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Reincidência

um instituto não recepcionado pela norma fundamental

Reincidência: um instituto não recepcionado pela norma fundamental

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Pretende-se avaliar se a circunstância agravante do artigo 61, I, do Código Penal, teria sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988, tendo em vista o princípio da culpabilidade.

Sumário: 1. Delimitação do tema. 2. Apontamentos sobre a história da recidiva: 2.1. Lei Mosaica – 2.2. Direito Romano – 2.3. Direito dos povos franco-germânicos – 2.4. Direito canônico do medievo – 2.5. Direito inglês do século XVI – 2.6. Código Penal francês de 1810. 3. Experiência brasileira: 3.1. Código Penal de 1830 – 3.2. Código Penal de 1890 – 3.3. Código Penal de 1940 – 3.4. Lei n.º 6.416, de 25 de maio de 1977 - 3.5. Código Penal de 1984 (Lei n.º 7.209/84) e a Lei n.º 9.714/98 - 3.5.1. Pressupostos - 3.5.2. Primariedade e Reincidência - 3.5.3. Efeitos da reincidência - 3.5.4. Fundamentos: 3.5.4.1. Periculosidade - 3.5.4.2. Menosprezo à ordem jurídica - 3.5.5. Natureza jurídica - 3.6. Projeto Gregori. 4. Hermenêutica constitucional: a reincidência à luz do princípio da dignidade humana: 4.1. O Estado Social Democrático de Direito - 4.2. Hermenêutica constitucional - 4.3. O instituto da reincidência e a dignidade humana – 4.3.1. Princípio da dignidade humana – 4.3.2. A separação iluminista entre direito e moral – 4.3.3 dignidade da pessoa e a proibição de leis penais constitutivas capítulo. 5. Considerações. 6. Bibliografia.


1. DELIMITAÇÃO DO TEMA

Com a promulgação da Carta Política de 1988, bem como pela prevalência dos princípios da supremacia da Constituição e da continuidade da ordem jurídica, os profissionais do direito foram compelidos à re-interpretação da legislação infraconstitucional precedente, sob o paradigma instituído com o novo pacto social. Com efeito, da confluência desses axiomas, postulou-se pela invalidade e pela ineficácia da legislação antes vigorante, alcançada pelo novo Texto Fundamental, se em descompasso com o mesmo.

Sendo assim, da mesma forma que a condição do reincidente foi criticada por diversos escritores iluministas que rechaçaram, em respeito ao princípio de retribuição, a hipótese de que fosse considerada como motivo para o agravamento da pena1, na atualidade, juristas como ALBERTO SILVA FRANCO, AMILTON BUENO DE CARVALHO, ANDRÉ COPETTI, CONDE MUNHOZ, EUGÊNIO RAÚL ZAFFARONI, JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, LÊNIO LUIZ STRECK, LUIGI FERRAJOLI, NILO BATISTA, SALO DE CARVALHO, entre outros, puseram em dúvida que se pudesse, com razão e justiça, considerar a recaída no crime como gravame de pena.

Argumentou-se pela violação ao princípio do ne bis in idem, pois o condenado tinha a sua pena exacerbada por um fato pelo qual já fora punido. Nessa concepção, configurar-se-ia a incompatibilidade do instituto da reincidência com os princípios reitores do Direito Penal democrático e humanitário, vez que a recidiva, na forma de agravante criminal, constitui um plus à condenação anterior já transitada em julgado2, em afronta ao inciso XXXVI do art. 5º da Carta da República.

Por outro enfoque, alegou-se que menor seria a culpabilidade do agente, pois a repetição do delito, em razão do hábito, diminuía-lhe a liberdade3. Enfim, inúmeros juristas contestaram a legalidade da reincidência, visto quebrar o critério de proporção entre a pena e o crime, já que esse plus de pena majorado pela recidiva eqüivale à pena sem culpabilidade. Correta, portanto, a conclusão de que a duplicidade da pena não passa de uma hipocrisia institucional4.

Insiste-se, no entanto, que a persistência no crime denota tendência perversa e perigosa5. Muitos dos conhecedores dos textos legais que a aceitaram, legitimaram-na, seja por se ter revelado ineficiente a primeira pena, seja pela manifesta inadaptação ou rebeldia à ordem constituída por parte do agente, "donde a necessidade de repressão mais severa"6.

Malgrado tais posicionamentos, na justa medida do princípio da culpabilidade, mormente pela decorrência material de que a responsabilização criminal dá-se pelo fato e não pelo autor, pretende-se avaliar se a circunstância agravante insculpida no artigo 61, inciso I, do Código Penal de 1984, a qual encontrou larga adesão no sistema jurídico brasileiro, teria sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988, se posta em confronto ao princípio constitucional adrede referido, que, em última análise, resulta do axioma da dignidade humana, erigido sob a égide do Estado Social Democrático de Direito.

A tanto, o estudo desenvolver-se-á pela dicção do inciso III do artigo 1º da CF, dos artigos 61, inciso I, 63 e 64, incisos I e II, todos do Código Penal, ao influxo das orientações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais brasileiras no desiderato de apresentar um breve histórico do instituto em comento, o fundamento da obrigatória elevação da pena, a sua natureza jurídica, algumas críticas subjacentes à aplicação e à mantença dessa agravante no cenário jurídico nacional, sem olvidar eventuais colaborações advindas de legislações e de doutrinas estrangeiras.


2. APONTAMENTOS SOBRE A HISTÓRIA DA RECIDIVA

Longe de exaurir ou tratar de forma minudente a evolução histórica da reincidência, este capítulo traça breves linhas acerca deste instituto a fim de carrear à presente pesquisa elementos capazes de identificarem, ainda que de modo geral, as mutações normativas da recidiva em sua historicidade precedentes à legislação brasileira. Dessa feita, com arrimo em normas de determinados povos, destacar-se-á tal instituto perante a Lei Mosaica, o Direito Romano, o Direito dos povos franco-germânicos, o Direito Canônico do medievo, o Direito inglês do século XVI e, por fim, o Código Penal francês de 1810.

2.1. LEI MOSAICA

Relacionada, desde a Antigüidade, ao juízo de maior censura, a condição do reincidente (ou pré-julgado7) encontra seus primeiros delineamentos nas passagens bíblicas de Levítico, 26:14-388. Considerando o caráter histórico dessa fonte, nada obsta reconhecer que a origem do instituto da reincidência remonta a tal período, pois já se verifica, no consciente dos povos antigos, o agravamento do caráter punitivo aos renitentes.

2.2. DIREITO ROMANO

Como situação influente no destino do condenado, o instituto da recidiva não foi estranho aos romanos, sobretudo no Direito Imperial do ocidente. Mas as conseqüências a que conduzia não se deduzem muito precisamente dos textos. Os que têm explorado essas fontes falam na distinção que já se fazia, pelo menos na época do império, entre reincidência genérica e reincidência específica. A primeira impediria certos benefícios ao reincidente, a que, por uma vida anterior criminalmente sem mácula, poderia aspirar, excluindo, v.g., a possibilidade do perdão. A segunda, determinaria agravação da pena ou atribuiria caráter penal a fatos, que, praticados pela primeira vez, só eram passíveis de medidas disciplinares9.

Pela última hipótese, a reincidência circunscrevia-se a determinados crimes, particularmente ao furto, para agravar a pena ordinária, comutá-la a espécies mais graves ou imprimir, por si só, conteúdo delituoso a certos fatos. Nessas circunstâncias, foi regra somente operasse a reincidência específica.

2.3. DIREITO DOS POVOS FRANCO-GERMÂNICOS

Na alta Idade Média, época do predomínio das concepções germânicas em matéria punitiva, somente a partir do 14º ano do reinado de Liutprando (726), a reincidência passa a ser regulada com a cominação de pena mais severa ao segundo furto, exacerbando no terceiro com o banimento. Por sua vez, no caso dos povos francos, especificamente pelas capitulares de Carlos Magno, o primeiro furto foi punido com a perda de um olho; o segundo, com a perda do nariz e o terceiro, não se verificando emenda, com a morte10.

2.4. DIREITO CANÔNICO DO MEDIEVO

No Direito Canônico11 do medievo, em relação ao aspecto moral, a penitência foi, em princípio, negada ao reincidente, estendendo-se, depois, a absolvição aos casos mais ostensivos de arrependimento. Nesse sentido, a recidiva manteve o caráter específico, exigindo-se a expiação da pena anterior para configurá-la.

Entrementes, quanto ao caráter objetivo do fato, passou a constituir uma circunstância agravante genérica em crimes como a heresia, o concubinato, o abandono da residência por parte de bispos e cônegos etc., aumentando o rigor da pena conforme a pertinácia e a obstinação no pecado ou no delito.

Por fim, ao tachar como hereges relapsos12 os que, abjurando da heresia e se tornando por isso penitentes, reincidem na heresia. Estes, a partir do momento em que a recaída fica plena e claramente estabelecida, são entregues ao braço secular, sem julgamento, para serem executados, a Instituição do Vaticano inaugura, sob um visão tecnicista, a condição de reincidente.

2.5. DIREITO INGLÊS DO SÉCULO XVI

No fim da Idade Média, com a dissolução das vassalagens feudais, lançou-se no incipiente mercado de trabalho um expressivo número de indivíduos, os quais, todavia, não foram absorvidos pela nascente manufatura na mesma velocidade com que se tornavam disponíveis. Assim, muitos se transformaram em mendigos, vagabundos, ladrões, por inclinação ou por força das circunstâncias13.

Destarte, com o intuito de coibir a crescente criminalidade das camadas mais débeis, o Estado buscou conter os infratores pelo terror, não mensurando a pena pela gravidade da culpa, mas pelo critério da utilidade. Desse modo, a pena capital continuou a ser amplamente imposta.

Durante o reinado de Henrique VII, na Inglaterra de 1530, prescreveu-se que os vagabundos sadios seriam encarcerados ou amarrados atrás de um carro e açoitados até que o sangue lhes corresse pelo corpo. Na primeira reincidência, além da pena de flagelação, metade da orelha seria cortada; na segunda seriam enforcados como criminosos irrecuperáveis e inimigos da comunidade. Tal sistema permaneceu nos reinados de Eduardo VI, Elisabeth e Jaime I.

2.6. CÓDIGO PENAL FRANCÊS DE 1810

Com o bem-sucedido golpe militar do 18 Brumário, de 9 de novembro de 1799, os ideais revolucionários cedem ao império napoleônico e ao mundo burguês emergente14. Nesse contexto, as promulgações dos Códigos Civil, de Processo Civil, Comercial, Penal e Criminal, entre 1804 e 1811, representaram a manifestação jurídica da vitória burguesa sobre o Antigo Regime, sobre a antiga nobreza fundiária e seus privilégios feudais, ou seja, era o redesenho de toda uma sociedade saída do rescaldo da revolução de 1789.

Ao sedimentar os princípios da unidade do direito, emancipando-se dos foros feudais, as codificações adrede referidas formaram um conjunto homogêneo de leis animadas pelo liberalismo e embreadas pela ideologia mecanicista na aplicação da lei15.

Os direitos da pessoa, a hegemonia da propriedade, os interesses do Estado, secular e laico, passam a ser consagrados. Por isso, as transformações provocadas pela ruptura do paradigma medieval ganham o mundo, gerando reflexos na maioria dos ordenamentos jurídicos dos demais países.

Nessa perspectiva, a noção de reincidência difunde-se com o Código Penal francês16 de 12 de fevereiro de 1810, pelo preceito subscrito em seu artigo 56, in verbis:

Art. 56 - Quem, depois de ser condenado à uma pena aflitiva e infamante, ou somente infamante, comete um segundo crime tendo como pena principal a pena de reclusão criminal ao tempo de dez a vinte anos, será condenado ao máximo da pena, aquela, também, poderá ser elevada ao dobro.

Em defesa desse dispositivo, ROSSI atribuiu ao legislador o propósito de destacar a recidiva como motivo de culpabilidade especial, tanto moral como política, pois o delinqüente, repetindo a infração, insiste em menosprezar a ordem jurídica. Não seria apenas sob o ponto de vista ético que se dispensava tratamento mais austero ao reincidente imoral e depravado, e sim, também, pela manifestação positiva na prática do novo delito17.


3. EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

No Brasil, sobretudo com a proclamação de sua independência de Portugal, a influência da renovação de idéias jurídicas e políticas, mormente na força da universalização advinda com a revolução francesa, dos direitos do homem e do cidadão, motivou os estadistas brasileiros do I Império a dotar o País de leis que atendessem, em sua nova estrutura social e política, o novo pensar e os princípios, aos quais se fazia extremamente sensível o direito penal que reclamava uma profunda reforma18.

Dessarte, pela norma programática assente no item 18, do artigo 179 da Carta da Lei de 25 de março de 182419, consignou-se a elaboração de um código criminal, "fundado nas sólidas bases da justiça e eqüidade". Assim, com espeque no projeto Bernardo Pereira de Vasconcellos, em razão de ser o mais amplo no desenvolvimento das máximas jurídicas e o mais munido na divisão das penas, o mesmo acabou sendo aprovado em 16 de dezembro de 183020 pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, sendo sancionado pelo imperador.

3.1. CÓDIGO PENAL DE 1830

Acolhendo o padrão francês de 1810, o qual resultante de fontes romanas, germânicas e canônicas, o Código de 1830 contemplou o instituto da reincidência no parágrafo 3º de seu artigo 1621, arrolando-o como circunstância agravante de cunho especialíssimo.

ANTÔNIO LUIZ FERREIRA TINÔCO, ao averbar notas e julgados a esse código, comenta, em sua obra datada de 1886, que a recidiva seria "...o facto de commetter novas faltas depois de uma primeira condemnação imposta por sentença em juizo criminal. Não se verifica sem que a primeira falta tenha sido castigada (sic)"22.

Por tal magistério, parece-nos que além da exigência de uma condenação anterior, a jurisprudência de antanho acolheu a reincidência própria (ou verdadeira) para o aperfeiçoamento desse instituto, i.e., aquela consistente no cometimento de um crime depois de ter sido condenado e haver cumprido, no todo ou em parte, a pena por delito anterior.

3.2. CÓDIGO PENAL DE 1890

Assim como a legislação precedente, o Código de 1890 incluiu a recidiva entre as circunstâncias agravantes, nos moldes do parágrafo 19, de seu artigo 3923.

Na vigência desse diploma normativo, manteve-se o caráter específico do instituto em análise. Todavia, ao entender-se por reincidente aquele que, após passada em julgado uma sentença condenatória, cometesse outro delito da mesma natureza, ou seja, o crime consistente na violação do mesmo dispositivo penal anteriormente infringido, a teor do artigo 4024, a legislação criminal passou a satisfazer-se com a denominada reincidência imprópria (ou ficta), haja vista a inexigibilidade de que a condenação antecedente houvesse sido executada.

Em anotações a esses dispositivos, GALDINO SIQUEIRA, com base em ALIMENA e MANZINI, escreve que em favor da reincidência ficta, pelo fato de assentar uma das razões agravadoras no desprezo do condenado pela lei e pelo juiz, bastante é a sentença passada em julgado25. Além disso, FLORIAN anota que exatamente nesse tipo de recidiva revela-se maior temibilidade do criminoso, enquanto seja lícito presumir que ele tenha "sabido, com astucia ou violencia, subtrahir-se á execução da pena (sic)"26.

3.3. CÓDIGO PENAL DE 1940

Consoante exposição de motivos do Ministro da Justiça FRANCISCO CAMPOS, o Código de 1940, em sua sistemática distinguiu, para diverso tratamento penal, entre o criminoso primário e o criminoso reincidente. Quanto aos criminosos habituais, não lhes destacou da família dos reincidentes, malgrado os comentários ao Código de 1830 houvessem consignado que "o hábito do crime não é o que aggrava a pena (sic)"27.

Com efeito, foram atribuídas conseqüências legais particularmente severas, quer do ponto de vista repressivo ou da pena, quer do ponto de vista preventivo ou da medida de segurança ao reincidente, em virtude de que, em qualquer de suas espécies, a reincidência fez presumir a periculosidade (CP, art. 78, IV28).

Nessa senda, do conceito especialíssimo acolhido nos Códigos de 1830 e 1890, o legislador penal de 1940 ampliou a abrangência do instituto em espécie. A partir desse ordenamento, a sentença hostilizada estrangeira irrecorrível passa a ser relevada ao reconhecimento da reincidência, em homenagem à tendência de internacionalização do Direito Penal, à época. Demais disso, a recidiva biparte-se em genérica (ou heterogênea) e específica (ou homogênea), consoante o disposto no §1º, incisos I e II do artigo 46, do Código Penal de 194029.

Como se há verificar, tal código aboliu a posição restritiva dos estatutos anteriores, visto que o § 2º, do artigo 4630 inovou o entendimento do que se deveria compreender pela reincidência em "crimes da mesma natureza", diante da inspiração do artigo 101 do Código Penal italiano31 (Código ROCCO).

Convém notar, outrossim, que a tradição do Código de 1890 em satisfazer-se apenas com a sentença condenatória trânsita em julgado (art. 40), perpetuou-se com a legislação penal de 1940, acolhendo, pois, a reincidência ficta.

3.4. LEI N.º 6.416, DE 25 DE MAIO DE 1977

A Lei n.º 6.416/77 deu nova redação ao parágrafo único do art. 46, do Código Penal de 1940, extingui a reincidência específica e limitou os efeitos da conduta anterior, a fim de não estigmatizar o condenado para sempre. Adotou-se o sistema da temporariedade32 (ou transitoriedade), de modo que a partir desse diploma deixou de prevalecer a condenação anterior, para efeito de recidiva, se decorrido período superior a cinco anos entre a data do cumprimento ou da extinção da pena e do delito posterior33.

Nesse passo, vencido um lustro entre as condições acima mencionadas, o agente retorna à qualidade de primário se vier a praticar novo crime, para todos os efeitos, inclusive em relação à fiança, posto que o texto do art. 323, III, CPP34, conduza a outro entendimento.

3.5. CÓDIGO PENAL DE 1984 (LEI N.º 7.209/84) E A LEI N.º 9.714/98

A partir de 1979, intensificaram-se os apelos por reformas na legislação penal o que redundou na criação, em 27 de novembro de 1980, de comissão composta pelos juristas FRANCISCO SERRANO NEVES, HÉLIO FONSECA, FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, MIGUEL REALE JUNIOR, entre outros, com a missão de reformar a parte geral do Código Penal em vigor desde 1942, sendo que o projeto apresentado por essa comissão foi convertido na Lei n.º 7.209, de 11 de julho de 1984.

Enveredando-se pelos mesmos caminhos das legislações que lhe antecederam, o vigente Código Penal manteve a recidiva entre as circunstâncias agravantes genéricas, consoante os artigos 61, I35; 6336 e 64, incisos I e II37, bastando-lhe a reincidência ficta à sua configuração.

Na hipótese de suspensão condicional da pena e de livramento condicional, a nova lei introduziu a disposição de que o qüinqüênio expurgatório conta-se computando o período de prova, se não ocorrer revogação, incluindo-se na contagem o dia do começo (CP, art. 1038).

Por outro enfoque, conquanto abolida pela lei n.º 6.416/77, a reincidência específica voltou a ser instituída pelo art. 5º da Lei dos Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072, de 25.7.90), que acrescentou ao art. 83 do CP o inciso V39, bem como pelo art. 44, §3º, do CP40, com redação dada pela lei n.º 9.714/9841.

3.5.1 PRESSUPOSTOS

Em virtude das noções preliminares acima descritas, conclui-se que a regente legislação penal exige dois pressupostos à estruturação normativa do instituto da recidiva: a) sentença condenatória transitada em julgado, no Brasil ou no estrangeiro, por crime (não por contravenção) que não seja político42 ou propriamente militar43; b) prática de nova infração, após trânsito em julgado da sentença hostilizada por crime, desde que nos limites do período depurador de cinco anos, contado da data efetiva do cumprimento ou da extinção da pena, e que essa circunstância agravante seja medida socialmente recomendável, pela dicção do §3º do art. 44 do CP.

De conseguinte, não haverá reincidência se no processo anterior houve perdão judicial44, pois a sentença que o concede não é condenatória, mas declaratória45. Depois, tanto faz que a condenação anterior, desde que trânsita em julgado, tenha sido proferida no Brasil ou no estrangeiro. Nesse último caso, não se exige a delibação por parte do STJ (Emenda Constitucional n. 45/04), vez que a sentença condenatória estrangeira é manejada como fato jurídico.

Outrossim, se declarada extinta a punibilidade do crime anterior, depois da condenação passada em julgado, há reincidência se novo crime vier a ser praticado, a menos que a extinção da punibilidade ocorra por anistia ou por superveniência de lei que deixa de considerar o fato como delituoso (abolitio criminis). Nessas duas hipóteses, a extinção da punibilidade faz desaparecer o crime anterior, nos demais casos do art. 107, do Código Penal, deixa inalterável a qualificação do fato delituoso46.

Além desses fatores, o texto legal alude a crime anterior, de forma que não há cogitar de reincidência, se o agente praticar nova infração penal após o trânsito em julgado de decisão que o condenou por fato contravencional. No entanto, nos termos do artigo 7º da Lei de contravenções penais47, será havido como reincidente quem realizar um fato contravencional após condenação transitada em julgado por crime anterior48.

Por fim, é debatida na jurisprudência a questão acerca da condenação à pena pecuniária como pressuposto para a recidiva. Há decisões no sentido de que a simples imposição de multa não a enseja e no sentido inverso, desde que ambos os crimes forem dolosos. Contudo, tecnicamente, não há a menor dúvida de que a anterior condenação à pena de multa leva à reincidência se um segundo crime for praticado49.

3.5.2 PRIMARIEDADE E REINCIDÊNCIA

Conforme o disposto no art. 63 do CP, a legislação só reconhece duas espécies de delinqüentes – os primários e os reincidentes – sendo primário o agente que não tenha contra si a reincidência perfeitamente caracterizada, não obstante possa ter sofrido anteriores condenações não transitadas em julgado. Por isso, incorreto dizer que o agente não é mais primário (ou que "perdeu a primariedade", ou ainda, que é "tecnicamente primário") quando foi condenado anteriormente (uma ou mais vezes), embora seu novo delito tenha sido cometido antes de passar em julgado a condenação ou condenações anteriores50.

Isso significa dizer que o agente pode manter a condição de primariedade, apesar de condenado por inúmeros crimes, desde que nenhum deles tenha sido praticado depois da primeira condenação irrecorrivelmente imposta.

3.5.3 EFEITOS DA REINCIDÊNCIA

Consignando as principais conseqüências da recidiva na legislação de regência, apontam-se as seguintes:

a) Agrava a pena em quantidade indeterminada (CP, art. 61, I);

b) Configura uma das circunstâncias preponderantes no concurso de agravantes (CP, art. 67, última parte51);

c) Obsta a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (CP, art. 44, II52) ou multa (CP, art. 60, § 2º53), a não ser que a reincidência seja genérica e a substituição socialmente recomendável (CP, art. 44, § 3º);

d) Quando a reincidência for em crime doloso, impede a concessão do sursis (CP, art. 77, I54) e aumenta o prazo de cumprimento de pena para o livramento condicional (CP, art. 83, II55);

e) Impede o livramento condicional (CP, art. 83, V) quando houver reincidência específica em crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo;

f) Aumenta o prazo de prescrição da pretensão executória em um terço (CP, art. 110, caput, última parte56);

g) Interrompe a pretensão da prescrição punitiva (CP, art. 117, VI57);

h) Impede a aplicação de algumas causas de diminuição da pena (CP, arts. 155, § 2º58, 17059 e 171, §1º60);

i) Pode integrar o tipo da contravenção de posse do instrumento empregado em furto (LCP, art. 2561), conforme as origens da reincidência;

j) Revoga o sursis, obrigatoriamente, no caso de condenação em crime doloso (CP, art. 81, I62), e facultativamente, no caso de condenação por crime culposo ou por contravenção, à pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos (CP, 81, §1º63);

k) Revoga o livramento condicional, obrigatoriamente, em caso de condenação, a pena privativa de liberdade (CP, 8664) e facultativamente, no caso de condenação, por crime ou contravenção, a pena que não seja privativa de liberdade (CP, art. 8765);

l) revoga a reabilitação quando o agente for condenado a pena que não seja de multa (CP, art. 9566);

m) Reflete no direito de apelar sem recolher-se à prisão (CPP, art. 59467);

n) Impede que o regime inicial do cumprimento da pena seja aberto ou semi-aberto (art. 33, §2º, b e c), a menos que se trate de pena detentiva;

o) Impede a transação (art. 76, § 2º, I, da Lei n.º 9.099/9568);

p) Obsta a suspensão condicional do processo (art. 89, caput, da lei n.º 9.099/9569);

q) Constitui qualificadora ao crime relacionado com porte de armas de fogo e figuras correlatas (art. 10, §3, IV da Lei n.º 9.437/9770).

