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Resenha sobre a obra Tudo começou com Maquiavel

Resenha sobre a obra Tudo começou com Maquiavel

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A obra "Tudo começou com Maquiavel", de Luciano Gruppi, trata das concepções de Estado, por meio de comparações entre as visões de Marx, Engels e Jorge Reis Novais.

1 Visão Geral da Obra

A obra “Tudo Começou com Maquiavel”[1] tem por objetivo trazer as concepções de Estado de acordo com a visão de 4 principais autores: Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Antes de adentrar na caracterização do conceito elaborado por cada um, Luciano Gruppi, responsável pela síntese de diferentes pensamentos na obra referida, comenta sobre a visão acerca do Estado de teóricos que precederam aos destacados anteriormente.

O panorama geral das ideias tem início com Nicolau Maquiavel (1469-1527), no qual se encontra a origem da ciência política, disciplina separada da moral e da religião. Maquiavel cria uma verdadeira teoria a respeito de como se constitui o Estado moderno, que, para ele, não tem mais a função de assegurar a felicidade e a virtude, como em Aristóteles.

O Estado moderno funda-se no terror. O príncipe deve preferir ser temido ao invés de amado e é necessário, para manter um Estado forte e unitário, considerar a natureza do homem e a realidade efetiva.

Trata-se não de fazer o que é certo, mas sim o que é necessário para garantir esses objetivos. Maquiavel cria uma moral imanente, mundana, baseada nas relações entre os homens, que são mais capazes de ofender quem se faz amar do que aquele que por eles é temido.

Jean Bodin (1530-1596) teoriza a autonomia soberana do Estado moderno. O monarca, a quem cabe o papel de interpretar e obedecer às leis divinas, o deve fazer de forma autônoma. O Estado tem por fundamento a soberania e é portanto o poder absoluto, capaz de reunir os demais elementos socais.

Thomas Hobbes (1588-1679) complementa a teoria moderna do Estado. Segundo ele, no estado de natureza o homem comporta-se como animal à medida que se opõe aos demais na luta pelo poder, riqueza e propriedades. Hobbes dirá que “Cada homem é um lobo para o seu próximo” e, com isso, propõe o estabelecimento de um contrato para fundação de um Estado (absoluto) que regule a ação humana e detenha a destruição mútua decorrente do estado natural, onde existe uma guerra permanente entre os homens. Hobbes, na realidade, se refere aos burgueses de seu tempo, cujas relações mercantis marcam-se pela disputa constante por riquezas.

John Locke (1632-1704) funda o empirismo filosófico moderno e teórico da revolução liberal inglesa, que se concluiu em 1689 com a declaração de direitos do parlamento, base do Estado. Cria-se, na década anterior, a figura do cidadão, em substituição ao súdito, com o surgimento do “habeas corpus”, dispositivo que dificulta prisões arbitrárias.

Locke diz que, no estado de natureza, o homem é livre. Entretanto, a fim de garantir sua propriedade, tende a colocar limites à sua própria liberdade. Dessa forma, surgem as sociedades políticas que se submetem a um governo.

Para Locke, o Estado pode ser feito e desfeito à semelhança dos contratos. Sua teoria tem clara influência burguesa e defende a preexistência do homem relativamente ao Estado: o típico individualismo burguês.  A autoridade do Estado soberano vem do pacto firmado entre os homens e este acordo é o fundamento liberal cujas origens apontam para Locke.

Emmanuel Kant (1724-1804) diz que “a soberania pertence ao povo”, entretanto, aduz que existem cidadãos independentes (os proprietários), a quem exclusivamente são reconhecidos os direitos políticos ativos e há também aqueles que são não-independentes (os servos). A distinção que se faz representa o alicerce do liberalismo. A liberdade entra em relação direta com a propriedade.

Só é livre quem detém esta última. Kant conclui que a soberania do povo se encontra delimitada por leis invioláveis, não passíveis de discussão. O liberal Estado de Direito então é caracterizado pela limitação da soberania popular pela existência de direitos permanentes – os direitos naturais. Tratam-se na realidade de direitos que só os podem exercer de fato aqueles que tem recursos para tal. Como exemplo, tem-se as liberdades de expressão, associação e os direitos de propriedade.

