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Estudo de filosofia constitucional, democracia e hermenêutica

Estudo de filosofia constitucional, democracia e hermenêutica

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O direito constitucional é processo constante de construção histórica e cultural que demanda diálogo permanente com os fatores do mundo da vida, de forma que a linguagem, a argumentação e o espírito democrático exercem papel fundamental na estruturação desse grande complexo chamado direito.

O texto tem por escopo abordar temas relacionados aos elementos de Filosofia Constitucional, Democracia e Hermenêutica, não para dar resposta e fazer uma conclusão, mas, conforme se poderá haurir da leitura de seu conteúdo, semear a dúvida e o espírito reflexivo da compreensão filosófica do Constitucionalismo, da Constituição e do Direito Constitucional. Em suma, o estudo aqui engendrado não procura fechar um círculo, mas o contrário: deixá-lo totalmente aberto ao pensamento crítico e científico, de modo que ele trata de certos aspectos jurídico-filosóficos com o objetivo de fazer discutir e questionar pontos relevantes ao Direito Constitucional contemporâneo.

O Direito, fenômeno histórico e cultural, tomado também no seu sentido epistemológico, é linguagem. Assim, todo o sistema jurídico se estrutura pelo poder e pela força da palavra (TRINDADE, 2017).

Ora, se o Direito é linguagem — e isso me parece trivial, ao menos desde o início do século passado —, então contra fatos só há argumentos. E essa é uma razão pela qual os interessados devem prestar vestibular para o curso de Direito e, depois, estudar alguma coisa de filosofia. Isso porque, epistemologicamente, o processo judicial não é formado de fatos, mas de enunciados linguísticos acerca de fatos, como sempre dizem Lenio, Warat, Albano, Cárcova, Calvo González, entre outros.

A maneira pela qual, no Direito, a palavra é aplicada traduz um sentido todo ele peculiar. Sob este enfoque – do Direito como linguagem – no momento em que aborda o Culturalismo Jurídico, cotejando os estudos filosóficos de Miguel Reale, Luis Recaséns Siches e Carlos Cossio, Luiz Fernando Coelho (2014, p. 213) esclarece que:

Verifica-se que os respectivos estudos atuais nucleiam-se em termos como consenso, decisão e procedimento, cujos referenciais não são normas, porém, formas de experiência social, atos de comportamento conceptualizados em normas jurídicas. Ao tomar esses referenciais para sua definição do direito, os autores restauram o antigo realismo psicológico que identificava o direito nas decisões jurisdicionais, bem como, o realismo linguístico que asseverava ser o direito sua própria linguagem, e a doutrina jurídica sua metalinguagem. Linguagem e metalinguagem também são atos de conduta que se revestem de sentido comunitário.

E arremata:

Esses posicionamentos aproximam-se, e muito, do realismo culturalista, o qual logrou ultrapassar tanto o psicologismo quanto o neonominalismo da filosofia da linguagem, de resto compatíveis com o culturalismo, visto que decisão e linguagem no contexto social são formas de comportamento intersubjetivo.

Nesse contexto, o modo assertivo com que direciona, orienta, constrange, ordena, conforma, coaduna e – acima de tudo – convence, persuade e dissuade, bem como os termos linguísticos com que são colocados, indicam a natureza deontológica do Direito (ALMEIDA, p. 498-499, 2008).

[...] Alexy afirma que os conceitos práticos se dividem em três grupos: conceitos antropológicos, deontológicos e axiológicos. Conceitos antropológicos são aqueles relativos ao homem – vontade, interesse, capacidade, necessidade, decisão e ação. Os conceitos deontológicos e axiológicos, por sua vez, se diferenciariam apenas a partir do seu conceito deôntico fundamental. O conceito deontológico fundamental é a idéia de “dever ser”, ao passo que o conceito axiológico fundamental é a idéia de “bem”.

De fato, cabe asseverar, entretanto, que esta característica não é privilégio apenas do Direito, diga-se. Moral e religião, por exemplo, carregam consigo elementos linguísticos muito próximos aos do Direito, na medida em que determinam comportamentos.

Outrossim, quando se entende o Direito na qualidade de fenômeno ordenador da sociedade, não se deve olvidar o aspecto argumentativo da linguagem, tendo em vista, principalmente, a natureza democrática que permeia a vida política e social dos Estados ocidentais contemporâneos, de maneira que é natural que esse fenômeno (ordenador e democrático) dever(ia)á informar o pensamento jurídico em voga.

A possibilidade de justificação racional do discurso jurídico é questão de primacial relevância para a cientificidade do Direito, a qual é imprescindível para a solidez de um Estado Democrático de Direito. Apenas se caracterizam como consensos racionais (e, dentro deles, o jurídico), aqueles passíveis de uma justificação discursiva segundo regras de argumentação (TOLEDO, 2005, p. 48).

Tomemos como fundamento os textos legais, em sentido amplo, fonte por excelência do Direito, mas que com ele obviamente não se confundem.

