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Consequências jurídicas do abuso de direito nas relações de família

Consequências jurídicas do abuso de direito nas relações de família

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É comum observar, na seara familiar, a ocorrência de excesso quando do exercício dos direitos dos genitores e outros familiares, principalmente no que concerne à guarda e às visitas.

Resumo: O presente trabalho tem como enfoque o abuso de direito aplicado ao Direito de Família. É cediço que a teoria a que se faz alusão recebe tratamento no ordenamento jurídico brasileiro e está presente em diversos ramos do Direito, sendo que, não obstante, no presente estudo, o aprofundamento do assunto recaiu sobre as relações familiares. É nítida a relevância do instituto em análise, uma vez que a ordem jurídica hodierna deixou os ideais individualistas e passou a conferir primazia aos princípios éticos e sociais. Ademais, é evidente a incidência da teoria em comento na seara da responsabilidade civil, tendo em vista a imprescindibilidade de conferir a sanção adequada àquele que exerce seu direito subjetivo de forma a exceder as prerrogativas e limites impostos pela lei. Nesse sentido, em um primeiro momento, buscou-se fazer uma explanação acerca das modalidades específicas de tal instituto jurídico, bem como dos pressupostos exigidos para sua caracterização. Após, visou-se adentrar no campo do Direito de Família de forma mais específica, buscando evidenciar em quais direitos o abuso se concretiza de maneira mais perceptível. Para a consecução de tais fins, utilizou-se a pesquisa de cunho qualitativo, sendo o método empregado o dedutivo, partindo-se, então, de uma premissa geral para se chegar às especificidades visadas pelo estudo em tela. No aspecto conclusivo, verifica-se que a aludida teoria possui importância somente no ordenamento jurídico que confere primazia ao princípio da dignidade da pessoa humana, atribuindo mais relevância aos valores solidários em detrimento dos particulares.

Palavras-chave: Abuso de direito. Direito de Família. Responsabilidade civil.

Sumário: Introdução. 1. Da teoria do abuso de direito. 1. 1 Conceito. 1.2 Aspectos históricos. 1.3 Natureza jurídica. 1.4 Modalidades do abuso de direito. 1.4.1 Venire contra factum proprium. 1.4.2 Supressio e surrectio. 1.4.3Duty to mitigate the loss. 1.4.4 Violação positiva do contrato. 1.4.5 Substancial performance. 1.4.6 Tu quoque. 2. O abuso de direito sob a égide do ordenamento jurídico brasileiro. 2.1 Dos elementos para configuração do abuso de direito. 2.1.1 Exercício de um direito. 2.2.2 Violação do fim econômico e social, do princípio da boa-fé e dos bons costumes. 2.2.3 Do dano. 2.2.4 Nexo causal. 2.3 Consectários jurídicos com ênfase na responsabilidade civil. 2.3.1 Requisitos para configuração da responsabilidade civil. 2.3.2 Modalidades de responsabilidade civil. 2.3.3 Consequências jurídicas do abuso de direito. 3. Direito de família contemporâneo. 3.1 Conceito de família. 3.2 Princípios do direito de família. 3.2.1 Dignidade da pessoa humana. 3.2.2 Isonomia. 3.2.3 Pluralismo das entidades familiares. 3.2.3.1 Família formada pelo casamento. 3.2.3.2 Família advinda da união estável. 3.2.3.3 Família monoparental. 3.2.3.4 Família anaparental. 3.2.3.5 Família eudemonista. 3.2.3.6 Família mosaico. 3.2.3.7 Família formada pela união homoafetiva. 3.2.4 Afetividade. 3.2.5 Mínima intervenção do Estado. 3.2.6 Melhor interesse da criança e do adolescente. 4. Do abuso de direito nas relações familiares. 4.1 Direito de guarda. 4.2 Direito de visitas. 4.3 Direito aos alimentos. 4.4 Do impedimento do casamento dos filhos menores. 4.5 Da relação existente entre o abuso de direito e a síndrome da alienação parental. Considerações finais. Referências.


INTRODUÇÃO

A teoria do abuso de direito foi construída pela doutrina e jurisprudência, sendo consagrada pelo ordenamento jurídico brasileiro no art. 187 do Código Civil. Trata-se de um assunto pouco trabalhado pelos juristas e, por isso, a escolha deste tema teve como escopo promover esclarecimentos e obter uma ampla cognição da aplicação da referida teoria ao Direito de Família.

Buscar-se-á elucidar qual regra jurídica se aplica ao instituto em comento, sendo relevante esclarecer o tratamento que se confere à teoria do abuso de direito, pois seria ato ilícito ou um instituto autônomo? Não obstante, é certo que ingressa no campo da antijuridicidade.

Considerando a necessidade de ordenar a vida em sociedade, tornou-se indispensável o surgimento do direito objetivo como forma de direcionar o comportamento do indivíduo, sendo que compete ao destinatário da norma a faculdade de exercer ou não o direito que lhe fora atribuído, ou seja, de fazer uso da norma em aquiescência com sua pretensão.

Ressalta-se que, do exercício do direito, decorrem três situações fáticas, quais sejam: exercício legítimo do direito, abuso do direito conferido ou ato ilícito. Não são institutos providos de consideráveis distinções, havendo uma linha tênue entre eles, sendo que a configuração de cada um possui relação com a existência ou não de obediência aos limites legais.

Ainda, importante analisar as consequências jurídicas do instituto, tendo em vista que, ao ingressar na seara da responsabilidade civil, importa mencionar que a concepção adotada vem sendo a objetivista, a qual dispensa o elemento subjetivo culpa.

Tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 criou um Estado Democrático de Direito, é preciso que o comportamento das pessoas não seja pautado apenas nos aspectos legais, mas também nos valores éticos. Nesse diapasão, se confere primazia à eticidade e solidariedade em detrimento dos interesses egocêntricos.

Assim, o ordenamento jurídico traz a ideia de que um indivíduo não pode se valer de um direito próprio com o propósito de causar prejuízo alheio.

Verifica-se que o instituto em questão tem atuação em diversos ramos do Direito, inclusive no Direito de Família, sendo necessária a intervenção jurídica para conferir a responsabilização adequada para aquele que exerce suas prerrogativas sem observância de suas funções e finalidades próprias.

O trabalho de conclusão de curso se propõe a identificar em quais situações pode ocorrer abuso de direito nas relações familiares, sendo abordadas as consideradas mais relevantes.

Salienta-se a necessidade de se perquirir sobre o abuso do direito subjetivo conferido pelo ordenamento jurídico, buscando-se elucidar a sua utilização de maneira irregular.

Imperioso se faz mencionar, ainda, a respeito do princípio da boa-fé. É cediço que esta se divide em duas, porém dedicar-se-á ao tratamento da boa-fé objetiva, a qual está relacionada com a conduta, tornando-se, assim, prescindível se percorrer a respeito da intenção do sujeito. Nessa senda, far-se-á a exposição da tríplice função desse princípio de nítida relevância.

Como forma de consubstanciar as alegações explicitadas no decorrer do presente estudo, imprescindível se faz a transcrição de entendimentos jurisprudenciais. Nesse sentido, para alcançar os objetivos propostos, o trabalho se desdobra em quatro capítulos.

O capítulo inaugural se dedica à apresentação preliminar do assunto, sendo abordados os aspectos epistemológicos e históricos, a natureza jurídica e os tipos de abuso de direito consagrados pela doutrina e jurisprudência brasileiras.

O capítulo seguinte tem como precípua finalidade fazer uma abordagem sobre o tratamento conferido ao abuso de direito pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo que são descritas as peculiaridades atinentes aos seus elementos configuradores. Ademais, busca-se ressaltar aspectos relativos à responsabilidade civil, tendo em vista a relação com o tema em questão.

O terceiro capítulo visa elucidar os aspectos contemporâneos do Direito de Família, sendo fornecido seu conceito e retratados os princípios providos de maior relevância.

O último desdobramento do trabalho diz respeito aos tópicos mais específicos do tema escolhido, sendo abordada a existência do abuso de direito em várias áreas do Direito de Família, abrangendo as peculiaridades relacionadas à guarda, visitas, alimentos, casamento dos filhos menores e alienação parental.

Por fim, há a exposição das considerações finais relativas ao percurso da pesquisa realizada, momento em que são expostos pensamentos conclusivos do presente trabalho.


1. DA TEORIA DO ABUSO DE DIREITO

1.1 Conceito

A teoria do abuso de direito é positivada pelo art. 187 do Código Civil, o qual dispõe que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e os bons costumes”. (BRASIL, 2002). Nesse diapasão, aduz-se que:

O abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de considerar a finalidade social do direito subjetivo e, ao utilizá-lo desconsideradamente, causa dano a outrem. (RODRIGUES, 2003, p. 43).

Ainda, sobre a definição do instituto jurídico em tela, elucida-se que:

O abuso de direito consiste no uso imoderado do direito subjetivo, de modo a causar dano a outrem. Em princípio, aquele que age dentre do seu direito a ninguém prejudica [...]. No entanto, o titular do direito subjetivo, no uso desse direito, pode prejudicar terceiros, configurando ato ilícito e sendo obrigado a reparar o dano. (AMARAL, 2003, p. 550).

No mesmo sentido, dispõe-se que:

[...] Abusa, pois, de seu direito o titular que dele se utiliza levando um malefício a outrem, inspirado na intenção de fazer mal, e sem proveito próprio. O fundamento ético da teoria pode, pois, assentar em que a lei não deve permitir que alguém se sirva de seu direito exclusivamente para causar dano a outrem. (OLIVEIRA, 2013, p. 2).

Depreende-se, portanto, que o abuso se verifica quando há o exercício do direito ou prerrogativa individual sem aquiescência com os valores tutelados pelo ordenamento jurídico.

1.2 Aspectos históricos

A origem remonta à Idade Média, na qual se verificava a existência dos atos emulativos, sendo que os detentores de um direito o exerciam com o fito de prejudicar o outro. Passou-se, então, a adotar a ideia de relativização dos direitos, até então, providos de caráter absoluto.

Em relação ao Direito Romano, preconiza-se que:

Entre os romanos havia um princípio – Nemine laedit aqui jure suo utitur (aquele que age dentro de seu direito a ninguém prejudica) – de caráter individualista e que durante muitos anos foi utilizado como justificador dos excessos e abuso de direito. Entretanto, tal princípio, por se mostrar injusto em alguns casos passou a ser substituído por outros princípios universalmente aceitos: o nemine laedere e o summum jus, summa injuria, pois é norma fundamental de toda sociedade civilizada o dever de não prejudicar outrem. (GONÇALVES, 2003, p. 57).

Logo, já havia previsão no Direito Romano acerca da responsabilidade decorrente do exercício de um direito com excesso, ultrapassando os limites. Entretanto, havia apenas noção de abuso de direito, não sendo, portanto, uma teoria consolidada.

Em 1804, surge o Código Civil francês, também conhecido como Código de Napoleão, mas este não consagrou de forma expressa a teoria do abuso de direito, tendo em vista que se trata de uma cláusula aberta e, na época em questão, o juiz estava adstrito à letra pura da lei. Não obstante, começou a ser deflagrada com a jurisprudência francesa do século XIX.

O caso que reportou ao Judiciário da França, dando margem para aplicação do instituto em estudo, foi o seguinte:

No início do século anterior, um construtor de dirigíveis cujo hangar se situava no interior da França, departamento de Champiègne, deparou-se com um problema inusitado. O fazendeiro vizinho havia erguido, na divisa de sua propriedade com a do hangar, umas colunas altas de madeira com varas de ferro pontiagudas. Pelas condições do lugar, a estranha divisória tornou a manobra dos dirigíveis extremamente perigosa e houve mesmo um deles perfurado pela ponta de ferro da armação. O fabricante dos equipamentos moveu processo contra o vizinho para obrigá-lo a retirar ou alterar a divisória. (COELHO apud BRUNETTO, 2010, p. 17).

Diante de tal situação, o Tribunal francês, em que pese ter considerado o direito de propriedade, entendeu que este não possuía caráter absoluto e, portanto, o indivíduo não poderia utilizar sua propriedade com o único escopo de prejudicar o vizinho ou alienar o imóvel para ele por um valor vultoso.

