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Lei nº 11.051/2004. Novo furor tributário.

Débitos fiscais e distribuição de lucros

Lei nº 11.051/2004. Novo furor tributário. Débitos fiscais e distribuição de lucros

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No apagar das luzes de 2004, o legislador natural e o legislador palaciano revezaram-se na tarefa de baixar o tradicional ‘pacote tributário’ com que a sociedade vem sendo presenteado nos últimos anos.

A MP nº 232/04, que instituiu o ‘tsunami tributário’ já foi objeto de nossos comentários.

Neste artigo, comentaremos a nova redação conferida ao art. 32 da Lei nº 4.357/64 pelo art. 17 da Lei nº 11.051, de 29 de dezembro de 2004, que dispõe sobre o desconto de crédito na apuração da CSLL e da contribuição para o Pis/Pasep e Cofins não cumulativas, conforme se depreende de sua ementa.

O referido art. 32 da Lei nº 4.357/64 passou a ter a seguinte redação:

‘Art. 32....................................... (1)

§ 1º A inobservância do disposto neste artigo importa em multa que será imposta:

I – às pessoas jurídicas que distribuírem ou pagarem bonificações ou remunerações, em montante igual a 50% (cinqüenta por cento) das quantias distribuídas ou pagas indevidamente; e

II – aos diretores e demais membros da administração superior que receberem as importâncias indevidas, em montante igual a 50% (cinqüenta por cento) dessas importâncias.

§ 2º A multa referida nos incisos I e II do § 1º deste artigo fica limitada, respectivamente, a 50% (cinqüenta por cento) do valor total do débito não garantido da pessoa jurídica’.

Na verdade, sob a camuflagem de ‘nova redação’ o esperto legislador ressuscitou disposição anterior, não recepcionada pela ordem constitucional vigente.

A nova redação conferida pela indigitada Lei (§ § 1º e 2º do art. 32) impõe, a exemplo do texto primitivo, multa pecuniária às pessoas jurídicas, seus diretores e demais administradores na hipótese de distribuição de bonificações, dividendos ou lucros, na pendência de débitos não garantidos para com a União e suas autarquias previdenciárias (hoje, unificadas em torno do INSS).

Essas multas são equivalentes a 50% das importâncias distribuídas e recebidas, limitadas ao valor total do débito não garantido da pessoa jurídica.

Ora, limitar distribuição de lucros das sociedades empresárias é afrontar os princípios constitucionais concernentes à livre iniciativa, como veremos.

Como se verifica do inciso IV (2) do art. 1º da CF, o regime econômico adotado é o da livre iniciativa. Esse princípio é reafirmado no Capítulo I do Título VII, que cuida dos princípios gerais da atividade econômica, enumerados nos incisos I a IX do art. 170, nos seguintes termos:

‘Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função da propriedade;

IV – livre concorrência;

............................................................

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.’

A livre concorrência aparece no inciso IV, constituindo-se na espinha dorsal do regime econômico adotado. O parágrafo único, do art. 170 assegura o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de prévia autorização dos órgãos públicos, ressalvados os casos previstos em lei (fabricação de armas, exploração de jazidas etc.).

O princípio da livre iniciativa, porém, não é absoluto, sofrendo restrições por outros princípios relacionados à função social da propriedade, à defesa do consumidor, à defesa do meio ambiente etc., além da evidente necessidade de preservar a livre concorrência entre os agentes econômicos, missão cometida ao CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Contudo, conforme já escrevemos ´pode-se dizer, sem margem de erro, que o conceito de livre iniciativa, que se extrai do exame do Texto Magno, pressupõe a prevalência da propriedade privada na qual se assentam a liberdade de empresa, a liberdade de contratação e a liberdade de lucro. Esses os marcos mínimos que dão embasamento ao regime econômico privado, ou seja, ao regime de produção capitalista, o qual sofre interferências do Estado, por meio de três instrumentos básicos: o poder normativo, o poder de polícia e a assunção direta da atividade econômica´ (Cf. nosso direito financeiro e tributário. São Paulo : Atlas, 13ª edição, 2004, p. 36).

De fato, prescreve o art. 174 da Constituição Federal:

´Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado´.

Dois dos instrumentos de intervenção na economia estão nesse artigo: elaboração de leis de combate ao abuso do poder econômico e de proteção ao consumidor; e o poder de polícia incluindo os incentivos e o planejamento, este meramente indicativo para o setor privado. Os incentivos são implementados por meio das agências financeiras oficiais de fomento, dentre os quais o BNDES, o BB e a CEF. O terceiro e último instrumento interventivo do Estado é a assunção direta da atividade econômica nas duas hipóteses referidas no art. 173 da CF: quando necessária aos imperativos de segurança nacional, e, quando houver relevante interesse coletivo, nos termos da lei.

Por certo, a limitação da destinação dos lucros das empresas não se insere no âmbito do poder de intervenção do Estado na economia.

Resulta manifesta a inconstitucionalidade dessa ‘nova redação’ conferida pela indigitada norma sob comento, que penaliza com multa de 50% do valor do benefício pecuniário distribuído/recebido na pendência de débito não garantido, para com a União e INSS.

Essa garantia, só poderia ser exigida para o fim de parcelamento do débito, ou para apresentação de embargos do devedor na execução fiscal, conforme legislações específicas. Nunca, para distribuição de dividendos, lucros ou bonificações, interferindo na liberdade de empresa, especificamente, na liberdade de lucro, assegurada constitucionalmente.

E mais, esse dispositivo sob comento, ao ameaçar com pesada imposição de multa pecuniária de forma genérica, sequer respeita as hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, previstas no art. 151 do CTN. Em havendo qualquer débito na empresa, a juízo da Fazenda, não importa se há impugnação tempestiva do débito, ou se há liminar ou tutela antecipatória suspendendo sua exigibilidade. A empresa estará impedida de distribuir lucros, sob pena de sanção pecuniária. Mesmo na hipótese de os computadores da Receita Federal terem sido alimentados com dados errôneos, apontando débitos onde não existem, a empresa não poderá distribuir lucros a menos que promova a garantia prévia desses pseudos débitos.

A aberração jurídica da nova redação conferida pelo art. 17 da Lei sob comento fica mais patente, ainda, se confrontada com o texto do art. 186 do CTN, que confere privilégio ao crédito tributário só superado pelos créditos de natureza trabalhista. A nova Lei de Falências, que retira esse privilégio, não tem o condão de alterar normas do CTN.

Daí a absoluta inconstitucionalidade dessa limitação legal que tolhe, ao nosso ver, arbitrária e desnecessariamente, a liberdade de empresa, a liberdade de contratação e, especificamente, a liberdade de lucro, umas e outras intocáveis pelo legislador ordinário. Essa limitação constitui claramente mais um instrumento de coação do contribuinte, para forçá-lo a abrir mão de devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.


Notas

(1) ‘Art. 32. As pessoas jurídicas, enquanto estiverem em débito, não garantido, para com a União e suas autarquias de Previdência e Assistência Social, por falta de recolhimento de imposto, taxa ou contribuição, no prazo legal, não poderão:

  1. vetado
  2. dar ou atribuir participação de lucros a seus sócios ou quotistas, bem como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes fiscais ou consultivos;’

(2) ‘Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

................................................

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;’


Autor

  • Kiyoshi Harada

    Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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Informações sobre o texto

Título original: "Lei nº 11.051/2004. Novo furor tributário".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Lei nº 11.051/2004. Novo furor tributário. Débitos fiscais e distribuição de lucros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 597, 25 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6375. Acesso em: 28 mar. 2024.