A estrutura linguística das construções textuais da lei implica o enquadramento a uma conduta ali idealmente descrita. O famigerado “dever-ser” neokantiano e kelseniano (BARACHO, p. 10-11, 15-16):

A referência a Kant é fundamental, pois como acentua Miguel Reale a orientação criticista vem do filósofo alemão, que através dos neo-Kantianos contribui para a renovação da Filosofia do Direito, de maneira mais acentuada do que qualquer outra corrente, inclusive no domínio do Direito Positivo. No prólogo da segunda edição de Hauptprobleme, Kelsen assinala que o método de sua construção veio do Kantismo, ou melhor, do neo-Kantismo de Marburgo. [...] O modelo de Kelsen tem como objetivo ordenar e esclarecer expressões com as quais labutam os juristas, com indicação dos requisitos que pressupõem em suas exposições dogmáticas, novos conceitos gerais. Para Kelsen esta tarefa requer alguns princípios e categorias como: imputação, dever ser ou norma fundamental hipotética, sem as quais não é possível elaborar uma Ciência Jurídica, nem conhecer o seu objeto, que é o direito positivo. [...] Dentro dessa formulação metodológica e conceituai, o direito é uma ordem do dever ser, no sentido de que não é algo que de fato acontece, é um sistema de normas. Kelsen não persegue a interseção do Direito na realidade, mas como a caracterização conjunta e articulada das normas. A significação formal das normas separa-se da significação justa das mesmas. Com tal objetivo, a Teoria Geral ou Fundamental do Direito tem mais em mira as formas jurídicas, não se ocupando das contendas concretas das regras.

Naturalmente que este “dever-ser” hipotetizado pela lei não redunda, inexoravelmente, no “ser”. Em outros termos, se a ordem emitida na lei não for rigorosamente observada pelos destinatários, no caso, todo e qualquer indivíduo, em relação a um certo contexto fático na norma prevista, resultará em uma consequência negativamente jurídica contra quem não lhe respeitou os termos impostos, a fim de colocar as coisas no seu devido lugar.

Assim, a reboque da violação, entrarão em cena o poder político soberano do Estado e a questão do monopólio da força (WEBER, 1982, p. 98): O Estado é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território – este, o território, faz parte de suas características – reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima[2].

Neste ponto, porém, vislumbra-se o fato de que o Direito é ordem, concebida esta tanto no sentido de organizador, quanto no de mandamento, para cuja manutenção emprega-se, em última análise, caso disso se necessite, o uso da força.

Difícil não resgatar, ilustrativamente, a figura mítica do centauro, mencionada por Maquiavel (2010, p. 78), no capítulo XVIII, de “O Príncipe”, no qual, para ele, a justiça do governante deve ser metade humana (a cabeça pensante, razão) e metade cavalo (a força bruta).

Também deve ser do conhecimento geral que existem duas matrizes de combate: uma, por meio das leis; outra, pelo uso da força. A primeira é própria dos homens; a segunda, dos animais. Contudo, como frequentemente a primeira não basta, convém recorrer à segunda: por isso um príncipe precisa saber valer-se do animal e do homem. Este ponto foi ensinado veladamente aos príncipes pelos escritores da Antiguidade, os quais escreveram como Aquiles e tantos outros príncipes antigos foram deixados aos cuidados do centauro Quíron, que os manteve sob sua disciplina. Isso quer dizer que, tendo por preceptor um ser metade animal e metade homem, um príncipe deve saber usar de ambas as naturezas: e uma sem a outra não produz efeitos duradouros.

O Estado seria, então, o agente racionalizador, justificador e, por conseguinte, legitimador da violência oficial, física e psíquica (coerção), na elaboração da ordem social.

Além disso, dentro da sistemática filosófica de Thomas Hobbes e, em certa medida, de August Comte, a noção de justiça coincidiria com a de ordem, o que explicaria e justificaria todas as posturas adotadas pelo poder soberano de plantão (monarca, tirano ou povo).

Neste diapasão, a argumentação, segundo o léxico, consiste no ato ou no processo de argumentar, de apresentar um conjunto de argumentos ou de iniciar ou prosseguir em uma discussão ou controvérsia. Com efeito, argumentação seria aduzir ou alegar raciocínios, discutir, altercar. Em suma, argumentar é esforço mental em busca de elementos lógicos para sustentar um discurso. O homem, no seu simples mister de falar, argumenta. Obviamente que, por se tratar de Direito, está falando da argumentação filosófica e não da prova matemática.

[...] No século XX Toulmin e Perelman consideraram a argumentação jurídica como modelo para a argumentação filosófica. O âmbito do discurso filosófico é o da verossimilhança e não aquele da certeza, e isso explica o fato de que na argumentação filosófica, diferentemente do caso da prova matemática, a conclusão não é estabelecida de forma definitiva. É por isso que podemos dar vários argumentos a favor de uma mesma tese. Pelo contrário, uma única demonstração matemática bem construída é suficiente. É verdade que, por exemplo, tem sido dadas várias provas diferentes do Teorema de Pitágoras além daquela dada nos Elementos de Euclides. Aliás, poucos matemáticos conhecem a prova dada por Euclides. Mas esse resultado já foi provado por Euclides, de uma vez para sempre. As provas seguintes ou são mais simples ou mais elegantes, mas não têm um valor probatório maior, não têm maior força que aquela dada nos Elementos. Pelo contrário nas Meditações Metafísicas de Descartes encontramos três provas da existência de Deus. E quantos argumentos em favor da imortalidade da alma são dados no Fedon de Platão! Aqui temos uma grande diferença. Na argumentação filosófica a força com a qual é estabelecida uma tese varia segundo o argumento. Vários argumentos diferentes podem concorrer para provar uma mesma tese. Na prova matemática isso não acontece. É supérfluo considerar duas provas do mesmo teorema. Por outro lado, aqui temos só duas situações: ou a prova prova, se ela está bem construída, ou não prova, se contém um erro de dedução (MOLINA, 2007, p. 15-16).

