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Descriminalização de Condutas – Desenvolvimento Social

Descriminalização de Condutas – Desenvolvimento Social

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A Descriminalização de condutas está intrinsecamente ligada à Teoria do Direito Penal do Equilíbrio, no qual prega ser o Direito Penal a “ultima ratio” (última saída para resolução do conflito).

Descriminalização de Condutas – Desenvolvimento Social

Marcelo Augusto de Freitas – Advogado; Pós-Graduado em Advocacia Tributária; Membro da Comissão de BioDireito da OAB/SP; Docente da UNITERP.

Leandro Bertini de Oliveira - Docente dos cursos de Direito / UNILAGO

                                

RESUMO

A Descriminalização de Condutas, tidas como maléficas para a sociedade, que hoje são coibidas pelo Direito Penal, seriam mais bem repudiadas por outros ramos do direito: direito civil, administrativo etc. Esta Descriminalização de condutas está intrinsecamente ligada à Teoria do Direito Penal do Equilíbrio, no qual prega ser o Direito Penal a “ultima ratio” (última saída para resolução do conflito). Ficando a pergunta no ar: Se os outros ramos do direto conseguem resolver os conflitos de menor importância para a sociedade moderna, porque levamos este problema para o “mais forte” (Direito Penal) solucionar? Esta sobrecarga de “assuntos debatidos” expostos ao Direito Penal, proporcionam uma sobrecarga de processos, levando estes a uma morosidade tremenda e por conseqüência, desencadeando um descrédito na aplicação de penalidades, gerando a falência do sistema intimidatório, bem como a banalização de suas penas. A criminalização de condutas é fonte de injustiças, já que as leis e a justiça não são termos sinônimos, ou seja, quando se criminaliza uma conduta que restringe a liberdade, esta criminalização gera uma aberrante injustiça.

Palavras chave: descriminalização de condutas, direito penal do equilíbrio, sociedade moderna, penalidades.

1. Introdução

A justiça, segundo Aristóteles, consiste na virtude de observância da lei, ou seja, no respeito aquilo que é legítimo e que vige para o bem da comunidade (BITTAR, 2000).

O ordenamento jurídico, capitaneado pela Constituição, possui dupla finalidade, posto que, se de um lado elege valores considerados indispensáveis à manutenção da sociedade, por outro, segundo a concepção garantista do Direito, impede que, com um suposto cunho protetivo de bens, sejam criadas proibições ou impostos determinados comportamentos, violando direitos fundamentais (CRUZ, 2012).

A justiça deve estar baseada no princípio da bagatela, para proporcionar um foco na ação do Estado-Juizo, ou seja, não buscar a punição de todo e qualquer delito, por mais ínfimo que seja, como nos ensina Felippe Breda:

“O princípio da insignificância (bagatela) tem o objetivo de excluir da abrangência do Direito Penal as condutas provocadoras de ínfima lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal, a fim de que a Justiça Penal ocupe-se apenas de infrações lesivas a bens jurídicos de maior relevância (Breda, 2012, pag.17).

Muitas vezes quando pensamos em cometimentos de transgressões ou condutas criminosas, repudiadas pela sociedade, de imediato esperamos em contrapartida a aplicação de uma punição, instintivamente visualizada como aprisionamento, retirada do convívio social, ou seja, tomar a medida de trancafiar o infrator, para que o mesmo não volte a delinquir. Nem sempre o cárcere é a melhor forma de punição para quem comete desvios de conduta, reprimidas por nosso ordenamento jurídico e social.

Devemos sempre priorizar por formas diversas ao encarceramento do indivíduo, sendo esta ultima ratio do nosso ordenamento jurídico, pois, a Constituição Federal em seu art.50, LXI, assegura expressamente a liberdade física do indivíduo, preconizado nos dogmas do Estado Democrático de Direito, estabelecendo que a prisão poderá ser aplicada, mas apenas de forma excepcionalíssima (Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente) (PEREIRA FILHO, 2012).

Mesmo que o Estado consiga fazer valer o seu “ius puniendi”, aplicando a pena previamente cominada no Direito Penal, em muitos casos essa pena não cumprirá as funções que lhe são conferidas, ou seja, não cumprirá as principais funções que são: prevenir e reprovar os delitos (GRECO, 2011).

O Direito Administrativo, mostra em muitos casos, ter força maior à da do Direito Penal, quanto a sua pronta eficácia, como nos ensina o professor Rogério Greco:

“O poder de polícia, que é inerente ao Estado, faz com que o Direito Administrativo resolva situações conflituosas com muito mais rapidez do que o Direito Penal, pelo característica da executoriedade, que é a qualidade pela qual o Poder Público pode compelir materialmente o administrado, sem precisão de buscar as vias judiciais, ao cumprimento da obrigação que impôs e exigiu (Greco, 2011, pag.86).