Além do leading case supramencionado, insta consignar as seguintes decisões judiciais que depois viriam a ser consideradas como abuso de direito:

Assim, em 1808, condenou-se o proprietário duma oficina que, no fabrico de chapéus, provocava evaporações desagradáveis para a vizinhança. Doze anos volvidos, era condenado o construtor de um forno que, por carência de precauções, prejudicava um vizinho. Em 1853, numa decisão universalmente conhecida, condenou-se o proprietário que construíra uma falsa chaminé, para vedar o dia a uma janela do vizinho, com quem andava desavindo. Um ano depois, era a vez do proprietário que bombeava, para um rio, a água do próprio poço, com o fito de fazer baixar o nível do vizinho. Em 1861, foi condenado o proprietário que, ao proceder a perfurações no seu prédio, provocou, por falta de cuidado, desabamentos no do vizinho. Seguir-se-iam, ainda, numerosas decisões similares, com relevo para a condenação, em 1913, confirmada pela Cassação, em 1915, por abuso de direito, do proprietário que erguera, no seu terreno, um dispositivo dotado de ferro, destinado a danificar os dirigíveis construídos pelo vizinho. (CORDEIRO apud JOBIM, 2008, p. 09).

Malgrado os julgados alhures mencionados, o abuso de direito ainda não estava consagrado como uma teoria, sendo que isso ocorreu apenas com a edição do Código Civil alemão, que em seu parágrafo 226 prescrevia que “o exercício de um direito é inadmissível quando só pode ter por fim causar dano a outrem”. Em seu parágrafo 242 também trouxe inovação quanto ao princípio da boa-fé ao aduzir que “o devedor é obrigado a efetuar a prestação como exige a lealdade e a confiança recíproca em correspondência com os usos socialmente admitidos”. (JOBIM, 2008, p.10).

Depois da Alemanha, vários outros países instituíram a teoria do abuso de direito, como, verbi gratia, a Espanha, a Argentina, Portugal, Itália e Suíça.

No Brasil, o Código Civil de 1916, em seu art. 160, inciso I, já trazia a ideia do abuso de direito, em que pese não ser de forma expressa. Nesse sentido, dispõe-se que:

[...] nossa legislação, até o advento do Código Civil de 2002, nada nos dizia concretamente sobre as consequências normativas do ato abusivo, limitando-se a qualificar de ilegítimo, em algumas poucas hipóteses, o exercício de um direito que excedesse manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito. (STOCO, 2007, p. 123).

Nesse mesmo sentido, Lopes apud Jobim (2008, p. 11) destaca que o art. 160 do Código Civil de 1916 “apenas fixou um critério geral, cabendo à jurisprudência dele extrair o sentido apropriado, escolhendo, dentre os critérios propostos, o que melhor se ajuste à espécie sob julgamento”.

Com o advento do Código Civil de 2002, foi atribuída à teoria do abuso de direito certa autonomia, destinando-se à repressão do exercício do direito subjetivo de forma contrária aos interesses sociais.

 1.3 Natureza jurídica

Quanto ao enquadramento no ordenamento jurídico, há duas correntes principais que tratam do abuso de direito, sendo que uma delas o enxerga como uma categoria autônoma da antijuridicidade e a outra defende que ele seria um tipo de ato ilícito.

No que concerne ao primeiro posicionamento, aduz-se que o abuso de direito:

É categoria autônoma, de concepção objetiva e finalística, e não apenas dentro do âmbito estreito do ato emulativo (ato ilícito). Diferentemente do ato ilícito, que exige a prova do dano para ser caracterizado, o abuso de direito é aferível objetivamente e pode não existir dano e existir ato abusivo. (NERY JÚNIOR e NERY apud OLIVEIRA, 2013, p. 4).

Não obstante, há doutrinadores que pensam o contrário. Nesse contexto, Paulo Nader apud Oliveira (2013, p. 04) defende que o abuso de direito configura “[...] espécie de ato ilícito, que pressupõe a violação de direito alheio mediante conduta intencional que exorbita o regular exercício de direito subjetivo”.

Conforme se extrai do art. 186 do Código Civil, nota-se que o ato ilícito tem como um dos requisitos para sua configuração a culpa. Em que pese o legislador ter utilizado a expressão ato ilícito no art. 187 do referido diploma legal, prevalece a concepção objetivista, a qual defende que o abuso de direito consiste em um instituto de cunho objetivo, o que torna o aludido elemento subjetivo prescindível.

Portanto, o segundo dispositivo supramencionado trata de uma cláusula geral de ilicitude com caráter objetivo, uma vez que não é conferido tratamento à culpabilidade. Nesse diapasão, adota-se a teoria objetiva finalista com supedâneo no Enunciado 37 da Jornada de Direito Civil, o qual prescreve que “a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico. (2012, p. 20)”.

Assim, conclui-se que, tanto o abuso de direito quanto o ato ilícito, estão inseridos no campo da antijuridicidade. No entanto, há diferenças cruciais entre os dois institutos. As teorias negativistas fundamentam sua posição ao equiparar o abuso de direito ao ato ilícito em decorrência de ambos produzirem os mesmos efeitos, consistente na responsabilização civil do sujeito. Todavia, a ocorrência do ato ilícito nem sempre acarreta o dever de indenizar, tendo em vista que o indivíduo poderá estar sob o amparo de alguma excludente de responsabilidade. Nesse diapasão:

[...] convém salientar que o abuso de direito não está condicionado à violação de limites formais ou concretas proibições normativas. Sua doutrina vai muito mais além dessa realidade, pois, os seus limites são ditados pelos princípios que regem o ordenamento jurídico, o que, mais uma vez implica o reconhecimento de sua autonomia jurídica. (BARROS, 2005, p. 05).

Denota-se, então, que, atualmente, o abuso de direito é considerado como um instituto de caráter autônomo, não perpetuando as dúvidas quanto à sua natureza jurídica. Sendo assim, trata-se de elemento intermediário, situando-se entre o ato ilícito e o exercício regular do direito.

1.4 Modalidades do abuso de direito

O abuso de direito pode se manifestar de várias formas, sendo que as mais conhecidas serão mencionadas e explicadas a seguir.

1.4.1 Venire contra factum proprium

Trata-se de uma expressão romana, cujo significado é a proibição de comportamento contraditório, ou seja, visa a coibir duas condutas antagônicas de um mesmo agente.  Nesse sentido, o indivíduo age de uma maneira em determinado momento, mas depois pratica outra ação desprovida de compatibilidade com o comportamento anterior, de forma que a confiança depositada por outra pessoa resta desrespeitada.

A forma de abuso de direito em comento pode ser vista como:

Uma sequência de dois comportamentos que se mostram contraditórios entre si e que são independentes um do outro, cada um deles podendo ser omissivo ou comissivo e sendo capaz de repercutir na esfera jurídica alheia, de modo tal que o primeiro se mostra suficiente para fazer surgir em pessoa mediana a confiança de que uma determinada situação jurídica será concluída ou mantida. (DANTAS JÚNIOR, 2007, p. 367).

Tal teoria tem como precípua finalidade evitar com que essa pessoa contrarie seu comportamento anterior e, portando, descumpra as regras contratuais outrora estipuladas e venha obter proveito disso, prejudicando a outra parte. Assim, o objetivo primordial do aludido instituto é a proteção da confiança recíproca, a qual decorre da função integrativa do princípio da boa-fé.

Dessa forma, veda-se a incoerência de condutas de forma que as expectativas de um terceiro sejam frustradas. Tais afirmações resumem-se no brocardo de que “ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa”. (FARIAS, 2010, p. 8).

De acordo com Schreiber (2007), para se verificar a incidência da proibição do comportamento contraditório, necessária se faz a presença de alguns requisitos, quais sejam: factum proprium, legítima confiança decorrente da primeira conduta, comportamento divergente ao factum proprium e a concretização de um dano efetivo ou potencial.

O factum proprium diz respeito ao comportamento inicial, o qual não gera vinculação, sendo que esta se verifica apenas quando a confiança de um terceiro for despertada. Neste caso, o agente terá que manter sua conduta primitiva.

A conduta incoerente com a primeira não constitui em si um ato ilícito, mas deve ser reprimida quando ocasionar o rompimento da confiança legítima proveniente do princípio da boa-fé objetiva.

Salienta-se que é possível a aplicação do instituto em evidência desde que não haja previsão legal quanto à conduta a ser adotada pelas partes, tendo em vista que havendo vinculação jurídica expressa, o comportamento contrário terá como consectário a aplicação da sanção adequada ao caso concreto.

Por último, deve-se verificar a ocorrência de um prejuízo efetivo ou potencial, sendo que o instituto poderá ser utilizado tanto no aspecto preventivo quanto repressivo, ou seja, busca evitar a ocorrência de danos e também ressarcir os danos causados a outrem.

O venire contra factum proprium também se encontra amparado por alguns princípios constitucionais, como, por exemplo, a solidariedade social e a segurança jurídica. A solidariedade social está prevista no art. 3º da Carta Magna, sendo que o comportamento contraditório é vedado devido à imposição de respeito e consideração aos interesses alheios, evitando a ocorrência de atitudes motivadas por interesses egocêntricos. A segurança jurídica existe para garantir os direitos e expectativas das pessoas, pois, se não houver essa tutela, o ordenamento jurídico perde sua credibilidade.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem admitido, há tempos, a aplicação do instituto, conforme se depreende do precedente abaixo:

Direito civil e processual civil. Família. Recurso especial. Separação judicial. Acordo homologado. Cláusula de renúncia a alimentos. Posterior ajuizamento de ação de alimentos por ex-cônjuge. Carência de ação. Ilegitimidade ativa. - A cláusula de renúncia a alimentos, constante em acordo de separação devidamente homologado, é válida e eficaz, não permitindo ao ex-cônjuge que renunciou, a pretensão de ser pensionado ou voltar a pleitear o encargo. - Deve ser reconhecida a carência da ação, por ilegitimidade ativa do ex-cônjuge para postular em juízo o que anteriormente renunciara expressamente. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, Ac. unân. 3ª T., REsp. 701.902/SP, rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, j. 15.9.05, DJU 3.10.05, p. 249). (FARIAS, 2010, p. 11).

Segundo o entendimento acima, o cônjuge ou companheiro que, no momento da dissolução da união estável ou do matrimônio, abre mão do direito de receber pensão alimentícia não pode proceder à sua cobrança posteriormente, pois criou na outra parte a expectativa de que não teria necessidade de realizar o adimplemento dos alimentos.

1.4.2 Supressio e surrectio

As duas expressões são provenientes do Direito alemão. Segundo Guerra (2011, p. 45), a supressio (supressão) pode ser conceituada como “a situação de inércia no exercício de um direito, de modo que não mais se permite o seu exercício, por contrariar a boa-fé”.

Não há previsão legal expressa, mas entende-se que o art. 330 do Código Civil faz referência a ela. Assim:

Ora, se o credor, aceita, reiteradamente, receber o pagamento em local diverso do convencionado, presume-se a renúncia quanto ao local convencionado e não poderá posteriormente alegar vício no pagamento, sob pena de ofensa à boa-fé, em detrimento do devedor. (OLIVEIRA, 2013, p. 3).

Já a surrectio (surgimento) também está presente no referido dispositivo legal, tendo em vista que para uma das partes há a supressão de um direito e para outra há o surgimento.

Pode-se concluir que:

[...] a supressio é o fenômeno da perda, supressão, de determinada faculdade jurídica pelo decurso do tempo, ao revés da surrectio que se refere ao fenômeno inverso, isto é, o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em razão do não exercício por outrem de um determinado direito, cerceada a possibilidade de vir a exercê-lo posteriormente. (FARIAS, 2010, p. 08).

Nesse sentido, segue jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

APELAÇÃO. INDENIZAÇÃO. DESCONTOS DE CHEQUES SUBSCRITOS POR FILHO DO TITULAR DA CONTA-CORRENTE. PRÁTICA CONSOLIDADA AO LONGO DOS ANOS. INÉRCIA DO CORRENTISTA. SUPRESSIO. Sob a ótica da consolidação de estados jurídicos pelo decurso do tempo, não se pode olvidar da figura da supressio, fundada no princípio ético de respeito às relações definidas ao longo dos anos. Não obstante a irregularidade da conduta praticada pelo banco, ao promover o pagamento de cheques assinados por pessoa diversa do titular da conta, emerge do contexto probatório que o correntista contribuiu exclusivamente para o evento danoso, visto que por longo período de tempo anuiu com os descontos em sua conta dos títulos emitidos e assinados por seu filho. (TJ-MG - AC: 10111050049381001 MG, Relator: Cláudia Maia, Data de Julgamento: 09/07/2015,  Câmaras Cíveis / 13ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 17/07/2015). (Online).