Sem embargo, o entendimento acerca do conteúdo normativo dos textos legais, não olvidando, logicamente, a tese de que há diferença entre texto normativo e norma (MÜLLER, 2008, p. 10) demanda uma dose considerável de esforço interpretativo para se chegar ao seu sentido e alcance, máxime se levar em conta a notória complexidade fática e a realidade constitucional que se abrem ao intérprete quando da aplicação do Direito, o que leva à conclusão de que interpretar não é tarefa fácil e enganosamente óbvia.

Em razão disso, a articulação intelectual, racional e reflexiva do jurista sobre os textos normativos, a cargo da hermenêutica jurídica, no exercício do Direito, é missão instransponível, cujas ferramentas darão os parâmetros necessários à fixação do melhor entendimento a ser dali retirado.

Assim, sob tal perspectiva, não se deve jamais deixar de dar atenção específica, então, à questão fática envolvida nas relações jurídicas e seus contornos específicos que realmente interessam ao mundo do Direito, até porque ela exige também uma leitura interpretativa dos elementos que a constituem.

[...] a necessidade do juiz de pôr a vida em relação com a lei implica uma série de juízos de experiência não só bastante complexos do ponto de vista lógico, mas também inclui aspectos determinantes de natureza valorativa, como a “compreensão” e a “interpretação” tanto da norma quanto da circunstância de fato (ESSER, 1983, p. 49)

Em suma, os fenômenos fáticos carecem de um recorte, de uma delimitação e de uma definição jurídicos, à luz das formas e dos conteúdos da norma posta e pressuposta.

Além do mais, a análise dos preceitos normativos e fáticos se eleva e se destaca na complexidade do exercício argumentativo realizado pelo jurista, incluindo principalmente a atividade desenvolvida no âmbito processual, no qual se dá o enfretamento pelo bem da vida pleiteado, de maneira que, nesse passo, a argumentação é prática constante, melhor dizendo, é exercício vital, dos que se envolvem na discussão de temas jurídicos, sob os auspícios do paradigma democrático:

O Supremo Tribunal Federal demonstra, com este julgamento, que pode, sim, ser uma Casa do povo, tal qual o parlamento. Um lugar onde os diversos anseios sociais e o pluralismo político, ético e religioso encontram guarida nos debates procedimental e argumentativamente organizados em normas previamente estabelecidas. As audiências públicas, nas quais são ouvidos os expertos sobre a matéria em debate, a intervenção dos amici curiae, com suas contribuições jurídica e socialmente relevantes, assim como a intervenção do Ministério Público, como representante de toda a sociedade perante o Tribunal, e das advocacias pública e privada, na defesa de seus interesses, fazem desta Corte também um espaço democrático. Um espaço aberto à reflexão e à argumentação jurídica e moral, com ampla repercussão na coletividade e nas instituições democráticas (BRASIL, 2008).

Ao resgatar-lhe a etimologia, nota-se que argumentar significa esclarecer, clarear, iluminar, ou seja, traduz a ideia de lançar luz sobre o que é obscuro, oculto e nebuloso, desatando o nó górdio de uma controvérsia.

Neste sentido, Direito é argumentação, na medida em que a razão ficará do lado de quem, em face dos ditames da norma e dos elementos de fato, tiver a habilidade de melhor compor a linguagem com o objetivo de levar clareza, luz e iluminação ao caminho pelo qual julgador deve percorrer.

Argumentação seriam, a rigor, competências de articular expressões linguísticas convincentes, de modo preciso, conciso, claro e objetivo, com o intuito de bem expor os fundamentos da tese daquele que discursa.

Vale lembrar, nesta senda, que argumentar requer pacto fiel à simplicidade de estilo. Parafraseando Ortega y Gasset, a clareza é a cortesia do jurista. Com efeito, a maneira empolada de se expressar é uma armadilha na qual o jurista insiste em cair, conquanto tenha consciência de que é pecado mortal para o convencimento.

Arthur Schopenhauer (2009, p. 21), célebre filósofo do Dezenove, na seminal obra “A Arte de Escrever”, cujos capítulos foram retirados de seu “Parerga e Paralipomena”, alertava e repudiava para o fato de quem muito escrevia e pouco dizia, com o infeliz e estéreo anseio de demonstrar uma falsa erudição:

Assim como as atividades de ler e aprender, quando em excesso, são prejudiciais ao pensamento próprio, as de escrever e ensinar em demasia também desacostumam os homens da clareza e da profundidade do saber e da compreensão, uma vez que não lhe sobra tempo para obtê-los. Com isso, quando expõe alguma idéia, a pessoa precisa preencher com palavras e frases as lacunas de clareza em seu conhecimento. É isso, e não a aridez do assunto, que torna a maioria dos livros tão incrivelmente entediante. Pois, como podemos supor, um bom cozinheiro pode dar gosto até a uma velha sola de sapato; da mesma maneira, um bom escritor pode tornar interessante mesmo o assunto mais árido.