2. Abolicionismo Penal – Princípio da Intervenção Mínima

O abolicionismo penal surgiu num momento em que a sociedade se encontrava reprimida por sistemas autoritários e ditatoriais, no qual quem se revoltasse ou contrariasse o “sistema” (governo), seria torturado e condenado a morte. Neste clima de insegurança jurídica, surgiu o abolicionismo, que pregava que o sistema penal deveria ser chamado apenas em ultimo instante, depois de ter sido tentado a resolução por meio de outros ramos do direito, como nos mostra o professor Rogério Greco:

“O abolicionismo surgiu a partir da percepção de que o sistema penal, que havia significado um enorme avanço da humanidade contra a ignomínia das torturas e contra a pena de morte, cujos rituais macabros encontram-se retratados na insuperável obra de Michel Foucault, perdeu sua legitimidade como instrumento de controle social” (Greco, 2011, pag.12).

No entanto abolir o sistema penal seria uma ilusão ao imaginarmos que os outros ramos do ordenamento jurídico fossem capazes de proteger e resolver todos os tipos de conflitos e lesões a bens jurídicos de maior relevância, sendo o Direito Penal o remédio para os “piores males”, como nos disserta Edmundo Oliveira:

“Abolir as prisões: será essa lógica possível? Em nível institucional não vemos como esse fenômeno possa ser concretizado, sobretudo na América Latina, onde as estruturas do Poder Executivo e Judiciário não propiciam condições plausíveis para a adoção de experiências abolicionistas. Advogar a abolição da instituição carcerária pode ser um nobre desejo, mas utópico” (Oliveira, 2002, pag.85).

3. Movimento da Lei e da Ordem

Este movimento prega o Direito Penal Máximo, no qual consiste em acreditar que o Direito Penal é a solução para todos os males que afligem a sociedade.

A mídia, no final do século passado e início do atual, foi a grande propagadora e divulgadora do movimento de Lei e Ordem. Profissionais não habilitados, chamaram para si a responsabilidade de criticar as leis penais, fazendo a sociedade acreditar que, mediante o recrudescimento das penas, a criação de novos tipos incriminadores e o afastamento de determinadas garantias processuais e constitucionais, a sociedade ficaria livre daquela parcela de indivíduos não adaptados ao convívio social. (MARCHI JÚNIOR).

Baseado no movimento da Lei e da Ordem, foi criado em Nova York, pelo então prefeito Rudolph Giuliani, o plano “Tolerância Zero”, no qual teoricamente iria se punir toda e qualquer ação que repercutisse no bem estar social, mas que na verdade se resumiu em aumentar o efetivo policial e  reprimir a criminalidade em locais de maior incidência, previamente mapeados pelos órgãos policiais, trazendo assim uma maior sensação de segurança para a sociedade, e não uma real diminuição do cometimento de crimes, pois estes eram praticados nas periferias, longe das vistas da sociedade de maior classe social, ou seja, maquiou-se uma falsa realidade sobre a segurança, afastando a criminalidade do cotidiano dos mais abastados (GRECO, 2011).

Mas esta teoria foi em pouco tempo desacreditada pela sociedade, gerando maior insegurança jurídica pela falta de punibilidade e o aumento da cifra negra, que é a parcela de atos criminosos que não chegam ao conhecimento das autoridades policias, ficando assim impunes, como nos explica Rogério Greco:

“Não se educa a sociedade por intermédio do Direito Penal. O raciocínio do Direito Penal Máximo nos conduz, obrigatoriamente, à sua falta de credibilidade. Quanto mais infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas as condutas infratoras, tornando-se ainda mais seletivo e maior a cifra negra” (Greco, 2011, pag.15).

Já dizia Cesare Beccaria em 1764, que a certeza de um castigo, mesmo que moderado, sempre causará maior repressão, do que o temor de um mal mais severo, unido à esperança da impunidade (BECCARIA, 1999).

O movimento da lei e da ordem dita uma máxima intervenção do Direito Penal, saindo do intento principal, que são as infrações penais de grande potencial ofensivo que incidem sobre os bens mais importantes e necessários ao convívio social.