Com Jean Jacques Rousseau (1712-1778) nasce a concepção democrático-burguesa. Para ele, a condição natural dos homens caracteriza-se por ser um estado de felicidade, virtude e liberdade. Rousseau vai de encontro a concepção hobbesiana que se põe a favor da ideia de civilização; no entanto, também acredita que a sociedade nasce de um contrato.

A diferença entre os dois pensadores está no fato de que, para Rousseau, a soberania pertence ao povo que a exerce por meio exclusivamente da assembleia (total negação à divisão de poderes). Jamais o povo deve constituir um Estado separado de si mesmo. Rousseau eleva a igualdade jurídica à condição fundamental para o alcance da liberdade. Atribuindo a soberania total à assembleia, a consequência que segue é a identidade entre sociedade política e civil.

As teorias de Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) surgem num momento em que o liberalismo torna-se um ideal que motiva a Europa. Em seus pensamentos fica demonstrada a separação entre Estado e sociedade civil. Para ele, a liberdade dos antigos era exercida na esfera pública; entretanto, o cidadão a tem garantida na esfera privada.

Liberdade para os cidadão traduz-se como o direito de submeter-se apenas à lei e o modo pelo qual cada um exerce sua influência sobre a administração do governo. Não havia nos antigos a concepção de independência individual. Para eles somente o exercício da liberdade coletiva permitia a total subordinação do homem à autoridade do agrupamento social.

Constant polemiza contra Rousseau à medida que defende a identificação da liberdade com a propriedade, ou seja, a liberdade como diferença. A igualdade destrói a liberdade. Os direitos de liberdade são direitos de natureza econômica e, portanto, devem ser exercidos na esfera privada.

Aplicando todo o seu realismo, Charles Tocqueville (1805-1859) acredita que seja irreversível o fenômeno democrático, mas se indaga quanto a possibilidade da igualdade tornar-se em tirania. Haja vista a propagação de distintas concepções progressistas acerca do Estado – liberal e democrática – Tocqueville levanta o questionamento. Na prática, o que tivemos nos tempos que seguiram foi uma verdadeira fusão entre liberalismo e democracia. Em linhas gerais, o que se verificou foi a ampliação do sufrágio universal e a tutela ao desenvolvimento capitalista.

Contra essa tendência confirmada de união de duas vertentes inicialmente divergentes, Benedetto Croce (1866-1952) dirá que o liberalismo é inimigo da democracia, assim como o é da monarquia absolutista e do clericalismo.

Seguindo a ideia liberal, Croce acredita que os indivíduos são iguais apenas na condição de que todos são seres humanos, entretanto a desigualdade desaparece quando o critério é a cidadania. Portanto, como cidadão os homens não são iguais e suas diferenças medem pelas capacidades que possuem. A classe dirigente seria então a elite da cultura. Na realidade o que se verifica é a elite econômica assumindo tal posição.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) vai restaurar a distinção entre Estado e sociedade civil.  Para Hegel o Estado, como base da sociedade civil e da família, é fundamento para formação do povo e é dele a soberania. Tem-se demonstrada de forma objetiva a crítica liberal à democracia. Hegel acredita que o Estado, personificado na figura do monarca, realiza em si uma concepção moral. No entanto, o elemento ético não se encontra presente no Estado Liberal, no qual é garantida a esfera das liberdades, sem intervenção direta no processo de formação moral do indivíduo.

O movimento operário italiano terá contato com os ensimamentos de Lênin, sobre os quais se comenta no último título deste trabalho. Ao estabelecer uma relação entre filosofia e política, Gramsci diz que o primeiro fator é reflexo do segundo. Ele defende a criação de conselhos de fábrica eleitos pelos trabalhadores como via de apropriação do pocesso de produção.

Em sua época, a justiça representava não menos do que um instrumento do poder de uma minoria abastada. Verifica-se ainda a constituição de um poder ilimitado de fato e de direito concentrados nas mãos do presidente do Conselho. É preciso então quebrar a hegemonia burguesa para se chegar a hegemonia da classe operária.