3.5.4 FUNDAMENTOS

De início, não é a técnica jurídica, porém à política criminal devem ser pedidos os fundamentos, as modalidades e os efeitos da reincidência, visto que esta não se subordina aos critérios de imputabilidade e sim aos da periculosidade71, nos moldes do sistema "duplo binário" adotado pelo Código de 1940.

Todavia, superada tal sistemática com a reforma de 198472, a jurisprudência hodierna tem apontado que o aumento decorrente dessa agravante advém da maior reprovação da conduta, porque o agente, insistindo no comportamento anti-social, demonstra que a condenação anterior não teve suficiente efeito73, ou, a reincidência deve ser considerada como resistência do agente na tentativa de sua ressocializacão e, a despeito de conhecer as conseqüências de seu comportamento e ter maior conseqüência da ilicitude, insiste na atividade criminosa, agindo, pois, com maior carga de culpabilidade74.

3.5.4.1 Periculosidade

Sem embargo de ROBERTO LYRA intitular-se "bom positivista" e reconhecer que à moral, e não ao direito, pertenceria o exame da maior perversidade do delinqüente. O mesmo postulava que "se perigoso é quem autoriza a suposição de que venha a delinqüir, quem delinqüiu autoriza, não somente a suposição, mas a certeza da periculosidade". Nesse diapasão de raciocínio (ou presunção), "reincidente é sempre perigoso"75. Da mesma forma, pelo magistério de NELSON HUNGRIA, a reincidência seria um "sinal de perigosidade, como a febre é sinal de infecção, como a putrefação é sinal de morte"76.

Em conferência pronunciada em Curitiba no ano de 1956, na ocasião em que discursou a respeito dos métodos e critérios para avaliação da cessação de periculosidade, HUNGRIA intitulou "perigosos" os criminosos inclinados à reincidência. Ao ex-Ministro do STF, tal ilação advinha, unicamente, de uma "forte probabilidade"77 de que esses delinqüentes reiterassem as práticas desviantes. Com isso, a preocupação seria tentar refundir a personalidade de tais criminosos, no sentido de harmonizá-las aos padrões éticos da vida em sociedade. A tanto, naquela oportunidade, HUNGRIA comentou sobre as características do sistema doppio binario, da seguinte forma:

A todo criminoso que a lei ou o juiz presumir "perigoso" se impõe, simultâneamente, a pena de prisão e a medida de segurança: se aquela se revela eficiente no caso concreto, suprimindo, no curso de sua execução, a periculosidade latente do condenado, terá êste o livramento condicional, que importará, se cumpridas as condições, em extinção de punibilidade e consequente revogação da medida de segurança; caso contrário, isto é, persistindo os indícios de periculosidade, o condenado terá de cumprir a pena tôda e passará, em seguida, ao regime de segurança, cuja duração é condicionada à permanência do "estado perigoso" e, portanto, indeterminável de ante-mão. Por isso mesmo que não tem caráter punitivo, visando apenas ao fim de utilidade a que se pode chamar "cura social dos perigosos", a medida de segurança é aplicável aos próprios "irresponsáveis" ou incapazes de direito penal, desde que se apresente a sua periculosidade, isto é, a relevante probabilidade de retornar à prática de fatos previstos como crime (sic)78.

Em confronto à tese acima esboçada, AMILTON BUENO DE CARVALHO, ao proferir voto em ordem de HC n.º 70006140693, leciona que "a futurologia perigosista é uma prática oriunda de ideologias intolerantes que, desde muito têm demostrado seus efeitos nefastos: excessos punitivos de regimes políticos totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas classes sociais (alvo do controle punitivo)...".

Prosseguindo, nas palavras do sobredito jurista, "o instituto da periculosidade, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola Positiva, fundado em bases ocultas de manutenção de determinadas estruturas de poder, tem acarretado a proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de controle social...". Assim, "a recepção deste pressuposto nos sistemas punitivos latino-americanos levou pobres, reincidentes, alcoólatras, mendigos, vagabundos e deficientes mentais a serem o alvo histórico das medidas preventivas de controle social...".

Ademais, ZAFFARONI, citado pelo Desembargador gaúcho, "ao censurar o prognóstivo de perigosidade, nominando-o de ‘perigosómetro’, considera que ‘uma das pretensões mais ambiciosas desta criminologia etimológica individual equívoca foi a de fazer realidade o velho sonho positivista: medir a periculosidade’. Pelas letras do professor argentino, a graduação "perigosométrica" inicia-se pela recidiva, quando se ‘constrói uma tábua, se somam as causas presentes e ausentes em cada caso futuro e se obtém a porcentagem...".

Note-se, com efeito, que a Escola Positiva, desde LOMBROSO, não faz outra coisa senão chamar a atenção para a pessoa do delinqüente79, por intermédio de uma concepção determinista ou biológica do homem.

3.5.4.2 Menosprezo à ordem jurídica

Por outro vértice, fundando-se o aumento de pena ao reincidente na insuficiência relativa da pena que lhe foi imposta, insuficiência demonstrada pelo próprio sentenciado com o desprezo pela primeira pena (CARRARA, Programma § 728), em realidade se justifica tal gravame por condição pessoal alheia à culpabilidade do agente. Os autores modernos costumam justificar o aumento de pena afirmando maior culpabilidade na rebeldia, frente à ordem social, na contumácia da inimizade ao direito (MAURACH). Diz MANZINI (Tratado, II, 670) que a reincidência demonstra, com o novo crime, tanto a vontade do delinqüente de violar o respectivo preceito penal, quanto a vontade persistente de delinqüir, ou seja, além da vontade de lesar ou expor a perigo aquele interesse determinado que constitui objeto jurídico do crime, também a vontade repetida de não se conformar à ordem jurídica geral penalmente sancionada80.

Desse modo, com arrimo na doutrina italiana do século XIX e XX, particularmente com CARRARA, MANZINI, VANNINI e RICCIO, aquele que volta a delinqüir, após ter sofrido uma condenação anterior, revela "obstinado desprezo pela lei e pelo magistrado", porquanto "a pessoa que já condenada por crime, volta a praticar outro, ofende gravemente à autoridade da lei e ao prestígio do Estado"81.

Em síntese, justifica-se a exacerbação da pena pelo maior alarme social, já que se nega, pelo novo episódio delinqüencial, a autoridade e a organização do Estado, representadas pela advertência e pela força ético-jurídica da condenação proferida pelo Poder judiciário. Sendo assim, o elemento psicológico da reincidência consiste na rebelião à lei82.

3.5.5 NATUREZA JURÍDICA

Pelo exposto no item 3.5.3, deduzir a natureza jurídica da reincidência de uma circunstância agravante genérica de caráter obrigatório, conquanto assim definida no art. 61, I, do Código Penal, parece-nos uma posição simplista, já que a obrigatoriedade de agravar a pena imposta na primeira fase da dosimetria (CP, art. 68)83 é senão um dos seus efeitos.

Aliás, nem sequer trata-se, a reincidência, de uma verdadeira circunstância, pois não se relaciona com o delito, mas com a pessoa que o cometeu84. Nesse sentido, GARRAUD postula que a reincidência constitui, "não um estado da infracção, mas um estado do infractor"(sic)85. Portanto, ao aperfeiçoamento desse instituto, a condenação por crime anterior soma-se à nova infração para configurar a agravante.

Em suma, na medida em que a reincidência descreve uma condição subjetiva (ser reincidente) e em razão disso inflige tratamento mais rigoroso, inconteste é o reconhecimento de que a natureza político-jurídica desse instituto semelha-se a um tipo normativo de agente86.

3.6. PROJETO GREGORI

Em derradeiro, ressalva-se que o projeto de reforma à parte geral do Código Penal87 excluiu a reincidência do rol das circunstâncias agravantes assentadas no art. 61 do Código Penal, haja vista os apontamentos no item 35 desse projeto, a saber:

[...]aprimoram-se as reais possibilidades de individualização judicial da pena por meio de novos critérios considerados no art. 59, cujas diretrizes foram alargadas. Continuam a ser três as ordens gerais de atores sobre as quais repousa a individualização da pena; as relativas: ao agente, ao fato e à vítima. As duas últimas não sofreram alterações, mas, quanto ao agente, ao lado da culpabilidade, já em sentido mais abrangente trazido pela Reforma de 1984, e dos antecedentes, determina o Projeto que se refira o juiz à reincidência e condições pessoais do acusado, bem como as oportunidades sociais a ele oferecidas. Tais acréscimos merecem destaque. Antes de mais nada, a reincidência deixa de figurar como circunstância agravante obrigatória e passa a ser considerada no curso da individualização da pena [...]


4. HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: A REINCIDÊNCIA À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

"É o conhecimento dos princípios, e a habilitação para manejá-los, que distingue o jurista do mero conhecedor de textos legais".

Carlos Ari Sundfeld

(em Fundamentos de Direito Público)

4.1. O ESTADO SOCIAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A partir da promulgação da Carta Política de 1988, estabeleceu-se um pacto social fundado no paradigma do Estado Democrático de Direito, em que se balizou, de forma clara, as abstenções dos poderes públicos frente às garantias individuais, as obrigações do Estado em satisfazer os direitos de seu povo, bem como os objetivos fundamentais decorrentes dos incisos de seu artigo 3º, in verbis:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Em assim sendo, seguindo o moderno constitucionalismo, fica implícito estarmos diante de uma Constituição normativa e classificável como social. Isso, à evidência, implica compromissos e inexoráveis conseqüências no campo da formulação, interpretação e aplicação das leis. Logo, deve-se partir da premissa – e não há originalidade alguma em dizer isto – de que a Constituição de 1988 é dirigente e compromissória, pelo fato de apresentar uma direção vinculante à sociedade e ao Estado88.

Demais disso, destaca-se, ante os ensinamentos de CANOTILHO, EROS GRAU, BONAVIDES, LÊNIO STRECK, BANDEIRA DE MELO, JORGE MIRANDA, entre outros, que todas as normas constitucionais têm eficácia e nisso se incluem as normas ditas "programáticas".

Com efeito, nos dizeres de LÊNIO STRECK, essa é a nossa cultura que a partir da Carta Política de 1988 solidificou-se em termos normativos, e parece não haver mais qualquer dúvida de que o direito penal também deve servir de instrumento interventivo, organizador e transformador da sociedade. Afinal, não é demais lembrar que o Direito e o Estado passaram por profundas transformações no decorrer dos séculos: de um Direito meramente ordenador, próprio da tradição liberal-individualista, passamos para um Direito de feição promovedora e transformadora, produtos do surgimento da concepção de Estado Social e Democrático de Direito89.

Dito isso, já não há mais espaço à postura ignava e complacente para com a reiterada prática judiciária que, embora submissa a uma Constituição rica em direitos individuais, coletivos e sociais, (só)nega a aplicação desses direitos ao seu povo90.