4. Direito Penal Mínimo

O Direito Penal Mínimo trilha no caminha de que o Direito Penal deve proteger somente os bens necessários e vitais ao convívio em sociedade, ou seja, os bens que em decorrência de sua importância, não podem ser protegidos somente pelos outros ramos do ordenamento jurídico, como o Direito Civil ou Administrativo. Dentro do Direito Penal Mínimo, estão contidos os princípios da dignidade da pessoa humana, intervenção mínima, lesividade, adequação social, insignificância, individualização da pena, proporcionalidade, responsabilidade pessoal, limitação das penas, culpabilidade e legalidade (GRECO, 2011).

Para entendimento do Direito Penal Mínimo, importantes são as palavras de Paulo de Souza Queiroz:

“Reduzir, tanto quanto seja possível, o marco de intervenção do sistema penal, é uma exigência de racionalidade. Mas é também [..] um imperativo de justiça social. Sim, porque um Estado que se define Democrático de Direito, que declara, como seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana, a cidadania, os valores sociais do trabalho, e proclama, como seus objetivos fundamentais, constituir uma sociedade livre, justa, solidária, que promete erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais [...] não pode, nem deve, pretender lançar sobre seus jurisdicionados, o sistema institucional de violência seletiva, que é o Sistema Penal Máximo” (Queiroz, 1998, pag.31).

Podemos tomar como efetiva demonstração da realidade, as precisas lições de Enrique Cury Urzúa, quando diz que:

“O Direito Penal é secundário ou subsidiário, porque a pena somente deve ser aplicada quando o ataque ao bem jurídico não pode sancionar-se de maneira apropriada através dos meios de protegê-los de que dispõem os outros ramos do ordenamento jurídico. A pena é, pois, um recurso de “ultima ratio”. O mesmo se deve dizer das medidas de segurança e correção. Este caráter secundário ou subsidiário do Direito Penal é uma consequência das tendências politico-criminais do presente, inspiradas no princípio da humanidade” (Urzúa, 1982, pag.54).

Para elucidar a questão do Direito Penal ser a ultima instancia para a resolução de conflito, apoiemo-nos nas palavras de Paulo de Souza Queiroz:

“o Direito Penal deve ser, enfim, a “extrema ratio” de uma política social orientada para a dignificação do homem. Semelhante intervenção há de pressupor, assim, o insucesso das instâncias primárias de prevenção e controle social, família, escola, trabalho etc., e de outros formas de intervenção jurídica, civil, trabalhista, administrativa. Vale dizer: a intervenção penal, quer em nível legislativo, quando da elaboração das leis, quer em nível judicial, quando da sua aplicação concreta, somente se justifica se e quando seja realmente imprescindível e insubstituível.” (Queiroz, 2001, pag.125).

5. Influência da Mídia, na Repercussão dos Crimes

Diante da aclamação pública pedindo maior punição, ou punição imediata, aos autores de crimes que aterrorizam a sociedade atual, levando a sociedade ao estado de raiva e desprezo, provocados pelas barbáries cometidas em crimes horripilantes e inescrupulosos, chegamos até a ter um retrocesso social, no qual os supostos autores destes crimes chegam a ser linchados pela população, suprimindo assim, suas garantias e direitos constitucionais, como a presunção de inocência, o direito ao devido processo legal, sendo o provável ator já de imediato condenado pela parcela da sociedade ali presente, “sedenta de sangue”, que aplicada de imediato à punição de morte.

Exemplo da aclamação pública, diante de atos amplamente divulgados pela mídia, o atentado terrorista de onze de setembro de 2001 é ícone, no qual gerou vastas discussões nas sociedades civilizadas, assim como debates em centros acadêmicos, sobre as funções do direito penal, na qual surgiu a tese a respeito do Direito Penal do Inimigo, na Universidade de Bonn, na Alemanha. Esta teoria prega que os atos preparatórios devem ser punidos com mais severidade, assim como o planejamento de atos terroristas, tendo assim, uma antecipação do iter criminis, com a imposição de reprimenda previa aos atos executórios do ilícito colimado (PEDROSO, 2012).

O poder legislativo está muitas vezes fadado a ser influenciado pela opinião pública, como nos disserta Fernando Pedroso:

“Quando a mídia dramatiza, espetaculariza, o Parlamento imediatamente ecoa. O legislador, que perdeu completamente sua autoridade (em virtude do seu envolvimento com tantas falcatruas, nepotismos patrimonialismos etc.), já não consegue reagir de forma racional e independente. Seu discurso se apresenta, quase sempre, como apêndice da mídia. Essa é uma das partes mais visíveis da engrenagem do populismo penal” (Pedroso, 2012, pag.71).

