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As formas de utilização do terreno de marinha

As formas de utilização do terreno de marinha

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Você sabe o que são terrenos de marinha? Entenda a origem histórica deste instituto e as demais implicações que envolvem o tema na legislação urbanística vigente.

I – CONCEITO E HISTÓRIA DOS TERRENOS DE MARINHA

Terrenos de marinha são as faixas de terra fronteiras ao mar, numa largura de 33 metros contados da linha do preamar médio de 1831 para o interior do continente, bem como as que se encontram à margem dos rios e lagoas que sofram a influência das marés, até onde esta se faça sentir, e mais as que contornam ilhas situadas em zonas sujeitas a esta influência. Considera-se influência das marés a oscilação periódica do nível médio das águas igual ou superior a 5 centimetros(artigo 2º e parágrafo único do Decreto-lei 9760, de 5 de setembro de 1946)

A ordem Régia de 10 de janeiro de 1732  previa:

“ (...) da linha d’agua para dentro sempre são reservadas 15 braças pela borda do mar para serviço publico, nem entrão em propriedade alguma dos confinante com a marinha e tudo o quanto allegarem para apropriar do terreno é abuso inattendivel.”[ii]

Outra Carta Régia de 07 de Setembro de 1808 mandou promover a extração do sal das "marinhas" nas capitanias  de  Pernambuco,  Rio  Grande  do  Norte,  Bahia  e Ceará, após o desabastecimento comercial da colônia:

"Sendome presente a falta de sal que se póde experimentar nos meus Dominios do Brazil, por haver cessado a correspondencia entre o meu Reino de Portugal e este Estado, e querendo atalhar as consequencias nocivas que da falta de um genero tão necessario podem vir aos meus fieis vassallos: sou servido ordenar-vos que façais promover a extracção do sal das marinhas dessa Capitania, da de Itamaracá e Assú na do Rio Grande do Norte."

Diante do aumento de requisições públicas e particulares para utilização de terrenos costeiros visando à construção de armazéns, trapiches, igrejas, pequenos comércios, ruas e praças, em 15 de novembro de 1831, foi autorizada, via Lei Orçamentária, a cessão de terrenos costeiros para as Câmaras Municipais construírem logradouros públicos. Também foi autorizado que os Governos das Provincias aforassen tais terrenos a particulares, obtendo foros e laudêmios para si. O termo "cessão" foi utilizado em acepção ampla, devendo-se entender que a autorização abrangia não só aforamentos, mas também vendas e doações, conforme provaremos adiante: 

Lei orçamentária de 1831​:

Art. 51(...)14ª Serão postos à disposição das Camaras Municipaes, os terrenos de marinha, que estas reclamarem do Ministro da Fazenda, ou dos Presidentes das Provincias, para logradouros publicos, e o mesmo Ministro na Côrte, e nas Provincias os Presidentes, em Conselho, poderão aforar a particulares aquelles de taes terrenos, que  julgarem  conveniente,  e  segundo  o  maior  interesse  da  Fazenda,  estipulando tambem, segundo fôr justo, o fôro daquelles dos mesmos terrenos, onde já se tenha edificado sem concessão, ou que, tendo já sido concedidos condicionalmente, são obrigados   a   elles   desde   a   época   da   concessão,   no   que   se   procederá   á arrecadação.

O Aviso Imperial 373, de 12 de julho de 1833, determina que “são terrenos de marinha todos os que, banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis, em sua foz, vão até a distância de 33 metros para a parte das terras, contadas desde o ponto em que chega o premar médio”

Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de Direito Administrativo, 17ª edição, São Paulo, Malheiros, pág. 813), tais bens pertencem à União Federal, consoante o artigo 20, VII, da Constituição Federal e se constituem em bens púbicos dominicais e não devem ser confundidos com as praias, que são bens públicos federais de uso comum(artigo 20, IV, da Constituição).

A  Constituição de 1891 não deixou claro se os terrenos de marinha e acrescidos imperiais pertenceriam à União ou aos Estados no novo pacto federativo formado:

Art. 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. Parágrafo único - Os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados.

Há registro que o Supremo Tribunal Federal, em 31 de janeiro de 1905, rechaçou pleito dos Estados da Bahia e do Espírito Santo, assentando que os terrenos de marinha eram bens de domínio nacional, sobre os quais a União exercia um direito de soberania ou  jurisdição territorial, impropriamente chamado de domínio eminente

Logo, prevaleceu no âmbito do STF, o entendimento de que a Constituição de 1891 federalizou os terrenos de marinha, pois seriam imprescindíveis à defesa do país nos termos do art. 64 da Constituição.

Desde sua criação, o instituto dos terrenos de marinha foi moldado para ser submetido, via de regra, ao regime enfitêutico, como forma de gerar rendas de foros e laudêmios para o poder público concedente.

Em artigo sobre a matéria, Emmânuel Tobias(A verdadeira história dos terrenos de marinha e questões controversas) bem lembrou que “desde sua criação, o instituto dos terrenos de marinha foi moldado para ser submetido, via de regra, ao regime enfitêutico, como forma de gerar rendas de foros e laudêmios para o poder público concedente.

Disse Emmânuel Tobias (obra citada, Jus Navigandi): 

"O problema é que nos 100 primeiros anos de vigência do instituto, ocorreram operações imobiliárias de venda, permuta e doação de propriedade plena de imóveis pela União em zona de marinha, seja para outros entes federativos, seja para particulares. Tais operações foram feitas sob a guarida autorizativa do Decreto de 1868 e das leis orçamentárias anuais.”

Essas operações imobiliárias foram reconhecidas como válidas pelo Decreto 14.595 de 1920, que isentava de pagamento de taxa de ocupação terrenos vendidos ou doados a terceiros, obviamente porque não havia razão para a União obter rendas patrimoniais de imóveis alheios:

Art. 1º Todos os terrenos de marinhas   e   seus   accrescidos   ocupados   que   possuam   titulo   de   aforamento, arrendamento ou venda, firmados pelo Governo da União ficam sujeitos á taxa de occupação. (...)Art. 4º São isentos da taxas de occupação: a) os terrenos aforados; b) os que estiverem arrendados por conta da União; c) os que tiverem sido vendidos pela União; d) os que tiverem sido doados pela União aos governos dos Estados ou dos municipios ou particulares. (grifei)

A Lei citada utilizou explicitamente o termo venda e doação, e não aforamento, institutos já bem diferenciados pelo Código Civil vigente desde 1916.

Anos mais tarde, em 1932, outro Decreto de nº 22.250 criou a Diretoria de Domínio da União em substituição à Diretoria  do  Patrimônio  Nacional,  regulamentando  em  seu  art.  11  os  bens  de propriedade da União mencionados no art. 66 do Código Civil, mais uma vez convalidando as alienações de propriedade pretéritas feitas a Estados e Municípios:

Art. 4º A Diretoria de Dominio da União superintende todos os serviços pertinentes aos  bens do Dominio da União (art. 66 do Codigo Civil), a saber: (...) d) os terrenos de marinha e seus acrescidos, os de mangues, e as ilhas situadas no mares territoriais, ou não, e  que não estejam incorporados ao patrimonio dos Estados ou Municipios; (grifei)

Posteriormente, já sob a égide da Constituição de 1946, o Decreto-lei 9.760/46 autorizou expressamente a consolidação da propriedade plena particular (ou púbica de outro ente estatal), desde que obtida por títulos outorgados pela União na forma do Decreto.

Art. 198 - A União tem por insubsistentes e nulas quaisquer pretensões sôbre o domínio pleno de terrenos de marinha e seus acrescidos, salvo quando originais em títulos por ela outorgadas na forma do presente Decreto-lei.

A União Federal utilizou esses terrenos de marinha dentro do chamado regime de aforamento.

Havia o resgate, cujas condições, entre 1946 e 1998 (já sob o regime da Constituição de 1988), era o  pagamento de 20 (vinte) foros e 1 1/2 (um e meio) de laudêmio e não mais subsistirem os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico. A partir de 1998 (Lei 9636), a remição se daria pelo pagamento de 17% do valor do terreno, explicitando-se a partir de 2015 (Lei 13240), que dos 17% do valor do terreno seria abstraído,  desse  valor, as  construções.

O pagamento de 20 (vinte) foros e 1 1/2 (um e meio) de laudêmio e não mais subsistirem os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico. A partir de 1998 (Lei 9636), a remição se daria pelo pagamento de 17% do valor do terreno, explicitando-se a partir de 2015 (Lei 13240), que dos 17% do valor do terreno seria abstraído,  desse  valor, as  construções.

