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Pela extinção da remessa necessária

Pela extinção da remessa necessária

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Embora tenha sido mantida no novo Código de Processo Civil, a remessa necessária ainda é objeto de questionamentos, sobretudo em face do princípio da isonomia, haja vista que a Fazenda possui superioridade técnica decorrente da sua litigância habitual.

RESUMO: O novo Código de Processo Civil manteve, no seu texto legal, um instituto processual alvo de profundas críticas por parte da doutrina brasileira: a remessa necessária. Ocorre que tal instituto processual vem sendo confrontado com princípios constitucionais, sobretudo o da isonomia, por colocar a Fazenda Pública em posição privilegiada frente ao particular durante o processamento dos litígios. O presente artigo tem por escopo abordar os principais argumentos acerca da utilidade ou não da remessa necessária, bem como sua conformidade com a Constituição Federal. Com suporte em pesquisa eminentemente documental, o estudo revelou a desnecessidade da remessa necessária como prerrogativa fazendária para a preservação do interesse público, ao revés, constatou-se que sua manutenção na ordem jurídica caracteriza flagrante violação ao princípio constitucional da isonomia.

Palavras-chave: Processo Civil. Remessa Necessária. Isonomia.

 


1 INTRODUÇÃO

Após a recente atualização do Código de Processo Civil, a remessa necessária foi um dos institutos jurídicos mantidos e reformados. Atualmente, está prevista no art. 496 do novo Códico Processual. Entre as inovações atinentes ao instituto, está o nomen juris, passando a denominar-se como remessa necessária — também conhecida por apelação ex officio, remessa ex officio, remessa de ofício, remessa obrigatória, reexame oficial, reexame necessário, reexame obrigatório, duplo grau de jurisdição obrigatório. Entretanto, Talamini (2016) comenta que a designação mais adequada seria reexame necessário, pois, além de ser amplamente adotada pela doutrina, o busílis do instituto é o reexame da sentença proferida pelo juízo a quo, e não a remessa do processo ao tribunal.

A remessa necessária, junto a prazos dilatados, intimações pessoais, isenções de custas, dispensa de preparo prévio, redução ou supressão do valor dos honorários de sucumbência, constitui uma das prerrogativas processuais conferidas à Fazenda Pública quando em Juízo. A respeito do tema, há tempos se discute a constitucionalidade do instituto sob enfoque.

Não obstante a larga aceitação da remessa necessária pela doutrina e jurisprudência, sendo, inclusive, conteúdo de súmulas dos tribunais superiores, mostra-se importante uma análise do instituto perante o princípio constitucional da isonomia, a fim de desvendar a sua necessidade diante da suposta desigualdade existente entre a Fazenda Pública e o particular.

A Constituição brasileira de 1988 consagra, em seu art. 5º, caput, o princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei. Sob a perspectiva processual, traduz-se na igualdade de condições de atuação e paridade de armas entre as partes e encontra amparo legal no art. 139, inciso I, do novo Código de Processo Civil. No entanto, com fulcro no princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, à Fazenda Pública foram conferidas algumas prerrogativas processuais, entre as quais está inserta a remessa necessária.

Além da aludida infringência à isonomia processual, a existência da remessa necessária tem revelado também ofensa aos princípios da duração razoável do processo e da efetividade, em face do retardamento excessivo do processo e da ineficácia do provimento jurisdicional de primeiro grau, respectivamente.

 


2 ASPECTOS RELEVANTES SOBRE O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

Antes de adentrar nas características próprias da remessa necessária, faz-se mister tecer algumas considerações a respeito do duplo grau de jurisdição, premissa da qual se retira o fundamento para existência do indigitado instituto no ordenamento jurídico pátrio.

Por grau de jurisdição, Araújo Júnior (2016) apregoa: "Todo o esforço e poder de investigação que são outorgados constitucionalmente ao Poder Judiciário para o julgamento de uma causa na sua acepção mais ampla". Ainda consoante a preleção do referido jurista, a Constituição Federal consignou, em seu texto, diretrizes para a promoção do grau de jurisdição, quais sejam: julgador competente, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, e provas obtidas por meio lícitos. Logo, o grau de jurisdição se realizará sempre que "o juiz for competente, houver um devido processo legal que oferece aos acusados o contraditório e a ampla defesa com provas obtidas através de meios lícitos".