Encontramos nas palavras de nosso ilustre penalista Flávio D’Urso, claro pesar, quando a sociedade num momento de revolta, clama por “justiça” em forma de suplício, retrocedendo na evolução social:

“Os julgamentos de crimes com grande repercussão popular, nos quais o clamor público não admite ao acusado nem mesmo argumentos em sua defesa, se tornam combustível para os erros judiciários. Assim sendo, os direitos contidos no ordenamento jurídico nacional não podem sucumbir ante a opinião pública “convencionada” da culpa de alguém; nem pode a defesa ter sua atuação cerceada pela intensa reação popular, guiada pela emoção e pelo sensacionalismo, pois constitui grave violação ao Estado de Direito” (D’Urso, 2012, pag.21).

6. Revogação de figuras típicas

A revogação de figuras típica é baseada na evolução sócio-cultural da sociedade, na qual, passa a dar menos valor a determinado bem que era valorizado na antiguidade, sendo anteriormente incriminada a conduta que lesasse esse bem.

Esta revogação é baseada no princípio da lesividade, como nos ensina com brilhantismo Rogério Greco:

“O princípio da lesividade, o princípio da intervenção mínima e o princípio da adequação social, servirão de norte ao legislador quando da criação, e da necessidade de revogação da figura típica” (Greco, 2011, pag.90).

O princípio da lesividade ainda norteia o legislador, a fim de considerar lesiva a conduta que extrapole a pessoa do agente e que venha a atingir bens de relevo, devendo estas serem proibidas pelo Estado, através do Direito Penal. Como exemplos de condutas que tragam mal apenas ao agente, temos: a autolesão; o suicídio; a automutilação; o uso de drogas. Pertinente a não incriminação do uso de drogas, temos as palavras de Emiliano Borja Jiménez:

“o consumidor de qualquer das substâncias qualificadas como drogas tóxicas, estupefacientes ou psicotrópicas, está atuando uma faceta de sua liberdade com relação à disposição de sua saúde de forma autônoma, ainda quando esta sofra menoscabos pelo prazer do consumo de narcóticos.” (Jiménez, 2003, pag.198).

A revogação de figuras típicas é baseada também, no princípio da adequação social, criado pelo professor alemão Hans Welzel, que conceitua que o legislador na qualidade de pesquisador e selecionador das condutas ofensivas aos bens jurídicos mais importantes e necessários ao convívio em sociedade, é impedido de criar ou manter tipos penais incriminadores, que proíbam condutas que já estejam perfeitamente aceitas e toleradas por essa mesma sociedade. A revogação da figura típica é dada em virtude do fato de que determinadas condutas eram consideradas inadequadas socialmente, sendo que hoje já não mais gozam desse status, devendo a sua proibição ser retirada de nosso ordenamento jurídico-penal (GRECO, 2011).

A lei 9.472/1997 dispõe sobre os serviços de telecomunicações e em seu artigo 183, dita que quem desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicações, ou seja, distribuir sinal de internet sem autorização, receberá pena de detenção de dois a quatro anos, além de multa de R$ 10 mil. Este artigo se baseia no furto de energia telemática, previsto no art. 155, § 30 do Código Penal, que criminaliza o furto de energia elétrica ou qualquer outra forma de energia que tenha valor econômico. Esta lei é de difícil aplicação em razão de suas particularidades técnicas e difícil constatação, sendo que é uma “norma morta”, gerando apenas mais um processo para entravar o sistema judicial já afogado pela alta demanda, sendo que seria mais plausível que esta conduta fosse tratada pelo direito Administrativo ou Civil, gerando uma pena pecuniária, ou formas alternativas de punição (prestação de serviços comunitários, etc) (BARROS OLIVEIRA, 2012).

O art. 233, CP, que diz: Praticar ato obsceno, em lugar público, aberto ou exposto ao público; Considerando a criação do Código Penal em 1940, seria considerado ato obsceno, um simples beijo na boca, por mais rápido que fosse, sendo praticado publicamente, não sendo condizente esta mesma aplicação aos tempos atuais.

6.1.Figuras Típicas Revogados

O crime de sedução, tipificado no art. 217 do Código Penal, tinha a seguinte redação: Seduzir mulher virgem, menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (catorze), e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. Este artigo foi revogado pela lei 11.106, de 28 de março de 2005, sendo que sua redação se mostra conflitante entre a conduta reprimida e a atualidade de nossa sociedade, na qual os jovens entre 14 a 18 anos, em sua maioria, já perderam a virgindade. Este artigo tinha eficácia, considerando-se a sua vigência, sendo que o mesmo circunda os meados dos anos de 1940, quando a sociedade tinha um grande protecionismo sobre as mulheres, sendo que as mesmas não tinham tanta instrução e acesso a informação, como se tem nos tempos de hoje, sendo considerado por fim, uma norma inválida para os dias atuais.