Ser simples, no entanto, é complexo, na medida em que a arte de se fazer entender, invariavelmente, cobra do jurista refinamento e maturidade intelectual, cuja consecução se obtém com anos de estudo, preparação, disciplina e dedicação. Aqui, portanto, que entra a parte artística do Direito, o qual precisa urgentemente ser cultivado.

A ideia e o conceito de democracia são realidades consideradas, em certa medida, recentes na história da humanidade, sem se esquecer, porém, da noção flexível, fluída, plástica e volátil e das peculiaridades com que cada civilização, desde os gregos até hoje, tratou e trata a práxis democrática (BIZZARRO E COPPEDGE, 2017, p. 02):

A democracia é um conceito multidimensional (Munck Verkuilen, 2002) e que se encontra em constante transformação. Ela é também um dos pilares da análise da política desde a Grécia Antiga (Held, 1987), sendo central para a ciência política moderna como disciplina. As diferenças nas perspectivas dos teóricos e cientistas políticos, quando existem, estão normalmente concentradas na definição daquelas que são consideradas as dimensões necessárias da democracia (Coppedge, 2012). Enquanto vários autores defendem a primazia da dimensão eleitoral, ilustrada pela presença de eleições livres, justas e decisivas (Dahl, 1971; Schumpeter, 2013), outros argumentam que regimes políticos democráticos incluem dimensões que se expandem para além dos limites da competição eleitoral (Held, 1987; Lijphart, 1999).

O fato é que, em termos de confronto na arena política, jurídica e filosófica, o fenômeno da democracia sempre vem à tona, na medida em que se revela crucial para o desenvolvimento da sociedade e do indivíduo, para o reconhecimento e para a implementação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, bem como para o aperfeiçoamento dos valores éticos.

Os valores jurídicos atingem a comunidade como um todo e são jurídicos porque incidem sobre os comportamentos sociais mediante normas jurídicas, cuja aplicabilidade sobre os casos concretos demonstra a opção por certos valores, nas decisões que produziram as normas. É nesse sentido que deve ser entendida a lição de Dworkin, assimilando a doutrina de Roscoe Pound sobre o direito como social engeneering. E colocar a democracia como horizonte inobjetável importa em valorar a liberdade, a igualdade e o exercício da cidadania como valores inerentes ao conceito de democracia (COELHO, 2016, p. 225).

É verdade, também, que a questão do poder político e, por via reflexa, da estruturação dos sistemas jurídicos teve, por longo tempo, sua causa primeira e razão última no transcendental, no metafísico, no religioso e na providência de Deus. Ou seja, as sociedades, as civilizações, umas mais outras menos, invariavelmente, embasavam a hierarquia social e política em critérios teológicos: um ente divino é quem tudo orquestrava e é quem tudo ordenava.

O decisionismos não diverge do normativismo no que tange à procura dos fundamentos racionais da juridicidade, mas interpreta o princípio primeiro como expressão de uma vontade, ainda que de um ente ideal hipostasiado. Neste caso, o decisionismos resgata a tradição escolástica da teoria do poder divino, para substituí-lo pela vontade do povo, pela alma da nação ou pela vontade do soberano. Na verdade, o decisionismos encontrou eco no próprio Kelsen, ao asseverar que toda norma pressupõe uma vontade, real ou ficta (COELHO, 2014, p. 239-240).

Neste passo, a ordem social e a jurídica se ajustavam ao que a sabedoria e a infalibilidade divina impusessem. O poder inflexionado pelos reis, imperadores, senhores feudais, clérigos se fundamentava na vontade divina. Eles nada mais eram do que os representantes de e os ungidos por Deus para comandar os povos, razão pela qual, dogmaticamente, não podiam e não deviam ser contestados ou lhes serem feitas quaisquer objeções.

Ao longo da Idade Média, por exemplo, as relações sociais e políticas seguiam o princípio da superioridade de alguns homens, os nobres, em relação aos outros, os camponeses. A crença nessa superioridade estava baseada num valor divino. Deus teria feito os homens diferentes uns dos outros e predestinado o caminho de cada um na Terra. Ainda que nem todas as sociedades tenham passado pelo feudalismo, essa cultura tradicional se enraizou e tornou-se a referência no comportamento dos indivíduos em todos os quadrantes do mundo (SOUZA, 2007, p. 103).

A política, tal qual a entendemos, ficou refém, portanto, desse modo de pensar e de agir, uma vez que a vontade popular, fluída, não era levada em conta nas grandes decisões de ordem política.

Assim, no campo da Economia, sobre os meios de produção, toma-se, por exemplo, a escravidão, cuja instituição, legitimação e cultivo tinham suas justificativas em sede teológicas, haja vista que, sendo a mão de obra escrava imprescindível à sustentação econômica de inúmeras sociedades políticas nos mais variados tempos e espaços, se tolerava esta prática, mas que, para tanto, deveria ter uma razão, uma racionalidade, uma explicação crível, qual seja, a vontade divina. Enfim, a tradição política, econômica, social, filosófica e jurídica era toda ela erigida a partir do teológico, de Deus, do transcendental e do metafísico.