2 O papel da burguesia para o desenvolvimento do Estado de Direito em Marx, Engels e Jorge Novais

A fim de compreender a realidade moderna, Engels busca respostas às suas indagações a partir do exame das origens do Estado. No entanto, esse exame necessário parte da análise da forma desenvolvida do Estado moderno capitalista. Engajado nesta tarefa, Engels escreve “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” de 1894, baseada nas anotações de Marx a respeito do estudo etnológico de Henry Morgan sobre a tribo de índios iroqueses da América do Norte.

Engels defende a ideia segundo a qual família e sociedade formam-se paralelamente à medida que esta última organiza as relações entre os indivíduos a fim de garantir sua subsistência, suprindo principalmente suas necessidades econômicas. Representante da sociedade originária, a tribo desconheceu a propriedade privada, no entanto, com o advento da criação de gado cuja posse se dava por intermédio da caça, surge então esse conceito.

A descendência por linha paterna sobrepõe-se ao matriarcado, ocorrendo a subordinação da mulher, dos filhos e dos escravos ao “pater familias”. A consequência do desenvolvimento desta economia foi a formação de classes no âmbito interno das próprias famílias. O perfil econômico diversificado dos indivíduos culminou com a derrocada do ordenamento gentílico e o oportuno surgimento do Estado para atuar na regulação e domínio das relações sociais.

Entende-se, portanto, que o Estado nasce a partir dessa divisão em classes, que, como demonstra a história, travarão lutas emblemáticas na defesa de seus ideais e interesses. O raciocínio proposto é o seguinte: aqueles que detêm o controle dos meios de produção mais relevantes devem garantir-se no poder com a institucionalização do seu domínio próprio, ou seja, o domínio econômico, através da dominação política, com a utilização de todo o seu aparelho repressivo.

O Estado, seja este antigo, feudal ou moderno, surge então como instrumento para subjugar e explorar as classes economicamente mais frágeis. É o Estado a expressão da dominação de uma classe, mas é este corpo aparentemente separado que também se ocupa de manter o equilíbrio político e jurídico, ainda que contraditório e temporário.

O ideal de liberdade fortemente expresso nas declarações burguesas é fruto do profundo descontentamento dessa classe com o desprestígio político em favor dos aristocratas e os obstáculos econômicos erguidos pelos grandes latifundiários ao seu desenvolvimento. É importante ressaltar que na sociedade feudal da Idade Média havia uma nítida correlação entre a posição econômica e a posição política. A distinção entre as sociedades políticas e civis surgirá somente com a formação da sociedade burguesa.

Anteriormente à consolidação dessa classe na esfera econômica e em meio a lutas constantes pelo direito de representação e participação política, as leis válidas à burguesia eram diferentes das leis aplicadas aos aristocratas. É a burguesia que, visando aos seus interesses, propõe o conceito de igualdade jurídica conforme será apresentado adiante.

Marx considera a liberdade como manifestação expressa da cooperação, solidariedade e trabalho coletivo. Ele rechaça a visão burguesa segundo a qual a verdadeira liberdade considera o homem como unidade incomunicável e estanque da convivência social.

Na democracia burguesa Marx evidencia a igualdade formal dos indivíduos no que tange aos direitos do cidadão. Em outras palavras, em tese, todos são iguais perante a lei. Para Marx, na verdade, a igualdade jurídica serve tão somente para separar a vida econômica do indivíduo de sua figura jurídica abstrata. A igualdade enunciada pela burguesia, portanto, não passa de mera formalidade jurídica representada pelo cidadão.

Na visão do autor de “O capital”, o poder público então é organizado por uma classe para oprimir outra. Dadas essas condições, Marx propõe como solução o desaparecimento das classes com a apropriação coletiva dos meios de produção. Com o advento do comunismo, que é a sociedade sem classes, extingue-se a razão de existência do Estado e, portanto, o próprio Estado.

Marx não visa à igualdade ou a justiça, ele tem como alvo maior a ser alcançado por todos os homens a liberdade. Nas suas palavras “o livre desenvolvimento de cada um é a condição de livre desenvolvimento de todos”.

A igualdade social, defendida pelo sistema comunista através da socialização dos meios de produção, condiciona o desenvolvimento da liberdade e é essa a sua meta principal. A igualdade a que faz referência em nada se confunde com a distribuição dos bens de consumo entre os homens. Trata-se da igualdade de produção, destarte, cada um recebe de acordo com a sua necessidade.

