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A autopoiesis como condição humana

A autopoiesis como condição humana

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Um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos necessariamente enquanto seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos e esta condição se manifesta também nos sistemas sociais e jurídicos.

Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela [1], biólogos, trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia, resgatam a idéia de auto-referência que se aplica para toda a ciência. [2]

Estudando a aparelho ótico de seres vivos [3], os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua quando era lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.

A partir desta simples experiência temos uma conclusão que pode ser absolutamente obvia mas que entretanto foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam um verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.

O fato é que, entre nós e o mundo existe, sempre, nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes.

Assim, para percebemos visualmente ou seja para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores e uma série de coisas mas que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.

Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim quando estamos deprimidos percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes, ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição influencia nossa lembrança. Daí a dificuldade de contar com provas testemunhais em processos judiciais ou administrativos, especialmente quando o depoimento ocorre muito tempo depois do fato. Um mesmo fato presenciado por diversas pessoas será descrito de maneira diferente por cada uma das testemunhas. A percepção diferente do mesmo fato ocorre uma vez que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.

Assim podemos dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo são nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo esta condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.

Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. Aproximando-se do campo do Direito temos a cultura, que traduz uma série de círculos sistêmicos, que parte do mais estreito (espacialmente falando) onde há uma maior sintonia fina, para os mais amplos. Assim somos influenciados em nossa percepção do mundo pelos valores e pré-compreensões decorrentes da cultura de nossa família, nossa cidade, nossa região, nosso país, nosso continente, assim como compartilhamos algumas compreensões universais. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em um determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis.

Chegando ao campo do Direito, quando procuramos entender uma Constituição e um sistema legal de um outro Estado nacional, uma outra cultura e história, enfrentaremos os problemas de diferentes compreensões e percepção do mundo, especialmente quando tratamos de princípios, palavras cheias de sentido, que se localizam por isto geograficamente e historicamente. Ao lermos o texto de uma Constituição vamos nos deparar com palavras como liberdade, igualdade, soberania, etc. Quando lemos o texto vamos atribuir o sentido a estas palavras, de nossa cultura, de nosso conhecimento e compreensão do mundo, entretanto esta não será a compreensão destas palavras para o sistema jurídico estudado. Para nos aproximarmos do sentido do texto para aquele sistema jurídico temos que buscar sua compreensão nos julgados, nas decisões judiciais que interpretam o texto naquele sistema.

Somos seres autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodutivos) e não há como fugir deste fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nos mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.

A linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.

Assim não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades cientificas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado [4]. Daí existirão tantas verdades quanto observadores existirem. Este universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, as intolerâncias. A compreensão da autopoiesis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo a tolerância, a relatividade, a compreensão e a busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia. Entretanto um problema fundamental se coloca para o Direito o qual abordaremos a seguir: é necessário construir mecanismo de interpretação jurídica que ofereça o mínimo de segurança possível e desejável, onde o grau de relatividade seja controlado. Deve existir um mínimo de previsibilidade dentro da inevitável relatividade. Lembremos que a tentativa de eliminar a relatividade na busca da previsibilidade pode levar ao absolutismo, ao totalitarismo, ou no mínimo ao autoritarismo, gerando sempre injustiça.


Notas

1 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, 1994.

2 No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: "Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos." Prosseguindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: "Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la tentación de la certitumbre." MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.5

3 Nas páginas 8 e 9 do livro "El arbol do conoscimiente"os autores propõem aos leitores experiências visuais de nos demonstram facilmente como a nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor, mas com fundo diferente mostra como o circulo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final nos faz uma afirmativa contundente mas importante para tudo que dizemos aqui: "el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo". MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.8

4 Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana, organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.


Autor

  • José Luiz Quadros de Magalhães

    Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A autopoiesis como condição humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 496, 15 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5897. Acesso em: 28 mar. 2024.