No caso retratado, uma das partes visa à restituição em dobro do valor que fora debitado em sua conta, negando sua responsabilidade pela emissão dos cheques. O subscritor dos títulos de crédito é filho do titular da conta corrente. O correntista deixou que as condutas ocorressem por um considerável lapso de tempo e, assim, entendeu-se não merecer acolhimento sua pretensão ao argumento de que durante o período em questão deixou de consultar as movimentações financeiras realizadas.

Desse modo, verifica-se que houve a perda de reclamar o direito em decorrência do decurso do tempo. As providências poderiam ser tomadas há anos e não se procedeu nesse sentido. Esse comportamento do titular da conta criou uma expectativa na outra parte, a instituição bancária, (surrectio), qual seja: a não atribuição de sua responsabilidade pelo desconto dos aludidos títulos.

1.4.3 Duty to mitigate the loss

Outro desdobramento do abuso de direito é o dever de mitigar as próprias perdas, o qual ocorre quando o credor, diante do inadimplemento do devedor, deve buscar minimizar seu próprio prejuízo, não agravando a situação deste.

Sobre o assunto, importante se faz mencionar o Enunciado n. 169 do Conselho da Justiça Federal, o qual faz alusão ao art. 422 do Código Civil e dispõe que “o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. (2012, p. 38).

Ademais, a súmula 309 do Superior Tribunal de Justiça elucida que “o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores à citação e as que vencerem no curso do processo”. (BRASIL, 2005). Desta forma, mesmo que o requerente fique aguardando por mais de três meses, a prisão civil fica condicionada apenas ao pagamento das três últimas parcelas vencidas.

Para ilustrar, segue entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

EMENTA: CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – OBRIGAÇÃO DE FAZER-IMPOSIÇÃO DE MULTA - IMPUGNAÇÃO – TEMPESTIVIDADE – REDUÇÃO DO VALOR.

- Se a sentença ou acórdão estabelece uma obrigação para o devedor, seja por meio de declaração ou de imposição, não resta dúvida de que constituirá título executivo judicial. 

- Quanto à tempestividade da impugnação, esta deve ser reconhecida uma vez que o prazo de 15 (quinze) é contado da intimação do auto de penhora e avaliação, nos termos do art. 475-J, §1º, do CPC. 

- O valor merece ser revisto, na licença do art. 461, §6º, do CPC e com os olhos voltados ao princípio da boa-fé, observando que o autor somente requereu o pagamento da multa após deixar transcorrer 137 dias. Diante da nova leitura do Código Civil, uma das modalidades do abuso do direito é o "dever do credor de minorar as suas próprias perdas" (duty to mitigate the loss).  (TJMG -  Apelação Cível  1.0145.09.532430-0/003, Relator(a): Des.(a) Mota e Silva , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/12/2012, publicação da súmula em 11/12/2012). (Online).

No caso acima, foi imposta uma obrigação judicial ao requerido sob pena de aplicação de multa diária (astreintes). O requerente interpôs ação de execução da astreintes depois de 137 dias de atraso no cumprimento da decisão. Entendeu-se que o valor da multa deveria ser diminuído, uma vez que o credor deixou transcorrer muitos dias para requerer o pagamento, sendo que ele tinha o dever de mitigar as próprias perdas.

1.4.4 Violação positiva do contrato

Deriva do Direito alemão e também é conhecida como adimplemento ruim ou insatisfatório. Diz respeito ao descumprimento dos deveres anexos do contrato, sendo que origina a pretensão relativa à reparação do dano ou o direito potestativo de resolução do contrato.

Para elucidar melhor a compreensão do instituto em análise, calha trazer à baila os seguintes exemplos:

i) o médico realiza tratamento e alcança a cura do paciente. Porém, a técnica empregada é extremamente dolorosa, quando existiam meios alternativos na ciência para se alcançar idêntico resultado sem que isto implicasse sofrimento para o paciente; ii) uma empresa contrata com agência de publicidade a colocação de outdoors pela cidade para a exibição de um novo produto. Todos os anúncios são colocados em locais de difícil acesso e iluminação, em que poucas pessoas tenham a possibilidade de visualizar a propaganda; iii) proprietário de haras adquire valioso cavalo e, em razão de falha no transporte, o animal chega em seu novo endereço magro e fragilizado. (FARIAS, 2010, p. 10).

Ainda, segue jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

CIVIL E PROCESSO CIVIL. PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO. REJEITADA. COMPRA E VENDA DE AUTOMÓVEL. AUSÊNCIA DE REGISTRO DA TRANSFERÊNCIA. VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. 1. Atendidos os requisitos do artigo 514 do Código Processual Civil, bem como os demais pressupostos de admissibilidade, o recurso apelatório deve ser conhecido. 2. Em uma relação jurídica, os contratantes devem pautar-se em certo padrão ético de confiança e lealdade, em atenção ao princípio da boa-fé, que orienta as atuais relações negociais pela probidade, moralidade e honradez. 3. Comprovada a violação positiva do contrato, com patente desrespeito ao seu conteúdo ético, cabível a responsabilização da parte ofensora. 4. Comprovado que a conduta omissiva perpetrada pelas Recorrentes resultou em vários transtornos ao Autor, tanto de ordem material quanto na órbita de seus direitos da personalidade, notadamente, pela inclusão de seu nome em dívida ativa, além da emissão de diversas multas de trânsito, sobre as quais não tinha mais responsabilidade, resta evidenciada a responsabilidade civil das Demandadas. 5. Atentando-se às peculiaridades do caso concreto, especialmente quanto à conduta da parte ofensora, a repercussão dos fatos, a natureza do direito subjetivo fundamental violado, entendeu-se razoável o importe fixado pelo ilustre Magistrado, a título de indenização por danos morais. 6. Rejeitou-se a preliminar. Negou-se provimento ao recurso. (TJ-DF - APC: 20120111824517, Relator: FLAVIO ROSTIROLA, Data de Julgamento: 03/06/2015,  3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 11/06/2015 . Pág.: 159). (Online).

No caso em apreço, a parte que comprou o veículo se manteve inerte, não tendo registrado sua transferência. Tal conduta acarretou vários prejuízos à outra parte, uma vez que o nome desta foi inscrito em dívida ativa e houve emissão de multas de trânsito sobre as quais não tinha mais responsabilidade. Assim, verifica-se que houve descumprimento dos deveres anexos ao contrato, violando a confiança proveniente do princípio da boa-fé.

1.4.5 Substancial performance

Essa modalidade de abuso de direito também é conhecida como adimplemento substancial.

Recebe tratamento pelo Enunciado 361 da Jornada de Direito Civil, a qual aduz que “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”. (2012, p. 57). Destarte, entende-se que quando houver o pagamento considerável do valor, é conferida primazia à função social do contrato em detrimento de sua resolução.

Segue jurisprudência para melhor elucidação:

APELAÇÃO CÍVEL. BUSCA E APREENSÃO. PROCESSO EXTINTO. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO. SENTENÇA MANTIDA. Com fulcro na teoria do adimplemento substancial do contrato, afasta-se o interesse de agir do credor para a propositura de ação de busca e apreensão de veículo, quando o financiamento resta quitado em quase 85%, pelo fato da medida se revelar extremamente desarrazoada. (TJ-MG - AC: 10439130069537001 MG, Relator: João Cancio, Data de Julgamento: 11/02/2014,  Câmaras Cíveis / 18ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 14/02/2014). (Online).

O julgado se refere a uma apelação cível interposta em face de sentença que indeferiu a ação de busca e apreensão com supedâneo na teoria do adimplemento substancial. A decisão de primeiro grau foi mantida, uma vez que a parte requerida já havia efetuado o pagamento de 85% do valor do bem e, assim, não havia proporcionalidade da medida requerida com o quantum da dívida remanescente.

 1.4.6 Tu quoque

A expressão significa “até tu”. Decorre do brocardo jurídico que diz que ninguém pode se valer da própria torpeza.

Quanto à sua origem, elucida-se que:

Esta expressão é atribuída a Júlio César, pois ao tomar conhecimento que, entre aqueles que tinham conspirado para o seu assassinato, estava Marco Júnio Bruto, o qual era considerado como filho. Assim, Júlio César teria pronunciado Tu quoque, Brutus, tu quoque, filimili? Portanto, tem o sentido de surpresa, espanto. (FARIAS e ROSENVALD apud OLIVEIRA, 2013, p. 3).

Cabível mencionar que se assemelha ao venire contra factum proprim no que tange à incoerência de comportamento, mas os dois institutos são diferentes quanto aos escopos pretendidos. No tu quoque, busca-se reprimir diretamente e de forma perceptível a má-fé, enquanto no outro se visa evitar que haja mácula quanto à legítima confiança.

Assim como as demais modalidades, não está prevista expressamente no ordenamento jurídico, mas percebe-se que ela está presente no art. 476 do Código Civil, o qual trata da exceção de contrato não cumprido e diz que “nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”. (BRASIL, 2002). Segundo esse dispositivo, depreende-se que incorrerá em conduta abusiva aquele que exigir o cumprimento do dever da parte contrária sem antes ter cumprido aquilo que lhe incumbia, uma vez que geraria desequilíbrio na relação contratual.

Segue entendimento jurisprudencial, o qual evidencia que a recorrente produziu na recorrida a expectativa de resolução da situação, tendo se comprometido a adimplir as três prestações. No entanto, ela não pagou o valor e pouco tempo depois ingressa no Judiciário, não levando em consideração o acordo outrora estabelecido, in verbis:

APELAÇÃO CÍVEL - DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO - INADIMPLEMENTO - INSCRIÇÃO NOS CADASTROS DE RESTRIÇÃO AO CRÉDITO - EXERCÍCIO REGULAR DO DIREITO - AUSÊNCIA DE DANOS MORAIS. 

- Nas relações jurídicas, é vedado o comportamento contraditório (venire contra factum proprium), que se fundamenta na tutela da confiança e que mantém relação com a boa-fé. 

- O princípio do tu quoque veda à parte um comportamento incompatível com uma conduta anterior. 

- Age de forma contraditória a devedora quando, em um primeiro momento, assume o pagamento de três prestações, mas, em um segundo momento, levanta exceções ao seu adimplemento, não previstas previamente no termo do acordo. 

- A inscrição em cadastros de restrição ao crédito, quando não demonstrada sua ilegalidade, constitui exercício regular do direito. 

- Apelação não provida.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0024.09.751437-6/001, Relator(a): Des.(a) Anacleto Rodrigues (JD CONVOCADO) , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 29/07/2014, publicação da súmula em 01/08/2014). (Online).

Delineadas as espécies do abuso de direito, importante se faz perquirir acerca da pormenorização do instituto com a abordagem dos requisitos para sua concretização, bem como as consequências ocasionadas no âmbito da responsabilidade civil.


2. O ABUSO DE DIREITO SOB A ÉGIDE DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

2.1 Dos elementos para configuração do abuso de direito

Nos termos do art. 187 do Código Civil, para se verificar a existência do abuso de direito é necessário que o sujeito exerça seu direito de forma irregular, não respeitando os limites indispensáveis à finalidade econômica e social, ao princípio da boa-fé e dos bons costumes, ocasionando prejuízo a um terceiro.

Nesse diapasão, entende-se que os requisitos necessários para a caracterização do abuso de direito são: exercício de um direito; não observância do fim econômico e social, da boa-fé e dos bons costumes; existência de dano e nexo de causalidade entre o dano provocado e o exercício irregular do direito.

Não é despiciendo mencionar que o elemento subjetivo não é exigido, pois, como visto alhures, o ordenamento jurídico adotou a teoria objetiva para a responsabilidade decorrente do abuso de direito.

