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Princípios da legalidade e anterioridade tributária e a inconstitucionalidade da modificação de alíquota de contribuição social (PIS e COFINS) através de decreto

Princípios da legalidade e anterioridade tributária e a inconstitucionalidade da modificação de alíquota de contribuição social (PIS e COFINS) através de decreto

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O texto realiza a análise da constitucionalidade da majoração da alíquotas do PIS e da COFINS sobre a operação de comercialização de combustíveis através do Decreto nº 9.101/2017, com a observação dos princípios da legalidade e anterioridade tributárias.

No dia 21 de julho de 2017, o país foi surpreendido com a publicação do Decreto nº 9.101, que tem como objeto  alterar o Decreto nº 5.059/2004 e o Decreto nº 6.573/2008, que reduziam as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS incidentes sobre a importação e a comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene de aviação e álcool. Ou seja, em síntese, o Decreto nº 9.101/2017 majorou as alíquotas de PIS/PASEP e COFINS incidentes sobre a comercialização de combustível.

Com a publicação do Decreto recebi diversas consultas de acadêmicos e colegas Operadores do Direito questionando se as Contribuições Sociais podem ter alíquotas majoradas por Decreto.

O Decreto expedido e publicado pelo Exmo. Sr. Presidente tem amparo legal no art. 23, § 5º, da Lei nº 10.865/2004, bem como no art. 5º, § 8º, da Lei nº 9.718/1998, pois ambos autorizam o Poder Executivo a fixar coeficientes para redução das alíquotas do PIS e da COFINS, os quais poderão ser alterados, para mais ou para menos, ou extintos, em relação aos produtos ou sua utilização, a qualquer tempo. Ou seja, trata-se de permissivo legal para que as alíquotas do PIS e da COFINS sejam modificadas por Decreto. Contudo, tais dispositivos são inconstitucionais, o que macula a cobrança dos tributos em tela, tornando a exação indevida.

A análise da inconstitucionalidade em tela deve ser feita através dos Princípios Tributários insculpidos na Constituição Federal de 1988, que tem como objeto direcionar a atuação do Poder Público para evitar que a assanha arrecadatória do Estado implique em expropriação indevida do sujeito passivo da relação obrigacional jurídico-tributária. Deveras, os princípios se revelam como proteção ao sujeito passivo de Direito Tributário para que não seja lesado de forma indevida no seu patrimônio.

Os Princípios Tributários são garantias constitucionais, ganhando relevo de cláusulas pétreas. No ensinamento de Leandro Paulsen[1],

As garantias constitucionais do contribuinte que o protegem contra o arbítrio e abusos do ente tributante, estabelecendo limites a serem observados na instituição dos tributos, têm nível de direito fundamental, configurando cláusula pétrea. Assim, não podem ser revogadas, tampouco excepcionadas sequer por emenda constitucional. Assim, a legalidade, a irretroatividade e as anterioridades,bem como a isonomia, e a vedação do confisco e a vedação à tributação interestadual e intermunicipal.

Ademais, mesma posição possui o Supremo Tribunal Federal - STF, pois o Min. Ricardo Lewandowski, no julgamento do RE 573675, de março de 2009 se manifestou informando que "algumas dessas limitações ao poder de tributar constituem cláusulas pétreas, por se inserirem no contexto dos direitos e garantias individuais, [...]".

O primeiro princípio que fora lesado pela majoração de alíquota realizada pelo Decreto nº 9.101 é o princípio da legalidade, que se encontra insculpido no art. 150, I, da CF/88, o qual indica que "sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (I) exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça". O postulado deve ser complementado pelo art. 97, I e II, do Código Tributário Nacional - CTN, quando diz que "somente a lei pode estabelecer (I) a instituição de tributos, ou a sua extinção; (II) a majoração de tributos, ou sua redução, [...]".

Sendo assim, a instituição ou extinção, a majoração ou minoração da incidência de tributo somente pode ser realizada por Lei, e não por outro veículo legislativo.

Contudo, a própria CF/88 abriu exceções ao princípio da legalidade quando informou no § 1º do art. 153 que os Impostos de Importação - II, Exportação - IE, Produtos Industrializados - IPI e Operações Financeiras - IOF poderiam ter alíquota modificada por ato do Poder Executivo (leia-se, Decreto), ou mesmo quando autorizou a instituição de Impostos através de Medida Provisória, na forma do seu art. 62, § 2º.

A mesma ressalva foi feita pelo CTN quando informou que excetuam à legalidade os tributos previstos nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65, ou seja, o II, IE, Imposto sobre a transmissão de bens imóveis e direitos a eles relativos (que têm alíquotas fixadas por resolução do Senado) e IOF (observando que o art. 57 do CTN foi revogado). Lembra-se ainda da ressalva feita no § 2º do mesmo art. 97 do CTN quando diz que "não constitui majoração de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo".