Mas, no escravagismo, o mando direto do senhor sobre o servo podia-se constituir também junto com uma justificativa edulcorada, que não revelava a verdade de suas causas sociais. Em alguns povos, dizia-se que o senhor manda no escravo porque Deus o quis. As explicações míticas ou religiosas serviram, muitas vezes, como legitimação da ordem de dominação. Por isso, pode-se ver na Bíblia, por exemplo, Javé fazendo uma aliança com o povo hebreu, dando-lhe favoritismo, e o povo hebreu dizendo que era seu direito fazer a guerra contra o estrangeiro para garantir seu território sagrado, ou então que tinha o direito de esperar os favores de Javé (MASCARO, 2013, p. 18)

No campo Político, a investidura de reis, imperadores e tiranos, a seu turno, se explicava, única e exclusivamente, pela hipótese da pura escolha divina. Se se aplicássemos tal paradigma até recentemente, a ascensão ao poder político do Estado de figuras como Napoleão Bonaparte, Hitler, Mussolini, Stálin, Mao Tsé-Tung, Pol Pot teria fundamento religioso.

[...] A dominação dos senhores feudais dava-se, muito mais, com base na pura vontade senhorial que se impunha em face da vassalagem, na tradição, no domínio exclusivo e hereditário da terra. O vínculo de exploração feudal se valia, ainda, de argumentos religiosos, como o da vontade de Deus de que o senhor e o servo assim se mantivessem, e, num plano geral, o que se queira chamar por direito medieval acabava por ser, então, uma forma de raciocínio religioso a benefício dessa dominação. [...] Não havia elementos como o Estado, a circulação mercantil, a exploração do trabalho de maneira assalariada, que distinguem e forma o direito moderno. Pelo contrário, em sociedades de economia escravagista ou feudal o que mais se verifica é o domínio direto, de senhor para escravo, de senhor para servo, do chefe da tribo ou do grupo em relação aos seus. A força física, a violência bruta, a guerra, a tradição, a religião, os mitos, a posse direta da terra, são eles que fazem o papel daquilo que modernamente chamamos por direito (MASCARO, 2013, p. 20).

Entretanto, para nós Ocidentais, com o advento do Renascimento, da Reforma Protestante e do Iluminismo (arte, religião e filosofia), rompe-se este cordão umbilical religioso que alimentava as sociedades com a provisões divinas para a Política e para o Direito.

Ao se definir que os homens são racionais, livres e iguais, torna-se impossível aceitar um fundamento para o poder que não esteja na própria razão. Por que temos que aceitar a autoridade? Por que se submeter ao poder do Estado? A modernidade descarta a resposta que apelava para Deus ou outra entidade metafísica. A imposição da vontade pessoal do rei como efeito da sua diferença natural referendada por Deus não será mais aceita. A existência do poder passa a ter como alicerce o argumento racional de que este é o único caminho para construirmos a convivência pacífica. O mais importante é que a legitimidade do poder também se pretende racional, o poder aceitável passa a ser aquele fundado no consentimento coletivo, ou seja, na vontade geral. Nesse sentido, os modernos abrem mão de fundar a convivência coletiva em valores transcendentais, de caráter religioso ou não. A percepção é de que toda tentativa de encontrar o bem supremo a partir do qual derivassem as regras para a conduta dos homens redundou em autoritarismo ou violência generalizada. A busca pela verdade moral definitiva só pode resultar, segundo o pensamento moderno, numa eterna e perigosa disputa. Diante desse fato, os modernos deixam de lado a busca pelo “fim” (o bem transcendental) e valorizam os “meios” (procedimentos democráticos) para a convivência pacífica entre homens racionais, livres e iguais. A modernidade restabelece a divisão entre a esfera pública, espaço das disputas políticas e da construção dos interesses comuns; e o mundo privado, dimensão das escolhas valorativas a partir das perspectivas individuais e de pertencer a diferentes grupos, como a família, as associações religiosas, os clubes etc. As instituições do público e do privado comunicam-se, de modo possível e necessário, considerando-se a diferença entre as duas dimensões (SOUZA, 2007, p. 23-24).

Percebe-se, a partir de então, que o poder, Política e Direito, se estrutura, ou deveria se estruturar, com elementos construídos e engendrados pelo homem e pela sociedade, razão pela qual o pensamento filosófico de Nicolau Maquiavel, John Locke, Thomas Hobbles, Immanuel Kant, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau renovou e potencializou novas discussões acerca do exercício e da legitimidade do poder político, bem como da natureza do Direito, sem o ranço e a influência transcendental da religião.

Neste contexto, renasce, com força, o discurso relativo à vontade popular, de um modo geral, e à Democracia, de uma forma particular, na medida em que a narrativa teológica do Absolutismo não mais se explica e se justifica racionalmente. O povo e os indivíduos, dentro da lógica política e econômica liberal-burguesa, passam a ser senhores de seus destinos políticos, passam a ser emissores e destinatários das normas por eles mesmo elaboradas.

Em outras palavras, superam-se o teológico, o místico, o transcendental e o metafísico, como fundamento da ordem social, econômica, política e jurídica, e se reconhece a soberania popular como novo paradigma. Com isso, tanto mazelas e retrocessos, quanto benefícios e avanços, são debitadas e creditadas na conta das instituições exclusivamente humanas, cujas decisões devem ser tomadas em respeito à decisão democrática da maioria. E sendo o Direito parte dessas instituições humanas, tem sua razão de ser unicamente vinculada à manifestação da vontade secular, em respeito também a esta mesma decisão da maioria.