Mas, se inexistisse, por parte da União Federal, conveniência para uso da área em aforamento, ela seria submetida ao regime de ocupação precária, onde não há direito real, mas sim posse por parte do ocupante, reconhecida pela Gerência de Patrimônio da União.

Em 1988, a Constituição dispôs, no art. 20,VII,  que os terrenos de marinha e acrescidos seriam de propriedade da União, ocorrendo pela primeira vez a constitucionalização do direito de propriedade do ente federal sobre essas faixas de terra.

O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADCT criou uma restrição à venda ou remição de foro de certos imóveis situados em zona de marinha, pois o art. 49,§3º estabeleceu que a enfiteuse seria o regime aplicado obrigatoriamente aos terrenos situados na faixa de segurança. Essa faixa era definida desde 1946 no art. 100 da própria Lei 9760, distando 100 (cem) metros da costa marítima ou 1.320 (mil trezentos e vinte) metros de raio no entorno das fortificações e estabelecimentos  militares." 


II – AS FORMAS DE UTILIZAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA

Disse Emmânuel Tobias sobre o tema, em obra já citada: "Logo, imóveis em zona de marinha situados fora dessa faixa de segurança (nunca demarcada diga-se de passagem) poderiam ser alienados em concorrência pública (venda da propriedade plena), aforados (também em concorrência pública com direito de preferência para ocupantes em determinadas situações) ou submetidos ao regime de ocupação, tudo segundo os critérios de conveniência econômica, militar e administrativa já mencionados."

Sobre a situação dos imóveis da União em regime de enfiteuse, lembro a jurisprudência que trago à colação abaixo:

Em bem lançada síntese, na Remessa ex officio em Ação Civil nº 305.628, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, o Desembargador Paulo Machado Cordeiro, em julgamento de 15 de junho de 2004, lembrou que no aprazamento foreiro, em regime de enfiteuse, há que se distinguir o domínio útil do senhorio direto. Na ocupação, não se encontra essa distinção porque o domínio é exclusivo da União que não transmite ao ocupante qualquer direito de propriedade, nem lhe dá direito o seu aforamento. A constituição de aforamento depende de autorização presidencial ou legal, para a ocupação basta sua inscrição no SPU e o pagamento das taxas de ocupação. No aforamento enfitêutico, o bem aprazado passa ao foreiro, que dele usa, goza e dispõe; na ocupação, os direitos do ocupante se resumem no seu uso e gozo e disponibilidade das benfeitoras. Aquele é perpétuo e definitivo, tomando seu conceito no direito civil não podendo ser retirado pelo senhorio direto; este é temporário e provisório, sendo resolúvel a qualquer tempo pelo proprietário do bem, o poder público.

O aforamento enfitêutico e a ocupação são formas completamente distintas de utilização de imóveis da União. No caso da ocupação das terras públicas, o Decreto-lei nº 9.760/46, nos artigos 127 a 133, regula essas ocupações de terrenos da União, estabelecendo, em síntese:

a)      Os ocupantes de terrenos da União, sem título, são inscritos, de oficio, pelo SPU e pagarão uma taxa de ocupação;

b)      Em caso de inadimplência do ocupante por mais de dois anos, o SPU promoverá a cobrança executiva e irá providenciar a desocupação do imóvel;

c)       Permite-se a transferência onerosa sobre as benfeitorias edificadas no terreno ocupado, mediante o pagamento de um laudêmio de 5% sobre o valor do terreno e das benfeitorias, após a aquiescência do SPU;

d)      Se a União Federal necessitar do mencionado imóvel o SPU poderá negar a licença para a transferência;

e)      A inscrição do ocupante no SPU e pagamento da taxa de ocupação anual não implicam no reconhecimento pela União de qualquer direito de propriedade do ocupante sobre o terreno ou ao seu aforamento, salvo nas hipóteses de tratar-se de ocupante inscrito até o ano de 1940, quites com as taxas de ocupação;

f)       A União Federal se reserva o direito de, a qualquer tempo, necessitando do imóvel imitir-se em sua posse, indenizando as benfeitorias se a ocupação houver sido feita de boa-fé.

Discute-se o preço desse domínio útil.

Isso já se via quando se questionava sobre sua indenização nas desapropriações.

A Indenização na desapropriação não será paga senão a quem demonstre ser o titular do domínio do imóvel que lhe serve de objeto(artigo 34 do Decreto-lei nº 3.365/41; artigo 13 do Decreto-lei 554/69 e § 2º do artigo 6º da Lei Complementar 76/93).

Há discussão  com relação à área sujeita a aforamento. A esse respeito, de longe, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 35.752 – DF, Relator Ministro Luiz Gallotti,  enfrentou questão envolvendo imóvel sujeito a aforamento. Decidiu-se que, só tendo o expropriado o domínio útil, não deve receber a indenização por inteiro, como se fora titular do domino pleno, e sim descontada de vinte foros e um laudêmio.

Aliás, na matéria, Seabra Fagundes(A desapropriação no direito brasileiro, n. 525) admitia que o valor do domínio direto seja vinte pensões anuais. De modo contrário, opinava Eurico Sodré(Desapropriação por necessidade ou utilidade pública, edição 1945) considerava o disposto no Regulamento de 1903.

Disse bem, para o caso, Themistocles Brandão Cavalcanti, Procurador da República, que a indenização corresponde ao valor da propriedade, como direito real, mas também, a extinção de um contrato de enfiteuse, um arrendamento perpétuo que atribui ao senhorio direto uma renda perpétua.

Afirmou  o Ministro Galloti: “Ora, o laudêmio, pago obrigatoriamente ao caso de venda do domínio útil, como indenização ao senhorio direto, pelo fato de não ser este usado da preferência, corresponde efetivamente uma parte do valor desse domínio, e, portanto, a inclusão do laudêmio se impõe no cálculo do valor desse domínio”. Tal ainda a opinião de Sabbatini (Expropriazione per pubblica utilitá, volume II, pág. 127).

Dir-se-á que a enfiteuse é um instituto caduco. Por certo é, havendo censuras da doutrina a sua prática e sua inconveniência na rotina administrativa. Até 10 de janeiro de 2003(fim da vigência do Código Civil de 1916), a enfiteuse era considerada um direito real, no entanto, com a vigência do Código Civil de 2002, em 11 de janeiro daquele ano, a enfiteuse saiu do rol dos direitos reais que são previstos no artigo 1.225 do novo Código. Registre-se que, na esfera federal, permanece em vigência, na matéria, o Decreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, lei especial, naquilo que dispõe sobre o instituto do aforamento(artigos 99 e seguintes). 

Hoje, para essas áreas,  são  utilizados o direito real de uso e ainda o direito real de superfície.

A concessão do direito real de uso é o contrato pelo qual a Administração transfere a utilização remunerada ou gratuita de terreno público ao particular, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo, ou qualquer outra exploração de interesse social, consonante já se lia do artigo 7º do Decreto-lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, que a instituiu no sistema jurídico brasileiro.

A concessão de uso, como direito real, adere ao bem e o acompanha em todas as mutações, sendo alienável por ato inter vivos e transferível por sucessão legitima e testamentária. Atual a lição de Lopes Meirelles(obra citada, pág. 377), no sentido de que tal concessão substitui de forma vantajosa a maioria das alienações de terrenos públicos. Para tanto, a concessão de direito real depende de lei autorizativa e de concorrência, pois importa na alienação de parcela do domínio público, razão pela qual deve ser registrada tanto para a sua constituição como para seu cancelamento.

Desde a inscrição da concessão, o concessionário fruirá plenamente do terreno para os fins estabelecidos no contrato e responderá por todos os encargos, civis, administrativos e tributários que venham a incidir sobre o imóvel e suas rendas. Resolve-se a concessão antes de seu termo se o concessionário der ao terreno destinação diversa da estabelecida no contrato ou descumprir cláusula resolutória do ajuste, perdendo as benfeitorias que houver feito no imóvel(artigo 7º, § § 1º e 3º). O instituto está previsto no Código das Cidades(artigo 4º, V, “g”) como instrumento de política urbana.

Diversa é a cessão de uso que é a transferência gratuita da posse de um bem público de uma entidade ou órgão para outro, a fim de que o cessionário o utilize segundo a sua normal destinação, por certo tempo ou indeterminado. É ato de colaboração entre as entidades públicas, em que aquela que tem bem desnecessário aos seus serviços cede o uso a outra que o está precisando, nas condições estabelecidas no respectivo termo de cessão, não se confundindo com forma de alienação, sendo modalidade de utilização de bens públicos não aplicados ao serviço direto do cedente, na lição de Caio Tácito(RDA 32/482).

