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Teoria do dolo geral numa visão crítica

Teoria do dolo geral numa visão crítica

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O presente artigo analisa a chamada teoria do dolo geral e suas opções dogmáticas segundo a doutrina brasileira.

A chamada “Teoria do Dolo Geral” é construída para resolver o problema que ocorre quando um indivíduo pratica um crime e, acreditando que o consumou, vem a praticar uma segunda conduta, normalmente visando ocultar a prática criminosa antecedente, mas, na verdade, é esta segunda conduta que leva à consumação do delito.

Vidal distingue a situação de aplicação do “dolo geral” da chamada “aberratio causae”:

“Na aberratio causae, o agente pretende matar a vítima, v.g., por afogamento, lançando-a de uma ponte em direção ao profundo rio, ocorrendo a morte não em virtude do planejado, mas, sim, porque a vítima sofreu uma fratura no crânio, ao bater sobre uma pedra, consistindo esta a causa mortis” (2007, p. 140).

Com sustento no escólio de José Frederico Marques, conclui-se que o sujeito ativo deve responder por crime de homicídio, ainda que a morte não se tenha produzido por afogamento como inicialmente pretendia (2007, p. 140).

Mas, no “dolo geral”, não se trata somente de uma alteração na causa da morte, e, sim, na prática de um ato que, para o autor, é um “post factum”, algo que se realiza após a consumação, segundo seu subjetivismo, mas, na verdade, é o que causa realmente a morte.

Exemplificando: um sujeito desfere dez tiros no peito e abdômen da vítima, esta cai exangue no chão. Ele pensa que a vítima está morta e então a enterra, o que julga ser um cadáver, para ocultar a materialidade do homicídio que pensava consumado. Acontece que a vítima estava ainda viva e vem a falecer por soterramento. Na “aberratio causae”, o agente pratica um só ato com o fim de matar e mata, apenas a “causa mortis” é diversa por acidente. No “dolo geral”, o agente pratica um ato para matar, pensa que matou, mas não o fez, e acaba matando num segundo ato por si perpetrado, quando julga que está apenas ocultando o cadáver ou o destruindo.

Uma das primeiras soluções para o caso foi dada por Bandeira de Mello, propondo a capitulação como Homicídio doloso tentado, seguido de homicídio culposo em concurso material (1952, p. 27). A doutrina nacional não se contentou com essa proposta e então surgiu a “Teoria do Dolo Geral”, acatada por quase todos. No “dolo geral”, entende-se que a intenção inicial do autor deve se estender até a morte ocorrida, de forma que responde somente por homicídio doloso, porém, consumado.

Damásio de Jesus acatou durante muito tempo essa linha de pensamento:

“O sujeito responde por homicídio doloso consumado. Para essa corrente, não é necessário que o dolo persista durante todo o fato, sendo suficiente que a conduta desencadeante do processo causal seja dolosa. O dolo é ‘geral’, abrangendo todo o acontecimento” (2012, p. 69).

Contudo, esse autor veio a acatar a chamada “Teoria da Imputação Objetiva” e mudou seu entendimento. Passou a considerar que o indivíduo produzia um “risco não permitido”, com uma tentativa de homicídio. Esse risco seria a morte da vítima pelo meio escolhido pelo infrator. Mas, a morte não advém do risco produzido, e, sim, de outra fonte. Dessa forma, não se satisfaz um requisito da “imputação objetiva”, que diz respeito à chamada “concretização do risco no resultado”. Nesse passo, deveria então o autor responder somente por tentativa de homicídio e, nem mesmo, responderia por “Ocultação de Cadáver”, nos termos do artigo 211, CP, considerando que a pessoa estava viva. (JESUS, 2012, p. 60).

Retornando a Vidal, este considera a hipótese do “dolo geral” errônea, porque se tratam de dois atos e a solução é dada como se fosse um único ato, tal qual na situação de “aberratio causae”. Portanto, admite o autor, modernamente, que a solução correta é mesmo a de dividir a responsabilização em duas partes: uma tentativa de homicídio e um homicídio culposo (2007, p. 141).

Entende-se que razão assiste à doutrina dominante, que abraça praticamente de forma unânime a “Teoria do Dolo Geral”. Na realidade, o intento inicial do agente é mantido, embora o crime se consume em duas fases. Em nenhum momento há uma alteração do elemento subjetivo do infrator, que é o “animus necandi”, ou seja, do começo ao fim ele pretende ver a vítima morta. A situação do “dolo geral” é, na realidade, muito semelhante à da “aberratio causae”, apenas ocorre uma divisão de fato em duas condutas. Entretanto, subjetivamente, a conduta é marcada por uma única motivação letal.


REFERÊNCIAS

JESUS, Damásio de. Direito Penal. Volume 2. 32ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

VIDAL, Hélvio Simões. Convergência de Normas e Concurso de Penas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007.

MELLO, Lydio Machado Bandeira de. Capitulação dos Crimes e fixação da pena. Belo Horizonte: UFMG, 1952.


Autor

  • Eduardo Luiz Santos Cabette

    Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Teoria do dolo geral numa visão crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5889, 16 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62049. Acesso em: 29 mar. 2024.