Nessa vertente, assoma a inspiração marxista em que se conclama à ação, pois os "juristas", assim como os filósofos, limitaram-se "a interpretar o mundo de maneiras diversas", contudo, "trata-se de transformá-lo"91. Nessa empreitada, frisa-se que o ordenamento jurídico brasileiro não passa de um mero instrumento92 a uma consecução maior, qual seja, a promoção dos objetivos fundamentais antes referidos, por meio de um processo de efetiva concretização constitucional.

4.2. HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

Pela formulação teórica de KELSEN, amplamente aceita e difundida pela obra Teoria pura do direito, a Constituição representa o fundamento de validade de toda a ordem jurídica no qual se reconduzem todas as normas vigentes no âmbito do Estado, conferindo unidade ao sistema93. Desse modo, a Constituição escrita ordena, sistematicamente, os princípios fundamentais da organização política do Estado e das relações entre este Estado e o povo que o compõe94.

Nessa seara, considerando que a Carta da República "não é somente o documento para organizar o Estado, mas, sim, a própria explicação do contrato social (a Constituição, portanto, Constitui) e o espaço de mediação ético política da sociedade"95, o Texto Fundamental consiste "no paradigma hermenêutico de definição do que seja uma norma válida ou inválida, propiciando toda uma filtragem das normas infraconstitucionais que, embora vigentes, perdem sua validade em face da Lei Maior"96.

No mesmo sentido, PAULO RICARDO SCHIER advoga a necessidade de um processo em que toda a ordem jurídica, sob a perspectiva material e formal e assim os seus procedimentos e valores, devem passar pelo filtro axiológico da Constituição Federal, impondo a cada momento da aplicação do direito, uma releitura e atualização de suas normas97.

Diante do exposto, inolvidável o magistério de JIMÉNEZ DE ASÚA no qual "toda nova Constituição requer um novo Código Penal"98, juntamente a lição de FAUZI HASSAN CHOUKR, em que "o rumo constitucional tomado com a edição do texto de 1988, rico em garantias e altamente coeso no tema que nos interessa, não pode ser mudado, sob pena de deixarmos o saudável caminho do processo penal democrático, cuja concretização depende da adequada e necessariamente coerente reforma da legislação ordinária"99.

Com isso, segundo LÊNIO STRECK, é preciso dizer o óbvio, ou seja, precisamos constitucionalizar o direito infraconstitucional e as ações do Estado100. A tanto, pelas letras de LUÍS ROBERTO BARROSO:

O ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie101.

Nessa perspectiva, DANIEL SARMENTO ensina que a liberdade do operador do direito tem como norte e como limite a constelação de valores subjacentes à ordem constitucional, dentre os quais cintila com maior destaque o da dignidade humana que confere unidade teleológica a todos os demais princípios. Assim sendo, nenhuma ponderação poderá importar em desprestígio à dignidade do homem, já que a garantia e promoção desta dignidade representa o objetivo magno colimado pela Constituição e pelo Direito.

Portanto, como fundamento basilar da ordem constitucional, esse princípio configura diretriz inafastável para a integração de todo o ordenamento. Na qualidade de vértice axiológico da Constituição, o cânone em pauta condensa a idéia unificadora que percorre toda a ordem jurídica, condicionando e inspirando a exegese e aplicação do direito positivo, em suas mais variadas manifestações102.

A partir dessa postura, a dignidade humana revela-se como guia ontológico à realização da ponderação entre interesses constitucionais, visto que esse método ostenta uma irredutível dimensão substantiva, dirigindo-se à afirmação e à concretização dos valores supremos de igualdade, liberdade, fraternidade e justiça, no qual se apoia todo ordenamento constitucional, e que estão condensados no princípio da dignidade da "pessoa humana"103.

Em síntese, os axiomas constitucionais representam as premissas básicas do sistema normativo brasileiro, cujos se irradiam por todo o ordenamento jurídico, em virtude de condensarem os valores mais relevantes dessa estrutura, com destaque à dignidade humana. Portanto, os mesmos indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos pelo hermeneuta104.

Nessa vereda, passamos ao confronto do instituto da recidiva ao axioma da dignidade humana, em referência específica ao princípio da secularização e da proibição das leis penais constitutivas, afora não sejam os únicos que subjazem desse axioma.

4.3. O INSTITUTO DA REINCIDÊNCIA E A DIGNIDADE HUMANA

4.3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

Na atualidade, sem embargo de reconhecer-se a dignidade da "pessoa humana"105 como valor intangível, não se deve perder de vista que sua positivação resultou de um longo processo forjado na dor e na angústia de milhares de seres humanos vitimados pelas atrocidades das quais a história mundial presta-lhes testemunho.

Ademais, transparece da própria dicção desse princípio sua universalidade, à evidência, por exemplo, da redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em cujo preâmbulo consta que a dignidade, inerente a todos os membros da família humana, é fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Logo, a todo e qualquer indivíduo é reconhecida dignidade, pelo simples fato de pertencer à espécie humana. Dela não se despe nenhuma pessoa, por mais grave que tenham sido os atos que praticou, pois em cada ser humano, por mais humilde e obscura que seja sua existência, pulsa toda a Humanidade106.

Convém anotar que a idéia da dignidade humana assenta-se na tradição cristã em conceber o Homem como ser criado à imagem e semelhança de Deus107, concepção que serviu de alicerce ao conceito de pessoa, o qual desenvolvido pela filosofia patrística e aprimorado pelos escolásticos, como categoria espiritual rica em subjetividade, ser de fins absolutos, e que, em conseqüência, detém direitos subjetivos (ou fundamentais).

Com o advento da modernidade, os teóricos humanistas laicizam tal conceito, sendo que essa contribuição serviu de base ao constitucionalismo do século XVIII. Esse, por sua vez, na esteira do Iluminismo e do Racionalismo, consagrou a idéia de limitação dos poderes do Estado com vistas à proteção dos direitos individuais do cidadão. Assim, durante a Ilustração edificaram-se os pilares do jusnaturalismo racionalista, que centrava preocupações no ser humano, considerando-o como ente dotado de direitos que precediam o Estado e que deveriam ser assegurados pela ordem jurídica.

No entanto, observa-se que a premissa antropológica subjacente ao constitucionalismo modificou-se, de maneira profunda, do advento do Estado liberal até nossos dias. Do individualismo-burguês voltado a uma visão limitativa do Homem na qual o Estado deveria assegurar a sua autonomia e liberdade, escapando às suas preocupações a garantia de condições reais de subsistência, para que o Homem pudesse, de fato, exercitar aquela liberdade que lhe era formalmente franqueada, passamos ao Estado Social, preocupado agora não apenas com a liberdade, mas com o bem-estar de seus cidadãos108.

Portanto, não mais se concebe o Homem como ser que, ao cuidar egoisticamente dos seus interesses, numa sociedade atomizada, estaria contribuindo para o progresso de todos, como sustentava o individualismo burguês. Por outro lado, não se incorre no vício oposto, do transpersonalismo, a partir de uma visão orgânica da sociedade, vislumbra no homem apenas uma parte no todo social, cujos direitos e interesses podem ser sacrificados em benefício da coletividade.

Depois de comentar tais concepções, SARMENTO postula que a ótica prevalecente nessa matéria, no tocante ao constitucionalismo contemporâneo, é a do personalismo, que busca uma solução de compromisso entre as concepções individualista e coletivista.

Nesse prisma, o ser humano é considerado um valor em si mesmo, superior ao Estado e a qualquer coletividade à qual se integre, trata-se de uma pessoa real, palpável, histórica e geograficamente situada, que partilha valores e tradições com seus semelhantes e que tem necessidades reais que devem ser atendidas. É um ente que não apenas vive, mas convive109.

Marcante nessa teoria, em que se busca, principalmente, a compatibilização, a inter-relação entre os valores individuais e valores coletivos, é a distinção entre indivíduo e pessoa. Se ali, exalta-se o individualismo, o homem abstrato, típico do liberalismo-burguês, aqui, destaca-se que ele "não é apenas uma parte, como uma pedra-de-edifício no topo, ele, é, não obstante, uma forma do mais alto gênero, uma pessoa, em sentido amplo – o que uma unidade coletiva jamais pode ser", como sintetiza NICOLAI HARTIMANN, citado por MATA-MACHADO110.

Por isso e lastro no inciso III, art. 1º, da CF, a dignidade da "pessoa humana" constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, cujo corolário é a proteção do livre desenvolvimento da personalidade. Em verdade, esse princípio exprime, em termos jurídicos, a máxima kantiana, segundo a qual o Homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio111. O ser humano precede o Direito e o Estado, que apenas se justificam em razão dele112.

Nesse prumo, a "pessoa humana" deve ser concebida e tratada como valor–fonte113, como assevera MIGUEL REALE, sendo a defesa e promoção da sua dignidade, em todas as suas dimensões, a tarefa primordial do Estado Social Democrático de Direito. Assim, apenas o respeito a essa dignidade legitima a ordem estatal e comunitária, constituindo, a um só tempo, pressuposto e objetivo da democracia114.

4.3.2. A separação iluminista entre direito e moral

A doutrina da separação entre direito e moral reflete o processo contemporâneo ao nascimento do Estado Moderno, por meio do qual direito e cultura jurídica, particularmente de conteúdo penal, tornaram-se laicos.

Por intermédio de uma postura política reformadora no tocante ao direito positivo vigente, a cultura jurídica iluminista consentiu-lhe a crítica desmistificante e sem prejulgamentos, livre de deferências morais ou religiosas à ordem constituída. Ao passo que as teorias políticas do jusnaturalismo contratual foram todas, essencialmente, doutrinas utilitaristas de justificação externa do então nascente Estado Moderno, do qual repudiaram a idéia de uma fundação apriorística – natural, ética ou religiosa.

Dessa forma, SALO DE CARVALHO escreve que "o discurso jurídico-penal do iluminismo foi estruturado sob a égide da secularização e da tolerância. A negação do fundamento teológico (moral eclesiástica) do direito, principalmente nos critérios de interpretação e imputação dos desvios puníveis, obteve como conseqüência a radical substituição da concepção ontológica do crime (mala in se) para a noção garantista" em que o "crime passa a ser a descrição legal da conduta, criminoso é aquela pessoa que violou livremente (capacidade, conhecimento e vontade) o contrato social, e a pena representa o limite retributivo de intervenção do Estado na liberdade do indivíduo".

Todavia, conquanto o exortado pensamento acima ilustrado, "o modelo inquisitorial do direito do autor, simbolizado em institutos como o da reincidência, renascerá com absoluto vigor no movimento penal da segunda metade dos oitocentos"115, sob o influxo da criminologia etiológica da Escola Positiva italiana, a qual serviu de suporte, principalmente, às doutrinas políticas e jurídicas do período nazi-faccista.

Como identificado na segunda metade do século XIX, devido à ação convergente das teses idealistas, positivistas, éticas, espiritualistas e, nas suas diversas formas, estatistas, as concepções subjetivistas voltam a ser, uma vez mais, objeto de qualificação, inquisição e tratamento penal sob as modernas etiquetas da "periculosidade", da "capacidade de delinqüir", do "caráter do réu" ou de outras semelhantes.

Assim, a transformação ética do direito chegou a fazer com que o princípio de legalidade passasse a ser irracional e decisionista, consentindo com o ingresso, no direito penal, do mais exasperado substancialismo e subjetivismo, mediante as nefastas figuras do "tipo normativo do autor"116 ou do "inimigo" (do povo ou do Estado), identificados, a despeito dos fatos cometidos ou não, com base, simplesmente, na atitude interiormente infiel ou antijurídica do acusado117.

Contudo, a fronteira intransponível à invasão do Estado na esfera moral, intelectual, religiosa e sentimental que se constitui em elemento comum a toda a cultura política do iluminismo, definida pelo requisito da materialidade da ação, será firmemente defendida, uma vez mais, pela Escola clássica, diante dos ataques da Escola positiva, contra a idéia de que os delinqüentes são uma espécie dentro do gênero humano. Desse modo, ENRICO PESSINA reafirma o princípio, mais igualitário que liberal, – "o homem delinqüi não pelo que é, senão pelo que faz"118.