Como tal não exige autorização legislativa e se faz com o simples termo e anotação cadastral, sendo ato ordinário da Administração. Quando, porém, a cessão é para outra entidade, necessário se torna lei autorizativa da Câmara, para legitimar sua transferência de posse(não domínio) do bem municipal e estabelecer as condições em que o Prefeito pode fazê-la. É ato administrativo interno.

Outro instrumento previsto é a concessão de uso do espaço aéreo sobre superfície de terrenos públicos ou particulares, tomada em projeção vertical, nos termos e para os fins previstos no artigo 7º e na forma que for regulamentada. É instituto mediante o qual se atribui a pessoa diversa do proprietário o direito real de utilização do solo. Como tal é ainda previsto no artigo 5º do Estatuto das Cidades. Trata-se de especial direito real de construir e não de forma de servidão pessoal.

A superfície nasceu no direito romano para corrigir determinadas consequências do conceito romano do domínio que as novas transformações do instituto tornaram antieconômicas. Os romanos entendiam que tudo que estava sobre o solo se incorporava necessariamente, por direito natural, a seu proprietário. Não podiam conceber a propriedade da construção separada da propriedade do solo.

Entretanto, quando o número de propriedades particulares se rarefez, introduziu-se o uso de conceder a particulares o direito de edificar no solo público e gozar da construção, perpetuamente, ou não. O particular tinha apenas o uso do edifício e a faculdade de o transferir, devendo pagar um aluguel anual ou uma quantia única. Esse costume se generalizou entre as cidades. Era a superfície originária de um contrato de locação do solo, ficando o superficiário armado com uma actio conducti contra o proprietário do edifício, o qual era sempre o proprietário do solo, como ensinou Ebert Chamoun(Instituições de Direito Romano, 5º edição, pág. 278).

Contudo, a superfície assumiu uma tal importância que o pretor concedeu ao superficiário um interdito especial, análogo ao uti possedetis, o interdito de superficiebus que protegia a posse de quem quer que tivesse o gozo do edifício nec vi nec clam nec precario autorizado por um contrato de locação do solo. Tornou-se a superfície um direito real alienável e transferível aos herdeiros.

Por sua vez, no direito justiniâneo, o direito do superficiário é quase absoluto, pois não tem obrigações perante o proprietário e o pagamento do solarium parece não ser essencial à superfície. O direito de superfície, no direito romano, extingue-se pela destruição do imóvel, pela confusão do titulares, resgate, prescrição aquisitiva, ocorrendo a usucapio libertatis.

Pode a superfície ser constituída por particulares ou pelo Poder Público. No último caso funciona como um instrumento estatal para adequar o uso do solo urbano ou rural. A Administração pode figurar como concedente da superfície em caso de terras em sua titularidade ou como determinador da destinação que deverá ser dada ao solo para a concretização da superfície compulsória. Pois bem: o artigo 1.377 do Código Civil faculta que por lei especial a pessoa jurídica de Direito Público possa constituir direito de superfície, à luz do princípio da supremacia do interesse público.

Como ensina José Afonso da Silva(Direito Urbanístico Brasileiro, 6ª edição, pág. 404), à luz das ilações de Giovanni Balbi(Il diritto de superfície, pág. 30 a 49), o instituto assume dois aspectos:

a)      O superficiário torna-se proprietário de uma construção existente; se a construção existe, o direito de superfície constitui-se mediante a alienação de propriedade da construção, e não do solo; não haverá direito de superfície se a propriedade da construção pertencer ao proprietário do solo;

b)      Direito de superfície como direito de construir um edifício(prédio, casa etc) em solo alheio(concessão ad aedificandum), que é, assim, o contrato pelo qual o proprietário do solo permite à outra parte construir sobre o solo, com o atendimento, tácito ou expresso, de que o edifício se torne propriedade do construtor.

 Assim, a superfície se destacará do solo e constituirá um direito de propriedade em separado; o concessionário do ius aedificandi adquirirá a propriedade da superfície, do direito de edificar, e o edifício se tornará sua propriedade. Assim mediante o direito de superfície dá-se a separação do direito de construir do direito de propriedade do solo, na conformidade da convenção entre o concedente(superficiente) e o superficiário(concessionário).

No direito público, o direito de superfície consiste na possibilidade de utilização de terrenos urbanos de propriedade pública por particulares.

O Estatuto das Cidades concebe o direito de superfície como um contrato segundo o qual o proprietário urbano poderá conceder a outrem, gratuita ou onerosamente, o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no Cartório de Registro de Imóveis(artigo 21), abrangendo o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no respectivo contrato, atendida a legislação urbanística.

Por sua vez, o contrato de superfície extingue-se pelo advento de seu termo ou por sua rescisão em decorrência do descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário, entre as quais está o fato do superficiário dar ao terreno destinação diversa daquela para a qual fora concedida. A extinção do contrato reveste o proprietário no pleno domínio do terreno, bem como nas acessões e benfeitorias nele introduzidas, o que independe de indenização, salvo disposição contratual em contrário.

São negociáveis tanto o terreno concedido em superfície como o direito de superfície. Se o proprietário do terreno quiser aliená-lo, nada impede que o faça, desde que dê preferência ao superficiário em igualdade de condições à oferta de terceiro.

Os encargos ou tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária(sobre o terreno sobre o qual pesa o direito de superfície) são de integral responsabilidade do superficiário, que ainda responde pelos encargos e tributos que incidem sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo se as disposições do respectivo contrato estabelecerem outro sentido.


III – O PROBLEMA DO PREAMAR MÉDIO

Na matéria, repito integralmente as conclusões já traçadas por Emmânuel Tobias(obra citada) quando disse:

“O preamar médio do ano de 1831 foi estabelecido antes de 1942 e depois de 1946 como ponto de referência fundiária para os processos demarcatórios dos terrenos de marinha.

No período de 1942 a 1946, reinou a confusão quanto aos limites fundiários dos terrenos e aterros pois o Decreto-Lei nº 4.120-42 alterou completamente a sistemática de demarcação, passando a considerar o preamar daquele ano como ponto referencial, mandando inclusive se abstrair da demarcação a áreas tomadas pelos aterros: 

Art. 3º A origem da faixa de 33 metros dos terrenos de marinha será a linha do preamar máximo atual, determinada, normalmente, pela análise harmônica de longo período. Na falta de observações de longo período, a demarcação dessa linha será feita pela análise de curto período.

§ 1º Para os efeitos deste artigo, a análise de longo período deve basear-se em observações contínuas durante 370 dias. Para a análise de curto período, o tempo de observação será, no mínimo, de 30 dias consecutivos.

§ 2º A posição da linha do preamar máximo atual será fixada pela Diretoria do Dominio da União, de acordo com as observações e previsões de marés, feitas pelo Departamento Nacional de Portos e Navegação ou pela Diretoria de navegação do Ministério da Marinha. 

§ 3º No caso de ser reconhecida a existência de aterros naturais ou artificiais, tomar-se-á, como linha básica de marinhas, a que coincidir com o batente do preamar máximo atual, feita abstração dos referidos aterros.

Ao longo da história, a demarcação dos 19.000 km de costa incluindo praias, baias, ilhas, restingas, estuários e lagoas, banhados por águas cuja oscilação de maré seja de 5 cm, obviamente não pôde ser realizada por completo ou mesmo parcialmente.

Além da vastidão da área a ser demarcada em si (19.000km representam a distância da metade da circunferência terrestre), existe o problema dinâmico no processo: quanto mais o tempo avança, mais difícil fica para os demarcadores encontrarem o dito ponto do preamar médio referenciado na linha de costa  do ano de 1831.

Cientes das dificuldades de demarcação inerentes ao descobrimento dos longínquos referenciais originais, a norma federal de 1946 possibilitou que os demarcadores se orientassem por plantas e documentos históricos que mais se aproximassem daquele ano de 1831, para estabelecer qual foi o preamar de 1831 (sic). 

Art. 10. A determinação será feita à vista de documentos e plantas de autenticidade irrecusável, relativos àquele ano, ou, quando não obtidos, a época que do mesmo se aproxime.

O dispositivo legal é claramente imperfeito e dispensa maiores divagações jurídicas, pois deixa evidente que os demarcadores foram autorizados a arbitrar a LPM em lugar diverso do preamar médio ocorrido em 1831, bastando para isso que não existam documentos, plantas, fotos, ou dados maregráficos de 1831 no trecho delimitado.

Ou seja, em tese a demarcação de um determinado trecho desses 19.000km de LPM poderia ser feita se utilizando a tábua de marés de 30 anos atrás, ou então plantas cartográficas da região com  15 anos de idade,  bastando não haverem dados mais antigos para pesquisa. No caso do nível médio do mar oscilar para cima poucos centímetros com relação ao ano de 1831, a LPM poderia se deslocar centenas de metros costa adentro, seccionando dezenas, centenas ou milhares de propriedades alodiais. Esse é o cenário do absurdo desenhado pela legislação patrimonial federal.