Temos outro exemplo de crimes revogados pelo decurso do tempo e da sua não utilização, o crime de vadiagem, que criminalizava a conduta de não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir, depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente, tendo o Projeto de Lei 4668/04, retirado este artigo da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/41), sendo que esta criminalização conflitava com os preceitos tão aplaudidos e aclamados de nossa lei maior, que tem como base a dignidade da pessoa humana. Tendo sido também revogado pelos mesmos motivos, o crime de mendicância, que criminalizava a conduta de quem andasse mendigando nos lugares em que existem estabelecimentos públicos para os mendigos, ou havendo pessoa que se ofereça a sustentá-los, ou quando os que mendigarem estiverem em termos de trabalhar, ainda que nos lugares não haja os ditos estabelecimentos, ou quando fingirem chagas ou outras enfermidades para do serviço se pouparem. Temos as palavras do juiz Moacir Danilo Rodrigues da 5ª Vara Criminal de Porto Alegre, pronunciadas em 27 de setembro de 1979, sobre a vadiagem:

“é uma norma legal draconiana, injusta e parcial, destinada apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau-de-arara do Nordeste, o bóia-fria do Sul. O filho pobre que pobre é, sujeito está à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque tem renda paterna para lhe assegurar os meios de subsistência. Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos do Direito. Realidade dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. Constatação cruel para que, diplomado, incursiona pelos caminhos da justiça e sente que os pratos da balança não tem o mesmo peso” (Jorge, 2004).

Em 1890, a prática da capoeira se tornou um crime, assim permanecendo até a década de 1930, quando foi finalmente liberada por Getúlio Vargas, durante o Estado Novo (1937-1945). Descrevia o artigo 402 do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, o crime de: fazer nas ruas e praças públicas, exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação capoeiragem, sendo considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta, tendo os chefes ou cabeças, imposição da pena em dobro. Demonstra claramente este antigo artigo, que na época o Estado tinha o intuito de reprimir as revoltas sociais, desencadeadas pela miséria e decadência gerada pela falta de empregos, sendo clara a sua não aplicação nos dias de hoje, que se faz o contrário, ocorrendo o induzimento dos jovens as práticas esportivas e recreativas.

Conclusão

Seguindo os princípios da intervenção mínima, a função do Direito Penal é proteger os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade, sendo apenas estes defendidos pela legislação penal, coibidos pela aplicação de sanções mais duras. Esse critério de proteção dos bens mais importantes não poderá ser absoluto e rígido, pois serão estes, determinados pela sociedade em análise, na qual será aplicado, tendo diferentes graus de importância, conforme a cultura do povo.

Esta forma de pesar, supracitada acima, vai ao encontro do princípio da dignidade da pessoa humana, pois ao ser aplicado o Direito Penal como forma subsidiária de repressão, deixa de haver os casos em que a pena se torna recrudescida, quando comparada ao bem tutelado ou a conduta praticada, dando uma dosagem mais justa e humana a pena aplicada pelos outros ramos do Direito, como por exemplo o Administrativo, o Civil, etc.

Um dos maiores problemas que assola o Direito Penal é gerar a proporcionalidade entre o crime (conduta delitiva) e a pena a ser aplicada ao mesmo, tendo a disponibilidade sanções alternativas à pena privativa de liberdade (encarceramento), dando resposta ao mal caudado, mas sem deixar de antever o princípio da dignidade da pessoa humana.

Fica clara e oportuna a mensagem dada por Michel Foucault, quando diz que a prisão em vez de devolver a liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinqüentes perigosos.

Para finalizar, tomo minha as palavras de Cesare Beccaria, no qual diz que um dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade, pois a certeza de um castigo, mesmo que moderado, sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo, unido á esperança de impunidade. A própria atrocidade da pena faz com que tentemos evitá-la com audácia tanto maior quanto maior é o mal e leva a cometer mais delitos para escapar à pena de um só.

O Estado deve evoluir no sentido de que o Direito Penal somente deve intervir nas condutas que atacam os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade, pois enquanto o Direito Penal for máximo, havendo a inflação legislativa, será punida a camada mais pobre e vulnerável da sociedade. A diminuição do abismo econômico entre as camadas sociais é a chave para a diminuição da criminalidade.

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