Ainda sobre o tema, Moraiz (2013), ao citar Canotilho, destaca que as normas podem ser divididas em regras e princípios, residindo a diferença no grau de abstração das mesmas. No entanto, para o autor, dado o caráter restritivo das regras e valorativo dos princípios, o duplo grau de jurisdição não se insere em nenhuma das divisões, estando mais próximo de uma garantia. Nesse sentido, é o posicionamento do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, segundo o qual o Pacto de São José da Costa Rica, convenção internacional de direitos humanos, tornou o duplo grau de jurisdição numa garantia fundamental.

Nesse trilhar, Mendes e Branco (2012) realçam o posicionamento do Supremo Tribunal Federal ao não compreender o duplo grau de jurisdição como um direito, senão nas hipóteses, expressamente, asseguradas na Constituição Federal, tais como as dos arts. 102, inciso II, 105, inciso II, e 108, inciso II. A fim de corroborar o entendimento adrede apontado, os autores acrescentaram à sua obra a ementa expressiva do ex-ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº 79.785, que explina não ser possível, mesmo em face do art. 8º, 2, h, do Pacto de São José da Costa Rica, erigir o duplo grau de jurisdição em princípio e garantia constitucional, haja vista as inúmeras previsões, na Lei Fundamental, de julgamentos em única instância.

O duplo grau de jurisdição se estriba na possibilidade de a decisão de primeiro grau estar em desacordo com a ordem jurídica, oportunizando à parte prejudicada ter sua demanda reexaminada, em grau de recurso, pelo juízo ad quem, que poderá reformar a decisão do juízo a quo. Embora não esteja previsto, de forma expressa, na Constituição Federal, o duplo de grau de jurisdição é extraído da competência recursal atribuída aos tribunais, além de ser largamente disciplinado na legislação infraconstitucional.

No entanto, Moraiz (2013), categoricamente, defende que o ordenamento jurídico brasileiro não abarca o duplo grau de jurisdição, sendo, desacertadamente, invocado como sucedâneo recursal. Entre os argumentos defendidos pelo autor, mencionam-se: (a) a ratificação do Pacto de São José da Costa Rica se deu em 1992, antes da existência do §3º do art. 5º da Lei Maior, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, o que retira o caráter constitucional de suas normas; (b) o respectivo tratado não impõe o duplo grau de jurisdição, pois há de se observar o direito interno, no qual se prevê, expressamente, a competência originária do Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da cúpula do Judiciário; (c) o Supremo já estabeleceu o caráter supralegal do Pacto de São José; (d) não se pode equiparar a decisão prolatada pela Suprema Corte, composta por 11 ministros, com as de um juiz de primeiro grau; e, por fim, (e) a necessidade de revisão constante das decisões judiciais ensejaria um ciclo vicioso que poria em xeque a ordem constitucional, cujo esteio é a segurança jurídica.

 


3 NOÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DA REMESSA NECESSÁRIA

Segundo Cleide Previtalli Cais, citada por Didier Jr. e Cunha (2016), a remessa necessária, originariamente denominada recurso de ofício, tem sua origem na Roma antiga, em meio à cristianização do direito pagão. Sua criação tinha como alvo evitar erros e injustiças. Durante a Revolução Francesa, o instituto foi aperfeiçoado e passou a ser considerado fundamental para a democracia.

Consoante Ennio Bastos de Barros, também citado por Didier Jr. e Cunha (2016), o surgimento do presente instituto no Direito brasileiro remonta ao processo inquisitório lusitano, especificamente ao processo penal, como forma de proteção ao réu condenado à pena de morte.

Nessa linha, Alfredo Buzaid, em menção feita por Didier Jr. e Cunha (2016), ensina que, nas Ordenações Afonsinas, o recurso de ofício era interposto pelo próprio juiz em face das sentenças que tratavam de crimes de natureza pública ou cuja apuração se iniciasse por investigação, com o intuito de corrigir exageros do processo inquisitório. O instituto foi mantido nas Ordenações Manuelinas, período em que o juiz estava sujeito a graves sanções caso não interpusesse o recurso de ofício. Já nas Ordenações Filipinas, várias exceções foram outorgadas.

