arima Junior. Governança global, legitimidade e segurança: desafios do direito internacional contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5092, 10 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58340. Acesso em: 28 mar. 2024.