De efeito, ressalta-se que a doutrina iluminista da separação entre direito e moral elaborou, a um só tempo, o pressuposto necessário de qualquer teoria garantista119 e de qualquer sistema de direito penal mínimo120, enquanto as várias doutrinas pré e pós-iluministas da confusão (entre direito e moral) viram-se colocadas na origem de culturas e modelos penais substancialistas e variadamente autoritários.

Dessa feita, pode-se precisar que o significado teórico da doutrina da separação diz respeito às condições formais da legitimação interna, identificada pela mesma com a satisfação do princípio da legalidade, o qual, em sentido lato, comporta o fato de que constitui delito somente aquilo que é proibido, e não aquilo que é apenas reprovável, e, em sentido estrito, exige, ainda, que as proibições legais sejam formuladas, não apenas incorporando critérios genéricos de avaliação ou reprovação externa, mas, sim, individuando, taxativamente121, os comportamentos proibidos.

Assim, o que o pensamento iluminista subtrai à criminalização e ao controle é, sobretudo, o interior da pessoa em seu conjunto, quer dizer, sua alma ou a personalidade. Com esteio nessa opção laica, o direito penal afasta-se da tarefa de impor ou de reforçar a (ou uma determinada) moral, passando, somente, a criminalizar o cometimento de ações (ou omissões) danosas a terceiros.

Nessa perspectiva, para que se possa proibir e punir comportamentos, o princípio utilitário da separação entre direito e moral exige, como igualmente necessário, o fato de que esses ofendam concretamente bens jurídicos122 alheios, cuja tutela é a única justificação das leis penais enquanto técnica de prevenção daquelas ofensas. O Estado, com efeito, não deve imiscuir-se coercitivamente na vida moral dos cidadãos nem mesmo prover-lhes, de forma coativa, a moralidade, mas, somente, tutelar-lhes a segurança, impedindo que os mesmos causem danos uns aos outros123.

Em segundo lugar, se aplicado ao processo, e conseqüentemente aos problemas da jurisdição, o princípio normativo da secularização impõe que o julgamento não verse sobre a moralidade, ou sobre o caráter, ou, ainda, sobre outros aspectos substanciais da personalidade do acusado, mas apenas sobre os fatos penalmente proibidos que lhe são imputados e que, por seu turno, constituem as únicas coisas que podem ser empiricamente provadas pela acusação e refutadas pela defesa. Assim, o juiz não deve indagar sobre a alma do imputado, e tampouco emitir veredictos morais sobre a sua pessoa, mas apenas individuar os seus comportamentos vedados pela lei. Um cidadão pode ser punido apenas por aquilo que fez, e não pelo que é124.

Com isso, FERRAJOLI ensina que "o Estado, além de não ter o direito de obrigar os cidadãos a não serem ruins, podendo somente impedir que se destruam entre si, não possui, igualmente, o direito de alterar – reeducar, redimir, recuperar, ressocializar etc. – a personalidade dos réus. O cidadão tem o dever de não cometer fatos delituosos e o direito de ser internamente ruim e de permanecer aquilo que é".

4.3.3. Dignidade da pessoa e a proibição de leis penais constitutivas

Sob a égide garantista, a regulatividade penal é um pressuposto indispensável da tutela da dignidade do homem, cuja permite que deste sejam exigidas somente ações e omissões, devendo ser respeitado, seja quem for, em razão da livre desenvolvimento de sua personalidade. Logo, igualdade e respeito à pessoa conectam-se, pois a primeira se define como idêntica valoração das diferenças pessoais e igual direito de cada um à sua tutela. Dizer que são exigíveis apenas as formas de atuar e não os modos de ser, significa não se imputar, penalmente, condições pessoais.

Precisamente no que se refere ao que cada um é, ou pode ser – e que compõe a identidade humana -, consiste o respeito à pessoa ou, melhor, à sua humanidade. Assim, a regulatividade das normas penais consiste na condição de sua generalidade e, desse modo, um pressuposto da igualdade penal, porquanto todos os homens são iguais penalmente enquanto punidos pelo que fazem e não pelo que são e enquanto somente suas ações, e não sua personalidade, podem ser tipificadas e culpabilizadas como igualmente desviadas.

No entanto, FERRAJOLI adverte que as normas penais constitutivas não proíbem atuar, senão ser. Ademais, o sobredito jurista comenta que esse esquema tem sido reproduzido infinitas vezes na nem sempre edificante história do direito penal. Vez ou outra, o lugar das bruxas tem sido ocupado pelos hereges, os judeus, os infiéis e, na época contemporânea, pelas classes e sujeitos perigosos, ociosos e vagabundos, pelos propensos a delinqüir e pelos reincidentes.

Se tomarmos a expressão "caráter constitutivo" em um sentido amplo, passam a fazer parte do sistema constitutivo todas as normas ou segmentos de normas que elevam o status racial, social, político, religioso ou jurídico de uma pessoa à categoria de elemento constitutivo do delito e/ou de uma eximente, agravante ou atenunante125.

Desse modo, um dos tipos mais importantes em que se explica esse moderno paradigma quase-constitutivo é o da reincidência, vez que essa consiste uma forma de ser mais do que de agir, que atua, indevidamente, como um substantivo da culpabilidade no qual se expressa a atual subjetivação do direito penal.

Trata-se, em razão disso, de uma técnica punitiva que criminaliza imediatamente a interioridade ou, pior ainda, a identidade subjetiva do acusado. Portanto, tem um caráter explicitamente discriminatório, além de antiliberal126.

Assim, SANTIAGO MIR PUIG refere-se à recidiva "como circunstância que expressa uma atitude mais acentuadamente contrária ao Direito". Logo, "nada impede que se possa reputar constitucionalmente inconveniente a agravação da pena por reincidir. É, com efeito, rechaçável que agrave a pena, em um Direito Penal respeitoso do foro interno e que queira legitimar a proteger bens jurídicos (social-externos), uma mera atitude interna do sujeito não afeta o grau nem a forma da lesão produzida"127

Integrando às críticas, ALBERTO SILVA FRANCO comenta que se mostra bastante duvidosa, em sua constitucionalidade, a agravação obrigatória da pena, em razão de o agente ser reincidente. Não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração. O fato criminoso que originou a primeira condenação não pode, depois, servir de fundamento a uma agravação obrigatória de pena, em relação a um outro fato delitivo, a não ser que se admita um direito penal atado ao tipo de autor (ser reincidente)128, atitude contrária à lógica democrática deste Estado, como adredemente referido neste capítulo.

No mesmo sentido, CÂNDIDO FURTADO MAIA NETO, ao confrontar a reincidência com o modelo garantista de direito, leciona que:

O instituto da reincidência é polêmico e incompatível com os princípios reitores do Direito Penal democrático e humanitário, uma vez que a reincidência na forma de agravante criminal configura um plus para a condenação anterior já transitada em julgado. Quando o Juiz agrava a pena na sentença posterior, está, em verdade, aumentando o quantum da pena do delito anterior, e não elevando a pena do segundo crime129.

Nada mais sendo do que uma nova reprovação ao delito anterior, a aplicação do plus de gravidade da pena (seja em sua quantidade, seja na forma de seu cumprimento), decorrente do reconhecimento da reincidência, constitui intolerável afastando de princípios e regras constitucionais, segundo expõe MARIA LUCIA KARAM, citando ZAFFARONI130.

Percebe, assim, ANDRÉ COPETTI que "ao aumentar-se a pena do delito posterior pela existência da circunstância agravante da reincidência, em realidade se está punindo novamente a situação anterior já sentenciada".131

Todavia, oportuno se torna dizer que na história do direito penal moderno, o instituto da reincidência já havia sido duramente criticado por inúmeros escritores iluministas que alijaram a hipótese de que o mesmo fosse considerado motivo de aumento da pena132. PAGANO, citado por FERRAJOLI, advoga que "a pena cancela e extingue integralmente o delito, restaurando, ao condenado que a sofreu, a condição de inocente (...) Portanto, não se pode importunar o cidadão por aquele delito cuja pena já tenha sido cumprida". Do mesmo modo, MORELLY chega, inclusive, a pedir que seja castigado quem ousar recordar publicamente as penas sofridas no passado por alguém em face de delitos precedentes.

Aliás, palmilhando pelos contornos da filosofia iluminista, o estatuto penal decorrente da Riforma della Legislazione Criminale Toscana, ocorrida em 30.11.1786, estabelecera, em seu §57, que, "após executada a sanção imposta pela prática de conduta descrita como crime, as pessoas não poderão ser consideradas como infames, para nenhum efeito, nem ninguém poderá jamais reprovar-lhes por seu delito passado, que deverá se considerar plenamente purgado e expiado com a pena sofrida"133.

Essas indicações foram, contudo, totalmente subvertidas na segunda metade do século XIX pela regressão positivista da cultura penal, que concentrou grande parte da nova política criminal na relevância e no tratamento dos tipos de autor, mais do que nos de delito. Tal ideologia permitiu o surgimento de uma articulada tipologia de delinqüentes reincidentes – simples, habituais, profissionais e por tendência – a qual foi estampada no Código Penal de 1940. Por isso, os mesmos foram tratados com penas progressivamente severas, submetidos à medida de segurança, excluídos dos benefícios previstos para outros condenados, "impelidos, de fato, à carreira criminal como incorrigíveis ou irrecuperáveis"134.

Atualmente, no entanto, em reação às teorias positivistas, anti-garantistas e autoritárias, o legislador colombiano fornece o exemplo de abolição da reincidência pelo disposto no artigo 8º de seu CP de 1980, in verbis:

Proibição de dupla incriminação. A ninguém se lhe poderá imputar mais de uma vez a mesma conduta punível, qualquer seja a denominação jurídica que se lhe der ou haja dado, salvo o estabelecido nos instrumentos internacionais.

De modo menos abrangente, o sistema penal germânico, por intermédio da 23ª Lei de reforma, de 13 de abril de 1986, revogou a agravante genérica da reincidência, considerada, na exposição de motivos, contrária ao princípio da culpabilidade. De forma similar, essa espécie de reincidência foi banida do Código Penal espanhol de 1995, por considerar-se desligada do novo crime praticado pelo agente135.

Por outro enlace, merece relevo que as sentenças constitutivas não são, somente, como as leis constititutivas, fonte de desigualdade e discriminação; são, também, um fator de antiliberdade, na medida em que expressam um poder de disposição tão ilimitado quanto ilegítimo, em razão de seu caráter extralegal. O poder de julgar, enquanto não se restringe à função cognitiva que, além de provas e contraprovas, inclui um poder direto e autônomo de qualificação e etiquetamento, dá origem a uma relação inevitavelmente desigual, de domínio, que anula a dignidade da pessoa processada136.

Em sendo assim, sob a orientação do princípio da culpabilidade, mormente por sua conseqüência material de que a responsabilidade penal dá-se pelo fato e não pelo autor, NILO BATISTA arremata: "Ai de vós, penalistas, que proclamais o direito penal do ato quando ensinais culpabilidade e exerceis implacavelmente o direito penal de autor quando aplicais a pena! Ai de vós que vos louvarem, porque assim procederam seus pais os falsos profetas"137.

De todo o exposto, a realidade é que "a reincidência decorre unicamente de um interesse estatal de classificar as pessoas em ‘disciplinadas’ e ‘indisciplinadas’, e, é óbvio, não ser esta função do direito penal garantidor"138.

De resto, as práticas legislativas e judiciais articuladas pelo agravamento do caráter punitivo ao condenado reincidente, ressumbram contrárias aos princípios liberais da secularização e da culpabilidade, em razão de edificarem-se, preponderantemente, com referência à subjetividade desviada do acusado; o que redunda, de modo reflexo, em franca agressão ao axioma da dignidade humana.