Como bem preleciona Júlio César Rossi, citado por Koehler (2016), a razão do recurso de ofício de existir no Direito lusitano se deve ao fato de servir de instrumento de controle dos poderes quase onipotentes do juiz no sistema inquisitorial de Portugal, que lhe permitia iniciar um processo e colher as provas para julgamento, o que, sem fiscalização por outro órgão judicante, poderia resultar em perseguição de inocentes. O autor ressalta que não havia motivos para a incorporação do instituto ao sistema brasileiro.

Malgrado sua origem no Direito Processual Penal, a remessa necessária, paulatinamente, foi introduzida nas causas civis. O Código de Processo Civil de 1939 já previa, no art. 822, a apelação ex officio. No Código de Processo Civil de 1973, manteve-se o recurso de ofício, porém foi retirado da seção de recursos por reclamos de parte da doutrina, inserindo-o na parte concernente à coisa julgada. O art. 475 do Código de 1973 determinava que algumas sentenças somente produziriam efeitos após a confirmação por tribunal, sob pena não transitarem em julgado. Já o Código de Processo Civil de 2015 manteve a disciplina do instituto, trazendo inovações quanto aos patamares de pisos para a sua ocorrência e quanto aos fundamentos das decisões para sua não ocorrência.

 


4 NATUREZA JURÍDICA DA REMESSA NECESSÁRIA

A doutrina e a jurisprudência já divergiram bastante em relação à natureza jurídica da remessa necessária. Além da mudança topográfica do instituto da seção dos recursos no Código de 1939 para a seção da coisa julgada no Código de 1973, encontrando-se, atualmente, na seção de sentença e coisa julgada no Código de 2015, a doutrina majoritária entende não se tratar de recurso devido à ausência das características próprias destes.

Consonate Koehler (2016), o instituto não é recurso, mas sim condição de eficácia da sentença e pressuposto do seu trânsito em julgado. Nesse sentido, o autor cita Cândido Dinamarco, para o qual o instituto exclui por completo a eficácia da sentença em virtude do seu efeito suspensivo, que não permite sequer a execução provisória da sentença.

No mesmo sentido, Nelson Nery Jr., aludido por Araújo Júnior (2016), identifica que "faltam-lhe voluntariedade, a tipicidade, a dialeticidade, o interesse em recorrer, a legitimidade, a tempestividade, e o preparo, características e pressupostos de admissibilidade de recursos". Araújo Júnior (2016) assinala ainda que, no caso de preparo, este é incabível de ser exigido da Fazenda Pública, pois ela está dispensada de arcar com as custas judiciais. Em complemento a Nelson Nery Jr., destaca a ausência do contraditório na remessa necessária, caracterizado pelas contrarrazões no sistema recursal. Por fim, sintetiza por que não se pode atribuir natureza recursal à remessa necessária, apresentando os seguintes argumentos:

a) inexistência de voluntariedade, pois o próprio juiz remete os autos ao tribunal, independentemente de requerimento da partes;

b) falta-lhe a tipicidade por não estar prevista no rol de recursos do art. 994 do Código de Processo Civil de 2015;

c) falta-lhe interesse em recorrer, visto que o magistrado não tem interesse na reforma de sua decisão;

d) falta-lhe dialeticidade, pois que o magistrado não apresenta razões para que a sua decisão seja reformada;

e) falta-lhe legitimidade, já que o magistrado não possui interesse em recorrer;

f) falta-lhe tempestividade, porquanto a remessa necessária ocorrerá a qualquer tempo, não transitando em julgado a decisão do juiz enquanto não for realizado o reexame de seu conteúdo;

g) inexistência de contraditório em virtude da não abertura de prazo para a outra parte pugnar pela manutenção da sentença.

Sobre o tema, Talimini (2016) afirma que a natureza recursal deve mesmo ser descartada, uma vez que a remessa necessária, ao ter como função um maior controle da qualidade da decisão proferida, configura-se como um meio de revisão das decisões judiciais. Nem todo meio de revisão das decisões judiciais é recurso. Logo, não seria apropriado enquadrar a remessa necessária como meio de impugnação de decisão judicial e tampouco como recurso.

