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A litispendência no processo administrativo disciplinar

A litispendência no processo administrativo disciplinar

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Estuda-se a observância do princípio do non (ne) bis in idem no curso do processo administrativo disciplinar, que traduz a vedação da instauração de mais de um processo para a investigação de um mesmo fato (litispendência administrativa).

Resumo: O presente estudo versa sobre a litispendência administrativa quando ocorre a apuração simultânea do mesmo fato em processos administrativos disciplinares distintos. Inicialmente, é apresentada uma breve exposição sobre o quantitativo aproximado de servidores públicos civis ativos no Poder Executivo Federal, assim como o quantitativo de penalidades expulsivas aplicadas no período de 2003 a 2017, demonstrando a relevância da persecução disciplinar. Em seguida, apresenta-se o conceito de processo administrativo disciplinar e a possibilidade da configuração de litispendência. Posteriormente, é abordada a necessidade de observância do princípio do non (ne) bis idem. Por fim, é apresentada conclusão no sentido de que é necessária a criação de mecanismos pela Administração Pública Federal para obstar a apuração do mesmo fato de forma repetitiva em processos administrativos disciplinares distintos.

Palavras-chave: Processo Administrativo Disciplinar. Configuração da litispendência administrativa. Princípio do non (ne) bis in idem. Vedação pelo ordenamento jurídico pátrio.


INTRODUÇÃO

De acordo com as informações existentes no sítio eletrônico do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, existem aproximadamente um milhão e duzentos mil servidores públicos civis ativos no âmbito do Poder Executivo Federal[1].

Em razão do expressivo quantitativo de agentes públicos federais, é uma constante a apuração de condutas relacionadas ao descumprimento do disposto na Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

Os dados extraídos no sítio eletrônico do Ministério da Transparência e da Controladoria-Geral da União revelam que, no período de 2003 a 2017, foram aplicadas seis mil, quatrocentos e vinte e três punições expulsivas apenas no Poder Executivo Federal[2].

A aplicação das penalidades disciplinares expulsivas (demissão, cassação de aposentadoria e destituição de cargo comissionado) e das punições de advertência e de suspensão pressupõe a prévia instauração de processo administrativo disciplinar, sendo certa a relevância do referido instrumento de apuração.

Deste modo, a observância do princípio do non (ne) bis idem, perspectiva processual, no curso do processo administrativo disciplinar, possui relevância singular, visto que traduz a vedação da instauração de mais de um processo para investigar o mesmo fato (litispendência administrativa).


LITISPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA

O processo administrativo disciplinar pode ser compreendido como o instrumento de que dispõe a autoridade administrativa para apurar a responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido, consoante o disposto no art. 148 da Lei nº 8.112, de 1990, in verbis:

 Art. 148.  O processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.

Os ensinamentos doutrinários abaixo transcritos definem o processo administrativo disciplinar nos seguintes termos:

Daí que, em razão de que aos acusados em processo administrativo são asseguradas as garantias do contraditório e da ampla defesa e de que os servidores não poderão sofrer punições senão por intermédio do devido processo legal (art. 5º, LIV, Carta Magna de 1988), surge a figura do processo administrativo disciplinar como o meio que o Estado deve observar para exercer seu direito de punir, obedecendo-se a um rito e a princípios jurídicos.

(CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos Tribunais e da casuística da Administração Pública. 5. ed. rev. atual. e aum. Belo Horizonte. Fórum, 2016.)

O meio hábil à apuração de faltas disciplinares, violação de deveres funcionais e imposição de sanções aos servidores. A obrigatoriedade do processo disciplinar é estabelecida no regime jurídico a que estiver sujeito o agente público, sendo-o usualmente para a apuração das infrações mais graves e que estão sujeitas à imposição de demissão, suspensão dentre outras.

(ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito administrativo, v. 19. 8.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.)  

SENTIDO E FUNDAMENTO - Processo administrativo disciplinar é o instrumento formal através do qual a Administração apura a existência de infrações praticadas por seus servidores e, se for o caso, aplica as sanções adequadas.

(...)

OBJETO – O objeto do processo administrativo disciplinar é a averiguação da existência de alguma infração funcional por parte dos servidores públicos, qualquer que seja o nível de gravidade.