A concepção burguesa atacada por Marx limita a efetiva igualdade entre os homens perante a lei tornando-a menos um instrumento de garantia do que uma ficção jurídica levada a termo com o intuito de arrefecer os ânimos do proletariado ao qual se uniu nos primeiros momentos de luta por reconhecimento político e autonomia ante o Estado.

A realidade burguesa apresenta uma dinâmica social distinta do conteúdo ideológico que preconiza. Nela, cada homem recebe conforme sua capacidade de produzir e não na medida de sua necessidade. Dessa forma, é possível entender porque há desigualdade mesmo quando se prega a igualdade de direitos. Afinal, quem menos necessita é aquele que mais produz e aquele que mais tem necessidades dispõem de inexpressiva capacidade de produção diante de suas crescentes necessidades.

Com isso, Marx chega à mesma conclusão que Aristóteles de que é necessário ao direito, pra ser justo, considerar que os homens são desiguais. No entanto, o direito deve apresentar-se igual para todos, haja vista os fundamentos da igualdade jurídica.

Como fora mencionado, a noção de igualdade jurídica é trazida pelos burgueses que na Idade Média eram discriminados pela aristocracia por não disporem de títulos que conferiam legitimidade para participar das assembleias, presidir tribunais, integrar órgãos consultivos da monarquia, dentre outras atribuições importantes.

O tratamento desigual aplicado aos burgueses era consagrado pela imposição de um ordenamento jurídico diferenciado que só servia para manter a classe mais afastada das decisões que atingiam diretamente seus interesses.

Nesse contexto, a conquista da igualdade jurídica tornou-se pressuposto fundamental para reivindicar os direitos os quais se negavam à burguesia e a conseqüente e necessária formação de um Estado de Direito.

Mediante o estudo da origem ideológica desse conceito e a análise interpretativa realizada dos pensamentos anteriormente expostos acerca das visões de Marx e Engels, é possível definir o papel da classe burguesa no desenvolvimento do Estado de Direito.

Jorge Novais inicia sua obra “Contributo para uma teoria do Estado de Direito” destacando o sentido mítico da expressão a qual foi associada à capacidade de legitimar qualquer poder político. Ou seja, o reconhecimento de um Estado como sendo de direito traz implícita a ideia de que o controle do poder político se dá por vias excludentes da ocupação repressiva indevida e do descontrole das ações totalitárias.

Num esboço preliminar, o autor isola o que para ele despontam como componentes essenciais do Estado de direito: a liberdade e os direitos fundamentais do cidadão. O Estado não deve apenas respeitar tais elementos, é imprescindível que da formulação do rol destes direitos e liberdades partam perspectivas garantidoras de proteção estatal para plena promoção e realização destes.

No entanto, impende ressaltar que a concretude dos direitos fundamentais condicionados pelos valores burgueses não implica numa intervenção estatal preliminar; o papel do Estado restringe-se a garantir as condições favoráveis ao encontro livre das autonomias individuais.

A limitação jurídica do Estado exsurge, portanto, como marca característica do Estado de Direito que também na visão de Novais deve apresentar, via de regra, no centro de suas preocupações, a realização dos direitos fundamentais que são indisponíveis.

Essa vinculação do Estado às normas de direito racional, sem o respaldo das quais não poderá agir e só deverá agir quando não contrarie os interesses da burguesia, representa a reação desta classe contra as barreiras erguidas pela sociedade estamental e o Estado de polícia oriundo da Idade Média e no qual o monarca assumira poderes ilimitados.

A limitação do Estado nesse contexto se dá através de técnicas jurídicas que visam à proteção dos direitos individuais e correspondem paralelamente à subordinação do Estado aos interesses da sociedade. O órgão legislativo alcança status de poder supremo com a instituição do império da lei ao qual se submete o executivo que passa a agir vinculado ao princípio da legalidade. É na esfera jurídica que se firmam essencialmente as relações entre Estado e Sociedade.

O reconhecimento dos direitos fundamentais, sem o qual não se pode falar em Estado de Direito, é feito no Liberal Estado de Direito a partir da concepção prévia da classe burguesa a respeito da questão. A assertiva é objetivamente compreendida, se dela depreendermos a manipulação do conceito moldada segundo os interesses da classe econômica dominante.