Sob a mesma perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ratificou a natureza não recursal da remessa necessária, in verbis:

 

A remessa necessária, expressão do poder inquisitivo que ainda ecoa no ordenamento jurídico brasileiro, porque de recurso não se trata objetivamente, mas de condição de eficácia da sentença, como se dessume da Súmula 423 do STF e ficou claro a partir da alteração do art. 475 do CPC pela Lei 10.352/2001, é instituto que visa a proteger o interesse público. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 959.338 da 1ª Seção. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 29 de fevereiro de 2012.)

 

De outra parte, Didier Jr. e Cunha (2016) apontam que há quem defenda a remessa necessária como espécie recursal a ser interposta, obrigatoriamente, pelo juiz, alegando que, embora a impugnação não seja voluntária, mas compulsória, existe ato de provocação do impulso oficial que determina a remessa dos autos ao juízo ad quem e se opera a transferência da conteúdo discutido na sentença (devolutividade). Além disso, reforçam que o tribunal irá proferir um acórdão que substituirá a sentença do juiz de primeiro grau, seja para mantê-la, seja para reformá-la, sendo irrelevante a ausência da voluntariedade da impugnação e de outros requisitos de admissibilidade recursal.

Os autores seguem discorrendo na defesa da natureza recursal da remessa necessária. Para eles, é um equívoco dizer que esta é uma condição de eficácia da sentença, pois sua definição seria, na verdade, baseada nos seus efeitos. Para tanto, entre outras hipóteses, exemplificam que, no caso de mandado de segurança, a sentença proferida contra a Fazenda Pública produz efeito imediato.

Outrossim, assevera que a remessa necessária não constitui condição para a formação da coisa julgada por ser um equívoco definir algo por seus efeitos, e não pelo que é. Ademais, os recursos também possuem esse efeito, o que não possibilitaria distinguir a remessa necessária daqueles.

E não é só. Didier Jr. e Cunha (2016) enfatizam que a remessa necessária é, deveras, um recurso. Conforme os doutos juristas, na maioria dos países, "os recursos se caracterizam por conter (a) provocação ao reexame da matéria e (b) impugnação da decisão recorrida". A diferença entre a apelação e a remessa necessária reside na declaração de vontade da impugnação, sendo aquela de impugnação voluntária, enquanto esta de impugnação compulsória, pois que decorre de força de lei. Portanto, na remessa necessária, assim como em qualquer outro recurso, há provocação e impugnação. Ao juiz cabe praticar o ato de impulso oficial (remessa) para que, consequentemente, ocasione a incidência da norma que impõe a impugnação (reexame).

Nessa esteira, Didier Jr. e Cunha (2016) reforçam ainda que não há um conceito universal de recurso, variando em cada sistema jurídico, e que, no Brasil, é possível sustentar a existência de recurso voluntário e recurso compulsório, desde que haja provocação e impugnação em ambos.

 


5 ISONOMIA E A REMESSA NECESSÁRIA

Como bem preleciona Gomes e Martins (2010), a Constituição da República estatui o Estado brasileiro como Estado de Democrático de Direito, ou seja, caracterizado pelo império das leis, instituídas por representantes do povo eleitos democraticamente.

Um dos pilares desse Estado são os direitos e garantias fundamentais, insculpidos pelo legislador originário na Lei Maior. Desse modo, as leis editadas na ordem jurídica não podem confrontar as normas fundamentais, dando ao princípio da legalidade, além da dimensão formal, uma dimensão substancial em razão da necessidade de conformação das leis com a Constituição e, sobretudo, com os direitos fundamentais.

Nesse espeque, Gomes e Martins (2010) notam que o neoconstitucionalismo ou pós-positivismo busca dar concretude aos direitos e garantias fundamentais estabelecidos constitucionalmente. Por esse motivo, não se pode dissociar o estudo do Direito Processual Civil do conteúdo axiológico-normativo das normas constitucionais que regem o Estado de Direito. Assim, o processo não deve ser visto como mero instrumento de resolução de conflitos, mas como um meio efetivo de realização e de proteção dos direitos fundamentais.