5.CONSIDERAÇÕES

Aos fins propostos por este trabalho, verifica-se que o questionamento inicial deve enveredar-se pela negativa, pois, de forma sintética, as informações carreadas à presente pesquisa implicam o reconhecimento de que:

1. A Constituição da República de 1988 representa o manancial principiológico do ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, todas e quaisquer práticas executivas, legislativas e judiciárias devem submeter-se à Norma Fundamental;

2. Além de fundamento de validade a ordem jurídica, a Carta Política apresenta uma direção vinculante à sociedade e ao Estado, denotável dos incisos de seu art. 3º;

3. Pela confluência dos princípios da supremacia da Constituição e o da continuidade da ordem jurídica exsurge o fenômeno da recepção, o qual, por sua vez, consiste em validar o sistema jurídico anterior desde que compatível com a nova carta superveniente;

4. Constata-se que a mantença da recidiva, circunstância agravante tida como obrigatória pelo disposto no art. 61, I, do CP de 1984, envolve uma tradição muito antiga e jamais interrompida pela legislação penal brasileira;

5. Em última análise, a justificativa desse instituto assenta-se em presunção de periculosidade, advinda com o art. 78, IV do Código Penal de 1940 e, de forma contemporânea, no ressentimento pela rebeldia do agente em ajustar-se à lei. A primeira tese respalda-se na doutrina difundida pela Escola Positiva italiana; a segunda, encontra amparo nas modernas teorias da prevenção especial, da defesa social em suas múltiplas variantes moralistas, antropológicas, de decisão e eficácia;

6. A natureza político-jurídica da reincidência semelha-se a um tipo normativo de agente, pois tal instituto descreve uma condição subjetiva (ser reincidente), em razão disso impõe tratamento mais rigoroso;

7. Os axiomas constitucionais representam os alicerces do ordenamento jurídico brasileiro, cujos se irradiam por todo o sistema normativo, em virtude de sintetizarem os valores mais relevantes dessa estrutura, com destaque ao princípio da dignidade humana;

8. Pela análise dos princípios da secularização, da dignidade da "pessoa humana", da culpabilidade, infere-se que a responsabilidade penal dá-se pelo fato e não pelo autor. Logo, deve-se rechaçar o caráter constitutivo (subjetivista) das normas penais.

9. Em sentido amplo, a expressão "caráter constitutivo" congrega todas as normas ou segmentos de normas que elevam o status racial, social, político, religioso ou jurídico de uma pessoa à categoria de elemento constitutivo do delito e/ou de uma eximente, agravante ou atenuante;

10. Em virtude de a recidiva configurar uma forma de ser, mais do que de agir, essa agravante atua, indevidamente, como um substantivo da culpabilidade do agente. Por conta disso, as práticas legislativas e judiciais que se articulam pelo agravamento punitivo ao condenado reincidente demonstram-se infensas aos princípios liberais da secularização e da culpabilidade, os quais, em análise última, defluem do axioma da dignidade humana.

Pelo que acima ficou consignado, demonstrada a incúria por parte da doutrina e da jurisprudência dominantes (quiçá dormitantes!) deste país em razão de guarnecerem um instituto anti-liberal, discriminatório e arbitrário em vista da notória afronta ao Texto Supremo, nada mais resta - pois quem de direito (dever) não o faz139 - do que reiterar a súplica feita por ULYSSES GUIMARÃES, no ato de promulgação da Carta da República de 1988:

- "DEUS AJUDE QUE ISTO (A CONSTITUIÇÃO) SE CUMPRA..."

Em derradeiro, oportunas e irretocáveis são as palavras de OSWALDO BARDOT140, juiz em Paris, saudando aos novos em discurso de posse, as quais sintetizam e servem ao desfecho desta pesquisa:

Estais empossados e advertidos [...]. Ao entrar na magistratura, vós vos tornastes funcionários de um escalão modesto. Não vos embriagueis com a honra, fingida ou real que vos atribuam. Não levanteis muito a cabeça. Não vos deixeis enlevar por palavras como ´terceiro poder´, ´poder do povo´, ´guardiãs das liberdades públicas´. Não tendes senão um poder medíocre, o de meter as pessoas na cadeia. E só vos dão este poder, porque ele é geralmente inofensivo. Quando condenardes a cinco anos de prisão um ladrão de bicicleta, não estareis molestando a ninguém. Evitai abusar desse poder. Não penseis ser mais considerado por ser mais terrível. Não julgais que ides, como novos São Jorge, vencer o dragão da delinqüência por uma repressão impiedosa. Se a repressão fosse uma coisa eficaz, há muito tempo teria alcançado seus objetivos. Se ela é inútil, como creio, não penseis em fazer carreira a custa da cabeça dos outros. Não conteis a prisão por anos ou meses, mas por minutos e segundos, exatamente como se tivéssemos nós mesmos de sofrê-la.

É verdade que entrais numa profissão em que vos exigem sempre que tenhais caráter, mas entendem por isto apenas que sejais inclemente com os miseráveis. Covardes diante dos superiores, intransigentes com os subalternos - este é, em geral, o comportamento dos homens. Tratai de evitar isto. A justiça é aplicada impunemente. Não abuseis da impunidade. Em vossas funções, não deveis dar exagerada importância à lei, e de um modo geral, desprezai os costumes, as circulares, os decretos e a jurisprudência. Deveis ser mais sábios do que o Tribunal de Justiça, sempre que se apresentar uma ocasião. A justiça não é uma verdade estagnada em 1810. É uma criação perpétua. Ela deve ser feita por vós. Não espereis o sinal verde de um ministro, ou do legislador, ou das reformas sempre em expectativa. Fazei vós mesmos a reforma. Consultai o bom senso, a eqüidade, o amor do próximo antes da autoridade e da tradição. A lei se interpreta. Ela dirá o que quiserdes que ela diga. Sem mudar um til, pode-se, com os mais sólidos considerandos do mundo, dar razão a uma parte ou a outra, absolver ou condenar à pena máxima. Desse modo, que a lei não vos sirva de álibi.

Verificareis, aliás, que, à revelia dos princípios estabelecidos, a justiça aplica extensivamente às leis repressivas e restritivamente às leis liberais. Procedei de modo contrário. Respeitai a regra do jogo quando ela vos freia. Sede bons julgadores, sede generosos. Será uma novidade! Não vos contenteis em cumprir os deveres de ofício. Vereis desde logo que, para ser um pouco úteis, devereis abandonar os caminhos batidos. Tudo o que fizerdes de bom será um acréscimo. Gosteis ou não, tendes um papel social a desempenhar. Sois assistentes sociais. Vossa decisão não termina numa folha de papel. Corta a carne viva. Não fecheis vossos corações ou sofrimentos nem vossos ouvidos ao clamor. Não sejais desses juízes menores que só querem tratar de processo pequenos. Não sejais árbitros indiferentes, acima de tudo e de todos. Tende sempre a porta aberta a todos. Há trabalhos mais úteis que o de caçar essa borboleta - a verdade - ou de cultivar essa orquídea - a ciência jurídica.

Não sejais vítimas de vossos preconceitos de classe, religiosos, políticos e morais. Não penseis que a sociedade seja intangível, a desigualdade e a injustiça inevitáveis e a razão e a vontade humanas incapazes de qualquer mudança. Não acrediteis que um homem seja culpado de ser o que é nem que ele dependa apenas de si mesmo para ser de outra forma. Em outras palavras: não o julgueis [...]. Sede indulgentes para com os demais seres humanos. Não aumenteis suas aflições. Não sejais dos que aumentam a aflição do aflito [...].


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NOTAS

1Luigi Ferrajoli, Direito e Razão, 2002, p. 405.

2Cândido Furtado Maia Neto, Direitos humanos do preso, 1998, p. 147.

3"Para uns, a reincidência depende mais de condições sociais, não imputáveis ao delinqüente, pelo que justo não era, após um delito já punido, agravar com isto um outro (CARNOT, ALAUZET, GESTERLIN, PAGANO, CARMIHNANI, GIULIANI, PESSINA, BUCCELLATI), chegando TISSOT a sustentar que a recaída no crime devia atenuar a pena, por isso que o delinqüente era impelido fatalmente ao crime pelo hábito, e assim agindo menos conscientemente e com menor liberdade". (Galdino Siqueira, Tratado de direito penal, parte geral. T. 2. 2.ed, 1956, p. 636). Da mesma forma, entende JUAREZ CIRINO DOS SANTOS que "se os efeitos criminógenos da prisão são reconhecidos, então a ineficácia da prevenção especial reduz a execução penal ao terror retributivo. E a questão é esta: se a pena criminal não tem eficácia preventiva – mas, ao contrário, possui eficácia invertida pela ação criminógena exercida -, então a reincidência criminal não pode constituir circunstância agravante". Com efeito, o referido autor conclui que seria necessário reconhecer, pela ocorrência de uma nova infração após efetivo cumprimento de pena, o processo de deformação e embrutecimento pessoal ofertado pelo sistema penitenciário, devendo-se "incluir a reincidência entre as circunstâncias atenuantes"(Direito Penal: a nova parte geral, 2000, p. 245). Demais disso, ROBERTO LYRA cita que "a doutrina não conseguiu unanimidade, sequer, para a inclusão da reincidência entre as agravantes". (Comentários ao código Penal, V. 2, 1942, p. 283).

4Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 328.

5Antônio José da Costa e Silva, Comentários ao código penal brasileiro, v.1, 1967, p. 204.

6Edgard Magalhães Noronha, Direito penal, v.1, 1965, p. 302.

7Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 405.

8Em diversos momentos dessas passagens, constata-se a graduação progressiva e sancionatória à rebeldia manifesta. Isso se verifica, em específico, nos versículos: 26:18 - "Apesar de tudo isso, se vocês ainda não me obedecerem, eu lhes darei uma lição sete vezes maior, por causa de seus pecados."; 26:21 - "Se vocês ainda se opuserem a mim e não me obedecerem, eu os castigarei sete vezes mais, por causa de seus pecados."; 26:23-24 - "E, apesar desses castigos, se vocês ainda não se corrigirem e continuarem a se opor a mim, eu também continuarei a ficar contra vocês, e os castigarei sete vezes mais, por causa de seus pecados."; 26:27-28 - "E, apesar disso tudo, se vocês ainda não me derem ouvidos e continuarem a se opor a mim, eu ficarei furioso contra vocês, e os castigarei sete vezes mais, por causa de seus pecados." (Bíblia..., 1990).

9Aníbal Bruno, Direito penal parte geral, t.3, 1967, p. 112-3.

10Roberto Lyra, Comentários ao código penal, 1942, p. 281.

11O Código de Direito Canônico de regência, publicado em Roma, em 25 de janeiro de 1983, trata do instituto da reincidência no parágrafo 1º de seu cânone 1.326, autorizando o Juiz punir "mais gravemente do que estabelece a lei ou o preceito: (...) quem, após a condenação ou a declaração da pena, persistir em delinqüir, de tal modo que, pelas circunstâncias, se possa prudentemente deduzir sua pertinácia na má vontade".

12"Trata-se de um relapso aquele que abjurou, judicialmente, arrependeu-se, voltando, depois, para a heresia (...). Os culpados desse tipo de delito não terão negados os sacramentos da penitência e da eucaristia, se os solicitarem com humildade. Mas, independentemente do arrependimento, serão entregues ao braço secular para passar pelo último castigo (...) O escrivão inquisitorial lerá, a seguir (já no cadafalso), a sentença na qual o réu será lembrado de que obteve o consolo dos sacramentos. E a seguir: ‘Porém, a Igreja de Deus não pode fazer mais nada por ti; já se mostrou misericordiosa, e tu a abusaste. Por isso, nós, bispo e inquisidor de (...) declaramos que realmente reincidiste na heresia e, ainda que tenhas confessado, é na qualidade de relapso que te afastamos da esfera eclesiástica e te entregamos ao braço secular’. Os autores se perguntam sobre que tipo de execução que se deve aplicar aos relapsos. Devem morrer pela espada ou pela fogueira? A opinião geral, confirmada pela prática generalizada em todo mundo católico, é que devem morrer na fogueira, de acordo com a lei: ´Que os patarinos e todos hereges, quaisquer que sejam os seus nomes, sejam condenados à morte. Serão queimados vivos em praça pública, entregues em praça pública ao julgamento das chamas´ Determinação do imperador Frederico e dos Papas Inocêncio IV, Alexandre IV e Clemente IV". (Manual dos Inquisidores ‘Directorium Inquisitorum’, Nicolau Eymerich, 1376, revisto por Francisco de la Peña, 1578. Traduzido para o francês em 1973 por Louis Sala-Moulins).