Na prática, o que se vê nos processos demarcatórios findos ou em andamento é que muitas demarcações acabam seguindo a linha de vegetação da praias (linha de jundu) ou tábuas de marés muito recentes (a partir de níveis médios do mar claramente alterados), sem prejuízo de outros critérios demarcatórios obscuros e de precisão duvidosa, assunto bem desenvolvido nos estudos do conhecido professor Obéde Pereira de Lima (Tese de Doutorado Localização geodésica da linha da preamar média de 1831 – LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos. Florianópolis, 2002)

Registre-se, em tempo, que o conceito de preamar ganhou definição legal no Brasil no ano de 2004, no bojo do Decreto 5300, art. 2º XXII: é a altura máxima do nível do mar ao longo de um ciclo de maré, também chamada de maré cheia.

Se o conceito de preamar só foi estabelecido em lei no ano de 2004, é possível que as LPMs estabelecidas em demarcações anteriores a esse ano tenham utilizado outro critério conceitual, havendo então processos de demarcação da orla realizados com parâmetros técnicos diversos. As consequências técnicas e jurídicas de demarcações feitas em desalinho com o conceito legal  merecem reflexão em artigo à parte. 

Dados apresentados no Plano Nacional de Caracterização da SPU, em 2014, atestam que a linha de preamar total "demarcada" era, naquele ano, de 4.247,06 km e a linha não demarcada, 15.159,05 km, de um total de 19.406,11 km.

Nessa estatística, foram consideradas "demarcadas" pela SPU todas as linhas de preamar estimadas (presumidas). Ou seja, linhas que não foram homologadas administrativamente seguindo todos os ritos procedimentais, e registradas no registro público de imóveis, entram no cálculo da SPU como linhas demarcadas.

O plano referido define como  linha de preamar plenamente concluída a demarcada com todos os ritos legais cumpridos, incluindo intimação pessoal dos ocupantes conforme decidido na ADI 4264 pelo STF em 2011, e o registro das plantas e memoriais descritivos em cartório. Esse número não é divulgado no Plano Nacional de Caracterização.

cadastramento federal de imóveis em trechos não plenamente demarcados é um assunto que merece uma melhor análise de todos os operadores do direito envolvidos com o assunto, pois chega às raiais do absurdo o modus operandi atualmente em curso.

Antes da demarcação homologada, em nosso entendimento, a União tem expectativa de direito de propriedade sobre os imóveis localizados na presumida zona de marinha.

Os direitos patrimoniais imobiliários da União sobre terras não demarcadas e sem registro público (terrenos de marinha, terrenos marginais, terrenos ocupados por estradas e vias férreas federais, terras devolutas federais) se encontram em estado potencial até a homologação do processo demarcatório, marco temporal que estrema o domínio público do privado com efeitos ex tunc, e que permite que se efetuem os cancelamentos e retificações nos títulos dominiais conflitantes, pertencentes a terceiros, e obviamente, cobrança de receitas patrimoniais pela União, inclusive de forma retroativa (5 anos)

As superintendências da SPU costumam notificar quaisquer ocupantes de imóveis costeiros (ainda que com título de propriedade alodial) para cadastrarem seus imóveis nos bancos de dados do órgão federal, apenas com base em dados preliminares de cartografia do que será a futura LPM-LLM, não submetidos portanto  ao crivo do contraditório e da ampla defesa técnica e jurídica.

Esses cadastramentos levam à criação de inscrições imobiliárias (RIPs) nos livros e sistemas da SPU, na classificação de imóveis presumidamente da União, procedimento que reputo de legalidade questionável, com base na interpretação sistemática dos artigos 61, 63, 127 e 128 do DL 9760.

Art. 61 - O S.P.U. exigirá de todo aquêle que estiver ocupando imó9...vel presumidamente pertencente à União, que lhe apresente os documentos e títulos comprobatórios de seus direitos sôbre o mesmo. (...)

Art. 63 - Não exibidos os documentos na forma prevista no art. 61, o S.P.U. declarará irregular a situação do ocupante, e, imediatamente, providenciará no sentido de recuperar a União a posse do imóvel esbulhado.

Art. 127 - Os atuais ocupantes de terrenos da União, sem título outorgado por esta, ficam obrigados ao pagamento anual da taxa de ocupação. (...)

Art - 128. Para cobrança da taxa, o S.P.U. fará a inscrição dos ocupantes, ex- officio, ou à vista de declaração dêstes, notificando-os.

No caso de a União estar diante de um imóvel com potencialidade de se enquadrar em seu domínio patrimonial (expectativa de direito), os caminhos legais e razoáveis para a solução do problema são diversos:

Em primeiro lugar, pode a União demarcar definitivamente a zona de marinha e acrescidos, homologando e registrando a LPM-LLM no registro federal e no registro público imobiliário, tornando certa sua presunção de propriedade, o que autorizará a promoção dos cancelamentos e retificações necessários nos  títulos de propriedade conflitantes, total ou parcialmente englobados pela zona de marinha demarcada, na forma do art. 1º e 8-B da Lei 6739-1979, aplicável por analogia:

Art. 1º- A requerimento de pessoa jurídica de direito público ao Corregedor-Geral da Justiça, são declarados inexistentes e cancelados a matrícula e o registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito, ou feitos em desacordo com o art. 221 e seguintes da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975. (...)Art. 8-B - Verificado que terras públicas foram objeto de apropriação indevida por quaisquer meios, inclusive decisões judiciais, a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município prejudicado, bem como seus respectivos órgãos ou entidades competentes, poderão, à vista de prova da nulidade  identificada,  requerer  o  cancelamento  da  matrícula  e  do  registro  na  forma prevista nesta Lei, caso não aplicável o procedimento estabelecido no art. 8-A. (Incluído pela Lei nº 10.267, de 28.8.2001)

Se não existir LPM-LLM homologada, a União poderá notificar, com base em seu domínio eminente, o "ocupante"  para que apresente título de domínio da área, que se existir, fará presunção de propriedade contra a União e  terceiros  até  que  venha  a  ser  cancelado  ou  retificado judicial  ou extrajudicialmente, quando da ulterior demarcação homologada e registrada. Esse entendimento encontra guarida na regra do Art. 1.227e 1245 do Código Civil.

Art. 1227 Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. (...)

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. § 2º  Enquanto  não  se  promover,  por  meio  de  ação  própria,  a  decretação  de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.(grifei)

Por fim, entendemos que a União só poderá cadastrar provisoriamente o imóvel em área presumida como de marinha se ocupada sem título justo de propriedade.

Na hipótese do ocupante de imóvel costeiro não ter título dominial de imóvel em área de marinha presumida, ou seja, em área não demarcada e homologada, e o cartório de registro de imóveis informar a inexistência de qualquer registro público naquele terreno, estará a União autorizada por lei a arrecadar o imóvel e a declarar a irregularidade da posse valendo-se do poder de polícia decorrente de seu domínio eminente, com base no art. 63 do DL 9760, ficando qualquer ocupação nessa área sujeita às regras do regime ocupacional de maneira provisória até que se finalize a  demarcação e homologação e se produza o título declaratório do direito de propriedade imobiliária da  União.

Art.63  - Não  exibidos  os documentos na forma prevista no art. 61, o S.P.U. declarará  irregular a situação do ocupante, e, imediatamente, providenciará no sentido de recuperar a União a posse do imóvel esbulhado.

O cadastro deverá ser feito com a anotação de que o imóvel se encontra arrecadado pela União e de que a área está em processo de demarcação. Efetivada a demarcação e homologada administrativamente a LPM-LLM, se constatado que a área cadastrada realmente se situa nos limites da LLM, o ato homologatório servirá como título declaratório de propriedade definitiva da União, que poderá promover o registro imobiliário, a fim de se matricular o imóvel contido na zona de marinha.

Se a área estiver fora da zona de marinha, a União poderá promover a regularização fundiária da área nos termos da Lei 9636-98, não como terreno de marinha, mas como próprio nacional urbano ou rural, através de ação discriminatória.

Em resumo, não é outra a razão pela qual o DL 9760-1946, no seus artigos 61 e 63, manda a União notificar aqueles que estiverem em áreas de sua propriedade potencial a apresentarem os títulos de domínio particular: TÍTULO EMANADO DO REGISTRO PÚBLICO EM NOME DE TERCEIRO ELIDE A PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE PÚBLICA FEDERAL, ATÉ PROVA DESCONSTITUTIVA EM CONTRÁRIO!