2.1.1 Exercício de um direito

O abuso de direito se verifica quando não há ilícito civil, isto é, quando inexistir ação ou omissão decorrente de dolo ou culpa que cause dano a outrem. Nesse diapasão, insta salientar que:

Uma observação importante deve ser feita: quem age em abuso de direito invoca um poder que, formal ou aparentemente, lhe pertence, embora não tenha fundamento material, ou seja, o abuso de direito pressupõe logicamente a existência do direito (direito subjetivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos poderes que o integram. Mesmo porque quem alega a ausência de direito não pode validamente alegar a existência de abuso de direito, isto é, a alegação de ausência de direito (ato ilegal) é prejudicial à alegação da ocorrência de abuso de tal direito. (BOULOS apud STOCO, 2007, p. 121).

Assim, deve haver o exercício anormal de um direito e não apenas violação de um preceito normativo.

2.2.2 Violação do fim econômico e social, do princípio da boa-fé e dos bons costumes

Quanto ao fim econômico e social, importante se faz perquirir acerca do motivo da criação do abuso de direito. Nesse contexto, diz-se que:

O abuso ocorre, justamente, quando se despreza a economia interna do negócio, ou da situação jurídica preexistente, para perseguir fim lesivo a outrem, sem proveito lícito para o titular do direito subjetivo. Para ser regular, o exercício do direito, haverá o titular de praticá-lo dentro da finalidade que econômica e socialmente se lhe reconhece. Fugindo desse padrão, estar-se-á agindo abusivamente; sair-se-á do exercício regular para entrar no exercício ilícito ou abusivo do direito. Ter-se-á a conduta antissocial ou antieconômica, reprimida pelo art. 187. (THEODORO JÚNIOR, 2003, p. 124).

No que tange ao fim econômico, Cavalieri Filho (2012, p. 177), o define como “[...] o proveito material ou vantagem que o exercício do direito trará para seu titular, ou a perda que suportará pelo seu não exercício”.

Como exemplo de inobservância à finalidade econômica e social, faz-se mister citar que:

[...] o direito de propriedade sobre determinado bem existe para satisfazer as necessidades humanas, sendo esta a sua finalidade econômica e social. Logo, se seu titular utiliza o direito de propriedade com fins apenas espúrios, sem que tenha proveito, estará abusando do seu direito de propriedade. Assim, quando o proprietário, no exercício dos atributos da propriedade, desrespeita a política de defesa do meio ambiente, também age em abuso de direito, porque desrespeita a finalidade social do direito à propriedade. (NERY JÚNIOR e NERY apud CONCEIÇÃO, 2014, p. 39).

Quanto à finalidade social, preleciona-se que:

[...] Toda sociedade tem um fim a realizar: a paz, a ordem, a solidariedade e a harmonia da coletividade – enfim, o bem comum. E o direito é o instrumento de organização social para atingir essa finalidade. Todo direito subjetivo está, pois, condicionado ao fim que a sociedade se propôs. (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 182).

Ainda, segue-se exemplificando o descumprimento desse fim social no âmbito familiar, in verbis:

No campo do Direito de Família, o abuso do pátrio poder (hoje, poder familiar) nos oferece muitos exemplos de exercício do direito com violação da sua finalidade social. Todos sabemos que a finalidade do pátrio poder é proporcionar aos pais a autoridade necessária para poderem educar e prestar assistência aos filhos. Todas as vezes que o pai (ou mãe) usa dessa autoridade para limitar sem razão a liberdade do filho, ou para castigá-lo indevidamente, não usa, mas abusa do poder que a lei lhe confere. (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 182).

Diante do exposto, é perceptível que o direito deve buscar atender o interesse público, uma vez que a nova ordem jurídica vem conferindo primazia aos interesses coletivos em detrimento dos particulares.

É cediço que, para a teoria do abuso de direito, o que interessa é a boa-fé objetiva, a qual está relacionada com o comportamento do sujeito, sendo prescindível ser analisada a boa-fé subjetiva, a qual está ligada à intenção do agente. Nesse sentido, Nery Júnior e Nery apud Conceição (2014, p. 40) aduzem que “a boa-fé objetiva está intimamente relacionada com o ideal de eticidade, o qual serviu de princípio orientador de todo o Código Civil”.

A boa-fé objetiva impõe às partes uma conduta lastreada na honestidade, lealdade e probidade, trazendo equilíbrio para as relações sociais. Nesse diapasão:

Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação “refletida”, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes. (MARQUES, 2006, p. 216).

A boa-fé objetiva possui três funções, sendo elas identificadas por Cavalieri Filho (2012, p. 183) como “[...] a) função interpretativa – regra de interpretação dos negócios jurídicos (art. 113); b) função integrativa – fonte de deveres anexos dos contratos (art. 422); c) função de controle – limite ao exercício dos direitos subjetivos (art. 187)”.

Desse modo, entende-se que a primeira função do princípio da boa-fé objetiva é a de interpretação e está prevista no art. 113 do Código Civil, segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. (BRASIL, 2002).

O segundo papel deste relevante princípio consiste na atuação como cláusula geral, da qual decorrem os deveres anexos, que embora não estejam consubstanciados no contrato, devem orientar a conduta das partes. Calha trazer à baila que:

Ora, neste contexto, a boa-fé atua como importantíssimo elemento ético no contrato. Traz uma dimensão ética fabulosa para as relações jurídicas. Passa-se a exigir mais dos contratantes, que não podem simplesmente utilizar o cumprimento do dever principal como escudo para proteção contra toda sorte de desonestidades cometidas no curso da relação contratual. (GARCIA, 2003, p. 103).

Torna-se evidente que os integrantes de uma relação jurídica devem respeitar os deveres acordados e também possuir a conduta pautada nos valores éticos.

Além das duas funções susomencionadas, a boa-fé objetiva tem a incumbência de propiciar o controle dos limites do exercício de um direito. Nesse sentido, dispõe-se com clareza que:

Em sua função de controle [...] a boa-fé representa o padrão ético de confiança e lealdade indispensáveis para a convivência social. As partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas. Essa expectativa de um comportamento adequado por parte do outro é um componente indispensável na vida de relação. Conforme já destacado, a boa-fé, em sua função de controle, estabelece um limite a ser respeitado no exercício de todo e qualquer direito subjetivo. E assim é porque a boa-fé é o principio cardeal do Código de 2002, que permeia toda a estrutura do ordenamento jurídico, enquanto forma regulamentadora das relações humanas. Considera-se violado o princípio da boa-fé sempre que o titular de um direito, ao exercê-lo, não atua com lealdade e a confiança esperáveis. (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 183).

No que tange aos bons costumes, apresenta-se o seguinte conceito:

Os bons costumes constituem um complexo de regras e princípios impostos pela moral, complexo este que traduz a norma de conduta dos indivíduos em suas relações sociais e contratuais, para que estas se articulem segundo as finalidades das próprias pessoas vivendo em sociedade e aceitando as normas materializadas em lei. (STOCO, 2007, p. 122).

O abuso de direito, nesse caso, ocorrerá quando a conduta for provida de dissonância com a ética e hábitos aprovados por determinado meio social.

Nery Júnior e Nery apud Conceição (2014, p. 41), sobre o assunto, dispõem que “bons costumes, portanto, diz respeito à moral de uma determinada sociedade. Não se confunde com costumes, que diz respeito ao direito consuetudinário, ligado à ideia de uso reiterado por determinada comunidade acreditando ser obrigatório”.

Assim, “boa-fé e bons costumes andam sempre juntos, como irmãos siameses, pois, assim como se espera de um homem de boa-fé conduta honesta e leal, a recíproca é verdadeira: má-fé se casa com imoralidade, desonestidade e traição”. (CAVALIERI FILHO, 2012, p.185).

2.2.3 Do dano

O dano também consiste em elemento essencial para a existência do abuso de direito.  Assim, “se o titular do direito excede seus fins sociais, por exemplo, mas não causa dano a terceiro, não terá havido abuso de direito, para fins jurídicos”. (NERY JÚNIOR; NERY apud CONCEIÇÃO, 2014, p. 42).

Desse modo, a ausência de prejuízo enseja na inexistência do dever de indenizar, não havendo, portanto, responsabilização do sujeito.

Não obstante, o prejuízo pode não ser a um sujeito determinado, podendo ser à coletividade, atingindo, então, agentes indeterminados.

Salienta-se que o exercício do direito dentro de seus limites que ocasione dano não constitui abuso de direito, pois se está agindo dentro de suas prerrogativas.

2.2.4 Nexo causal

É preciso que o prejuízo seja decorrente da conduta pautada no exercício de um direito fora da normalidade. 

Assim, o agente que faz uso de seu direito extrapolando os limites impostos e causando prejuízo alheio tem o dever de indenizar decorrente da responsabilidade objetiva.

Analisados os requisitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro para configuração do abuso de direito, passa-se à explanação do instituto sob a ótica da responsabilidade civil.

2.3 Consectários jurídicos com ênfase na responsabilidade civil

Antes de expor as consequências jurídicas advindas do abuso de direito, importante se faz trazer algumas noções propedêuticas, de caráter geral, sobre a responsabilidade civil, sendo que serão, sucintamente, evidenciados os pressupostos para constituição do instituto e as modalidades.

2.3.1 Requisitos para configuração da responsabilidade civil

Conforme já explicitado alhures, a responsabilidade advém de um ato ilícito, o qual se evidencia pelo desrespeito ao ordenamento jurídico. Esse instituto recebe tratamento pelo art. 186 do Código Civil, o qual estatui que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. (BRASIL, 2002).

A partir do conteúdo do referido dispositivo normativo, é evidente que os pressupostos da responsabilidade civil são: conduta do agente, nexo causal, dano e culpa.

O primeiro requisito, ou seja, a conduta, pode ser compreendido como o comportamento provido do elemento volitivo, cuja exteriorização ocorre mediante uma ação ou omissão que irá produzir consectários jurídicos. Ressalta-se que a conduta deve ser provida de voluntariedade, a qual diz respeito ao discernimento da pessoa na concretização ou omissão da ação.

O dano é imprescindível para existir o dever de ressarcir os prejuízos causados. Nesse sentido, dispõe-se que:

O dano é, pois, elemento essencial e indispensável à responsabilização do agente, seja essa obrigação originada de ato ilícito ou de inadimplemento contratual, independente, ainda, de se tratar de responsabilidade objetiva ou subjetiva. (STOCO, 2007, p. 128).

Ainda, no que concerne ao dano, este pode ser de cunho patrimonial/material ou extrapatrimonial/moral. O primeiro ocorre quando a conduta do agente ofende bem de caráter econômico, enquanto o segundo transgride bem sem cunho econômico, que não pode ser quantificado.

O dano material pode ser dividido em danos emergentes e lucros cessantes. Nesse sentido, o art. 402 do Código Civil dispõe que “salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidos ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”. (BRASIL, 2002).

O dano emergente diz respeito ao efetivo prejuízo causado à vítima, ou seja, é a perca propriamente dita em razão da prática de determinada conduta. Já o lucro cessante consiste em algo que o indivíduo deixou de auferir em decorrência do dano causado, sendo um prejuízo quantificado ao longo do tempo, tendo em vista que diz respeito ao lucro futuro.

No que concerne ao dano moral, as consequências afetam os bens jurídicos extrapatrimoniais, tais como a vida; a integridade física, moral e psicológica e a honra.

O nexo de causalidade é a relação existente entre a conduta praticada e o resultado danoso produzido.

A culpa lato sensu envolve o dolo e a culpa stricto sensu. O dolo consiste na conduta intencional, de maneira que o agente, de forma consciente, quer ou assume o risco de produzir o resultado.

Já na culta stricto sensu, a conduta é voluntária, mas não existe o ânimo de prejudicar, de causar um dano, embora ainda assim o resultado seja produzido.

Tal distinção pode ser fornecida da seguinte forma:

Quando existe a intenção deliberada de ofender o direito, ou de ocasionar prejuízo a outrem, há o dolo, isto é, o pleno conhecimento do mal e o direto propósito de o praticar. Se não houvesse esse intento deliberado, proposital, mas o prejuízo veio a surgir, por imprudência ou negligência, existe a culpa (stricto sensu). (STOCO, 2007, p. 133).

Imperioso se faz mencionar que, no âmbito do Direito Civil, tal diferença não é salutar, tendo em vista que o escopo primordial é buscar a indenização da vítima e não a punição do agente.

2.3.2 Modalidades de responsabilidade civil

As modalidades do instituto levam em consideração o elemento culpa e a natureza da norma que fora violada. Nessa senda, a responsabilidade civil poderá ser objetiva, subjetiva, contratual ou extracontratual.

