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O Decreto n° 4.346/02 e sua adequação dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa na apuração das transgressões militares

O Decreto n° 4.346/02 e sua adequação dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa na apuração das transgressões militares

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O Decreto n° 4.346/02, Regulamento Disciplinar do Exército, regula os procedimentos para a apuração de todas as transgressões disciplinares, com o intuito de preservar a hierarquia e a disciplina, e garantir o devido processo legal.

O artigo 42, da Lei n. 6.668/80, Estatuto dos Militares, disciplina que violação das obrigações ou dos deveres militares constituirá crime, contravenção ou transgressão disciplinar, conforme dispuser a legislação ou regulamentação específicas.

Portando, coube ao Decreto n° 4.346/02, Regulamento Disciplinar do Exército, regular todos os procedimentos para a apuração das transgressões disciplinares, no intuito de preservar a hierarquia e a disciplina, valores esses fundamentais para a estrutura e funcionamento da instituição militar.

Ocorre que antes da vigência do Decreto n° 4.346/02, estava em vigor o Decreto n° 90.608/84 (antigo Regulamento Disciplinar do Exército), decreto este em que os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa não estavam presentes.

Logo, constata-se, de forma clara, que somente com o advento do Decreto n° 4.346/02, a administração castrense se adequou aos princípios constitucionais  do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

A garantia deste direito se materializou através da introdução do Formulário de Apuração das Transgressões Disciplinares no corpo normativo do Decreto n° 4.346/02, dando assim, maior segurança jurídica durante os processos administrativos que apuram as transgressões disciplinares tipicamente militares.

O processo administrativo disciplinar sustentado pelo princípio do devido processo legal, respeitando o contraditório e a ampla defesa, dá garantias não só ao acusado, mas também estabelece controle sobre os atos administrativos praticados pela autoridade militar competente, a fim de coibi-la de realizar arbitrariedades na esfera administrativa, assegurando justiça a todos os envolvidos.

Essa mudança foi motivada pela necessidade de garantir o devido processo legal a todos os militares envolvidos em processos administrativos disciplinares, conforme expressa previsão constitucional, caracterizando, assim, uma adequação da legislação infraconstitucional com o texto normativo maior.

Em consonância com os princípios constitucionais, o Decreto n° 4.346/02 garante que nenhuma punição disciplinar será imposta sem a observância ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, vejamos:

"Art. 35.  O julgamento e a aplicação da punição disciplinar devem ser feitos com justiça, serenidade e imparcialidade, para que o punido fique consciente e convicto de que ela se inspira no cumprimento exclusivo do dever, na preservação da disciplina e que tem em vista o benefício educativo do punido e da coletividade.

§ 1o  Nenhuma punição disciplinar será imposta sem que ao transgressor sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, inclusive o direito de ser ouvido pela autoridade competente para aplicá-la, e sem estarem os fatos devidamente apurados.”.

Uma vez constatado um fato que macule a disciplina militar, este, por sua vez, será recebido e processado. Assim, será entregue um Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar ao militar  transgressor, tendo o mesmo, a partir de então, três dias úteis, para apresentar, por escrito, suas alegações em respeito ao contraditório.

Somente em caráter excepcional, conforme disciplina o Anexo IV, do Regulamento Disciplinar do Exército, e sem comprometer a eficácia e a oportunidade da ação disciplinar, o prazo para apresentar as alegações de defesa poderá ser prorrogado, justificadamente, pelo período que se fizer necessário, a critério da autoridade competente, podendo ser concedido, ainda, pela mesma autoridade, prazo para que o interessado possa produzir as provas que julgar necessárias à sua defesa:

(...) Em caráter excepcional, sem comprometer a eficácia e a oportunidade da ação disciplinar, o prazo para apresentar as alegações de defesa poderá ser prorrogado, justificadamente, pelo período que se fizer necessário, a critério da autoridade competente, podendo ser concedido, ainda, pela mesma autoridade, prazo para que o interessado possa produzir as provas que julgar necessárias à sua defesa;

Cabe salientar que a apuração da suposta transgressão disciplinar, deverá ser feita por uma das autoridades militares previstas no Artigo 10, do Regulamento Disciplinar do Exército:

”Art. 10.  A competência para aplicar as punições disciplinares é definida pelo cargo e não pelo grau hierárquico, sendo competente para aplicá-las:I - o Comandante do Exército, a todos aqueles que estiverem sujeitos a este Regulamento; e  II - aos que estiverem subordinados às seguintes autoridades ou servirem sob seus comandos, chefia ou direção.

A autoridade competente para apurar a suposta transgressão deverá imediatamente chamar o militar envolvido, para que o mesmo possa, através do Formulário de Apuração de Transgressão Militar – FATD, justificar sua conduta, e deverá, para isso, utilizar-se de todos os meios legais possíveis para o exercício do contraditório e da ampla defesa, já que o mesmo terá três dias úteis para apresentar suas justificativas.