Observo que  a Súmula 496 do STJ diz que os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União. Ora, apenas a demarcação HOMOLOGADA pode definir, nos termos da própria Súmula e das regras de direito administrativo, se a unidade imobiliária realmente está ou não situada em zona de marinha, e se títulos dominiais validamente atribuídos a terceiros são de fato inválidos.

Logo, títulos de propriedade particular de imóveis em zona de marinha NÃO SÃO OPONÍVEIS à União se, e  somente se ocorrerem as duas situações:

a) ela tiver homologado sua demarcação;

 b) não tiver havido prévio destaque legal do imóvel do domínio público, nos termos das regras de direito patrimonial da União.

título dominial da União, como já ditotem natureza declaratória de propriedade patrimonial pública com eficácia ex tunc, e ao mesmo tempo, desconstitutiva de títulos particulares contraditórios não validamente atribuídos. Esse título será documento hábil para encaminhamento ao registro público imobiliário para fins de abertura de matrícula das unidades imobiliárias abrangidas no trecho, devidamente acompanhado das plantas e memoriais descritivos.

O mesmo título servirá para a União proceder à retificação, bloqueio ou pedido de cancelamento dos títulos de terceiros contraditórios com seu direito, particulares ou de outro ente público, desde que não validamente atribuídos aos últimos. O procedimento  de acertamento do registro público será conduzido pelo próprio oficial de registro imobiliário e seu juiz corregedor, nos termos das regras de retificação e cancelamento de registro definidas na Lei 6015-1973 e da Lei 6739-1979”.


IV  – O INTERESSE DA UNIÃO NA ALIENAÇÃO DOS IMÓVEIS SUJEITOS Á  AFORAMENTO

Num esforço para reforçar o caixa, anuncia-se que a União Federal  vai vender sua participação nos chamados terrenos de marinha, em áreas localizadas ao longo da costa brasileira.

Sabe-se que os moradores desses imóveis pagam anualmente uma taxa de aforamento de 0,6% sobre o valor do terreno para a União Federal.

Abre-se uma expectativa de que essas pessoas possam adquirir a parcela e assim adquirir o domínio pleno dos imóveis. Espera-se  arrecadar R$500 milhões no período de um ano.

Daí a sua importância na administração financeira da União Federal.

Os  recursos arrecadados com essas cobranças são recolhidos na conta única do Tesouro Nacional, não havendo uma destinação específica.

Muitos, no mercado imobiliário, gostariam de mudanças nas normas para eliminar o instituto dos terrenos de marinha.

Comenta-se que o último dia de 2015 foi um divisor de águas na cobrança dos preços  que causam confusão e discórdia no setor imobiliário. A publicação da lei 13.240, dedicada a trâmites relacionados a imóveis da União, alterou e definiu pontos como a cobrança de laudêmio e taxa de ocupação, diminuindo significativamente os encargos.

A novidade é um alívio para os bolsos de quem vai comprar ou vender imóveis nos chamados terrenos de marinha, aqueles considerados como pertencentes à União por ocupar, na costa marítima, uma área que leva em consideração padrões determinados em 1831.

Enquanto isso, a taxa de ocupação, que é cobrada anualmente e antes podia chegar a 5% do valor do terreno com a área construída, agora foi fixada em 2%, excluindo as benfeitorias.

Veja-se a alteração da Lei enfocada: 

Art. 27. O Decreto-Lei n.  2.398, de 21 de dezembro de 1987, passa a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 1º A taxa de ocupação de terrenos da União será de 2% (dois por cento) do valor do domínio pleno do terreno, excluídas as benfeitorias, anualmente atualizado pela Secretaria do Patrimônio da União.

I - (revogado);

II - (revogado).

...................................................................................................................." (NR)

"Art. 3º A transferência onerosa, entre vivos, do domínio útil e da inscrição de ocupação de terreno da União ou cessão de direito a eles relativos dependerá do prévio recolhimento do laudêmio, em quantia correspondente a 5% (cinco por cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno, excluídas as benfeitorias.

............................................................................................................

§ 5º A não observância do prazo estipulado no § 4º sujeitará o adquirente à multa de 0,05% (cinco centésimos por cento), por mês ou fração, sobre o valor do terreno, excluídas as benfeitorias.

.........................................................................................................." (NR)

"Art. 6º-A. São dispensados de lançamento e cobrança as taxas de ocupação, os foros e os laudêmios referentes aos terrenos de marinha e seus acrescidos inscritos em regime de ocupação, quando localizados em ilhas oceânicas ou costeiras que contenham sede de Município, desde a data da publicação da Emenda Constitucional nº 46, de 5 de maio de 2005, até a conclusão do processo de demarcação, sem cobrança retroativa por ocasião da conclusão dos procedimentos de demarcação."

Busca-se a eliminação do instituto da enfiteuse, no direito administrativo, uma vez que já, no âmbito das relações privadas, o instituto não foi previsto no Código Civil de 2002.

Observe-se o tratamento que a nova legislação dá a esse imóveis (Lei 13.240):

"Art. 4o  Os imóveis inscritos em ocupação poderão ser alienados pelo valor de mercado do imóvel, segundo os critérios de avaliação previstos no art. 11-C da Lei no 9.636, de 15 de maio de 1998, excluídas as benfeitorias realizadas pelo ocupante.             (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 1o  A alienação a que se refere este artigo poderá ser efetuada à vista ou de forma parcelada, permitida a utilização dos recursos do FGTS para pagamento total, parcial ou em amortização de parcelas e liquidação do saldo devedor, observadas as demais regras e condições estabelecidas para uso do FGTS.                (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 2o  As demais condições para a alienação dos imóveis inscritos em ocupação a que se refere este artigo serão estabelecidas em ato da Secretaria do Patrimônio da União (SPU).              (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 3o  A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) verificará a regularidade cadastral dos imóveis a serem alienados e procederá aos ajustes eventualmente necessários durante o processo de alienação.              (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 4o  O prazo de validade da avaliação de que trata o caput deste artigo será de, no máximo, doze meses.    

~Art. 8o  O Ministro de Estado do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, permitida a delegação, editará portaria com a lista de áreas ou imóveis sujeitos à alienação nos termos desta Lei.            (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 1o Os terrenos de marinha e acrescidos alienados na forma desta Lei:

I - não incluirão:

a) áreas de preservação permanente, na forma do inciso II do caput do art. 3o da Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012; ou

b) áreas em que seja vedado o parcelamento do solo, na forma do art. 3o e do inciso I do caput do art. 13 da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979;

II - deverão estar situados em área urbana consolidada de Município com mais de cem mil habitantes, conforme o último Censo Demográfico disponibilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, ou que tenha:

a) (VETADO); e

b) (VETADO).

II - deverão estar situados em área urbana consolidada. (Redação dada pela Medida Provisória nº 759, de 2016)

II - deverão estar situados em área urbana consolidada.             (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 2o  Para os fins desta Lei, considera-se área urbana consolidada aquela:

I - incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica;

II - com sistema viário implantado e vias de circulação pavimentadas;

III - organizada em quadras e lotes predominantemente edificados;

IV - de uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou voltadas à prestação de serviços; e

V - com a presença de, no mínimo, três dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados:

a) drenagem de águas pluviais;

b) esgotamento sanitário;

c) abastecimento de água potável;

d) distribuição de energia elétrica; e

e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos.

§ 3o  A alienação dos imóveis de que trata o § 1o não implica supressão das restrições administrativas de uso ou edificação que possam prejudicar a segurança da navegação, conforme estabelecido em ato do Ministro de Estado da Defesa.

§ 4o  Não há necessidade de autorização legislativa específica para alienação dos imóveis arrolados na portaria a que se refere o caput.

Art. 8o-A.  Fica a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) autorizada a receber Proposta de Manifestação de Aquisição por ocupante de imóvel da União que esteja regularmente inscrito e adimplente com suas obrigações com aquela Secretaria.                     (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 1o  O ocupante deverá apresentar à SPU carta formalizando o interesse na aquisição juntamente com a identificação do imóvel e do ocupante, comprovação do período de ocupação e de estar em dia com as respectivas taxas, avaliação do imóvel e das benfeitorias, proposta de pagamento e, para imóveis rurais, georreferenciamento e CAR individualizado.                      (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 2o  Para a análise da Proposta de Manifestação de Aquisição de que trata este artigo deverão ser cumpridos todos os requisitos e condicionantes estabelecidos na legislação que normatiza a alienação de imóveis da União, mediante a edição da portaria do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, de que trata o art. 8o desta Lei, bem como os critérios de avaliação previstos no art. 11-C da Lei no 9.636, de 15 de maio de 1998.                       (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 3o  O protocolo da Proposta de Manifestação de Aquisição de imóvel da União pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) não constituirá nenhum direito ao ocupante perante a União.                      (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 4o  A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) fica autorizada a regulamentar a Proposta de Manifestação de Aquisição de que trata este artigo, mediante edição de portaria específica.                     (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

Art. 9o  Poderá ser alienado ao ocupante que o tenha como único imóvel residencial no Município ou no Distrito Federal, dispensada a licitação, o imóvel da União situado em área:

I - urbana consolidada, nos termos do § 2o do art. 8o desta Lei, desde que não esteja situado em área de preservação permanente, na forma do inciso II do caput do art. 3o da Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012, nem em área na qual seja vedado o parcelamento do solo, na forma do art. 3º e do inciso I do caput do art. 13 da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979;

II - rural, desde que o imóvel tenha área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural estabelecida pela Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, e não superior ao dobro daquela dimensão e não esteja sendo utilizado para fins urbanos.