Os direitos fundamentais para a burguesia eram de fato aqueles ligados à necessidade de desenvolvimento da autonomia individual, considerando-se noutro plano as relações do homem com a sociedade. Direitos fundamentais para a classe burguesa equivaliam aos direitos do homem sob duas vertentes específicas: a individual e a social.

Aos direitos. tais como a propriedade privada, a liberdade de consciência e a inviolabilidade de domicílio, pertencentes ao plano da individualidade, eram aduzidos os direitos do homem, logo fundamentais, referentes às suas relações com o grupo social.


3. O entendimento de como se dá a relação entre Estado e Sociedade Civil em Marx e Novais

A marca forte do Liberal Estado de Direito para Jorge Novais é a separação entre Estado e Sociedade Civil, na qual convergem as esferas moral e econômica. O autor remete o estudo aos pensamentos clássicos de Adam Smith que dizem respeito a uma ordem natural cuja existência é confirmada pela livre iniciativa e pelo funcionamento espontâneo do mercado que por si só trazem a máxima vantagem para os indivíduos.

Ora, se o mercado é capaz de realizar sua própria regulação por intermédio de uma “mão invisível” cabe ao Estado não interferir no âmbito das relações econômicas privadas. É exigível a ação do Estado apenas no que tange à paz e a segurança interna. A atuação Estatal que extrapole os limites impostos pela nova realidade socioeconômica empreendida pela classe burguesa deriva de uma política interventora e, portanto, não aceita dentro do contexto histórico em análise.

Em que pese a defesa da não intervenção externa nas leis econômicas internas, a noção de Estado como ente protetor revela-se como verdadeira à medida que ao Estado é atribuída a capacidade de defender os indivíduos contra a opressão de quem quer que seja, assim como identificar e suprir as insuficiências do mercado.

Seguindo essa premissa, Novais acredita que o liberalismo clássico não opôs rígidas limitações à intervenção do Estado, cuja total neutralidade formal é característica do modo de dominação burguesa contra a exigência democrática e a favor da repressão instituída pelo Estado dos movimentos sociais por melhores condições de trabalho e distribuição de renda.

O capitalismo enquanto modo de produção marcado pela livre concorrência não pode prescindir da suposta imparcialidade do Estado ante aos interesses de classes globais a fim de que se garanta a autonomia reivindicada pela classe burguesa que então assume duplo posicionamento em relação ao Estado já que exige deste ações positivas para assegurar a liberdade de empresa, iniciativa e demais pressupostos do capitalismo concorrencial.

A fim de analisar as diferentes faces sob as quais se encontra configurada a separação Estado-Sociedade, Jorge Novais traz a exposição das ideias de Kant a respeito da tradicional dicotomia entre os temas moral e Direito. Segundo a visão kantiana compete ao Estado realizar a liberdade exterior a partir do exercício coativo do Direito que se erige como seu único fim.

A moral, como determinante da ação de cada homem e, portanto, representante da consciência individual, não deve sofrer ingerência ou coação comuns à máquina estatal cujos objetivos se concentram em realizar o bem comum e promover a felicidade dos súditos.

Ao Estado cabe garantir a manutenção da ordem jurídica e o estabelecimento de condições que assegurem a dignidade da pessoa humana detentora de autonomia individual e consequentemente moral.

Esse Estado Jurídico proposto por Kant representa uma fórmula universal racionalista que põe no centro dos interesses do Estado, alheio aos fins individuais e espirituais, a coexistência inevitável entre os homens. Para tanto, se admite a ideia de um contrato estabelecido segundo o qual cada homem abdica de sua liberdade selvagem para tornar-se dependente das leis derivadas de sua própria vontade.

Dando seqüência ao exame das teorias reveladoras da separação entre Estado e Sociedade sob diferentes prismas, Novais expõe os pensamentos de Wilhelm Von Humbolt sobre o tema. A necessidade de abstenção do Estado para a burguesia traduz-se não numa exigência racional como a defendida por Kant, e sim, num pressuposto fático fundamental cuja essência é estritamente política.