Ora, fora das ressalvas feitas pela Constituição Federal de 1988, e pelo CTN, norma geral de Direito Tributário que foi recepcionado como Lei Complementar, e que por isso complementa a própria CF, qualquer majoração de tributo deve ser realizada por Lei, não podendo ser feita por outra espécie legislativa.

Valendo-se mais uma vez do ensinamento de Paulsen[2], observa-se que

A legalidade tributária constitui garantia fundamental do contribuinte, sendo, portanto, cláusula pétrea, conforme destacado em nota introdutória às limitações ao poder de tributar. As atenuações à legalidade (autorização para que o Executivo altere as alíquotas) são apenas as expressas no art. 153, § 1º da CF. A referência  em tal dispositivo, ao II, IE, IPI e IOF é taxativa, não admitindo ampliação sequer por Emenda Constitucional.

O primado da legalidade em matéria tributária não é despropositado. O próprio art. 3º do CTN informa que todo tributo deve ser instituído por Lei, e quando ele disciplina isso está mencionando Lei stricto sensu, e não legislação de uma forma geral.    Tem-se que lembrar também que a Lei é o veículo legislativa que conta com a participação dos representantes do povo, pois como estabelece a própria CF/88 no parágrafo único do art. 1º, "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Sendo assim, quando uma Lei é publicada instituindo ou majorando uma tributo, passando pelo processo legislativo previsto na CF, é sinal que o próprio povo autorizou a exação.

A tributação é uma forma de expropriação do particular, pois o mesmo contribui com parte do seu patrimônio para a formação do fundo público a fim de que o Estado exerça as suas atividades fins. Contudo, a propriedade privada é uma garantia fundamental prevista no inciso XXII, do art. 5º, da CF, e, por isso, somente com a autorização do povo, ainda que exercida através dos seus representantes, é que o Estado poderá tributar (expropriar) para a formação do fundo público.

Outrossim, tem-se que frisar que o Decreto tem papel muito importante na legislação tributária, visando regulamentar as Leis e matéria tributária, e o art. 99 do CTN "o conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas nesta Lei".

A jurisprudência pátria é pacífica no entendimento de que as contribuições especiais devem se submeter ao Princípio da Legalidade Tributária. Ora, a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em questão, versando sobre a anuidade de Conselho de Corretores, decidiu que

Até a competência de 2003, tendo as contribuições sido fixadas por Resolução, não atendiam à legalidade tributária, sendo indevidas. Após o advento da Lei nº 10.795/03, há suporte valido para a cobrança. (TRF4, 2ª T., AC. 2006.72.01.001008-4/SC, Juiz Fed. Leandro Paulsen, dez./06).

Ainda, versando também sobre anuidade de Conselho Profissional, a 2ª Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça - STJ decidiu que

O STJ pacificou o entendimento de que as anuidade de Conselhos Profissionais, à exceção da OAB, têm natureza tributária e, por isso, seus valores somente podem ser fixado nos limites estabelecidos em lei, não podendo ser arbitrados por resolução e em valores além dos estabelecidos pela norma legal (STJ, 2ª T. REsp 362.278/RS, Min. João Otávio de Noronha, mar/2006).

Com efeito, apesar de serem julgados que se referem a contribuição corporativa, têm serventia para exemplificar as contribuições sociais, pois todas se encaixam na definição das Contribuições Especiais insculpida no art. 149 da CF, e por isso transparece que as Contribuições Sociais devem se submeter à legalidade tributária.

Observa-se que tanto a Lei nº 9.718/1998, quanto a Lei nº 10.865/2004, criaram um subterfúgio para autorizar a majoração de alíquotas do PIS e da COFINS através de Decreto. Ou seja, a própria Lei instituiu autorização para que o Decreto modifique as alíquotas, inclusive majorando as mesmas. Deveras, os próprios dispositivos contidos no art. 23, § 5º, da Lei nº 10.865/2004, bem como o art. 5º, § 8º, da Lei nº 9.718/1998, são inconstitucionais, pois não encontram autorização dentro da Carta Magna para que sejam majoradas tais Contribuições Sociais através de Decreto. Ademais, apesar de não declarar a inconstitucionalidade de decreto, mas sua ilegalidade, de corolário lógico, se os dispositivos legais que os embasam são inconstitucionais, o Decreto nº 9.101, publicado no dia 21.07.2017, padece também de vício de inconstitucionalidade na própria essência, devendo ser afastada a cobrança das Contribuições em questão.

Pois bem, a Constituição Federal não excetuou as Contribuições Sociais de cumprir o princípio da Legalidade, não podendo assim o legislador infraconstitucional criar uma autorização legal para que o Decreto majore as alíquotas do PIS e COFINS, em fraco confronto com dos dispositivos da CF/88.