Antes de julgar a suposta transgressão disciplinar, a autoridade militar deverá analisar a pessoa do transgressor e os fatos dessa ocorrência, e ainda as circunstâncias atenuantes e agravantes, de acordo com o artigos 16, 19 e 20, do Decreto n° 4.346/02, transcritos a seguir:

“Art. 16. O julgamento da transgressão deve ser precedido de análise que considere: I - a pessoa do transgressor;II - as causas que a determinaram;III - a natureza dos fatos ou atos que a envolveram; e IV - as conseqüências que dela possam advir;

Art. 19. São circunstâncias atenuantes:I - o bom comportamento; II - a relevância de serviços prestados; III - ter sido a transgressão cometida para evitar mal maior; IV - ter sido a transgressão cometida em defesa própria, de seus direitos ou de outrem, não se configurando causa de justificação; e V - a falta de prática do serviço.

Art. 20. São circunstâncias agravantes: I - o mau comportamento;  II - a prática simultânea ou conexão de duas ou mais transgressões; III - a reincidência de transgressão, mesmo que a punição anterior tenha sido uma advertência;  IV - o conluio de duas ou mais pessoas; V - ter o transgressor abusado de sua autoridade hierárquica ou funcional; e VI - ter praticado a transgressão: a) durante a execução de serviço; b) em presença de subordinado; c) com premeditação; d) em presença de tropa; e e) em presença de público.

Em ato contínuo, a referida autoridade deverá constar se houve algum caso que justifique a suposta transgressão, bem como sua exclusão de ilicitude, vejamos:

“Art. 18. Haverá causa de justificação quando a transgressão for cometida: I - na prática de ação meritória ou no interesse do serviço, da ordem ou do sossego público; II - em legítima defesa, própria ou de outrem;  III - em obediência a ordem superior; IV - para compelir o subordinado a cumprir rigorosamente o seu dever, em caso de perigo, necessidade urgente, calamidade pública, manutenção da ordem e da disciplina; V - por motivo de força maior, plenamente comprovado; e VI - por ignorância, plenamente comprovada, desde que não atente contra os sentimentos normais de patriotismo, humanidade e probidade. Parágrafo único.  Não haverá punição quando for reconhecida qualquer causa de justificação.”

Quanto à publicidade, o artigo 34, do Decreto n° 4.346/02, é bem claro ao dar publicidade aos atos referentes às punições disciplinares, estabelecendo que a autoridade deverá publicar sua punição em Boletim Interno, com as exceções previstas no próprio regulamento, para que a referida decisão seja transcrita nos registros disciplinares do referido militar, quanto à transgressão cometida e sua respectiva punição:

“Art. 34.  A aplicação da punição disciplinar compreende: I - elaboração de nota de punição, de acordo com o modelo do Anexo II; II - publicação no boletim interno da OM, exceto no caso de advertência; e III - registro na ficha disciplinar individual.”

A transcrição de todos os dados que envolvem o militar tem de ser feita de acordo a Portaria n° 099 da DGP, de 08 de novembro de 2001, que aprova as Normas Gerais para Registro e Auditoria de Dados e Informações Individuais de Interesse para o Departamento­ Geral do Pessoal (DGP):

“A coleta, a auditoria, a publicação e o registro no Banco de Dados do DGP, dos dados e informações de Vida Militar, que se seguem, serão providenciados pelos órgãos especificados abaixo e serão transcritos em Boletim pela OM do militar, para que constem de suas alterações.”.

Após a distribuição do Boletim Interno para o seu conhecimento e devida execução a todos os militares, é que o transgressor terá o prazo de cinco dias para interpor recurso disciplinar, caso contrário, o mesmo terá de cumprir a punição que lhe foi imposta, vejamos:

“Art. 52.  O militar que se julgue, ou julgue subordinado seu, prejudicado, ofendido ou injustiçado por superior hierárquico tem o direito de recorrer na esfera disciplinar.”

Por fim, concluo que somente em 2002, com a revogação do Decreto n° 90.648/84, devido à ausência em seu corpo normativo dos princípios do contraditório e da ampla defesa, foi que os direitos e garantias individuais foram garantidos a todos os militares, respeitando-se, assim, o devido processo legal.


Autor

  • Luciano Cavalcante

    Luciano Cavalcante é licenciado em História e Geografia, Tecnólogo em Ciências Militares e Bacharel em Direito. Foi Membro da Comissão de Direito Militar e atualmente é Membro da Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil - Ceará.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE, Luciano. O Decreto n° 4.346/02 e sua adequação dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa na apuração das transgressões militares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6287, 17 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62586. Acesso em: 28 mar. 2024.