Essa tese caracteriza a visão de Humbolt que rejeita a atuação positiva do Estado, tendente a intervir de forma prejudicial no desenvolvimento da individualidade e personalidade humanas. Novais entende que o Estado de Direito inscrito nesse quadro teórico passa a ser limitado objetivamente e sua atuação reduz-se a assegurar a liberdade e propriedade individual. Aduzindo tal constatação às ideias anteriormente apresentadas, torna-se evidente a interligação das premissas ao ideal de proteção dos direitos e garantias individuais.

A separação entre Estado e Sociedade Civil manisfesta-se como consequência desta necessidade inevitável, oriunda do projeto burguês de racionalização e limitação do Estado, a fim de que este último não impeça a realização do ideal supremo de desenvolvimento das faculdades humanas e de sua individualidade por intermédio de uma irreversível dinâmica burocrática e favorável ao esmorecimento da iniciativa pessoal.

De Marx sobrevêm intensas críticas à sociedade civil e ao Estado, em especial ao Estado burguês capitalista. Marx tem por objetivo desmantelar a noção de “pacto social” ao demonstrar que o Estado serve para atender às necessidades e expectativas da classe dominante, assim como garantir a reprodução de sua dominação.

Para ele, o Estado representa uma forma de unificação interna da elite econômica que se vale da violência e da ideologia para se impor sobre o conjunto social. A legitimação de uma aparente separação entre Estado e sociedade tem por fim esconder a verdadeira relação entre ambos. Relação esta que se traduz pelo caráter intrínseco de sua natureza à ascensão e desenvolvimento da burguesia que, na prática, é quem comanda o Estado. Esse último, portanto, é resultado das relações das classes sociais e encontra nesse contexto sua razão de existência. 

O que os filósofos e pensadores liberais fazem nada mais é do que ocultar a relação social de exploração entre as classes sociais, ao idealizarem um formato autônomo para o Estado. Dessa forma, opera a ideologia burguesa que tenta supor um Estado cuja lógica é distinta daquela encontrada na vida social.

No entanto, o que se pretende é perpetuar essa forma de organização tendo em vista que a burguesia, alcançadas suas reivindicações políticas e democráticas, age em relação direta com o Estado, orientando ideologicamente a consecução de suas atividades numa verdadeira relação motivada por interesses capitalistas individuais.

Tomando como exemplo a monarquia absolutista francesa, Marx constata em sua obra “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” que o poder executivo, com seu mecanismo complicado e artificial, envolve todo o organismo da sociedade francesa. Ou seja, a densa e opressora organização burocrática e militar do Estado, ao mesmo tempo em que o separa da sociedade, permite que o poder da classe dominante seja expresso. Mais tarde, Lênin dirá que o Estado é a ditadura da burguesia.


4 O centro de poder do Estado para Lênin e a concepção de um Estado de Direito por Jorge Novais

Em 1917, Lênin inicia sua obra “O Estado e a Revolução”. O propósito original que lhe serviu de motivação foi restabelecer a concepção revolucionária de Marx e Engels a respeito do Estado. A noção de classe do Estado reaparece nos escritos de Lênin. Assim como Marx, o autor acredita que o Estado representa uma ditadura imposta por um único segmento social dominante, salvo breves momentos de relativo equilíbrio entre classes opostas.

O Estado é, portanto, uma “ditadura de classe”. Ainda que sejam adotadas formas e sistemas democráticos de governo, o Estado sempre constituirá na máquina repressora identificada por Marx, cujo exercício do poder se dá em nome de uma minoria detentora dos meios de produção em detrimento da grande massa trabalhadora. Nesse contexto, a república parlamentar forja as condições necessárias para a dominação capitalista através da construção de um cenário que se supõe livre e democrático, ao menos no plano formal.

Desse modo, Lênin amplia o significado da palavra ditadura ao considerar também como tal o poder opressor instituído sob o manto protetor das leis. Defende-se então a ditadura do proletariado como manisfestação da maioria insurreta contra o factóide democrático sustentado pela minoria, ou seja, a burguesia.

A liberdade política e os demais pressupostos teóricos pertencentes à democracia burguesa realizam-se no terreno dos fatos à medida que o poder é transferido para a classe dos trabalhadores, que até então não dispunham de meios para pôr em prática as prerrogativas que se lhes atribuía. 