A responsabilidade subjetiva é aquela em que se verifica que a conduta foi produzida a título de culpa, que, em sentido amplo, engloba a culpa stricto sensu e o dolo. Com o passar do tempo, esse tipo de responsabilidade foi se tornando insuficiente para solucionar os problemas causados aos ofendidos. Assim, surge a responsabilidade objetiva.

Sobre a responsabilidade objetiva, Cavalieri Filho (2008, p. 137) preleciona que “todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou independente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de nexo de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa”.

O Código Civil conferiu tratamento à responsabilidade objetiva em seu art. 927 que dispõe que “haverá obrigação de reparar o dano, independente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. (BRASIL, 2002).

Se o dano decorrer da violação de normas estipuladas em contrato ou em negócio jurídico unilateral, a responsabilidade será denominada contratual. Nesse sentido, as partes contratantes têm a obrigação de cumprir as obrigações que estipularam, sob pena de incorrer em dever de reparar o prejuízo advindo do descumprimento.

Já a responsabilidade civil ou aquiliana advém da infringência dos deveres legais. Sendo assim, não há uma prévia relação jurídica entre a parte causadora do dano e a parte lesada.

2.3.3 Consequências jurídicas do abuso de direito

É de conhecimento comum que o abuso de direito que causa dano a outrem gera o dever de indenizar. O que gera divergências no âmbito doutrinário é a natureza da responsabilidade. Nessa senda, Theodoro Júnior (2003, p. 116), destaca que “cinge-se em saber se trata-se de responsabilidade subjetiva, fundada na intenção maliciosa do agente, ou responsabilidade objetiva, extraída pura e simplesmente do resultado danoso indesejável eticamente”.

Não obstante, conforme retratado alhures, verificou-se que foi adotada a teoria objetiva, sendo dispensável a análise sobre a culpa do sujeito.

Segundo Nery Júnior e Nery apud Conceição (2014, p. 44) a responsabilidade civil pode ser vista como “um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário”.

Assim, depreende-se que para haver o dever de reparação necessária se faz a existência do dano.

Não é demais ressaltar que há situações em que ocorre o exercício de um direito que causa prejuízo alheio, mas não configura abuso de direito, como, verbi gratia, o uso da excludente da legítima defesa de forma moderada e direito de greve.

Por outro lado, há também abuso de direito que não causa dano a outrem. Exemplo disso é a propriedade rural que não cumpre sua função social, conforme determinado pelo texto constitucional.

Diante desses pormenores, é perceptível que a teoria do abuso de direito se diferencia do ato ilícito, não podendo, como já se enfatizou, serem considerados como institutos iguais.

Em que pese já ter mencionado a teoria objetiva como a adotada majoritariamente, não é despiciendo conferir tratamento às teorias subjetivas, as quais julgam necessária para configuração do abuso a intenção do agente em causar o dano. Essas teorias recebem muitas críticas, sendo que:

A maioria da doutrina moderna critica a adoção das doutrinas subjetivas, que nada mais são que um desenvolvimento da doutrina da aemulatio. Anota Guilherme Fernandes Neto que bizarro seria, como na realidade o é, querer utilizar-se do critério puramente subjetivo, que foi base para a construção da vetusta teoria da aemulatio (antecessora milenar da doutrina em foco), para, dela se utilizando, visar solucionar litígios em nossa era. (CARVALHO NETO apud CONCEIÇÃO, 2014, p. 47).

Entrementes, para as teorias objetivas, o abuso decorre do exercício irregular do direito, sem analisar o elemento volitivo do sujeito, sendo que é conferida relevância apenas ao fato em si. Nesse diapasão, Cavalieri Filho (2012, p. 173) aduz que “para a teoria objetiva, o abuso de direito estará no uso anormal ou antifuncional do direito. Caracteriza-se pela experiência de conflito entre a finalidade própria do direito e sua atuação no caso concreto”.

Ainda tratando sobre o assunto, leciona-se que:

Preferimos concluir, aderindo a parte da doutrina, que o melhor critério é o finalístico adotado pelo direito pátrio. O exercício abusivo de um direito não se restringe aos casos de intenção de prejudicar. Será abusivo o exercício do direito fora dos limites da satisfação do interesse lícito, fora dos fins sociais pretendidos pela lei, fora, enfim, da normalidade. (VENOSA, 2003, p. 608).

Quanto à reparação do dano, esta seguirá a forma específica tratada na lei e no caso de lacuna, será da mesma forma que a do ato ilícito. Não obstante, para a aplicação da teoria em comento, o operador do Direito deverá analisar as peculiaridades do caso concreto, quais sejam: o fim econômico e social, a boa-fé e os bons costumes.

Imperioso se faz mencionar que o abuso de direito nem sempre será resolvido com a indenização, pois esta pode não fazer sentido em determinados casos, como, por exemplo, no âmbito familiar, ocorrendo a aplicação de outras penalidades. Nesse sentido, exemplifica-se que:

Se o abuso é praticado no exercício do poder conferido pelo status familiar, como o pátrio poder ou o poder material, a repressão pelo dever de indenizar não faz sentido. Há de ser de outra espécie, admitindo-se, conforme a gravidade do abuso, a destituição do pátrio poder ou o divórcio. (GOMES apud CONCEIÇÃO, 2014, p. 59).

Os consectários decorrentes do abuso de direito podem compreender, então, desde a reparação do dano com supedâneo no art. 927 do Código Civil até a eliminação dos efeitos jurídicos.

Diante do exposto, nota-se que a teoria do abuso de direito tem incidência sobre várias áreas do Direito, ultrapassando o campo da responsabilidade civil, dando origem a outras consequências além do ressarcimento pecuniário do prejuízo causado à vítima.      


3. DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO

3.1 Conceito de família

Primeiramente, convém destacar que a família é o ambiente no qual os indivíduos ficam inseridos a maior parte do tempo, sendo que é através dela que se adquire a formação da personalidade, mas fornecer um conceito único para a família não é uma tarefa fácil. Nesse sentido:

[...] não é possível apresentar um conceito único e absoluto de Família, apto a aprioristicamente delimitar a complexa e multifária gama de relações socioafetivas que vinculam as pessoas, tipificando modelos e estabelecendo categorias. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 39).

O artigo 226, caput, da Constituição Federal dispõe que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. (BRASIL, 1988). É visível a importância conferida à família e, assim, o governo tem a incumbência de criar políticas públicas que tenham como objetivo a proteção aos membros da entidade familiar, notadamente no que tange aos membros providos de maior vulnerabilidade, quais sejam: a criança, o adolescente e o idoso.

A Constituição Federal de 1988 trouxe grandes avanços concernentes ao reconhecimento familiar, tendo em vista que se reconhecia como legítima apenas a família oriunda do casamento. Sendo assim:

Desde então tem se tornado mais nítida a perda do valor do Estado e da Igreja como instância legitimadora da comunhão de vida e nota-se uma crescente rejeição das tabelas de valores e dos “deveres conjugais” predeterminados por qualquer entidade externa aos conviventes. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 42).

Depreende-se da leitura dos parágrafos primeiro a quarto do artigo 226 da Carta Magna que é feita alusão a três formas de família, sendo elas derivadas do casamento, união estável e núcleo monoparental. Não obstante, não se trata de rol taxativo, sendo possível a formação de outros tipos de entidades familiares. Nesse diapasão:

Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductibilidade e adaptabilidade. (LÔBO, 2002, p. 1).

Feitas as considerações acima, no que tange ao aspecto epistemológico do termo família, Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 44) dispõem, baseados no princípio da dignidade da pessoa humana, que “família é o núcleo existencial integrado por pessoas unidas por vínculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes”.

3.2 Princípios do Direito de Família

Os princípios que norteiam o Direito de Família têm como principal fonte a Constituição Federal, sendo que, inclusive, grande parte deles são conhecidos como princípios constitucionais.

Depreende-se que são vários os princípios que estão ligados à área jurídica em questão, sendo que cada autor aborda aqueles que acredita abranger o assunto tratado. Não obstante, a seguir são explanados aqueles que mais são citados nas doutrinas.

3.2.1 Dignidade da pessoa humana

O referido princípio está consagrado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal e constitui o vetor basilar de todo o ordenamento jurídico, devendo ser entendido em sua plenitude. Nesse sentido, consigna-se que:

Trata-se do que se denomina princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou princípio dos princípios. Diante desse regramento inafastável de proteção da pessoa humana é que está em voga, atualmente, falar em personalização, repersonalização e despatrimonialização do Direito Privado. (TARTUCE, 2017, p. 770).

Sobre a noção jurídica de dignidade, dispõe-se que:

[...] traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade.

Mais do que garantir a simples sobrevivência, esse princípio assegura o direito de se viver plenamente, sem quaisquer intervenções espúrias – estatais ou particulares – na realização dessa finalidade. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 76).

Para que a dignidade seja garantida, é necessário que seja conferido respeito ao indivíduo no que tange às esferas pessoal, social e familiar.

Na concepção de Sarmento apud Carelli (2008, p. 48-49), a dignidade da pessoa humana “[...] representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade”.

Destarte, o Estado deve conferir a devida proteção à dignidade humana, visando garantir o desenvolvimento de todos os membros da entidade familiar.

3.2.2 Isonomia

Com a consagração do princípio da igualdade, em sede constitucional (art. 5º, inciso I da CF/88), foi conferido tratamento isonômico em relação aos cônjuges e companheiros relativamente aos seus direitos e deveres, eliminando-se aos poucos os resquícios patriarcais e o denominado poder marital. Para consubstanciar tal explanação cita-se o §5º do artigo 226 da Constituição Federal que elucida que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. (BRASIL, 1988). Nesse sentido, as funções e a responsabilidade dos dois cônjuges ou companheiros passam a ser equivalentes.

Além da igualdade concernente aos cônjuges e companheiros, também se verifica a igualdade entre os filhos, prevista constitucionalmente no artigo 227, §6º, o qual aduz que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. (BRASIL, 1988). Nesse mesmo sentido é o teor do artigo 1596 do Código Civil.

Assim, depreende-se que a ordem jurídica hodierna não permite o tratamento distinto entre filhos legítimos e ilegítimos.

3.2.3 Pluralismo das entidades familiares

Com as mudanças dos paradigmas da família, não se considera como entidade familiar apenas aquela proveniente do casamento entre homem e mulher, sendo reconhecidas outras formas, as quais serão abordadas a seguir.

3.2.3.1 Família formada pelo casamento

De acordo com Rodrigues apud Carelli (2008, p. 24) “casamento é o contrato de direito de família que tem por fim promover a união de homem e mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência”.

A família oriunda do casamento é reconhecia no art. 226, §§ 1º e 2º da Constituição Federal. O casamento válido no país é o civil, porém o casamento religioso é provido de eficácia caso todas as formalidades impostas sejam observadas, conforme se depreende do disposto no artigo 1515 do Código Civil.

Como já mencionado alhures, a concepção de família foi evoluindo ao longo da história e passou-se a admitir outras entidades familiares além desta tradicional.

3.2.3.2 Família advinda da união estável

A união estável está expressamente consignada como entidade familiar no art. 226, §3º da Constituição Federal ao dispor que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. (BRASIL, 1988).

O referido instituto recebe tratamento apenas pelos artigos 1723 a 1727 do Código Civil e tais dispositivos permitem apenas uma análise perfunctória a respeito do assunto. É cediço que é necessária a adequação da lei aos fenômenos sociais, o que ocasiona a evolução do pensamento jurídico no que tange aos aspectos familiares. Nesse sentido, elucida-se que:

Seja como for, o desinteresse pelo casamento acabou provocando uma espécie de clamor público, no sentido de que fossem constitucionalizadas e reguladas, legislativamente, as uniões livres entre o homem e a mulher, para efeito de recíproca assistência e proteção à prole, daí resultante; originando a noção de entidade familiar, prevista na Carta Política de 1988, em razão do que não mais se pode falar em família ilegítima, em oposição à família legítima, pois ambas essas situações estão sob o manto da proteção legal e constitucional. (SOARES apud VENOSA, 2011, p. 417).

