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Uma visão contemporânea da soft law

Uma visão contemporânea da soft law

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A velocidade das transformações mundiais não comporta mais as velhas formas de negociação, como as dos tratados multilaterais, com formalidades em excesso e engessamentos que demandam um tempo que já não se tem, sobretudo quando se trata da recuperação do planeta. A soft law surge, então, para atender esta necessidade e não há mais como negar seu caráter cogente.

RESUMO: As transformações no âmbito do direito internacional permitem dizer que, a partir da primeira metade do século XX, os Estados perceberam a debilidade dos tratados convencionais para dar conta de certas necessidades genéricas de um mundo cada vez mais globalizado. Mais precisamente, após a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional passou a experimentar um novo tipo de agreement; mais flexível, com maiores possibilidades de mudanças e correções, mas, nem por isso menos eficaz. Surgia a soft law. A nova forma de fazer acordos internacionais face aos grandes problemas da humanidade, tais como as preocupações com o meio ambiente e as novas estratégias para o comércio sem fronteiras, estava estabelecida. No meio jurídico ainda se discute, sem que o assunto esteja pacificado, o grau de coercitividade desses novos acordos internacionais de linha soft. O presente artigo faz uma abordagem acadêmica do tema, concluindo por entender a soft law como fonte do direito internacional a ser posta em paralelo com as tradicionalmente reconhecidas pelo Estatuto da Corte Internacional de Justiça.

PALAVRAS-CHAVE: Direito internacional, fontes tradicionais, soft law, transformações e coercitividade.

ABSTRACT: The changes in international law allow to say that, from the first half of the twentieth century, the States realized the weakness of conventional treaties to account for certain generic needs of an increasingly globalized world. More precisely, after the Second World War, the international community began to experience a new type of agreement, more flexible, with greater possibilities of changes and corrections, but no less effective. The soft law was introduced. The new way to make international agreements, in relation to the great problems of humanity such as concerns about the environment and new strategies for cross-border trade, was established. In the legal environment is still being discussed, unless the subject is pacified, the level of coercivity of these new international agreements soft line. This article is an academic approach theme, concluding by understanding the soft law as a source of international law to be placed in parallel with the traditionally recognized by the Statute of the International Court of Justice.

KEYWORDS: International law, traditional sources, soft law, transformations and coercivity.


I – INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo lançar luz sobre a soft law, na pretensão de que essa norma, ou o modo mais eficaz de fazer direito internacional na sociedade hodierna, seja compreendida, ou sobre ela se faça a reflexão necessária para entendê-la com os olhos dos juristas contemporâneos.

Não significa dizer que aqui se abandonará os clássicos pensadores do direito, mas que se fará esforço para demonstrar que suas leituras devem ser revisitadas, na medida em que, quando escreveram seus manuais, tinham a sua volta um mundo completamente diverso do atual.

Inicia-se o artigo por uma tentativa de conceituação da norma flexível; evolui-se para uma abordagem histórica, de modo a que se compreenda a chegada e o atual momento em que vive o fenômeno, para, ao depois, cotejá-lo com as fontes tradicionais do direito internacional e apresentar a posição deste articulista quanto à sua capacidade coercitiva.

Tributa-se, desde já, respeito ao pensamento divergente fincado por penas ilustres. Tão só deseja-se expor um olhar alternativo, com o fito de perceber para onde caminha a sociedade internacional e suas formas de fazer valer o interesse da humanidade.


II – O QUE É SOFT LAW

Pode-se conceituar soft law, no âmbito do direito internacional, como espécie de norma, entre as muitas exaradas pelas entidades internacionais, quer na esfera das organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e suas Agências, quer na de organizações regulatórias, tal qual a Câmara Internacional do Comércio (CIC). Diferencia-se a soft law de outras normas pelo seu caráter de flexibilidade e dependência de governança.

Quando do surgimento da expressão soft law no mundo globalizado, alguns países tentaram uma tradução que se amoldasse à compreensão de seus falantes: derecho brando (direito brando - espanhol); diritto mite (direito suave -italiano); droit mou (direito macio - francês). Ocorre que não se tem uma real compreensão desse tipo de norma por essas traduções. Elas acabam por apoucar o verdadeiro sentido e a abrangência dessa norma especial.

Por mais que se tenha incitado a criatividade, não foi diferente no Brasil. Algumas tentativas apontaram para direito flexível, direito brando, quase-direito, direito não cogente etc. Ainda, alguns autores entendem a soft law como direito verde (não maduro). Entretanto, logo se percebeu que as traduções eram inúteis, preferindo a maioria dos juristas e doutrinadores permanecer no anglicismo, mantendo-se a expressão tal qual usada internacionalmente.