Lênin vai de encontro à ideologia social-democrata ao pregar a “quebra” do Estado a partir de seus três elementos reacionários: exército permanente, burocracia e polícia. Ao fenômeno de ruptura descrito se sucede a instalação de um Estado proletário até a extinção total dessa instituição.

Entretanto, em obra posterior intitulada “Conservarão os bolcheviques o poder Estatal?”, Lênin estabelece uma clara divisão entre os elementos da máquina estatal que considera importante destruir e aquilo que deve ser preservado, a saber, a estrutura do capitalismo monopolista de Estado.

Para Lênin, os grandes bancos representam papel fundamental na realização do socialismo por ele vislumbrado. É necessário, porém, que o aparelho econômico seja submetido a um processo autêntico de democratização. A proposta é reorganizar o Estado a partir da libertação de toda a estrutura do capitalismo monopolista de Estado do capitalismo.

O conceito de Estado de Direito é trazido do seguinte modo por Jorge Novais: “o Estado de Direito será, então, o Estado vinculado e limitado juridicamente em ordem à protecção, garantia e realização efectiva dos direitos fundamentais, que surgem como indisponíveis perante os detentores do poder e o próprio Estado.”[2]

Para o autor, a característica que determina a definição prática do Estado de Direito é a tutela, garantia e realização dos direitos fundamentais. Portanto, só será Estado de Direito aquele que estiver vinculado e limitado pelo Direito. A essência do Estado de Direito, portanto, é traduzida nos fins últimos objetivados com a submissão do Estado à Lei, a saber, o reconhecimento da autonomia dos indivíduos enquanto titulares de direitos subjetivos superiores e oponíveis ao próprio Estado e a ele anteriores.

Novais distingue o Estado Democrático do Estado de Direito à medida que considera características determinantes diferenciadas para ambos. Assim sendo, no Estado Democrático o foco não consiste na tutela dos direitos fundamentais e sim no exercício do poder político pelo povo, segundo a regra da maioria.

Essa mesma noção de maioria aparece em Lênin que, em sua obra o “Estado e a Revolução” de 1917, prega o definhamento do Estado de Direito como etapa para o aniquilamento do Estado burguês. Sob essa ótica de interpretação, avaliando o que para ele seria (porém não é) o centro de poder do Estado, chegamos a conclusão de que o elemento central é o proletariado, representante da maioria e não vinculado por nenhuma lei. Sua concepção crítica não se justifica no Estado de Direito como concebido por Novais, haja vista que este nasce estritamente vinculado ao rol dos direitos fundamentais e nele encontra seu limite.

Como fora dito antes, Lênin rechaça a concepção democrática liberal por constatar que se trata na realidade de um sistema opressor de dominação sobre a maioria imposta pela minoria burguesa. O poder é exercido pela classe dominante e não pela maioria. Pela interpretação que se faz dos escritos de Lênin a respeito da importância decisória, porém não reconhecida do proletariado, vemos que o autor entende que seria esta classe o autêntico titular e centro do poder do Estado a ser implantado após a destruição do Estado burguês.

Para tanto, é preciso partir da esfera teórica das leis formais, do típico Estado de Direito burguês, para a esfera da ação, do movimento revolucionário violento até a implantação do Estado Proletário caracterizado pela ditatura do proletariado.

Em contrapartida, considerando o conteúdo exposto nesse último título, identificamos, em sua crítica a respeito do Estado burguês, o destaque dos elementos que constituem à sua época (e aqui, para ele, não seria, mas é) o aparelho de centralização do poder do Estado: o exército permanente separado do povo, profissionalizado; a burocracia e a polícia.[3]


Notas

[1] GRUPPI, Luciano. Tudo Começou com Maquiavel; tradução de Dario Canali. 14ª. Ed. – Porto Alegre:L&PM, 1996.

[2] NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006. p.26.

[3] GRUPPI, Luciano. Tudo Começou com Maquiavel; tradução de Dario Canali. 14ª. Ed. – Porto Alegre: L&PM, 1996. pg. 61


Autor


Informações sobre o texto

Trabalho realizado para a Disciplina DPPII da Faculdade de Direito da UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Daniela. Resenha sobre a obra Tudo começou com Maquiavel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5276, 11 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62001. Acesso em: 28 mar. 2024.