Nesse particular, entre todos os direitos e garantias fundamentais consignados na Constituição da República, o princípio da isonomia desempenha uma função demasiadamente relevante no âmbito processual: garantir um processo justo e democrático para os litigantes.

De acordo com o reportado princípio, "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Para Ávila, mencionado por Gomes e Martins (2010), a igualdade consiste numa norma proibitiva de discriminações e num princípio-fim que deve ser promovido.

Neste raciocínio, Gomes e Martins (2010), ao mencionar Bandeira de Mello, reforça que a isonomia não somente deve ser observada pelo aplicador e intérprete do direito, mas também pelo legislador, que não deve produzir normas iníquas, fomentadoras de privilégios e perseguições.

Na seara processual, Lucon, apontado por Gomes e Martins (2010), prescreve que a igualdade, além do seu conteúdo formal, "deve ser vista substancialmente como um meio concreto de proporcionar às partes condições de real acesso ao Judiciário e de poder influenciar na prestação jurisdicional (igualdade material)".

O Código de Processo Civil de 2015, no art. 139, inciso I, assegura a concessão de idênticas condições de atuação e a paridade de armas entre os litigantes. Entretanto, observadas as lições de Neves (2016), em termos de tratamento diferenciado, a Fazenda Pública supera qualquer outro litigante, havendo corrente doutrinária que defende tratar-se, genuinamente, de privilégios e não prerrogativas.

Nesse ponto, a remessa necessária é um dos exemplos de tratamento diferenciado. Para perquirir sua constitucionalidade, é mister uma investigação da sua necessidade para a proteção do interesse público, diante da suposta desigualdade em que se encontra a Fazenda Pública perante o particular, tendo em vista sua hipossuficiência — problemas estruturais conjugados ao colossal volume de trabalho, nas palavras de Neves (2016).

 


6 PELA EXTINÇÃO DA REMESSA NECESSÁRIA

A incorporação ao ordenamento jurídico do instituto da remessa necessária, sob a justificativa do mal aparelhamento do Estado, recebe inúmeras críticas da doutrina, pugnando-se, inclusive, por sua supressão. No entanto, as críticas não são recentes.

Discorrendo sobre o assunto, Koehler (2016) relata que o mentor do Código de 1973, Alfred Buzaid já lutava pela extinção da remessa necessária, tanto que, em uma de suas obras, em 1951, declarou que não havia necessidade de se manter um recurso extravagante, haja vista a existência de órgãos especializados e suficientemente aptos para promoverem a defesa da Fazenda Pública.

Reportando à Ada Pellegrini Grinover, Koehler (2016) reitera que a jurista qualifica o instituto como um privilégio anti-isonômico, eivado de inconstitucionalidade, já que estabelece tratamento diferenciado com base em critério subjetivo relativo às partes, em vez de considerar a relevância da matéria objeto do processo.

Posto que a jurisprudência dos tribunais reconheçam a conformidade das prerrogativas fazendárias junto aos princípios constitucionais, mormente o da isonomia, a jurisprudência do STJ demonstra um desconforto pelos seus membros, que fazem severas críticas, como se pode observar no excerto abaixo, ipsis verbis:

 

Em verdade, o instituto traduz uma deformação cultural, herdada de nossas origens: a falta de confiança do Estado em seus agentes e a leniência em sancionar quem prática atos ilícitos em detrimento do interesse público. Se o Juiz ou Advogado do Estado é desidioso ou prevaricador, outros povos o afastariam da magistratura. Nós, não: criamos uma compilação processual, pela qual, violentando-se o princípio do dispositivo, obriga-se o juiz a recorrer. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 29.800-7/MG da 1ª Turma. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros, 16 de dezmbro de 1992.)

 

Afora isso, Koehler (2016) aponta que o instituto da remessa necessária torna inócuo a finalidade do recurso adesivo nas lides em que há sucumbência parcial da Fazenda Pública, pois a parte sabe que, mesmo sem a interposição de apelação, não ocorrerá o transito em julgado sem a reapreciação da sentença pelo juízo ad quem. "Isso traz ainda mais morosidade ao julgamento do apelo, uma vez que o tribunal deverá se debruçar sobre mais um recurso, com seus respectivos argumentos", sustenta o autor.