Não nos parece correta a afirmação segundo a qual o processo administrativo “é o meio de apuração e punição de faltas graves dos servidores públicos”. O processo serve tanto para as faltas graves como para as leves, pois que é preciso considerar que a apuração é que vai levar à conclusão sobre a maior ou menor gravidade da falta.

(CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.)

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR: Conceito

Dentre os processos administrativos de punição merece tratamento separado o que, na prática, é chamado de processo administrativo disciplinar. O destaque tem fundamento no fato de ser grandemente utilizado pela Administração Pública na apuração de falta e punição dos agentes públicos, na sua necessária utilização para a demissão de servidor estável e na peculiaridade que encerra. É também chamado de processo disciplinar e de inquérito administrativo, sendo esta denominação a mais imprópria, posto que nada tem de inquisitório. Assim, a semelhança que se quer estabelecer com o inquérito policial, cuja essência é inquisitorial, é improcedente. Não obstante esse entendimento, a Lei do Regime Jurídico Único dos Servidores Federais – Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990 – denomina uma das fases desse processo “inquérito administrativo” (at. 151), que compreende a instrução, defesa e relatório. Pode ser conceituado como o instrumento formal, instaurado pela Administração Pública, para a apuração das infrações e aplicação das penas correspondentes aos servidores, seus autores. Citada lei, no seu art. 148, define o processo disciplinar como “o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontra investido.

(GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.)

Após a apresentação dos conceitos doutrinários acima transcritos, cumpre aduzir que, não raro, a Administração Pública Federal instaura processo administrativo disciplinar em duplicidade com o objetivo de apurar o mesmo fato.

A título de exemplo e com a finalidade de corroborar a assertiva acima produzida, vale lembrar a averiguação de infração funcional quando o servidor público está cedido a outro órgão.

Na situação acima narrada, existe julgado do Superior Tribunal de Justiça - STJ no sentido de que o processo administrativo disciplinar deve ser instaurado preferencialmente no órgão em que a irregularidade administrativa ocorreu, in verbis:

MANDADO DE SEGURANÇA PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. SERVIDOR EFETIVO CEDIDO FASES COMPETÊNCIA. CISÃO. POSSIBILIDADE. INSTAURAÇÃO E APURAÇÃO PELO ÓRGÃO CESSIONÁRIO. JULGAMENTO E EVENTUAL APLICAÇÃO DE SANÇÃO PELO ÓRGÃO CEDENTE.

1. A instauração de processo disciplinar contra servidor efetivo cedido deve dar-se, preferencialmente, no órgão em que tenha sido praticada a suposta irregularidade. Contudo, o julgamento e a eventual aplicação de sanção só podem ocorrer no órgão ao qual o servidor efetivo estiver vinculado.

2. Ordem concedida.

(MS 21.991/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/11/2016, DJe 03/03/2017)

Depreende-se da leitura da ementa do julgado do STJ que a persecução disciplinar pode ocorrer no órgão de origem ou no órgão em que o servidor esteja exercendo as funções, devendo ocorrer preferencialmente nesse último.

Assim, é factível afirmar, dentre outras hipóteses, quando o processo administrativo disciplinar foi instaurado tanto no órgão de origem como no órgão em que o servidor cedido encontra-se exercendo suas funções, resta configurada a litispendência administrativa.

O instituto da litispendência significa pendência de processo, sendo certo que o sistema jurídico pátrio, quer seja na seara judicial ou administrativa, não admite que haja uma ilegítima duplicação de atividades processuais em torno do mesmo objeto[3].

Em razão da omissão da Lei nº 8.112, de 1990, considerando que a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, que institui o Código de Processo Civil – CPC, é aplicada supletiva e subsidiariamente ao processo administrativo (art. 15), cumpre reproduzir o dispositivo legal que permite a compreensão da litispendência:

Art. 337.

3º Há litispendência quando se repete ação que está em curso.

Deste modo, é possível definir a litispendência administrativa na seara disciplinar quando a Administração Pública Federal instaura dois ou mais processos administrativos para apurar conduta de servidor público relacionada ao mesmo fato.


PRINCÍPIO DO NON (NE) BIS IN IDEM

À luz do princípio do non (ne) bis in idem, na perspectiva processual, pode-se também afirmar que o mesmo fato imputado a servidor público não pode ser objeto de mais de uma persecução disciplinar simultânea.