Outra justificativa para permanecer-se na expressão inglesa é que há diferentes normas que se enquadram no conceito de soft law. Algumas aproximam-se mais de um direito mole, outras de um direito flexível e ainda há as que melhor seriam compreendidas por direito verde ou em construção. É como soa o magistério de Salem Nasser[2]:

Ora, uma escolha de um dos termos possíveis para substituir o soft seria útil apenas se este tivesse na expressão original um único sentido. Tendo mais de um, seria necessário encontrar, em português, um termo que lhe fosse totalmente equivalente. Isso não ocorre, na realidade, sendo alguns fenômenos da soft law melhor designados por direito mole, outros por flexível, verde etc.

Para a doutrina clássica, o termo soft law é posto em paralelo com a expressão hard law. Esta, para identificar as normas cogentes (tratados e costumes internacionais) e aquele, para indicar a espécie de norma flexível e, nessa visão, não obrigatória. O esforço deste autor caminhará no sentido de demonstrar as mudanças que se operam no direito internacional, não permitindo mais esse tipo de diferenciação.

Não se pode mais negar que os efeitos da soft law estão traduzidos em um corte horizontal, nas relações multilaterais, que atinge inexoravelmente o direito internacional público e o privado. Como negar as diferenças provocadas pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (Assembleia Geral da ONU em 1948) e as mudanças nas atividades dos países pela Agenda 21 (Eco-92)? Como não reconhecer, no meio internacional privado, a validade e a obrigatoriedade do uso dos padrões adotados pela International Organization for Standardization (ISO)?

Destarte, a soft law não é tratado internacional, na concepção posta pela Convenção de Viena, e tampouco se harmoniza ao conceito de costume. Mas, por outro lado, o novo desenho feito pela comunidade internacional para as relações entre Estados e sociedades transnacionais não mais permite que tais normas sejam enquadradas como de menor importância ou que delas não se espere obediência.


III – LINEAMENTO HISTÓRICO

Não há um marco regulatório internacional que sinalize o aparecimento da soft law. Contudo, pode-se dizer que essa norma especial, como concebida atualmente, é fruto do início do século XX. Após a Segunda Guerra Mundial, com a criação da ONU, do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do General Agreement on Tariffs and Trade - GATT (hoje, Organização Mundial do Comércio - OMC), é que esta fonte do direito internacional, como se demonstrará mais adiante, ganhou visibilidade e passou a ter influência relevante nas relações internacionais, produzindo efeitos jurídicos.

É inegável que o comércio internacional se agigantou em razão do fenômeno da globalização, em meio a uma explosão de possibilidades de comunicação por rede e negócios firmados em velocidade jamais imaginada. Os problemas globais, máxime os do meio ambiente, de igual modo, ganharam proporções além das fronteiras dos Estados. Daí que as fontes clássicas do direito internacional passaram a não mais dar conta das necessidades da comunidade internacional (pública e privada), sendo a elas acrescentada, cada vez mais, a soft law.

Vale gizar que há áreas onde a soft law adapta-se com maior facilidade e é preferida em relação à hard law. É o caso das relações econômicas e das preocupações com o meio ambiente. Os atores internacionais preferem o uso da soft law tanto pela rapidez de aprovação, quanto pela possibilidade de alterações necessárias, sem as peitas impostas aos tratados, por exemplo. Eis a razão histórica do crescimento dessas normas flexíveis, em maior escala, nessas duas esferas internacionais.

Nos dias atuais, a soft law tem desempenhado um papel absolutamente importante, de tal ordem que há uma conscientização, por meio de uma governança internacional, que a aceita tal qual lei internacional cogente, que os Estados e os particulares devem cumprir.

Na esfera da práxis comercial, o nível de aceitação de sua obrigatoriedade é quase que absoluta. Não se imagina que o comércio internacional, no âmbito das importações e exportações, possa aceitar negociações que coloquem à margem as normas flexíveis, mas que são rigidamente cumpridas pelos atores envolvidos, como os incoterms (international commercial terms). Corrobora com esse entendimento Mario Giovanoli[3]:

Com poucas exceções em relação às regras incorporadas em instrumentos próprios do direito internacional [...], a maioria das regras, diretrizes, normas internacionais e outras disposições que regulam as relações financeiras transfronteiriças, não são juridicamente de natureza vinculativa, e são geralmente referidos como "soft law" (tradução livre do autor)[4].

Por seu turno, as normas de proteção internacional do meio ambiente têm encontrado melhor resposta na soft law. Sem as dificuldades dos tratados, essas normas são capazes de produzir eficácia em tempo infinitamente menor. Ainda, têm a flexibilidade de serem revistas periodicamente e adaptadas às novas realidades, como é o caso dos regimes internacionais, muitas vezes com agendas anuais para os devidos alinhamentos.


IV – FONTES TRADICIONAIS DO DIREITO INTERNACIONAL

Inicialmente, não se pode deslembrar que há teorias negadoras do direito internacional - como direito - por juristas conceituados na área da teoria do direito. A fundamentação apresentada é sempre a mesma: a inexistência de poder legislativo internacional e uma autoridade internacional soberana que tenha capacidade de impor jurisdição obrigatória e garantir as “necessárias sanções” aos infratores.