Neste aspecto, se se tomar como ponto de partida a Revolução Francesa, fato histórico que materializou os ideais iluministas defendidos pela burguesia ascendente, o tema Democracia, sem embargo da experiência grega na Antiguidade, começa a desafiar o pensamento político Ocidental com mais vigor.

Democracia, em certa medida, chama a atenção pela circunstância de que o emissor e o destinatário das normas sociais, melhor dizendo, das regras do jogo, se confundem na mesma pessoa: o povo. Talvez, esta perspectiva é que torna a democracia o regime pelo qual os agentes envolvidos no processo político devam agir sob a égide e sob a vigilância implacável da responsabilidade, na medida em que, em última análise, os ônus e os bônus das decisões democráticas, para o bem e para o mal, recaem sobre os ombros do titular do poder: o povo.

A vitória do pensamento democrático, com efeito, expressa o triunfo do constitucionalismo ocidental, da constituição e do direito constitucional. Em outras palavras, não se deve negar que as grandes conquistas de cariz constitucional, em relação aos direito humanos e aos direitos fundamentais da pessoa humana, transita mais despreocupadamente sobre o pavimento engendrado pelo esforço democrático e pela estabilidade gerada por este, tendo em vista que as liberdades públicas potencializam o aperfeiçoamento da própria democracia, num círculo virtuoso constante, cuja quebra causaria enormes prejuízos à harmonia e ao equilíbrios da relações políticas, sociais e jurídicas.

A narrativa que postula um determinado ponto de vista deve ser formal e materialmente concatenada com os interesses do articulador da ideia defendida, com a cautela de não haver contradições, redundâncias e termos pedantes, que têm o condão de sabotar o que se quer sustentar. São eles inimigos do discurso argumentativo. Outro não é o posicionamento doutrinário-científico de Luiz Fernando Coelho (2014, p. 206), referenciando Robert Alexy, ao asseverar que

A teoria da argumentação jurídica consiste pois numa metodonomologia que articula a teoria do discurso prático, cujas condições de racionalidade procura fixar, com a teoria do sistema jurídico. Essas regras não divergem do que a tradição dogmática tem elaborado; entre outras, a exigência de não contradição; de universalidade no sentido de um uso consistente dos predicados empregados; clareza linguístico-conceitual; verdade das premissas empíricas utilizadas; completude dedutiva do argumento; considerações das consequências; ponderação; e análises da formação de convicções morais

O viés dialético do Direito induz à inexorabilidade da argumentação e da contra argumentação, de sorte que a justiça possível, a perfectibilidade da justiça, acontece na submissão irrenunciável ao contraditório e na reverência à argumentação mais plausível e eficiente do discurso propugnado. Neste aspecto, é bem ilustrativo o escólio do agir comunicativo de Jürgen Habermas, quando analisa alguns pontos dos pensamento de Robert Alexy, cujo cotejo de ideais foi objeto de explanação por Luiz Fernando Coelho (2014, p. 206) que prontifica que:

As regras do processo discursivo, cogitadas por Alexy, foram albergadas por Habermas, que as resume em duas exigências básicas: primeiro, que todos os que estão aptos a falar podem tomar parte no discurso. Como corolário, todos podem questionar qualquer afirmação em um discurso, introduzir novas afirmações e exteriorizar seus respectivos critérios, desejos e necessidades. Segundo, que nenhum interlocutor pode ser impedido de exercer a salvaguarda de seus direitos previamente fixados, quando dentro ou fora do discurso predomina a força.

Irrefutável, também, para uma teoria da argumentação jurídica, a circunstância de que só o conhecimento jurídico estrito não basta ao exercício argumentativo. A Filosofia, por exemplo, é elemento fundamental na arte de se argumentar juridicamente. É bom que se faça esta advertência.

Ocorre que, não obstante a tentativa de descolar-se da filosofia, as teorias do direito contemporâneo que não se alicerçarem sobre sólidos e consistentes aportes filosóficos estão inevitavelmente fadadas ao insucesso: não há teoria do direito sem que haja filosofia no direito, isso porque, como já referido, a filosofia habita o direito (TRINDADE, 2006, p. 26).

O arcabouço intelectual de quem discursa argumentativamente tem um peso muito grande. Aportes teóricos de outros saberes são altamente eficazes e imprescindíveis para formar uma excelente estratégia argumentativa no campo jurídico.

O conhecimento e a noção de Lógica, Filosofia, Sociologia, Psicologia e, por que não, Teologia servem ao aperfeiçoamento do Direito, do raciocínio e da argumentação jurídicos, como, por exemplo, no preenchimento valorativo de elementos normativos ditos abertos ou vagos, verdadeiras cláusulas gerais, cujo conteúdo, sentido e alcance, em última instância, se submetem ao crivo do intérprete.

É compreensível, contudo, que a atividade valorativa fruto dos processos interpretativo e argumentativo não é ilimitada.

Assim, por exemplo, o constituinte brasileiro fez a opção por um Estado Democrático de Direito com fundamento na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa e no pluralismo político, consoante art. 1.º da Constituição de 1988. A interpretação da Constituição Brasileira necessariamente deve ser pautada na observância desses princípios, sob pena de quebra da ordem constitucional. Agora, em hipótese alguma pode o intérprete livremente optar por determinada interpretação levando em consideração os seus valores pessoais, que neste caso não interessam, pois o que está em jogo é a determinação constitucional (COELHO, 2014, p. 248).