Art. 10.  É assegurado ao ocupante de boa-fé o direito de preferência para a aquisição do respectivo imóvel sujeito a alienação nos termos desta Lei.

Art. 11.  O adquirente receberá desconto de 25% (vinte e cinco por cento) na aquisição, com fundamento nos arts. 3o e 4o, requerida no prazo de um ano, contado da data de entrada em vigor da portaria de que trata o art. 8o, que incluir o bem na lista de imóveis sujeitos à alienação.

Art. 11.  O adquirente receberá desconto de 25% (vinte e cinco por cento) na aquisição à vista, com fundamento no art. 4o desta Lei, requerida no prazo de um ano, contado da data de entrada em vigor da portaria de que trata o art. 8o desta Lei que incluir o bem na lista de imóveis sujeitos à alienação.                    (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)

Parágrafo único.  Para as alienações efetuadas de forma parcelada, não será concedido desconto.                    (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

Art. 12.  O pagamento das alienações realizadas nos termos desta Lei observará critérios fixados em regulamento e poderá ser realizado:

Medida de importância sob o ponto de vista da cessão de uso está a redação do artigo 14, que permite à União transferir aos Municipios litorâneos a gestão das praias praias marítimas urbanas(áreaas de uso comum e inalienáveis, que são bens da União, a teor do artigo 20 da Constituição de 1988:

Art. 14.  Fica a União autorizada a transferir aos Municípios litorâneos a gestão das praias marítimas urbanas, inclusive as áreas de bens de uso comum com exploração econômica, excetuados:

I - os corpos d’água;

II - as áreas consideradas essenciais para a estratégia de defesa nacional;

III - as áreas reservadas à utilização de órgãos e entidades federais;

IV - as áreas  destinadas  à  exploração  de  serviço  público  de  competência da União;

V - as áreas situadas em unidades de conservação federais.

§ 1o  A transferência prevista neste artigo ocorrerá mediante assinatura de termo de adesão com a União.

§ 2o  O termo de adesão será disponibilizado no sítio eletrônico do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão para preenchimento eletrônico e preverá, entre outras cláusulas:

I - a sujeição do Município às orientações normativas e à fiscalização pela Secretaria do Patrimônio da União;

II - o direito dos Municípios sobre a totalidade das receitas auferidas com as utilizações autorizadas;

III - a possibilidade de a União retomar a gestão, a qualquer tempo, devido a descumprimento de normas da Secretaria do Patrimônio da União ou por razões de interesse público superveniente;

IV - a reversão automática da área à Secretaria do Patrimônio da União no caso de cancelamento do termo de adesão;

V - a responsabilidade integral do Município, no período de gestão municipal, pelas ações ocorridas, pelas omissões praticadas e pelas multas e indenizações decorrentes.

§ 3o  (VETADO).

A teor do artigo 15 da Lei 13.240 tem-se, numa verdadeira desafetação:

 Ficam transferidos aos Municípios e ao Distrito Federal os logradouros públicos, pertencentes a parcelamentos do solo para fins urbanos aprovados ou regularizados pelo poder local e registrados nos cartórios de registro de imóveis, localizados em terrenos de domínio da União.

Em síntese: a União Federal entrega aos Municípios a fiscalização e administração dessas áreas de uso comum(praias) e dá aos Municípios poderes, que lhe são inerentes, com relação aos instrumentos urbanisticos que devem ser aplicados.  


V  – A LICENÇA PARA CONSTRUIR EM TERRENOS DE MARINHA

Mas vem a duvida no que concerne à edificação e tributação local nesses terrenos de marinha.

A doutrina cediça considera que o controle das edificações é  importante atribuição do Poder Executivo Municipal na consecução do cumprimento das funções sociais da propriedade urbana e da cidade, propiciando um desenvolvimento urbano equilibrado, socialmente justo, e sustentável do ponto de vista econômico e ambiental, bem como evitando e corrigindo distorções no crescimento urbano e seus efeitos negativos para o meio ambiente e para a qualidade de vida das pessoas, é o controle das construções.

Por serem atividades que intervêm com a ordenação urbana, qualquer construção, ampliação, reforma ou demolição precisa ser previamente licenciada pelo Poder Público Municipal. A licença é comumente chamada de “alvará” de construção, reforma, ampliação ou demolição.

Mesmo previamente licenciadas, as obras urbanas precisam ser fiscalizadas durante a sua execução, para assegurar-se de sua conformidade ao alvará expedido. O fiscal que inspecioná-las lavrará termo de ocorrência das irregularidades que constatar, encaminhando-o à autoridade superior, a qual, se for o caso, expedirá auto de infração e intimará o interessado para regularizar a construção.

Depois de terminada, o Poder Público Municipal terá que verificar se a edificação foi executada em conformidade com o projeto previamente aprovado. Confirmada a regularidade, expedir-se-á a licença respectiva (“habite-se”, “certificado de conclusão de obra”, “atestado de conclusão”, etc).

Louvo-me na interpretação de Victor Carvalho Pinto, para quem o direito de construir e suas modulações pelo Poder Público não derivam do poder de polícia, stricu sensu, embora possam ser objeto de fiscalização com base nele. O direito de construir configura um bem autônomo, espécie sui generis de direito real, inclusive averbável junto à matrícula do imóvel sobre o qual recai, e patrimonializável pelo particular: Em todos os institutos estudados, verifica-se a existência de ônus a serem suportados pelos proprietários para financiar a infraestrutura urbana.

No loteamento, são realizadas obras, transferidos terrenos e criadas servidões. Na contribuição de melhoria, na outorga onerosa, nas operações urbanas consorciadas e na transferência do direito de construir é feito um pagamento em dinheiro. Em todos estes casos, o benefício auferido em troca é a aquisição ou ampliação do direito de construir.

O fato de haver uma relação sinalagmática em todas essas situações, tendo por objeto o direito de construir, já demonstra que seu fundamento não pode ser o poder de polícia, uma vez que este não pode ser transacionado. (...) Estes mecanismos só fazem sentido se aceito o princípio da patrimonialização do direito de construir(Direito Urbanístico – Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 314-316).

Essa atividade de licença para construção é tarefa do Município.

A doutrina estabeleceu, quanto às licenças urbanísticas, princípios reitores para auxiliar na solução desse tipo de controvérsia, tais como: a) necessidade: o particular que deseje exercer atividade edilícia está obrigado a licenciar a obra, nas hipóteses da lei municipal; b) caráter vinculado: já o Poder Público, no momento de outorga da licença, esta adstritos às exigências legais, não podendo legitimamente negá-la quando verificados os mesmos.

Alguns autores, porém, falam em certa discricionariedade técnica do Município, inclusive na caracterização dos requisitos legais; c) transferibilidade: alienado o imóvel, a licença para nele edificar segue o principal, favorecendo os sucessores ou adquirentes; d) autonomia: à Administração não cabe discutir, para concessão da licença, quaisquer pendengas sobre domínio do imóvel ou relativas às relações inter privados, tampouco nelas influindo; e) definitividade: exercida a atividade nos termos e nos prazos da licenças, isto é, antes que a mesma caduque, gerando prescrição, o ato não pode ser discricionariamente revisto ou revogado.

Qual a natureza jurídica dessa licença?

Diferentemente da aprovação de projeto de parcelamento do solo, a documentação da aprovação de projetos de construção, reforma ou demolição se dá mediante alvarás de licença, e não de autorização. Hely Lopes Meirelles bem explana ambas as categorias: O alvará será de licença quando se tratar de construção definitiva em terreno do requerente; será de autorização quando se cuidar de obra provisória, em terreno do domínio público ou mesmo particular.