Os ensinamentos doutrinários abaixo transcritos esclarecem o seguinte sobre o princípio do non (ne) bis in idem:

A expressão non bis in idem encerra um princípio geral tradicional do Direito com um duplo significado: por um lado, a sua aplicação impede que uma pessoa seja sancionada ou punida duas vezes pela mesma infracção (vertente material), por outro, é um princípio processual em virtude do qual um mesmo facto não pode ser objecto de dois processos diferentes.

Insta advertir que a apuração de fatos distintos em feitos separados não configura bis in idem, segundo o Superior Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, contudo, afasta a duplicidade de punição quando se trata de sanções decorrentes de fatos distintos. (CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos Tribunais e da casuística da Administração Pública. 5. ed. rev. atual. e aum. Belo Horizonte: Fórum, 2016)

O princípio do non bis in idem é princípio geral do Direito, que se aplica a todos os ramos jurídicos, tanto no sentido processual como no material, e veda, no exercício da mesma competência, a instauração de mais de um processo para apurar, processar e julgar o(s) mesmo(s) sujeito(s), pelo(s) mesmo(s) fato(s) e mesmo(s) fundamento(s) e a aplicação, mais de uma vez, da mesma sanção.

Por força do princípio do non bis in idem, uma vez instaurado pelo Poder Público, no exercício da função administrativa, processo administrativo disciplinar contra determinado agente público para apurar fato em tese antijurídico, com fundamento determinado, notificado ou citado (conforme dispuser o estatuto do ente federado) o acusado, estando o processo em andamento, não pode ser iniciado novo processo pelo mesmo titular do poder disciplinar, nem mesmo sindicância, com identidade de sujeito, fato e fundamento. Duplicidade processual denominada litispendência, que impõe a extinção do segundo processo administrativo ou mesmo sindicância, ou qualquer outro procedimento de investigação que o valha. Concluído o processo administrativo disciplinar (PAD), pela absolvição ou pela condenação, opera-se a coisa julgada administrativa. Ficam impedidas a instauração de novo processo e a aplicação de qualquer outra nova sanção. Neste segundo caso, o STF emitiu a Súmula 19: "É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira”, sistemática que incide inteiramente no processo de cassação de mandato eletivo (impeachment). (ENÂNCIO, Denilson Marcondes. Non bis in idem e as sanções administrativas, por improbidade e penal. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP, Belo Horizonte, n. 61, 2015. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=239181>)  

É forçoso afirmar que a instauração de dois ou mais processos administrativos para apurar a conduta de servidor público pelo mesmo fato implica litispendência administrativa e configura inobservância do princípio do non (ne) bis in idem, na sua vertente processual, podendo ensejar insegurança jurídica em razão de eventuais decisões administrativas díspares sobre a mesma matéria.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante os argumentos acima articulados, afigura-se a litispendência administrativa quando ocorre a instauração de processos administrativos disciplinares para a apuração simultânea da mesma conduta imputada a servidor público.

É imperioso destacar, também, que a litispendência administrativa implica inobservância do princípio do non (ne) bis in idem, sendo certo que o referido postulado, na sua vertente processual, obsta a investigação simultânea e em duplicidade do mesmo fato.

Face ao exposto, e considerando a relevância da matéria, compete ao órgão correcional da Administração Pública Federal criar mecanismos para identificar a configuração da litispendência administrativa, garantindo a observância ao princípio da segurança jurídica e eficiência na medida em que evita a prolação de decisões díspares na persecução disciplinar e impede o dispêndio financeiro com a constituição de outra comissão de apuração com o mesmo objetivo.


REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.

BRASIL. Lei n. 8.112, 11 de dezembro de 1990. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8112cons.htm>.

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>.

CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos Tribunais e da casuística da Administração Pública. 5. ed. rev. atual. Belo Horizonte. Fórum, 2016.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

ENÂNCIO, Denilson Marcondes. Non bis in idem e as sanções administrativas, por improbidade e penal. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP, Belo Horizonte, n. 61, 2015

GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.)

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2009.


Notas

[1] Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/assuntos/gestao-publica/arquivos-e-publicacoes/BEP.

[2] Disponível em: http://www.cgu.gov.br/assuntos/atividade-disciplinar/relatorios-de-punicoes-expulsivas/arquivos/punicoes-junho-2017-estatutarios.pdf

[3] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORBA, João Paulo Santos. A litispendência no processo administrativo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5173, 30 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60098. Acesso em: 29 mar. 2024.