Aliás, o próprio Direito, neste particular, em face da Constituição, delineia o papel do jurista, impondo contornos conceituais e principiológicos cujas fronteiras não podem ser ultrapassadas, sob pena de inadequação semântica, vale dizer, sob pena de inconstitucionalidade frente aos referencias lá determinados.

A posição que assume o Tribunal Constitucional na estrutura do Estado é de auto-reflexão sobre a ordem jurídica, de maneira a fazer imperar a ordem constitucional. Mesmo sendo considerado pela Lei Fundamental Alemã como órgão jurisdicional, e ao mesmo tempo não se identificar com os Tribunais Ordinários, a Corte Constitucional assume a posição da ente imparcial. O controle da constitucionalidade das leis é, antes de tudo, também um controle técnico, pois os argumentos em torno da suposta inconstitucionalidade envolvem conhecimento específico do direito, e necessitam de reflexão afastada dos embates políticos que norteiam o Parlamento (COELHO, 2014, p. 249).

Desse modo, procurou-se contribuir, no presente ensaio, com a posição de que a argumentação é atividade inerente à compreensão do fenômeno jurídico, sem a qual o Direito não evolui e não responde às expectativas geradas pelos conflitos sociais.

Os valores positivados na constituição são objeto de análise pelo Tribunal Constitucional enquanto norma, de maneira que não ocorre interpretação destituída de fundamento jurídico. O Tribunal não trabalha com valores em si, mas valores positivados constitucionalmente, de modo que seu papel na estrutura do Estado não pode ser equiparado de forma simétrica ao do parlamento, de forma a possibilitar a argumentação em torno da ausência de legitimação democrática para o controle da constitucionalidade (COELHO, 2014, p. 248).

A ruptura entre Política, Direito e o Teologia, levada a efeito no ocaso do século XVIII, trouxe a reboque, como já se disse, o encargo da responsabilidade. Os erros e os acertos cometidos não podem mais ser imputados ao ser espiritualmente superior. A democracia tem o mérito de fazer que cada indivíduo e a coletividade, ao reivindicar e implantar direitos, deve também – e sobretudo – assumir compromissos, ônus, obrigações e deveres para consigo e para com o grupo. É-se responsável por si e pela sociedade.

Com a emancipação, o Direito passou a ser o instrumento de controle social legitimado pelo capitalismo. É dizer, o que garante as relações de mercado, o contrato e a exploração do trabalho é Estado moderno por meio das instituições jurídico-burguesas perpetradas no seio do novel agente político.

Essa nova realidade do Direito, que mantém sistematicamente a interconexão com outros ramos do conhecimento humano – a própria Constituição Federal de 1988, tributária dos ventos democráticos que sopraram naEuropa pós-Segunda Guerra Mundial, constata a ocorrência da interface com setores e fenômenos até então recebidos com certa reticência pela dogmática jurídica – procura, agora, soluções que, em razão da tradição juspositivista e kelseniana, antes não eram justificadas pela Ciência Jurídica. Porém, deve-se atentar para a seguinte ponderação:

A análise constitucional contemporânea deve estar atenta às características da sociedade atual, pluralista e democrática. Por essa razão, considerar os valores políticos e sociais na interpretação constitucional constitui uma forma de processo legitimador da ordem constitucional e instrumento hábil de avaliação contínua do exercício do poder constituído. Esse tipo de interpretação, entretanto, não pode deixar-se levar de roldão por métodos zetéticos, onde a necessária contribuição das ciências sociais para o entendimento do fenômeno do direito, acabe substituindo a especificidade da dogmática jurídica. O recurso a valores políticos é legítimo, na medida em que sejam valores positivados, integrados no conteúdo da norma constitucional, mas não será legítimo se encarados na relatividade do momento histórico, na medida em que expressam diretrizes de forças políticas hegemônicas (COELHO, 2014, p. 249).

Exemplo disso é o tratamento dispensado aos princípios jurídicos. Antes, no auge e na hegemonia positivistas, exerciam apenas função subsidiária à norma posta, relegados a tarefas eminentemente secundárias e coadjuvantes do processo jurídico-científico. Agora, alçado ao status de otimizador e corregedor do ordenamento jurídico, prevalecendo, em certos casos e em certa medida, sobre regras jurídicas discutidas, deliberadas e aprovadas pelos que foram, legitimamente, investidos pelo poder popular, passaram a ser referência central para a racionalidade do desenvolvimento científico do Direito.

Esta superação paradigmática, do positivismo ao pós-positivismo, vem ao encontro da complexidade da vida contemporânea e da busca plural da felicidade, com seus meios peculiares de vida e de contemplar o mundo, as quais desafiam o operador do Direito em seu mister, eis que se torna necessário alcançar respostas que, não raro, refogem ao âmbito puramente jurídico-dogmático-legal-positivista.

Neste sentido, a multidisciplinaridade ou interdisciplinaridade tem, sem embargo das críticas, sido suscitada para nortear os desafios impostos. Logicamente, o debate acerca dessas questões não se restringem ao momento pré-jurídico, ao âmbito das discussões legislativo-parlamentares. No âmbito da interpretação e da aplicação do Direito deve-se recorrer a conceitos, a aportes e a institutos que, muitas vezes, não foram incorporados à seara jurídica.