A diferença está em que, no caso de alvará de licença, sua outorga assenta no direito do requerente à edificação em caráter definitivo no terreno indicado, como ocorre com as construções previstas no Código de Obras e nas leis de zoneamento; no caso de alvará de autorização sua expedição decorre de liberalidade da Prefeitura (e não de direito do requerente), como na hipótese da construção de uma banca em praça pública para venda de jornais (...) Daí decorre que o alvará de autorização é sempre revogável sumariamente pela Prefeitura, sem qualquer indenização, ao passo que o alvará de licença nem sempre o é(Direito municipal brasileiro, 12ª edição, páginas 546 e 547).

Para Hely Lopes Meirelles(obra citada, 1977, pág. 539), o alvará é o instrumento de licença ou da autorização para a prática de ato, realização de atividade ou exercício dependente de policiamento administrativo. Assim o alvará expressa o consentimento formal da administração à pretensão do administrado.

O alvará será definitivo ou precário. Será definitivo e vinculante para a administração quando expedido diante de um direito subjetivo do requerente, como o é o direito de construir, desde que ele satisfaça todos os requisitos legais exigidos.

O alvará provisório é concedido por liberalidade, de forma discricionária e precária pelo Município, como é o caso de instalação de uma banca numa praça pública.

O alvará para a construção é o instrumento de licença ou da autorização de construir de acordo com o projeto aprovado. O alvará será de licença quando se tratar de construção definitiva em terreno do requerente; será de autorização quando se cuidar de obra provisória, em terreno do domínio público ou mesmo particular.

A diferença está em que, no caso de alvará de licença, sua outorga assenta no direito do requerente à edificação, em caráter definitivo, no terreno indicado, como ocorre nos Códigos de Obras e nas Leis de Zoneamento. O alvará de licença traz a presunção de definitividade.

Será o regulamento das construções urbanas, o Código de Obras do Município, que irá estabelecer minunciosamente os requisitos para cada modalidade de construção(residencial, comercial, industrial etc), objetivando a segurança, higiene, a funcionalidade e a estética da obra.  

A licença para edificar constitui, como disse José Afonso da Silva(Direito urbanístico brasileiro, 6ª edição, pág. 437), mais que simples remoção de obstáculos, pois constitui técnica de intervenção nas faculdade de edificar, reconhecida pelas normas edilícias e urbanísticas, com o objetivo de controlar e condicionar o exercício daquelas faculdades ao cumprimento das determinações das mencionadas normas edilícias e urbanísticas, incluindo as determinações dos planos urbanísticos.

O procedimento para obtenção da licença para edificar desenvolve-se em três fases: a introdutória, a de apreciação do pedido e a decisória.

A fase introdutória instaura-se pela apresentação do requerimento do interessado, submetendo-se o projeto das plantas à aprovação da Prefeitura, por seu órgão competente. Ali serão analisados: titulo de propriedade do imóvel ou compromisso de compra e venda; memorial descritivo da obra; peças gráficas apresentadas de acordo com o modelo adotado pela Prefeitura, em escala conveniente, especificada na legislação; levantamento planialtimético do imóvel, que serviu de base para o projeto.

Na fase de apreciação do pedido pela Prefeitura entra a discricionariedade técnica da Administração com relação à outorga da licença.

A fase decisória compreende o deferimento ou não da licença. Será ilegal o indeferimento do pedido por causas extrínsecas, como o fato de haver decreto declaratório de utilidade pública para desapropriação do terreno, como ensinou Hely Lopes Meirelles(Direito de construir, 9ª edição, pág. 211).

O silêncio da administração municipal quanto à decisão do pedido de aprovação de projeto de outorga da licença para edificar terá o efeito que a legislação local estabelecer. Será  silêncio negativo, como ensinou José Afonso da Silva(obra citada, pág. 441), que importará recusa da licença, quando a lei determinar esse efeito com o transcurso do prazo previsto para a decisão em  que esta se verifique. Será silêncio positivo quando, ao contrário, a transição do prazo sem decisão importar numa outorga da licença.

Pode o Código de Edificações do Município determinar prazo para a decisão, ficando este  suspenso durante a pendência do atendimento  pelo requerente. Escoado o prazo para decisão do processo de aprovação, poderá ser requerido alvará de aprovação, podendo a obra ser iniciada com inteira responsabilidade do particular e profissionais da área de construção civil. Aliás o projeto de obra deverá sr elaborado por arquiteto ou engenheiro habilitado na forma da Lei(ver Lei 5.194, com registro no CREA).  

A licença poderá ser para construção, reforma, demolição.

Se houver alteração do projeto por outro diferente, quando aquele já foi aprovado, ter-se-á que se pedir uma substituição da licença, cancelando-se a anterior.

A vigência e a caducidade das licenças se submetem à legislação municipal. A caducidade das licenças ocorre com o transcurso do prazo de perempção quando, durante ele, não se tiver dado início das obras licenciadas. O prazo de perempção é função do início da obra. Havendo caducidade, apagando-se a validade da licença, se o particular quiser executar a obra, terá que solicitar uma nova licença.

A licença poderá ser objeto de anulação(por despacho motivado, após apresentação de defesa do particular), por vício de legalidade do ato administrativo ou ainda de revogação, se houver vício do mérito do ato, tais como: mudança das circunstâncias, adoção de novos critérios e erro na sua outorga, um erro de classificação de valores, de interpretação etc, erro de direito.

No caso de revogação do alvará, por razões de conveniência e oportunidade da administração, revelados os motivos e o objeto do ato, a Prefeitura deverá indenizar cabalmente o lesado, amigavelmente ou em desapropriação do imóvel(por certo o Município não poderá desapropriar bem da União), como revelou Caio Tàcito(Problemas atuais da desapropriação, Poder de Polícia das construções, pág. 146 e seguintes). Mas deverá a administração demonstrar, de forma cabal, o interesse público na suspensão da obra, compondo os danos de quem ficou privado da construção.

A licença pode ser cassada, se houver posterior descumprimento das exigências dela.

Ensinou Hely Lopes Meirelles(obra citada, pág. 549) que, se a obra já se iniciou, em conformidade com o projeto e com o alvará de licença, não poderá a Prefeitura ordenar a sua paralisação e demolição por simples decisão administrativa, porque a parte construída já se integrou ao terreno, por acessão(STF, RE 85.002 – SP, DJU de 17 de setembro de 1976). Também não se justifica a invalidação do alvará por mudança de orientação administrativa, ou nova interpretação das normas da construção, como revelou Hely Lopes Meirelles(obra citada, pág. 549), pois o critério anterior é válido para as licenças expedidas e gera direito subjetivo em sua manutenção.

A construção, reforma, demolição, nos terrenos de marinha, que são imóveis da União Federal, estaá sujeita, quando utilizada por particulares, à legislação municipal, no que tange à edificação e tributação local, assim como quanto às atividades que neles se realizem, como ensinou Hely Lopes Meirelles(Direito municipal brasileiro, 1977, pág. 364).


VI - O LOTEAMENTO FECHADO NAS AREAS DE TERRENOS DE MARINHA

Estudiosos, como Luiz Fernando Janot(Em busca da cidadania esquecida, O Globo, dia 29.7.2017), alertam que "aproveitando-se do vácuo existente na segurança pública, difundiu-se a ideia de que a segurança privada poderia ser uma alternativa viável para suprir a ineficiência do poder público. Em paralelo, setores do mercado imobiliário adotaram os grandes condomínios residenciais fechados como paradigma para suas incorporações.

No contraponto dessa tendência, a professora Beatriz Jaguaribe afirma que “a aceitação desses condomínios vem coroar uma atitude antiurbana que busca o refúgio do privado contra a incursão da urbe descontrolada”.

A Barra da Tijuca foi precursora deste tipo de moradia no Rio de Janeiro. Pelos idos dos anos 80, o urbanista Lucio Costa, preocupado com o desvirtuamento do seu plano-piloto para essa região, reagiu à obsessão dos incorporadores em adotar esse modelo de condomínio residencial. Considerava que eles seriam, no futuro, responsáveis pelo enfraquecimento das relações sociais nos espaços públicos." 

Com o loteamento fechado, acaba-se por buscar uma cidadania perdida. São uma espécie de loteamento que deve ser objeto de legislação federal própria. Tema de importância no direito urbanistico é o condominio fechado. Observe-se que há confilitos urbanisticos evidentes, inclusive, no que concerne às vias internas que, muitas vezes, não correspondem ao da legislação municipal. 

Sobre ele, destaco as ilustres opiniões arroladas abaixo.