Há ainda que observar que o Decreto nº 9.101/2017 estabeleceu no seu art. 3º que entrou em vigor na data da sua publicação. Contudo, lembra-se que as Contribuições Sociais devem observar o princípio da anterioridade nonagesimal, somente podendo haver a cobrança depois de transcorridos 90 (noventa) dias da publicação da Lei (e não decreto) que as instituiu ou aumentou. Nesse sentido, é claro o § 6º, do art. 195, da CF/88 quando diz que "as contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, "b".".

Ao comentar o § 6º, do art. 195, da CF/88, Paulsen[3] informa que

A anterioridade prevista neste parágrafo, especificamente para as contribuições sociais destinadas à Seguridade Social, tem sido chamada pela doutrina e pela jurisprudência de anterioridade nonagesimal, especial ou mitigada (foi chamada de anterioridade mitigada pelo Min. Ilmar Galvão no RE 183.119-SC, Rel. o Min. Ilmar Galvão, nov/96). Trata-se de norma especial aplicável às contribuições de seguridade social e que consiste na exigência de um interstício de noventa dias entre a publicação da lei e a sua incidência de modo a gerar obrigações tributárias válidas. A aplicação da anterioridade nonagesimal como regra especial, afasta a aplicação da anterioridade de exercício. Ou seja, para as contribuições de seguridade social, a anterioridade nonagesimal do art. 195, § 6º, é a única norma aplicável a título de anterioridade. Assim, basta  observância do decurso de noventa dias, independentemente da virada de ano, para que se possa ter a incidência válida da nova contribuição de seguridade social.

Tratando-se do princípio em tela aplicado às Contribuições Sociais, em especial PIS e COFINS, o STF, através de decisão de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, assim decidiu

O prazo nonagesimal (CF, art. 195, § 6º) é contado a partir da publicação da Medida Provisória que houver instituído ou modificado a contribuição. [...] Constitucionalidade da exigência do PIS, com as alterações introduzidas pela Lei 9.715/1998, para fatos geradores ocorridos a partir da contagem do prazo nonagesimal da MP 1.212/95. (STF, 1ª T., RE 400287 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, mai/07).

Mais uma vez, utiliza-se do ensinamento de Leandro Paulsen[4] para esclarecer sobre a questão da exigência das Contribuições Sociais

A previsão de que só poderão ser 'exigidas' após noventa dias não deve ser interpretada como relativa ao mero ato de cobrança do que já incidiu. Com a anterioridade especial, garante-se que a lei que institui ou modifica uma contribuição social não incidirá senão sobre fatos geradores ocorridos a partir de 90 dias da edição da lei.

Ora, no dia seguinte ao da publicação do Decreto já se observou o efeito do aumento do PIS e da COFINS nas bombas de combustível, contudo, a cobrança do tributo majorado só poderia ocorrer após decorridos 90 (noventa) dias da publicação do referido Decreto, conforme bem demonstrado acima.

Resta então evidente que os dispositivos das Lei nº 10.865/2004 e 9.718/1998, que permitem a majoração de alíquotas do PIS e da COFINS através de Decreto, ferem os princípios constitucionais de Direito Tributário, estando maculada de vícios que induzem a inconstitucionalidade, merecendo o afastamento para não haver tributação indevida e sangria no patrimônio do sujeito passivo da obrigação tributária, bem como daqueles aos quais são repassadas tais exações, aqueles que pagam indiretamente o tributo.


Notas

[1] Pausen, Leandro. Direito tributário : Constituição e Código Tributário à Luz da doutrina e da jurisprudência / Leandro Paulsen. 17. ed. - Porto Alegre : Livraria do Advogado; 2015, p. 158.

[2] Op. cit., p. 158.

[3] Ob. cit. 574

[4] Op. cit. 574


Autor

  • Ricardo Simões Xavier dos Santos

    Advogado. Fundador do escritório Ricardo Xavier Advogados Associados. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal; Mestre e Doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador - UCSal; Especialista em Direito do Estado pelo Jus Podivm/Unnyahna e em Direito Tributário pelo IBET. Professor da Universidade do Estado da Bahia - UNEB , da Universidade Católica do Salvador - UCSal e da Escola Superior da Advocacia - ESA - Seccional da OAB/BA; Coordenador Curso de Pós-graduação em Direito Empresarial da Universidade Católica do Salvador - UCSal. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Tributação e Finanças Públicas - NEF da Universidade Católica do Salvador - UCSal

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

XAVIER, Ricardo Simões Xavier dos Santos. Princípios da legalidade e anterioridade tributária e a inconstitucionalidade da modificação de alíquota de contribuição social (PIS e COFINS) através de decreto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5139, 27 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59348. Acesso em: 29 mar. 2024.