O artigo 1723 do Código Civil disciplina que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. (BRASIL, 2002). Importante destacar que, segundo o §1º do referido dispositivo, a união estável não será reconhecida nos casos em que o casal está impedido de contrair casamento (art. 1521, CC), sendo que tal união é denominada pelo Código Civil como concubinato. Já as causas suspensivas, conforme disciplina o §2º do artigo 1723 não impedem a constituição da união estável.

Ressalta-se que não foi estabelecido requisito temporal para configuração da união estável, ou seja, não houve previsão de período mínimo de convivência, sendo que a estabilidade da união deve ser averiguada de acordo com o caso concreto.

Da leitura do artigo 1723 do Código Civil, extrai-se que é colocado como requisito configurador da união estável a dualidade de sexos. Todavia, tal dispositivo não deve ser interpretado de forma restritiva, entendendo ser admissível apenas a união estável heterossexual. Nesse sentido, afirma-se que:

Efetivamente, a união entre pessoas homossexuais poderá estar acobertada pelas mesmas características de uma entidade heterossexual, fundada, basicamente, no afeto e na solidariedade. Sem dúvida, não é a diversidade de sexos que garantirá a caracterização de um modelo familiar, pois a afetividade poderá estar presente mesmo nas relações homoafetivas. (CHAVES ; ROSENVALD apud GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 434-435).

Da redação do aludido dispositivo, depreende-se ser elementos essenciais de caracterização da entidade familiar em questão a publicidade, a continuidade, a estabilidade e o objetivo de constituição de família.

No que tange à publicidade, faz-se imprescindível que o casal seja reconhecido, no contexto social, como uma família, sendo tal convivência de caráter notório.

Quanto à continuidade, diz-se que é necessária a intenção de manter uma convivência permanente e definitiva, uma vez que “a união estável não se coaduna com a eventualidade, pressupondo a convivência contínua, sendo, justamente por isso, equiparada ao casamento em termos de reconhecimento jurídico”. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 436). Em relação à estabilidade, esta diz respeito à convivência de caráter duradouro.  

O animus de constituir uma família é provido de extrema relevância, não podendo estar ausente. “Isso porque o casal que vive uma relação de companheirismo – diferentemente da instabilidade do simples namoro – realiza a imediata finalidade de constituir uma família, como se casados fossem”. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 436).

3.2.3.3 Família monoparental

Tal modalidade de família está prevista no art. 226, §4º da Constituição, o qual aduz que “entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. (BRASIL, 1988).

São várias as causas que originam essa entidade familiar, como, verbi gratia, a morte de um dos genitores, o divórcio ou separação do casal, a inseminação artificial e a adoção feita por pessoa solteira.

3.2.3.4 Família anaparental

Tal entidade familiar pode ser entendida como:

[...] aquela constituída basicamente pela convivência entre parentes dentro de uma mesma estrutura organizacional e psicológica, visando a objetivos comuns, que residem no mesmo lar, pela afetividade que os une ou por necessidades financeiras ou mesmo emocionais, como o medo de viver sozinho. (ALMEIDA apud CARELLI, 2008, p. 40).

Nesse sentido, cita-se como exemplo a convivência de dois irmãos, sendo que, nesse caso, tal união, embora não presente o elemento de conotação sexual, deve ser reconhecida como família com o fito de serem produzidos todos os efeitos jurídicos previstos em lei.

3.2.3.5 Família eudemonista

Quanto ao conceito de família eudemonista, destaca-se o seguinte:

Eudemonista é considerada a família decorrente da convivência entre pessoas por laços afetivos e solidariedade mútua, como é o caso de amigos que vivem juntos no mesmo lar, rateando despesas, compartilhando alegrias e tristezas, como se irmãos fossem, razão porque os juristas entendem por bem considerá-los como formadores de mais um núcleo familiar. (ANDRADE apud CARELLI, 2008, p. 41-42).

Assim, mais uma vez verifica-se a importância atribuída aos laços afetivos e à comunhão de vida dos indivíduos, deixando de lado aspectos consuetudinários e tradicionalistas.

3.2.3.6 Família mosaico

A família mosaico também é conhecida como família pluriparental, sendo que ela é caracterizada pela existência de vários vínculos e pelo elevado grau de interdependência.

Tal entidade familiar deriva das relações em que houve união de pessoas divorciadas ou separadas, possuindo filhos. Nesse sentido, “nessa nova organização as famílias passam a receber o ‘marido da mãe’ os ‘filhos do marido da mãe’, os filhos da nova esposa do pai, as famílias de cada um dos novos pares, cada um trazendo para o núcleo familiar sua própria cultura”. (CHAGAS apud CARELLI, 2008, p. 41).

3.2.3.7 Família formada pela união homoafetiva

É cediço que a homossexualidade sempre se fez presente na sociedade, mas ainda existe muita discriminação em relação a tal prática. Não obstante, é preciso se ater à realidade hodierna e, assim, a união homoafetiva deve ser considerada como entidade familiar. No que tange a esse aspecto, elucida-se que:

Por absoluto preconceito, a Constituição emprestou, de modo expresso, juridicidade somente às uniões estáveis entre homem e uma mulher, ainda que em nada diferencie a convivência homossexual da união estável. A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto pode-se deixar de conferir status de família [...] o respeito à dignidade da pessoa humana. (DIAS apud CARELLI, 2008, p. 44).

Todavia as concepções normativas a respeito foram sendo reformuladas e a união homoafetiva vem produzindo de forma regular seus efeitos jurídicos como entidade familiar. Nessa senda, mostrou-se de extrema importância a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal no tocante à ação direta de inconstitucionalidade n. 4277/DF. À guisa de ilustração, segue ementa do entendimento jurisprudencial:

1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação.

2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de promover o bem de todos. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana norma geral negativa, segundo a qual o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana: direito a autoestima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.

3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão família, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.

4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia entidade familiar, não pretendeu diferenciá-la da família. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado entidade familiar”como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem do regime e dos princípios por ela adotados, verbis: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata autoaplicabilidade da Constituição.

6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (STF - ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03<span id="jusCitacao"> PP-00341</span>). (Online).

Torna-se evidente, portanto, que o conceito de família é indeterminado e, em que pese estejam explicitadas três formas de família nos parágrafos do art. 226 da CF, as demais formas estão implícitas no caput do referido dispositivo. Diante do exposto, é perceptível que o rol das modalidades de entidades familiares previstas na Constituição Federal não é numerus clausus. Assim, visou-se conferir proteção ampla às entidades familiares, sendo a tutela constitucional abrangente e não exclusiva a determinadas formas de constituição familiar.

3.2.4 Afetividade

No que tange ao princípio em comento, destaca-se que:

A afetividade é construção cultural, que se dá na convivência, sem interesses materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Revela-se em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situação real. Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação ou comunidade unidas por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e final, haverá família. (LÔBO, 2002, p. 1).           

A família, ao longo do tempo, passou a ser vista como um grupo social consubstanciado nos laços providos de afeto e não apenas como um ente que possui fins de cunho procriacional e econômico.

Segundo Tartuce (2014, p. 776), “mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade humana e da solidariedade”.

O afeto permeia as relações familiares, sendo que ele contribui para o respeito da dignidade humana, havendo fortalecimento da reciprocidade dos sentimentos existentes entre os membros do núcleo familiar.

3.2.5 Mínima intervenção do Estado

           Na visão de Diniz (2011), o princípio da liberdade se destina à constituição livre da entidade familiar, seja por meio do casamento ou união estável, sem a existência de imposição; livre decisão relativa ao planejamento familiar, sendo a intervenção do Estado exclusiva para proporcionar recursos para o exercício de tal direito; livre aquisição e administração do patrimônio e possibilidade de escolha do regime patrimonial e de formação cultural, educacional e religiosa dos filhos.

Diante disso, infere-se que o Estado tem a incumbência de apoio e assistência, não podendo interferir de forma demasiada no contexto do núcleo familiar. Não obstante, há situações em que os órgãos públicos têm a obrigação de agir, não podendo permanecer inertes, quando, por exemplo, o direito de algum integrante da família está sendo ameaçado ou lesionado.

Tal princípio encontra-se previsto no artigo 1513 do Código Civil, ao dispor que “é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”. (BRASIL, 2002).

3.2.6 Melhor interesse da criança e do adolescente

Segundo Diniz (2011, p. 37-38), o referido princípio permite à criança e ao adolescente “[...] o integral desenvolvimento de sua personalidade e é diretriz solucionadora de questões conflitivas advindas da separação ou divórcio dos genitores, relativas à guarda, ao direito de visita, etc.”.

Tal princípio também se encontra explícito no âmbito constitucional, uma vez que o artigo 227 da Carta Magna preconiza que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

Então, é perceptível a maior responsabilidade dos pais quando os filhos ainda estão em tenra idade, devendo ser observadas todas as diretrizes dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente, buscando-se conferir primazia à proteção dos direitos, sendo que a inobservância e o descumprimento dos deveres familiares pelos genitores poderá ocasionar responsabilização, resultando, em casos mais extremos, na suspensão ou destituição do poder familiar, conforme previsto nos artigos 1637 e 1638 do Código Civil.

Nos artigos 1566, inciso IV, e 1724 do Código Civil são previstos como deveres dos cônjuges e companheiros o sustento, a guarda e educação dos filhos, não podendo eles se eximirem de tais incumbências.


4. DO ABUSO DE DIREITO NAS RELAÇÕES FAMILIARES

O abuso de direito, assim como nas demais áreas, também se manifesta no âmbito do Direito de Família, uma vez que nas relações familiares são cometidos vários excessos, sendo que muitas vezes não são constatados em virtude da sutileza de suas manifestações.

Deve se proceder à identificação de tais situações, conferindo a devida punição àqueles que utilizam seu direito de forma indevida. Os principais abusos de direito, na seara familiar, serão retratados a seguir.

4.1 Direito de guarda

Ao instituto da guarda é conferido tratamento pelo Código Civil, em seus artigos 1.583 a 1.590, tendo como escopo fazer com que os direitos e deveres de pais e filhos na relação assistencial sejam efetivados da melhor maneira, buscando assegurar à criança e ao adolescente uma formação adequada.

No que tange à definição de guarda, salienta-se que:

A guarda é relação típica do poder familiar. É, em termos grosseiros, a "posse direta" dos pais sobre os filhos. Apesar de grosseiros os termos, a ideia de posse é tão atraente e expressa com tanta clareza em que consiste a guarda, que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente a utilizou no art. 33, § 1º, ao dispor que "a guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros”. (FIUZA, 2003, p. 841).

São frequentes os casos em que há abuso de direito por parte dos genitores detentores da guarda e também dos não guardiões. Nesse caso, deve-se procurar puni-los de forma a não causar reflexos na criança, sobre a qual deve incidir a devida proteção.

As crianças e adolescentes devem ser resguardados, de maneira que não sofram as consequências provenientes dos conflitos existentes entre seus genitores, pois é evidente que os abusos perpetrados causam máculas ao convívio familiar e à personalidade dos filhos.

No que concerne à escolha do guardião das crianças, há um período atrás, essa tarefa era transmitida à mãe sem maiores questionamentos, sendo que ao pai era transferida a incumbência de propiciar o sustento dos descendentes.

Hodiernamente, a guarda é conferida observando-se o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Nesse sentido, o detentor da guarda será aquele que possuir melhores condições de cuidar do filho, sendo que poderá haver compartilhamento da guarda, ocasião em que ambos os genitores, de forma isonômica, possuem a responsabilidade de criação e formação dos filhos.

No que tange à proteção integral que deve ser conferida à criança e ao adolescente, a título ilustrativo, faz-se imperioso transcrever os arts. 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n. 8069/90, in verbis:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

[...]

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 1990).

Na mesma esteira de entendimento, é o art. 227 da Constituição Federal, o qual aduz que:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

O genitor que detém a guarda do filho deve incentivar o convívio deste com o genitor não guardião e com os demais familiares, mantendo-se, assim, os laços de afeto existentes entre eles. Ocorre que, muitas vezes, o genitor abusa de seu direito de guarda e não proporciona esse direito à criança e à família, obstaculizando as visitas, fazendo o filho acreditar que o pai e os demais familiares não querem sua companhia, sendo que a criança ou adolescente não tem conhecimento do que realmente ocorre. Nesse diapasão, elucida-se que:           

Os mais diversos casos de abuso do direito de guarda são denunciados por pais que tentam de todas as maneiras reconquistar e restaurar a convivência com seus filhos, inobstante as atitudes egoístas e repletas de ressentimentos causadas pela separação ou pelo abandono, refletidas nos filhos, que se tornam objetos de troca na disputa para ver quem tem mais poder, e desta insensata contenda, na verdade, os filhos é que sofrem os maiores prejuízos. (MARCANTÔNIO, 2010, p. 08-09).