Álvaro Pessoa(O loteamento e o condominio no desenvolmento urbano, In Boletim Informativo do Departamento de Assistência Jurídica e Consultiva dos Municípios, 1978) disse que "as questões que emergem da modalidade de expansão urbana denominada condominial são sobretudo as seguintes: ocorrência de praças e ruas particulares(não são logradouros públicos); possibilidade de bloquear o acesso ao condomínio aos comuns do povo, através de portão ou portaria dividindo solo público ou privado; e, por último, mas não menso importante, impedir a passagem para a praia através do imóvel particular de propriedade do condomínio". 

Hely Lopes Meirelles(Loteamento Fechado, Revista de Direito Imobiliário nº 9 - janeiro-junho de 1982, São Paulo, RT.) ensinou:

"Os loteamentos especiais estão surgindo especialmente nos arredores das grandes cidades, visando descongestionar as metrópoles. Para esses loteamentos não há, ainda, legislação superior específica que oriente sua formação, mas nada impede que os Municípios editem normas urbanísticas adequadas a essas urbanizações. E tais são os denominados ‘loteamentos fechados’, ‘loteamentos integrados’, ‘loteamentos em condomínio’, com ingresso só permitido aos moradores e pessoas por eles autorizadas e com equipamentos e serviços urbanos próprios, para auto-suficiência da comunidade. Essas modalidades merecem prosperar. Todavia, impõem-se um regramento legal prévio para disciplinar o sistema de vias internas (que em tais casos são bens públicos de uso comum do povo) e os encargos de segurança, higiene e conservação das áreas comuns e dos equipamentos de uso coletivo dos moradores, que tanto podem ficar com a Prefeitura como com os dirigentes do núcleo, mediante convenção contratual e remuneração dos serviços por preço ou taxa, conforme o casos".

Para José Afonso da Silva(Direito Urbanístico Brasileiro, 1ª ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1981, pp. 400-402): 

"A denominação de ‘loteamento fechado’ vem sendo atribuída a certa forma de divisão de gleba em lotes para edificação, que, embora materialmente se assemelhe ao loteamento, na verdade deste se distancia no seu regime como nos seus efeitos e resultados. Não se trata, por isso de instituto do parcelamento urbanístico do solo, ainda que possa ser considerado uma modalidade de urbanificação, porque se traduz num núcleo populacional de caráter urbano. Modalidade especial de aproveitamento do espaço, não pode o Direito Urbanístico desconhecê-la, a despeito de reger-se por critérios do Direito Privado entre nós, sob forma condominial.

‘Então o chamado ‘loteamento fechado’ constitui modalidade especial de aproveitamento condominial de espaço para fins de construção de casas residenciais térreas ou assobradadas ou edifícios. Caracteriza-se pela formação de lotes autônomos com áreas de utilização exclusiva de seus proprietários, confinando-se com outras de utilização comum dos condôminos. O terreno, assim ‘loteado’, não perde sua individualidade objetiva, conquanto sofra profunda transformação jurídica...‘O regime jurídico dessa modalidade de desenvolvimento urbano, como acabamos de indicar é o Direito Privado, com base no art. 8º da Lei 4.591/64, com natureza jurídica, como visto, de condomínio privado."

Ainda sobre o tema, preleciona Caio Mário da Silva Pereira, autor da Lei de Condomínios, que anota:

"Diversamente da propriedade horizontal típica, em que a cada unidade se vincula apenas a cota ideal do terreno e partes comuns, aqui existe uma unidade autônoma, uma parte de terreno edificado, uma parte de terreno reservado como de utilidade exclusiva para jardins ou quintal e ainda a fração ideal sobre o que constitui o condomínio. ‘Discriminar-se-ão, ainda, as áreas que se constituem em passagem comum para as vias públicas ou para as partes utilizadas entre si, ou os caminhos de acesso à praia, a ponte, a lugar aprazível" 

O Registrador Imobiliário, Elvino Silva Filho, que foi, durante muitos anos, Oficial do 1º Cartório de Registro de Imóveis de Campinas, SP. tem por seguinte definição de loteamento fechado:

"O loteamento fechado consiste na subdivisão de uma gleba em lotes destinados a edificação ou formação de sítios de recreio, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos, devendo ser essa gleba cercada ou murada em todo o seu perímetro de modo a manter sob controle o acesso aos lotes.

Atente-se, antes de mais nada, a que o loteamento fechado é um loteamento comum, aprovado o projeto pela Prefeitura Municipal, conseqüentemente devendo ser registrado no Registro de Imóveis, em cumprimento aos requisitos previstos na Lei 6.766, de 19.12.79.

O adquirente do lote de terreno será proprietário de um imóvel perfeitamente individuado, numerado e localizado com as suas características e confrontações. Conseqüentemente, poderá edificar no lote adquirido e exercer todos os direitos compreendidos no direito de propriedade. Algumas restrições, porém, se impõem ao seu direito de propriedade, as quais ele deve, previamente conhecer e a elas se submeter, pela circunstância de adquirir um lote de terreno em um loteamento fechado. 

Dessas restrições podemos destacar, desde logo, seu direito de acesso ao lote adquirido, o qual é controlado em uma portaria ou portão de ingresso ao loteamento, e também sua contribuição para a manutenção das vias de comunicação e logradouros constantes do loteamento. A grande questão quer surge no loteamento fechado está, exatamente, nas vias de circulação e nos logradouros públicos. 

Dissemos acima que a Prefeitura Municipal, ao aprovar um projeto de loteamento fechado, deverá fazê-lo nos mesmos moldes, nos mesmos termos e com as mesmas exigências como o faz com um loteamento comum. Muito embora o loteamento fechado esteja localizado, na maioria das vezes, fora do perímetro urbano, destinando-se à formação de chácaras ou sítios de recreio, não se pode desprezar a circunstância de ele vir, algum dia, a integrar o perímetro urbano. A municipalidade ao aprová-lo, deverá localizá-lo dentro de seu plano de expansão urbanística, fornecendo as diretrizes para o uso do solo previsto no art. 6º da Lei 6.766/79."

Disse Celso Marini (Loteamentos fechados, Jus Navigandi) que:  

"A permissão, ou a concessão de uso pela Prefeitura Municipal das vias e praças e espaços livres, nos loteamentos fechados, aos proprietários dos lotes, gera para eles a obrigação de mantê-los e conservá-los, além de outras obrigações decorrentes do uso em comum desses espaços livres, tais como coleta de lixo, rede elétrica e de iluminação, pavimentação, rede de água e esgotos, etc.

Outras obrigações ainda surgem pela própria circunstância de ser um loteamento fechado, tais como a manutenção de portaria, serviços de vigilância e segurança, rede telefônica de comunicação interna, etc. Esses serviços comuns aos proprietários dos lotes custam dinheiro e necessitam ser administrados e, consequentemente, regulamentados.

É nesse ponto - no regulamento da vida comunitária do uso das vias e espaços livres - que o loteamento fechado se assemelha ao condomínio, ensejando a expressão adotada nas leis municipais "administração das áreas comuns sob regime de condomínio". O regulamento do uso dessas vias e espaços livres assemelha-se, portanto, e muitíssimo, à convenção de condomínio prevista no artigo 9º da Lei 4.591, de 16.12.64.

O regulamento da vida comunitária do loteamento fechado é, assim, fundamental para a existência desse tipo de loteamento."

"Loteamento fechado" é uma criação da sociedade que não tem escopo em legislação federal, cabendo a União, quando for o caso, legislar sobre a matéria, matéria que deve ser enfocada em legislação federal própria, pois é matéria de direito civil, privativa da União, como é a de condomínios e incorporações que pode ser utilizada por analogia, nos casos permitidos 

Poderá o Município, dentro da política urbanística que adote, revogar tal licença com relação ao espaço interno das vias, a bem da conveniência e da oportunidade administrativa? Poder-se-ia entender  que tal não poderá ser feito, pois se está diante de direito adquirido à licença de obra. Seria caso de desapropriação, desde que nos limites da lei, com indenização devida, prévia e justa. Razões de conveniência não se opõem a direitos. Ademais o regime juridico é de direito privado, não de direito administrativo. 

Com a edição da Lei 13.465, de 11 de julho de 2017, ficou positivado o chamado "condominio fechado", condominio por lotes, que já existia em áreas de terrenos de marinha quando se moradores podiam acessar áreas de praia.

Aplicam-se, no que couber as regras do condomínio edilício, devendo ser respeitada a legislação urbanistica do Município.

A Lei 13.465/2017 incluiu o artigo 1.358-A no Código Civil:

“Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos.

§ 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição.

§ 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística.

§ 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor.”

Também foi positivado o loteamento de acesso controlado, permitindo ao poder público municipal a regulamentação do controle de acesso, sem que haja, no entanto, “o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. As formas de utilização do terreno de marinha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5156, 13 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59537. Acesso em: 28 mar. 2024.