Ainda nesse aspecto, Paulo Afonso Brum Vaz, citado por Koehler (2016), leciona que os efeitos nefastos do atraso na concessão da tutela jurisdicional não decorrem tão somente da estrutura da justiça, mas também dos instrumentos processuais disponibilizados pelos sistema. O indigitado autor utiliza, como exemplo, a remessa necessária para indicar uma etapa procedimental que acaba por atrasar a efetiva satisfação do direito buscado. Em razão disso, assume ser favorável à sua extinção do sistema processual. Em tempo, revela acreditar que a tutela de direitos, disponíveis ou indisponíveis, cabe aos seus respectivos titulares, e não ao Poder Judiciário.

Outro interessante registro feito por Koehler (2016) se refere à proposição de alguns autores em manter o instituto em discussão apenas para estados e municípios com orçamentos reduzidos por constituir verdadeiro obstáculo ao acesso à justiça, devendo-se promover a extinção das demais hipóteses normativas. Nesse sentido, é a doutrina de João Monteiro, trazida por Koehler (2016), ad litteram:

 

Se o Estado tem o dever de proporcionar aos litigantes, pelas leis de organização judiciária, máxima garantia de probidade e acerto, não pode vir ele mesmo, com a criação de duas instâncias, fazer sentir que primeira não reúne aquelas condições de garantia.

 

A propósito, Koehler (2016) destaca pertinente pesquisa no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco, referente ao ano de 2004. Através dos dados coletados, constatou-se que somente 5,79% (cinco vírgula setenta e nove por cento) dos acórdãos proferidos em sede de remessa necessária eram reformados em prol da Fazenda Pública, enquanto os demais, correspondentes a 94,21% (noventa e quatro vírgula vinte e um por cento), serviram apenas para confirmar o teor da sentença. Não obstante o âmbito reduzido da pesquisa, é possível aferir, empiricamente, a pouca utilidade prática do instituto.

Apoiado no pensamento desenvolvido por Marc Galanter, Koehler (2016) enumera as vantagens de um litigante habitual, tal como a Fazenda Pública, que endossariam a ausência de pertinência para a manutenção do instituto da remessa necessária, verbo ad verbum:

 

(1) a experiência com a lei permite um melhor planejamento para o litígio; (2) ele possui economia de escala devido ao grande número de casos; (3) possui oportunidades de desenvolver relações informais com membros da instituição decisora; (4) pode distribuir o risco da litigância entre mais casos; e (5) pode utilizar estratégias em casos particulares para assegurar uma postura mais favorável em casos futuros.

 

Ademais dos benefícios decorrentes da litigância habitual, Koehler (2016) arrola outras vantagens da Fazenda Pública, ipsis litteris:

 

1) goza de isenção de custas; 2) está protegida por enorme teia burocrática; 3) dispõe de orçamento volumoso; 4) dispõe de funcionários de carreira remunerados para sua defesa em juízo, selecionados mediante rigoroso e concorrido concurso público; 5) dispõe de funcionários de carreira para lhes prover assessoria técnica; 6) tem acesso mais fácil a informações que comumente se encontram dentro de suas próprias repartições; 7) no aspecto cultural e político, seus procuradores gozam de status mais elevado do que a maioria dos advogados particulares, o que lhes garante maior mobilidade diante dos magistrados e das instâncias decisórias; 8) acompanha o fluxo burocrático do poder (seus defensores estão mais conectados com as instabilidades e decisões do governo); 9) pagamento mediante precatório e a impenhorabilidade dos seus bens; 10) a comunicação entre os diversos órgãos públicos é feita por malote já estabelecido, funcional e constante; 11) cada órgão do governo lida com grande quantidade de litígios sobre a mesma matéria.