O guardião também comete abuso de direito quando frustra as visitas pelo outro genitor, inventando desculpas apenas para impedi-lo de ver o filho. Nesse sentido, “frustra as visitas de modo direto o guardião que procura sair com o menor justamente no horário das visitas, ou que se nega a entregar o filho sob as mais esfarrapadas desculpas”. (MADALENO apud MARCANTÔNIO, 2010, p. 09).

A respeito das punições conferidas ao guardião que abusa de seu direito, pode haver a reversão da guarda, porém é a última opção adotada. Nesse sentido, colaciona-se entendimento jurisprudencial do egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

DIREITO DE FAMÍLIA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE REVERSÃO DA GUARDA EM FAVOR DA GENITORA. INTERESSE DOS MENORES. MANUTENÇÃO DA SITUAÇÃO FÁTICA. AUSÊNCIA DE LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. - A guarda do menor é direito que deve sempre estar condicionado ao seu próprio interesse, decorrendo, a princípio, da lei, como consequência natural do pátrio poder, e, excepcionalmente, de decisões judiciais, conforme acordo entre as partes ou a situação fática. - É preciso considerar a necessidade de proteção dos interesses dos menores, que não têm maturidade suficiente para fazer suas próprias escolhas e que necessitam de orientação estável para tornarem-se adultos equilibrados. - A guarda não é definitiva. Constatada a falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável (ECA, art. 98, II), não deve o menor permanecer sob a guarda daquele que o possa prejudicar, podendo ser revogada a qualquer tempo. - Ausentes as hipóteses previstas no artigo 17 do CPC, não se mostra caracterizada a má-fé das partes. (TJ-MG - AI: 10702120822359001 MG, Relator: Wander Marotta, Data de Julgamento: 03/09/2013,  Câmaras Cíveis / 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/09/2013). (Online).

Dentre as maneiras de punição encontradas pelo magistrado, conforme o caso concreto, estão a alteração da guarda unilateral para a guarda compartilhada, aplicação de multa, suspensão do pagamento da pensão alimentícia e, em último caso, a busca e apreensão do menor. Na aplicação dos meios de repressão ao genitor que abusa de seu direito, deverá ser analisada a alternativa mais adequada, de forma a assegurar a proteção ao menor.

4.2 Direito de visitas

O genitor que não detém a guarda do filho também pratica atos que excedem as prerrogativas que lhe são conferidas em virtude do direito de visitas. O abuso de direito, na maioria dos casos, acontece quando o genitor fica com o filho além do tempo acordado com o guardião ou determinado judicialmente.

O descumprimento do acordo de visitas é algo que prejudica a criança, tendo em vista o senso de irresponsabilidade daquele e os danos causados ao infante devido ao afastamento com o genitor detentor da guarda, causando uma abrupta mudança na rotina do filho.

A medida de busca e apreensão do menor é muito adotada quando o genitor não guardião retém a criança em seu poder, negando-se a restituí-la ao guardião. No entanto, tal medida deve ser utilizada em último caso, uma vez que sempre se deve visar garantir a integridade física e psíquica da criança.

Outro meio de obrigar o visitante a entregar o filho é a aplicação de multa (astreintes) pelo juiz. Nesse sentido:

A pena pecuniária serve como importante desestímulo aos embaraços oriundos de ressentimentos e traumas ainda não elaborados e que habitam o subconsciente daqueles pais que romperam a sua primitiva relação. (MADALENO apud MARCANTÔNIO, 2010, p. 13).

O genitor também comete abuso de direito quando não exerce seu direito de visitas, criando falsas expectativas na criança que fica por um considerável lapso temporal aguardando a visita do pai ou da mãe ou, ainda, quando não fornece os cuidados necessários e não supre as necessidades básicas do filho quando este está em sua companhia.

4.3 Direito aos alimentos

A obrigação relativa ao pagamento de pensão alimentícia tem como objetivo proporcionar ao alimentando meios para suprir suas necessidades gerais, como vestuário, saúde, educação e alimentação. Nesse sentido:

Alimentos, em direito, denomina-se a prestação fornecida a uma pessoa, em dinheiro ou em espécie, para que possa atender às necessidades da vida. A palavra tem conotação muito mais ampla do que na linguagem vulgar, em que significa o necessário para o sustento. Aqui se trata não só do sustento, como também de vestuário, habitação, assistência médica em caso de doença, enfim, de todo o necessário para atender às necessidades da vida; e, em se tratando de criança, abrange o que for preciso para sua instrução. (RODRIGUES, 2002, p. 418).

No que concerne aos pressupostos essenciais da obrigação de pagar alimentos, o art. 1695 do Código Civil dispõe que:

São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento. (BRASIL, 2002).

Assim, devem ser analisados alguns requisitos quanto ao dever de prestação de alimentos, como existência de companheirismo, vínculo de parentesco ou conjugal entre o alimentando e alimentante; necessidade do alimentando; possibilidade econômica do alimentante e proporcionalidade, quando de sua fixação, levando em conta a necessidade do alimentando e os recursos financeiros do alimentante. (DINIZ, 2011, p. 618-619).

O abuso de direito concernente aos alimentos pode ser concretizado tanto pelo alimentante quanto pelo alimentando.

O alimentante comete abuso de direito quando atrasa no adimplemento da pensão alimentícia, causando danos aos alimentandos, que necessitam pagar as contas referentes ao seu sustento e demais necessidades básicas.

Em muitas situações, é preciso que o alimentando ingresse com ação de execução para ver satisfeito o débito alimentar, o que acaba causando desgaste físico e emocional. Nesse diapasão:

Com relação à ação de execução de alimentos, diversas vezes o devedor, na tentativa de postergar o cumprimento da obrigação alimentar, comete verdadeiro abuso do seu direito de defesa ao opor resistência injustificada ao andamento da execução, com argumentos descabidos e meramente protelatórios, o que acaba reduzindo a prestação jurisdicional em sede de alimentos atrasados e ferindo a dignidade do alimentando. (MARCANTÔNIO, 2010, p. 15).

Sendo assim, o alimentante incorre em abuso de direito quando não cumpre seu dever de pagar a pensão alimentícia e quando utiliza meios de defesa com o intuito de protelar a cobrança do débito alimentar vencido. Como meio de coibir tal prática, cumpre ressaltar que:

Permite a execução pela via da dignidade da pessoa humana estabelecer uma fértil composição de expeditos e pontuais procedimentos processuais, todos eles ensaiados para conferir, mesmo de ofício, dignidade à Justiça e ao credor da prestação alimentar, valendo-se da possibilidade de ser moralmente ressarcido pela procrastinação maliciosa de seu inquestionável crédito alimentar, pois importa, acima de tudo, devolver ao processo de execução alimentar a velha crença de que a pensão em atraso dá cadeia e gera outras eficazes soluções jurídicas de rápida satisfação processual. (MADALENO apud MARCANTÔNIO, 2010, p. 16-17).

Hodiernamente, com fundamento no art. 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, o magistrado pode aplicar outras medidas coercitivas como forma de pressionar o devedor da prestação alimentícia a pagar o quantum devido, como, por exemplo, a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação e do passaporte, inscrição nos órgãos restritivos de crédito e bloqueio de cartões bancários.

Salienta-se que os alimentandos também cometem abuso de direito e o principal caso em que isso ocorre é quando protelam as ações que versam sobre exoneração de alimentos, diante das hipóteses em que o alimentante não tem mais a obrigação de continuar pagando a pensão em virtude de terem desaparecido os requisitos para tanto.

Os filhos maiores não têm necessidade de continuar recebendo a pensão, salvo para garantir os estudos universitários, conforme entendimento jurisprudencial, até completar a idade de 24 anos. Nesse diapasão:

FAMÍLIA. EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. MAIORIDADE. OBRIGAÇÃO DECORRENTE DA RELAÇÃO DE PARENTESCO. FREQUÊNCIA EM CURSO SUPERIOR. DESEMPENHO DE ATIVIDADE LABORAL. EXONERAÇÃO. POSSIBILIDADE. NECESSIDADE NÃO COMPROVADA. - Apesar do advento da maioridade não extinguir, de forma automática, o direito à percepção de alimentos, em virtude desses passarem a ser devidos em virtude da relação de parentesco e não mais em razão do Poder Familiar, necessário se faz que o alimentado comprove que permanece tendo necessidade de receber alimentos. - Mesmo que ainda esteja frequentando curso superior, tal fato por si só não é o bastante para demonstrar a necessidade do alimentado, especialmente quando este já se encontra com 24 anos e já desempenha atividade laboral remunerada. (TJ-MG - AC: 10024112697149001 MG, Relator: Duarte de Paula, Data de Julgamento: 22/05/2014,  Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 28/05/2014). (Online).

É incumbência dos filhos universitários comprovar que estão realizando o curso superior, assiduidade e frequência e a necessidade dos referidos proventos, sob pena de não mais terem o direito de recebê-los. Nesse sentido, segue jurisprudência:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. FILHO MAIOR. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. 1.O alcance da maioridade do alimentado não acarreta, por si só, a dispensa da percepção de alimentos, quando comprovada a permanência da sua necessidade em recebê-los. A pensão deve ser mantida nas hipóteses em que o jovem é estudante, necessitando da pensão para obter formação profissional qualificada. 2. De toda sorte, tratando-se de alimentos a filhos maiores de idade, é fundamental que se analise caso a caso a fim de verificar a comprovação da necessidade do alimentado e a possibilidade do alimentante, evitando que o filho maior e com plena capacidade para o trabalho acomode-se e que uma das partes saia prejudicada. 3. Apelado que demonstra total desinteresse pelos seus estudos, diante de seu baixo rendimento escolar e histórico de faltas, o que torna descabida a manutenção da pensão alimentícia, sob pena de estimular o ócio e a condição parasitária. 4.Reforma da sentença que se impõe para se julgar procedente o pedido de exoneração do dever do apelante de prestar alimentos ao demandado, ressalvando-se o direito dos alimentos até o término do ano letivo em curso. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARCIALMENTE. (TJ-RJ - APL: 00294105420128190204 RJ 0029410-54.2012.8.19.0204, Relator: DES. FERNANDO CERQUEIRA CHAGAS, Data de Julgamento: 03/12/2014, DÉCIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 12/12/2014 13:54). (Online).

Não mais subsistindo os motivos que ensejam ao pagamento da prestação alimentícia, deve se extinguir a obrigação do alimentante, não havendo mais motivos plausíveis para recebimento dos alimentos por aquele que não mais possui necessidade.

Não podem mais continuar recebendo os alimentos aqueles que possuem atividade laboral, terminaram seus estudos ou constituíram família e agora seu sustento é dependente do cônjuge.

Há o princípio da irrepetibilidade dos alimentos, segundo o qual os valores, a título de pensão alimentícia, já adimplidos não serão restituídos ao alimentante. No entanto, em razão do princípio da boa-fé esta questão vem sendo revista pelas jurisprudências com o fito de se evitar o enriquecimento ilícito por parte do alimentando.

O Superior Tribunal de Justiça já adotou o referido entendimento, conforme se verifica abaixo:

RECURSO ESPECIAL - EXECUÇÃO DE PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA SOB O RITO DO ART. 733 DO CPC - LIMITES DA MATÉRIA DE DEFESA DO EXECUTADO E LIQÜIDEZ DOS CRÉDITOS DESTE - PREQUESTIONAMENTO - AUSÊNCIA - COMPENSAÇÃO DE DÍVIDA ALIMENTÍCIA - POSSIBILIDADE APENAS EM SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS, COMO IN CASU - RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. 1. É inviável, em sede de recurso especial, o exame de matéria não prequestionada, conforme súmulas ns. 282 e 356 do STF. 2. Vigora, em nossa legislação civil, o princípio da não compensação dos valores referentes à pensão alimentícia, como forma de evitar a frustração da finalidade primordial desses créditos: a subsistência dos alimentários. 3. Todavia, em situações excepcionalíssimas, essa regra deve ser flexibilizada, mormente em casos de flagrante enriquecimento sem causa dos alimentandos, como na espécie. 4. Recurso especial não conhecido. (STJ - REsp: 982857 RJ 2007/0204335-4, Relator: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Julgamento: 18/09/2008,  T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: <!-- DTPB: 20081003<br> --> DJe 03/10/2008). (Online).           