Parece não haver dúvida de que o positivismo – compreendido lato sensu (ou seja, as diversas facetas do positivismo) – não conseguiu aceitar a viragem interpretativa ocorrida na filosofia do direito (invasão da filosofia pela linguagem) e suas conseqüências no plano da doutrina e da jurisprudência. Se isto é verdadeiro – e penso que é – a pergunta que cabe é: como é possível continuar a sustentar o positivismo nesta quadra da história? Como resistir ou obstaculizar o constitucionalismo que revolucionou o direito no século XX? Entre tantas perplexidades, parece não restar dúvida de que uma resposta mínima pode e deve ser dada a essas indagações: o constitucionalismo – nesta sua versão social, compromissória (e dirigente) – não pode repetir equívocos positivistas, proporcionando decisionismos ou discricionariedades interpretativas (STRECK, 2010, p. 159).

Com efeito, Ética, Política e Direito entrecruzam-se e dialogam-se na busca de soluções que melhor se aproximam do conceito de justiça. Em outras palavras, as decisões judiciais, por conta principalmente do exercício da jurisdição constitucional que, na atual quadra, interpreta, integra e aplica as normas jurídicas dos mais amplos espectros, tendo em vista o caráter de cláusula geral que, invariavelmente, as permeia, se socorrem da Ciência e da Filosofia Política, da Economia, da Antropologia e da Sociologia, para dar respaldo constitucionalmente adequados ao caso concreto submetidos, cotidianamente, aos Estado-juiz.

Neste cenário, o operador do Direito, advogados, juízes, procuradores, promotores de justiça, defensores públicos, professores universitários, enfim, todos os envolvidos no aperfeiçoamento do Direito como ciência e como instrumento de avanço social, devem estar atentos às novas exigências e aos novos paradigmas propostos pelas maios diversas comunidades que compõem o todo social, bem como detectar as angústias e anseios políticos em torno de determinados temas morais, éticos e jurídicos.

Assuntos polêmicos, naturalmente, estão longe – muito longe – de um consenso pleno e unânime (quimera!), na medida em que, quando surge um consenso parcial ou provisório sobre algo, novos assuntos se tornam polêmicos – e às vezes mais polêmicos que os anteriores, o que, de resto, demandará mais e mais discussões, dissensos e tensões nos locais públicos de debate. Eis a essência da democracia.

Se o consenso definitivo é inalcançável e se estamos condenados a viver em meio ao conflito, é a tolerância política que faz da política democrática uma atividade permanente. É ela que obriga os indivíduos a argumentar, deliberar e assumir responsabilidades permanentemente [...] (CITTADINO, 2009, p. 88-89)

Portanto, é imperioso, ao fundamentar uma tese ou decidir um caso específico, fixar alguns parâmetros e justificações que cheguem perto de atender, senão ao consenso máximo, pelo menos ao “consenso mínimo” possível, a fim de conciliar as diversas tendências.

A possibilidade de justificação racional do discurso jurídico é questão de primacial relevância para a cientificidade do Direito, a qual é imprescindível para a solidez de um Estado Democrático de Direito. Apenas se caracterizam como consensos racionais (e, dentro deles, o jurídico) aqueles passíveis de uma justificação discursiva segundo regras de argumentação (TOLEDO, 2005, p. 48).

Ora, tal postura requer conhecimentos amplos não só jurídicos, dogmáticos, normativos, mas também outros saberes, sem os quais qualquer fundamentação, por técnica e juridicamente perfeita que seja, não satisfará, plenamente e a contento, os ditames constitucionais consubstanciados no artigo 93, IX, CF/88, de modo que não se estará observando, com rigor, o princípio democrático que orienta as ações de todos os agentes políticos, entre os quais – e sobretudo – os juízes, cuja investidura e cujo exercício da função jurisdicional, a princípio, estão sob o constante questionamento do déficit democrático, o qual, todavia, pode ser institucionalmente neutralizado com critérios e elementos incluídos, explícita e implicitamente, no texto constitucional e nas decisões proferidas pela Suprema Corte brasileira.

Essa tarefa, porém, revela-se duríssima, mas ao mesmo tempo, eloquente, em certa medida, uma vez que expressões como direitos humanos, direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, Estado Democrático de Direito, fazer o intérprete mergulhar em um vasto e profundo oceano de possibilidades práticas e teóricas, que colocam o sistema jurídico dentro de um estado constante de instabilidade e insegurança, dada a fluidez desses conceitos.

Portanto, nota-se que o Direito, em particular o Direito Constitucional, é processo constante de construção histórica e cultural que demanda diálogo permanente com os fatores do mundo da vida, seus valores, seus anseios e seus dilemas, de forma que a linguagem, a argumentação e o espírito democrático exercem papel fundamental na estruturação desse grande complexo chamado Direito.


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Notas

[1] Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).

[2] No original:  Staat ist diejenige menschliche Gemeinschaft, welche innerhalb eines bestimmten Gebietes – dies: das 'Gebiet' gehört zum Merkmal – das Monopol legitimer physischer Gewaltsamkeit für sich (mit Erfolg) beansprucht.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcos Antônio da. Estudo de filosofia constitucional, democracia e hermenêutica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5366, 11 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61468. Acesso em: 26 abr. 2024.