 

No mesmo sentido, Talamini (2016) afirma que, no cenário atual, o instituto da remessa necessária se revela anacrônico, conforme a seguinte transcrição:

 

[...] A lei reserva-o basicamente para sentenças proferidas contra a Fazenda Pública. No entanto, hoje, os entes da Administração Pública são defendidos por procuradorias organizadas, competentes e idôneas. Há regras claras norteando o modo como os procuradores públicos devem atuar — prevendo inclusive procedimentos específicos para a dispensa de interposição de recurso por motivos justificáveis e responsabilização de quem deixa injustificadamente de recorrer. A previsão da remessa implica uma inexplicável desconfiança na correta atuação desses órgãos e mecanismos. Além disso, como não há mais um legítimo fundamento que justifique esse tratamento diferenciado em favor da Administração Pública, é difícil defender a compatibilidade da remessa necessária como o princípio constitucional da isonomia (no entanto — destaque-se — o STF jamais reputou tal instituto inconstitucional).

 

Por fim, Gomes e Martins (2010) arrematam: "nem todo interesse que o Estado defende judicialmente reveste-se da natureza do interesse público" e que este se encontra presente em todos os valores consagrados constitucionalmente, "o que autoriza dizer que é do interesse público tanto a justiça quando celeridade procedimental e a eficiência, ou efetividade, do processo ou provimentos judiciais". Além disso, forçar um novo julgamento, independentemente da manifestação da insatisfação das partes, prolonga indevidamente a lide, retira a eficácia da decisão proferida e prejudica a efetividade dos processos, em primeiro grau de jurisdição, indo de encontro à celeridade processual.

Gomes e Martins (2010) consideram ainda que as demais prerrogativas processuais são suficientes para suprir as deficiências decorrentes do desaparelhamento estatal e que eventual injustiça do julgamento em primeiro grau de jurisdição não pode ser presumida somente pelo fato de ser contrário aos interesses do Estado, tampouco que em toda e qualquer situação a Fazenda Pública seja hipossuficiente em relação ao particular, porquanto a Fazenda, composta por um quadro profissional altamente qualificado para atuar em sua defesa, pode voluntariamente assentir com a justeza da decisão e, quando houver a ocorrência de vícios graves, valer-se dos meios de impugnação que o ordenamento lhe dispõe, como a ação rescisória.

Por derradeiro, impende comentar que a comissão de juristas responsável pelo Código de Processo Civil de 2015 chegou a propor a extinção do instituto, no entanto foi vencida pela forte resistência dos representantes da Fazenda Pública.

 


8 CONCLUSÃO

Sob o enfoque processual, verifica-se que a remessa necessária representa verdadeira ofensa ao princípio constitucional da isonomia por conceber tratamento especial à Fazenda em Juízo e colocá-la em situação de vantagem em relação ao particular. A sua manutenção, sob a justificativa de proteção do interesse público e da suposta hipossuficiência da Fazenda, não encontra amparo constitucional em virtude da posição de superioridade técnica desta decorrente da sua litigância habitual.

A concessão de mais um privilégio à Fazenda fere a isonomia processual e a paridade de armas entre os litigantes, além de constituir óbice à realização dos princípios da efetividade e da duração razoável do processo.

Reforça-se ainda que as normais processuais devem retirar da Constituição seu fundamento de validade, o que inviabiliza a criação de institutos que violam direitos e garantias constitucionalmente assegurados.

Demais disso, as prerrogativas processuais não podem ser utilizadas como subterfúgios para o não acatamento de decisões judiciais, bem como não podem servir de gravame ao particular a fim de procrastinar a satisfação do seu direito pelo simples fato de litigar contra o Estado.

Nessa vereda, a remessa necessária se revela instrumento inadequado e desnecessário à proteção do interesse público, visto que as entidades beneficiadas pelo instituto apresentam meios de defesa suficientes para lhes garantir o manejo de recursos, devendo, portanto, ser excluída do sistema processual brasileiro.

 


REFERÊNCIAS

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Autores


Informações sobre o texto

Trabalho referente ao Curso de Pós-graduação "lato sensu" em Direito Processual Civil da Universidade Federal do Amazonas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Alex Penha do; BATISTA, Luiza Veneranda Pereira. Pela extinção da remessa necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5312, 16 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62891. Acesso em: 26 abr. 2024.