13Karl Marx, O capital: crítica da economia política, 1982, p. 851.

14A crítica que Marx desfere ao novo paradigma burguês, materializado no Código napoleônico, respalda-se no Manifesto Comunista de 1848, nas seguintes letras: "A burguesia, onde ascendeu ao poder, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem compunção todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus ´superiores naturais´ e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o de insensível "pagamento em dinheiro" (...) Em uma palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, colocou a exploração seca, cínica, direta e brutal. A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados. A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias".

15Em apologia dessa postura, averbou-se que os juízes não seriam, pelas palavras de MONTESQUIEU, "...mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar nem a força nem o rigor das leis". (O espírito das leis, livro XI, cap. 6, 1993, p. 179).

16VALDIR SZNICK cita que, antes do Código de 1810, uma ordenança francesa de 1680 mandava deter por toda a vida, com imposição de trabalhos forçados, os vagabundos quando da quarta condenação.(Delito habitual, 1980, p. 40.).

17apud Roberto Lyra, op. cit., p. 283.

18Antônio Luiz Ferreira Tinôco, Código criminal do império do Brazil annotado, 2003, prefácio.

19Art. 179 – "... 18) Organizar-se-á, quanto antes, um código civil e criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e eqüidade".

20"A respeito do Código de Penal de 1830, anotou ROBERTO LYRA que "foi o primeiro Código autônomo e característico da América Latina, servindo de base ao Código Espanhol de 1848, ao Russo, e à legislação latino-americana em geral. O recém falecido professor LADISLAU THOT DE LA PLATA, assim caracterizou o Código de 1830: 1º) sua importância se exerceu, antes de tudo, no direito comparado, dada a sua forte influência nas legislações espanhola e latino-americana até nossos dias; 2º) no ponto de vista político-criminal, o Código de 1830 era, em todo o mundo, um dos poucos Códigos do século XIX com acentuada orientação político-criminal; 3º) no ponto de vista dogmático histórico, o Código do Império foi, na América Latina, o primeiro Código efetivamente nacional e próprio. VICTOR FOUCHER verteu o Código de 1830, considerando-o obra completa e de forma impecável. Diz-se que HANS e MITERMEYER aprenderam a língua portuguesa para o seu estudo, tão generalizadas se tornaram a sua projeção e a sua nomeada." (Nelson Hungria, Direito penal parte geral, 1936, p. 399 e 400).

21Art. 16. "São circumstancias aggravantes:... § 3º. Ter o delinquente reincidido em delicto da mesma natureza (sic)".

22Antônio Luiz Ferreira Tinôco, op. cit., p. 42-3.

23Art. 39. "São circumstancias aggravantes:... §19. Ter o delinquente reincidido (sic)."

24CP de 1890, art. 40. - "A reincidência verifica-se quando o criminoso, depois de passada em julgado a sentença condemnatoria, commette outro crime da mesma natureza e como tal entende-se, para os efeitos da lei penal, o que consiste na violação do mesmo artigo (sic)".

25Galdino Siqueira, Direito penal brazileiro, parte geral. 1932, p. 557.

26apud Galdino Siqueira, op. cit., p. 557.

27Antônio Luiz Ferreira Tinôco, op. cit., p. 42-3.

28CP de 1940, art. 78. "Presumem-se perigosos:... IV – os reincidentes em crime doloso."

29Art. 46. "Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.

§1º. Diz-se a reincidência:

I – genérica, quando os crimes são de natureza diversa;

II – específica, quando os crimes são da mesma natureza".

30"§2º - Consideram-se crimes da mesma natureza os previstos no mesmo dispositivo legal, bem como os que, embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos fatos que os constituem ou por seus motivos determinantes, características fundamentais comuns."

31CP italiano, art. 101: "Para os efeitos da lei penal, são considerados crimes da mesma índole, não sòmente aquêles que violam a mesma disposição de lei, mas também aquêles que, embora estando previstos por dispositivos diversos dêste Código, ou ainda por leis diferentes, não obstante, pela espécie dos atos que os constituem ou dos motivos que os determinaram, apresentam, nos casos concretos, caracteres fundamentais comuns (sic)". (Antônio José da Costa e Silva, Comentários ao código penal brasileiro. Vol. I: parte geral, 1967, p. 207.

32"Nosso CP de 1940 havia previsto o sistema da perpetuidade da reincidência. Adotando o exemplo de códigos estrangeiros, a Lei n.º 6.416, em 1977, introduziu a bem inspirada regra segundo a qual desaparecem os efeitos da reincidência após cinco anos. Não se deu, porém, o passo mais largo, que seria o de considerar facultativo o aumento de pena pela reincidência, à semelhança do que fez o CP Tipo para a América Latina. A reincidência pode não significar coisa alguma. Imagine-se o crime de sedução praticado por quem tenha sido condenado por homicídio culposo." (Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal: parte geral, 1985, p. 348).

33Luis Regis Prado, Comentários ao código penal, 2003, p. 308.

34CPP, art. 323 – "Não será concedida a fiança:... III – nos crimes dolosos punidos com pena privativa da liberdade, se o réu já tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado".

35CP, art. 61. "São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: I – a reincidência;"

36CP, art. 63. "Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no exterior, o tenha condenado por crime anterior."

37CP, art. 64. "Para efeito de reincidência: I – não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação; II – não se consideram os crimes militares próprios e políticos."

38CP, art. 10 - "O dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum."

39CP, art. 83... V – "cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza;"

40CP, art. 44... §3º "Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da pratica do mesmo crime."

41Celso Delmato [et at], Código Penal Comentado, 2002, p. 126.

42Crimes políticos consistem em lesar ou por em risco a organização política Estatal.

43Entende-se por crimes militares próprios aqueles definidos apenas no CP militar.

44CP, art. 120 - "A sentença que conceder perdão judicial não será considerada para efeitos de reincidência."

45Súmula 18 do STJ - "A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório."

46Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito penal: Parte Geral, 1985, p. 347.

47LCP, art. 7.º "Verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção;"

48Rui Stocco, Código penal e sua interpretação jurisprudencial, v.1, 2001, p. 1181.

49Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal. Ed. rev. por Fernando Fragoso, 2003, p. 417.

50Celso Delmanto, op. cit., p. 125-6.

51CP, art. 67. "No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência"

52CP, art. 44. "As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:... II – o réu não for reincidente em crime doloso;"

53CP, art. 60. "Na fixação da pena de multa o juiz deve atender, principalmente, a situação econômica do réu.... §2º A pena de multa privativa de liberdade aplicada, não superior a seis meses, pode ser substituída pela de multa, observados os critérios dos incisos II e III do artigo 44 deste código."

54CP, art. 77. "A execução da pena privativa de liberdade, não superior a dois anos, poderá ser suspensa, por dois a quatro anos, desde que: I – o condenado não seja reincidente em crime doloso;"

55CP, art. 83. "O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a dois anos, desde que:... II – cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso;"

56CP, art. "110. A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente."

57CP, art. 117. "O curso da prescrição interrompe-se:... VI – pela reincidência."

58CP, art. 155. "Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:... §2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um terço a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa."

59CP, art. 170. "Nos crimes previstos neste Capítulo, aplica-se o disposto no artigo 155, §2º"

60CP, art. 171. "Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:... §1º Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no artigo 155,§2º."

61LCP, art. 25. "Ter alguém em seu poder, depois de condenado por crime de furto ou roubo, ou enquanto sujeito à liberdade vigiada ou quando conhecido como vadio ou mendigo, gazuas, chaves falsas ou alteradas ou instrumentos empregados usualmente na prática de crime de furto, desde que não prove destinação legítima:"

62CP, art. 81. "A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário: I – é condenado, em sentença irrecorrível, por crime doloso;"

63CP, art. 81. "... §1º A suspensão poderá ser revogada se o condenado descumpre qualquer outra condição imposta ou e irrecorrivelmente condenado, por crime culposo ou por contravenção, a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos."

64CP, art. 86. "Revoga-se o livramento, se o liberado vem a ser condenado a pena privativa de liberdade, em sentença irrecorrível:"

65CP, art. 87. "O juiz poderá, também, revogar o livramento, se o liberado deixar de cumprir qualquer das obrigações constantes da sentença, ou for irrecorrivelmente condenado, por crime ou contravenção, a pena que não seja privativa de liberdade".

66 CP, art. 95. "A reabilitação será revogada, de ofício ou a requerimento do Ministério Publico, se o reabilitado for condenado, como reincidente, por decisão definitiva, a pena que não seja de multa."

67 CPP, art. 594. "O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto". Restrição inaplicável em face da garantia constitucional da presunção de inocência (CR/88, art. 5º, LVII; PIDCP, art. 14, 2; CADH, art. 8º, 2, 1ª parte), uma vez que despojada de cautelaridade, segundo Celso Delmanto, cit., p. 126.

68 CP, art. 76 "... §2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado: I – ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;"

69 CP, art. 89. "Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)."

70 Art. 10 "... §2º A pena é de reclusão de 2 (dois) anos a 4(quatro) anos e multa, na hipótese deste artigo. §3º nas mesmas penas do parágrafo anterior incorre quem:... IV – possuir condenação anterior por crime contra a pessoa, contra o patrimônio e por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins".

71Roberto Lyra, op. cit., p. 283.

72A reforma de 1984 (Lei n.º 7.209/84) extinguiu a medida de segurança voltada aos imputáveis, afastando o sistema do "duplo binário" (pena + medida de segurança). De conseguinte, o CP passou a consagrar o critério vicariante. Estabeleceu-se, com efeito, que as medidas de segurança seriam voltadas apenas aos inimputáveis e as penas aos imputáveis. No caso dos semi-imputáveis, restou ao juiz escolher entre a pena privativa de liberdade ou, na hipótese de inexorável necessidade de tratamento curativo, optar pela substituição da medida de segurança, consistente na internação do imputado, como preceitua o art. 98 do CP, em vigência.

73EI n.º 70001358605 julgado pelo 3º Grupo de Câmaras Criminais do TJRS em 17.11.00. Rel. Ivan Leonor Bruxel.

74EI n.º 70001088749 julgado pelo 3º Grupo de Câmaras Criminais do TJRS em 18.8.00. Rel. Aramis Nassif.

75 Roberto Lyra, op. cit., p. 287-8.

76 apud Antônio José da Costa e Silva, op. cit., p. 211.

77"Nos Estados Unidos, [...], tem-se preconizado um método estatístico para a previsão da cessação de periculosidade e consequente concessão do livramento condicional. Pretende-se que é possível, mediante análise estatística e comparativa, aproveitar a experiência sôbre a conduta dos liberados condicionais, para organizar-se um esquema de previsão do êxito ou fracasso da liberação antecipada. Em tal sentido são os estudos e conclusões de BURGESS (‘Factores Determining Sucecess or Failure on Parole’, 1928), dos irmãos SHELDON e ELEANOR GLUCK (‘Criminal Careers’, 1930) e GEORGE VOLD (‘Prediction Methods and Parole’, 1931). Segundo os dados coligidos, determinados fatores seriam favoráveis e outros desfavoráveis: Entre os últimos (de cuja ausência se induziriam os primeiros), são acentuados os seguintes: reincidência genérica ou específica, habitualidade ou profissionalidade criminal, delinquência associada (embora, excepcionalmente, o ‘lobo solitário’ possa ser mais perigoso que o bandoleiro), ausência de relações familiares ou de casamento, ou más condições domésticas, anteriores hábitos de ociosidade, delinquência precoce, retardamento escolar, certa condição racial (os negros são mais inclinados à reincidência que os brancos), presença de anomalia psíquicas, idade (os velhos são mais redutíveis que os moços) mau comportamento na prisão, procedência dos centros urbanos (os criminosos rurais são menos obstinados), etc., etc. (sic)" (Nelson Hungria, Métodos e critérios para a avaliação da cessação de periculosidade. Revista Jurídica, ano 4, v. 22, jul./ago. 1956, p. 5.).