Depreende-se que ao alimentando cabe a tarefa de comunicar sua independência financeira e que, portanto, não mais faz jus aos alimentos fornecidos pelo alimentante. Entretanto, comumente se verifica que as pessoas não adotam essa postura, continuando a receber os alimentos como forma de complementar sua renda e não para atingir o fim da prestação alimentícia que é suprir as necessidades básicas do alimentando.

É possível vislumbrar que o abuso de direito na modalidade supressio também ocorre. Isso se verifica, verbi gratia, quando o credor de pensão alimentícia se mantém inerte por um considerável lapso temporal, não promovendo a execução do débito alimentar e, assim, cria no alimentante a expectativa de que a ausência de execução se deve à inexistência da necessidade do recebimento da prestação alimentícia. À guisa de ilustração, segue entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PRISÃO. RITO ARTIGO 733. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO OBRIGACIONAL PELO COMPORTAMENTO CONTINUADO NO TEMPO. CRIAÇÃO DE DIREITO SUBJETIVO QUE CONTRARIA FRONTALMENTE A REGRA DA BOA-FÉ OBJETIVA. SUPRESSIO. Em atenção a boa-fé objetiva, o credor de alimentos que não recebeu nada do devedor por mais de 12 anos permitiu com sua conduta a criação de uma legítima expectativa no devedor e na efetividade social de que não haveria mais pagamento e cobrança. A inércia do credor em exercer seu direito subjetivo de crédito por tão longo tempo, e a consequente expectativa que esse comportamento gera no devedor, em interpretação conforme a boa-fé objetiva, leva ao desaparecimento do direito, com base no instituto da supressio. Precedentes doutrinários e jurisprudenciais. No caso, o filho deixou de exercer seu direito a alimentos, por mais de 12 anos, admitindo sua representante legal que a paternidade e auxílio econômico ao filho era exercido pelo seu novo esposo. Caso em que se mostra ilegal o decreto prisional com base naquele vetusto título alimentar. (TJ-RS - AI: 70042234179 RS, Relator: Rui Portanova, Data de Julgamento: 18/08/2011,  Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 23/08/2011). (Online).

No que tange ao duty to mitigate the loss no Direito de Família, a hipótese em que é clara sua incidência é aquela decorrente do conteúdo descrito na súmula 309 do STJ, a qual já fora retratada em momento anterior. Nesse sentido, elucida-se que:

[...] Sem dúvida, considerando que os alimentos possuem natureza de manutenção, se o credor deixou somar um volume considerável de parcelas é porque não precisava tanto da pensão e, por conseguinte, seria abusivo permitir o uso de um mecanismo tão excepcional e odioso, como é a prisão civil, com finalidade coativa. Aqui, de qualquer modo, vale o registro de que, não havendo qualquer atentado à boa-fé na conduta do credor (quando, por exemplo, deixa de executar os alimentos por impossibilidade absoluta, como na hipótese do credor em cuja cidade não há Defensoria Pública nem representação titular do Ministério Público), já não mais se justifica a limitação imposta pelo entendimento sumulado, porque afastada a violação da boa-fé objetiva. (FARIAS, 2010, p. 14).

Depreende-se, então, que se trata de clara obrigação do credor da pensão alimentícia em procurar mitigar os danos conferidos a si e ao alimentante.

4.4 Do impedimento do casamento dos filhos menores

O art. 1517 do Código Civil prevê a necessidade de autorização de ambos os pais ou os representantes legais para que os filhos com 16 anos possam contrair matrimônio.  O art. 1519 do referido diploma legal aduz que quando a ausência do consentimento pelos genitores for injusta, o juiz poderá suprir a denegação da autorização.

Salienta-se que os pais ou tutores poderão se retratar e revogar a autorização em comento até a realização do casamento, conforme aduz art. 1518 do Código Civil..

Quando a denegação do consentimento ocorrer nas vésperas do casamento e ela for injusta, é cabível ressarcimento dos danos materiais e indenização por danos morais aos nubentes. Nesse diapasão:

Poderia ser dito que a obrigação de reparar não persistiria, porquanto prevê a lei que o magistrado está autorizado a suprir o consentimento denegado de maneira censurável; contudo, tendo em vista ser permitido que até a celebração propriamente dita do casamento os pais podem revogar a autorização e considerando que até os nubentes conseguirem o suprimento judicial da outorga já tenha transcorrido a data marcada para a cerimônia, os pais podem ser compelidos a reparar os prejuízos dos nubentes, por terem abusado do seu direito ao revogar a autorização concedida para que seus filhos casassem, sem que houvesse qualquer razão plausível para tal conduta, inesperada e causadora de profundos danos aos filhos. (MARCANTÔNIO, 2010, p. 33).

Assim, viável a concessão do ressarcimento dos danos aos nubentes em virtude dos prejuízos advindos.

4.5 Da relação existente entre o abuso de direito e a síndrome da alienação parental

O conceito legal de alienação parental encontra-se estatuído no art. 2º da lei n. 12.318/10, o qual aduz que:

Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. (BRASIL, 2010).

Não é despiciendo trazer uma definição doutrinária sobre o tema em questão, in verbis:

A Síndrome de Alienação Parental é um transtorno psicológico que se caracteriza por um conjunto de sintomas pelos quais um genitor, denominado cônjuge alienador, transforma a consciência de seus filhos, mediante diferentes formas e estratégias de atuação, com objetivo de impedir, obstaculizar ou destruir seus vínculos com o outro genitor, denominado cônjuge alienado, sem que existam motivos reais que justifiquem essa condição. Em outras palavras, consiste num processo de programar uma criança para que odeie um de seus genitores sem justificativa, de modo que a própria criança ingressa na trajetória de desmoralização desse mesmo genitor. (TRINDADE apud VIEIRA, 2014, p. 1).           

A alienação parental é terrível abuso cometido contra a criança, a qual possui personalidade frágil e acaba se influenciado facilmente por um dos genitores.  Nesse diapasão, imperioso se faz mencionar que:

Enuncia-se que “a prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda” (art. 3.º). Desse modo, não há dúvida que, além das consequências para o poder familiar, a alienação parental pode gerar a responsabilidade civil do alienador, por abuso de direito (art. 187 do CC). (TARTUCE, 2014, p. 892).

O genitor que extrapola seus direitos de guarda para providenciar a manipulação da criança tem como principal intuito atingir o outro genitor em virtude dos ressentimentos oriundos da separação do casal ou por não conseguir lidar com a entrega do filho ao outro genitor. Isso traz vários consectários de cunho negativo para a criança que insere em seu subconsciente situações falaciosas, que nunca aconteceram, o que lhe traz uma visão depreciativa do outro genitor.

São comuns os falsos relatos de abuso sexual pelo genitor guardião com o fito de que as visitas sejam interrompidas. Nesse diapasão:

Adultos corrompem covardemente a inocência das crianças, com o uso de chantagens de extrema violência mental, sem nenhuma chance de defesa da criança, que acredita piamente que o visitante não lhe faz bem, e o menor expressa isso de forma exagerada e injustificada para rejeitar o contato. Isso quando nos casos mais severos de alienação um genitor fanático não acrescenta uma acusação de agressão ou de abuso sexual. (MADALENO apud MARCANTÔNIO, 2010, p. 30).

A síndrome da alienação parental vem sendo analisada pelos juízes, os quais contam com profissionais especializados para a identificação dos casos em que ela se verifica e, assim, serem aplicadas as penalidades cabíveis ao alienador.

Dentre as medidas a serem aplicadas para erradicar ou ao menos diminuir tal prática, o magistrado pode proceder à imposição de multa diária ao genitor guardião que procura impedir o contato do filho com o genitor visitante e a suspensão do direito de visitas do genitor que visa denegrir a imagem do outro.

Verificando a existência de alienação parental, faz-se fundamental que o magistrado determine que o genitor alienador e a criança alienada se submetam a acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico com o escopo de que os danos de ordem psicológica sejam amenizados e posteriormente não haja reincidência em abuso de direito de tal natureza. É importante, para fins de cumprimento da referida medida, que seja cominada, como penalidade à desobediência, a mudança da guarda.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Torna-se evidente, portanto, que a teoria do abuso de direito se aplica ao Direito de Família se evidenciado de forma específica nos direitos que lhe são pertinentes e em algumas das modalidades clássicas explanadas no primeiro capítulo.

As situações de abuso de direito no âmbito das relações familiares são frequentes e, em que pese não ser um assunto muito abordado na doutrina, as jurisprudências têm enfrentado tais questões.

No que tange às medidas adotadas para coibir o uso do direito subjetivo de forma a exceder seus limites, é cediço que há necessidade de analisar, de forma pormenorizada, o caso concreto, uma vez que há vários procedimentos a serem adotados e é preciso escolher o mais adequado.

Quanto ao direito de guarda e visitas, depreende-se que o abuso de direito é perpetrado tanto pelo genitor guardião, quanto por aquele que não detém a guarda. O primeiro incorre nessa conduta quando age de forma a impedir a convivência familiar do filho com o outro genitor e o segundo quando não busca e devolve o filho no local e horário pactuados, deixa a criança na companhia de terceiros e não fornece o carinho e afeto indispensáveis a ela.

Em relação ao direito relativo aos alimentos, também se verifica a ocorrência de abuso de direito por ambas as partes, alimentante e alimentando. O primeiro assim age quando atrasa no pagamento da pensão alimentícia, dando causa ao ajuizamento de ação executória para ver satisfeito o débito alimentar. Já o alimentando age de forma irregular quando continua recebendo os valores em comento, mesmo não possuindo mais necessidade e frustra o andamento da ação exoneratória.

O abuso também é perpetrado pelo genitor ou representante legal que concede autorização para seu filho de 16 anos contrair casamento, mas depois a revoga de forma injusta na véspera do matrimônio, uma vez que o Código Civil, de forma paradoxal, confere essa prerrogativa em seu art. 1518.

Ressalta-se que a alienação parental é um dos abusos de direito mais prejudiciais à criança, tendo em vista que um dos genitores busca a qualquer custo fazer com que o filho tenha uma imagem distorcida e depreciativa do outro genitor. Sendo assim, o genitor deveria zelar pela integridade psíquica do filho, mas age de forma inversa buscando atingir seu intento de impedir o saudável desenvolvimento e boa convivência familiar do filho com o outro.

É evidente que, na seara familiar, o excesso advindo do exercício dos direitos dos genitores e outros familiares, principalmente no que concerne à guarda e às visitas, ocasionam consectários negativos para a vida dos filhos, que são as maiores vítimas quando se está diante de uma situação conflituosa. Isso é muito prejudicial para a formação da criança, tendo em vista que algumas consequências são difíceis de serem reparadas e outras são irreversíveis.

Diante do exposto, é perceptível a necessidade da intervenção do Poder Judiciário para punir aquele que exerce seu direito sem observar os limites impostos pela lei, de forma a prejudicar outrem, e, assim, dar uma resposta efetiva àqueles que vivenciam tais situações.

Verifica-se que o tema trata-se de matéria de ordem pública e está relacionado com várias áreas do Direito Civil, mas no presente trabalho destacou-se a atuação no Direito de Família. A abordagem do tema é provida de notória relevância para a formação acadêmica, bem como para a sociedade, à medida que se busca evidenciar que as relações jurídicas não são reguladas unicamente pela lei, mas também pelos valores éticos.

Acredita-se que o trabalho em questão é provido de vários aspectos positivos, tendo em vista que contribuiu para a aquisição de uma cognição exauriente a respeito do assunto retratado e, assim, é de bom alvitre a realização de sua leitura.


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Autor

  • Thaísa da Silva Borges

    Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Ex-advogada. Graduada em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pelo Instituto Elpídio Donizetti. Pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto Elpídio Donizetti.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Thaísa da Silva. Consequências jurídicas do abuso de direito nas relações de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5213, 9 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60638. Acesso em: 29 mar. 2024.