78 Nelson Hungria, op. cit, p. 5.

79Francisco Assis Toledo, Princípios básicos de direito penal, 1994, p. 236.

80Heleno Cláudio Fragoso, op. cit., p. 345.

81apud Paulo José da Costa Júnior, Comentários ao Código Penal. Parte Geral, v. 1, 1989, p. 334.

82Paulo José da Costa Júnior, op. cit., p. 335.

83CP, art. 68 "A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do artigo 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento".

84Heleno Cláudio Fragoso, op. cit., p. 345.

85apud Galdino Siqueira, op. cit., p. 554.

86Para melhor compreensão desse conceito, convém distinguir o direito penal do fato do direito penal do autor. "Por direito penal do fato" – ensina CLAUS ROXIN – "se entende uma regulamentação legal, em virtude da qual a punibilidade se vincula a uma ação concreta descrita tipicamente (ou a várias ações desse tipo) e a sanção representa só a resposta ao fato individual, e não a toda a condução da vida do autor ou aos perigos que no futuro se esperam do mesmo". Por sua vez, o direito penal de autor exige que "a pena se vincule à personalidade do autor e seja sua anti-sociabilidade e o grau da mesma o que decida sobre a sanção" (Claus Roxin, Derecho penal, p. general, 1997, p. 176.). BAUMANN, citado em nota de rodapé por FRANCISCO ASSIS TOLEDO, acentua que, embora o direito vigente seja essencialmente um direito penal do fato, há várias disposições legisladas que se ajustam a uma concepção ligada ao direito penal de autor, exemplo: a reincidência etc. (op. cit., p. 237).

87Projeto de Lei que altera a Parte Geral do Código Penal, submetido à consideração do Chefe do Executivo Federal em 11 de agosto de 2000 pelo Ministro de Estado da Justiça, à época, JOSÉ GREGORI.

88Lênio Luiz Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica – uma nova crítica do direito, 2002, p. 712.

89Lênio Luiz Streck, Os juizados criminais à luz da jurisdição constitucional: a filtragem hermenêutica a partir da aplicação da técnica da nulidade parcial sem redução de texto, disponível na Internet: http://www.ihj.org.br., acesso em 06 de dezembro de 2003.

90Lênio Luiz Streck, Constituição ou barbárie? – A lei como possibilidade emancipatória a partir do Estado Democrático de Direito, disponível na Internet: http://www.ihj.org.br., acesso em 06 de dezembro de 2003.

91Karl Marx e Friedrich Engels, disponível na Internet: http://www.comunismo.com.br/textmarx3.html, acesso em 09 de junho de 2003.

92"Todo instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se destina" (Cândido Rangel Dinamarco, in A instrumentalidade do Processo, 1990, p. 206).

93Hans Kelsen, op. cit., p. 310: "A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do facto de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante. Até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. Se começarmos por tomar em conta apenas a ordem jurídica estadual (Estatal), a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado (sic)".

94Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2002, p. 58.

95Lênio Luiz Streck, ibdiem.

96Lênio Luiz Streck, Da utilidade de uma análise garantista para o direito brasileiro, disponível na Internet: http://www. femargs.com.br/revista02_streck.html, acesso em 06 de dezembro de 2003.

97Paulo Ricardo Schier, Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica, 1999, p. 104.

98apud Vladimir Aras, Princípios do processo penal, disponível na Internet: http://www.jus.com.br, acesso em 12 de junho de 2003.

99Garantias Constitucionais na investigação criminal, 2001.

100Lênio Luiz Streck, Constituição ou barbárie? – A lei como possibilidade emancipatória a partir do Estado Democrático de Direito, disponível na Internet: http://www.ihj.org.br, acesso em 06 de dezembro de 2003.

101Luís Roberto Barroso, op. cit., p. 149.

102Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na Constituição Federal, 2000, p. 73.

103Daniel Sarmento, op. cit., p. 74.

104Luís Roberto Barroso, op. cit., p. 150.

105FÁBIO KONDER COMPARATO comenta que no primeiro concílio ecumênico, reunido em Nicéia em 325, cuidou-se de decidir sobre a ortodoxia ou heterodoxia de suas interpretações antagônicas da identidade de JESUS: a que o apresentava como possuidor de uma natureza exclusivamente divina (daí o nome de monofisistas atribuído aos partidários dessa crença), e a doutrina ariana, segundo a qual JESUS fora efetivamente gerado pelo Pai, não tendo portanto natureza consubstancial a este. Os padres conciliares recorreram, para a solução da controvérsia, aos conceitos estóicos de hypóstasis – que na língua latina traduziu-se por substantia – e prósopon – termo que os romanos traduziram por persona, com o sentido próprio de rosto, ou também, de máscara de teatro, individualizadora de cada personagem -, decidindo, como dogma de fé, que a hipóstasis, de JESUS CRISTO apresentava uma dupla natureza, humana e divina, numa única pessoa, vale dizer, numa só aparência. Daí por que a expressão pessoa humana, nessa concepção religiosa do mundo, não é um pleonasmo. (A afirmação histórica dos direitos humanos, 2001, p. 18).

106Daniel Sarmento, op. cit., p. 60.

107Gênesis 1:26-27. – "Então Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra. E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher." (Bíblia..., 1990). V., também, Decálogo do promotor de justiça, por J. César Salgado, "I – Ama a Deus acima de tudo, e vê no homem, mesmo desfigurado pelo crime, uma criatura à imagem e semelhança do Criador".

108 Daniel Sarmento, op. cit., p. 68.

109 Daniel Sarmento, op. cit., p. 69.

110apud Fernando Ferreira dos Santos, Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, disponível na Internet: http://www.jus.com.br., acesso em 19 de setembro de 2003.

111"Todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma" (apud Fábio Konder Comparato, op. cit., 21).

112Daniel Sarmento, op. cit., p. 59.

113 "Um dos mais severos analistas e críticos das conseqüências negativas da técnica sobre o homem foi sem dúvida o existencialista cristão G. Marcel. (...). Sobretudo sua famosa distinção entre "ter" e "ser" e a severa condenação da técnica como responsável pela desumanização do homem contemporâneo, justamente por arrancá-lo do mundo do "ser" e instalá-lo no mundo do "ter". A tal ponto que para muitos dos nossos contemporâneos – a grande maioria – a fórmula que norteia a filosofia de vida deles é a seguinte: H (homem) = p (produção) = $ (dinheiro). O homem vale não por aquilo que é, mas por aquilo que produz e, conseqüentemente, pelo que possui, cuja medida mágica é o dinheiro. Esta é uma fórmula que, além de ser um absurdo filosófico, constitui a mais degradante violação da dignidade humana, a encarnação do anti-humanismo e a maior ameaça do homem. Ninguém pode contar os crimes contra a humanidade que a mentalidade, expressa por esta fórmula, perpetrou e continua perpetrando... " (Pedro Dalle Nogare, Humanismos e anti-humanismos, introdução à antropologia filosófica, 1990, p. 221).

114Daniel Sarmento, op. cit., p. 59 e 60.

115Salo de Carvalho, Reincidência e antecedentes criminais: abordagem crítica desde o marco garantista, in revista de estudos criminais n.º 1, 2001, p.110.

116"No campo jurídico penal, foi Von Liszt quem pela primeira vez fez um esboço da teoria do autor, no sentido de que não se apenava o ato, mas sim o seu autor, mas como bem esclarece Jescheck, esse jurista jamais previu que anos mais tarde, construir-se-ia baseada parcialmente em suas idéias, uma dogmática tão atroz como a que se desenvolveu na Alemanha durante o Terceiro Reich. Certamente, deve-se a Mezger a exposição mais detalhada do tipo normativo do autor, na qual baseou-se a legislação do regime totalitário nazista" (Raúl Cervini, Os processos de descriminalização, 1995, p. 137). Outrossim, CAIROLI, citado por CERVINI em nota de rodapé, comenta que "... a legislação nazista acolheu essa doutrina de tipo de autor na punição contra os delinqüentes jovens de maior gravidade ditada a 4 de outubro de 1939, na de criminosos violentos de 5 de dezembro desse mesmo ano e nas modificações do Código alemão de 1941, onde se fala de ‘assassino’, ‘homicida’, em lugar de assassinato, homicídio e usura". (Raúl Cervini, op. cit., p. 137).

117Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 185.

118apud Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 386.

119Em síntese, o garantismo constitui-se em um movimento de bases filosóficas em que se pretende resgatar o ideário iluminista de universalidade dos direitos e garantias fundamentais. Longe de perder-se em delongas teoréticas, esse movimento endereça-se à práxis, no desiderato de transformar a realidade social, assegurando através de seus preceitos a mais abrangente e efetiva implementação dos direitos humanos e da libertação do Homem. Postula pela aceitação das diferenças sociais, à constituição da autonomia das pessoas e grupo de pessoas, sendo que a teoria do garantismo penal propõe-se a instituir critérios de racionalidade e civilidade ao ius puniendi, deslegitimando qualquer modelo de controle social que vulnera ou ameace os direitos e garantias individuais.

120"O respeito ao princípio da intervenção exige que do Estado que intervenha através do Direito Penal, como mecanismo regulador da vida em sociedade, somente em última instância. Ou seja, trata-se da última e mais enérgica manifestação do poder estatal, aplicável só e exclusivamente ante a ataques de real gravidade ao conglomerado social, em assuntos que vulnerem princípios básicos do sistema jurídico. Além disso, deve ser usado somente tanto quanto for estritamente necessário, e nos casos em que já não é possível lançar mão a outro meio menos drástico, ou seja, quando não cabe mais nenhum outro provimento de índole civil ou administrativa" (Dario José Kist, Fundamentos do direito penal democrático, in revista de estudos criminais n.º 2, 2001, p. 125)

121O princípio da determinação taxativa, segundo LUIS LUISI, "preside a formulação da lei penal, a exigir qualificação e competência do legislador, e o uso por este de técnica correta e de uma linguagem rigorosa e uniforme." (Princípios constitucionais penais, 1991, p. 18).

122"CLAUS ROXIN entende que os bens jurídicos são pressupostos imprescindíveis para a existência em comum, caracterizadas por situações valiosas, como a vida, a integridade física, a liberdade de atuação, a propriedade, etc. mas, além disso, deve o Estado social proteger, através do Direito Penal se necessário, o cumprimento das prestações públicas de que depende o indivíduo no âmbito da assistência social por parte do Estado". (Dario José Kist, op. cit., p. 127).

123 Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 178.

124Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 179.

125 Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 404-5.

126Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 81.

127Direito Penal, parte general, 1998, p. 653.

128Código penal e sua Interpretação jurisprudencial, v.1, 2001, p. 781.

129 Direitos humanos do preso, 1998, p. 147.

130Aplicação da pena: por uma nova atuação da justiça criminal, in revista brasileira de ciências criminais, vol. VI, p. 127.

131 Direito penal e Estado democrático de direito, 2000, p. 194.

132 Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 405.

133 Eugênio Raul Zaffaroni, Reincidência: um conceito do direito penal autoritário, 1990, p. 56.

134 Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 406

135 Santiago Mir Puig, op. cit., p. 653-4.

136 Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 407.

137 Salo de Carvalho, Aplicação da pena e garantismo, 2001, prefácio, p. xii.

138Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de direito penal brasileiro, parte geral, 2001, p. 841.

139CF, art. 102 - "Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (...)"; LICC, art. 3º - "ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece" e art. 5º - "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum"; art. 6º da Lei n.º 9.099/95 - "O juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum".

140Disponível na Internet: http:www.juiz.berlange.com.br/decisoes/4455.html, acesso em 15 de junho de 2003.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PESCUMA, Leandro Recchiutti Gonsalves. Reincidência: um instituto não recepcionado pela norma fundamental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 592, 20 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6306. Acesso em: 10 maio 2024.