Na verdade, os teóricos não negam a existência do direito internacional, mas tão só não lhe atribuem caráter de norma jurídica. Para John Austin (séc. XIX), seriam as normas internacionais fundadas na moral e não no direito. Sua teoria fundamenta-se no fato de que, embora eivadas de um senso moral de natureza positiva, as normas internacionais não podem ser consideradas normas jurídicas propriamente ditas, porque podem ser alteradas ou desprezadas em nome dos interesses dos Estados.

Já Alberto Binder, jurista argentino contemporâneo, embora acredite na inexistência de uma sociedade internacional organizada, entende as normas internacionais como práticas reiteradas, sujeitas, porém, ao descumprimento, sem a possibilidade de sanção e controle.

Entretanto, esse pensamento retrógrado foi superado desde a publicação da obra O Conceito de Direito, em 1961. Já à época, seu autor reconheceu que o efeito vinculante das normas internacionais independe de sanções formais estabelecidas. Assim, expressou-se Herbert Lionel Adolphus Hart[5] sobre o tema:

Afirmar que o direito internacional não é vinculante por carecer de sanções organizadas implica aceitar tacitamente a análise da obrigação contida na teoria de que o direito é essencialmente uma questão de ordens apoiadas em ameaças. [...] Devemos, entretanto, examinar outra forma do argumento, mais plausível por não estar comprometida com a definição de obrigação em termos da probabilidade de se consumarem as ameaças e sanções.

Para Hart[6], entender o direito internacional passa por um processo de compreensão das suas diferenças com o direito interno. Exemplifica que as sanções, em sede de violência, se justificam no âmbito interno, para que os mais fortes não se aproveitem da impunidade. Reconhece, no entanto, a enorme diferença na esfera internacional.

Assevera Hart, na mencionada obra, que, mesmo sendo infinitamente mais forte, um determinado Estado ponderará antes de iniciar qualquer agressão a outro Estado. Isso por razões dos riscos envolvidos e das incertezas de sucesso, sobretudo em relação ao comportamento dos demais Estados não envolvidos diretamente. Portanto, os Estados vinculam-se ao estabelecido internacionalmente, ainda que não haja sanções pré-estabelecidas.

Vencida essa questão da obrigatoriedade dos Estados, mesmo sem sanções concertadas, passa-se à análise das fontes formais do direito internacional.

Como de sabença geral, a comunidade internacional adotou como fontes formais do direito internacional (DI) as elencadas no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (CIJ): tratados, costume e princípios gerais do direito internacional. Ainda, admite o mesmo artigo, como fontes subsidiárias, a doutrina e a jurisprudência. 

Importante ressaltar a diferença entre tratado e costume. A distinção se faz em dois vetores, a saber: a formação e a demonstração. A formação dos tratados ocorre com a vontade dos Estados-membros expressa em texto escrito e posteriormente ratificado. Já a formação do costume é matéria revestida de maior complexidade. É consolidada no tempo por meio de dois elementos. Um objetivo (a prática reiterada do comportamento dos Estados) e outro subjetivo ou psicológico, que é a consciência de que tal prática é obrigatória (opinio juris).

Quanto à comprovação, o tratado é provado pelo texto ratificado simplesmente, enquanto o costume depende da comprovação dos elementos objetivo e subjetivo como condição sine qua non. Ou seja, há a necessidade de comprovação dos dois elementos, sob pena de não se caracterizar o costume.

À parte das fontes formais ou tradicionais mencionadas, alguns doutrinadores, têm admitido a soft law como fonte do direito internacional, no mesmo patamar dos tratados. É evidente que as transformações ocorridas no ambiente internacional fizeram com que grande parte dos atuais tratados fosse formada por normas tão flexíveis quanto às contidas na soft law. Mais uma vez, importante o pensamento de Mario Giovanoli[7]:

Na verdade, não há distinção clara, como preto e branco, a ser feita entre soft law e hard law, mas sim uma gradação, na esfera da prática profissional e do comércio, chamada obrigação natural (isto é - não legalmente exigível). Do nível mais baixo às diretrizes e regras progressivamente mais vinculativas, com vários graus de consequências em caso de descumprimento, a serem estabelecidos discricionariamente pelas partes interessadas por diversas formas de avaliação: vigilância, sanções e arbitragem (tradução livre do autor)[8].

Pelo dito até aqui, conclui-se que, mesmo que não se admita a soft law como fonte tradicional do direito internacional, não há como lhe negar a influência jurídica que exerce sobre os Estados, devendo ser considerada, pelo menos, como documento internacional jurídico de relevância ou como nova fonte do DI a ser posta em paralelo de igualdade com as do artigo 38 do Estatuto da CIJ.


V – GRAU DE COERCITIVIDADE DA SOFT LAW

Com relação às fontes tradicionais do direito internacional, não há dúvida que possuem a mesma obrigatoriedade de cumprimento. Cabe apenas a ressalva de que o costume precisa ser provado como dito anteriormente em suas duas vertentes necessárias. Contudo, uma vez demonstrado, pode-se dizer que seu grau de generalidade é até maior do que o do tratado, vez que este, em princípio, atinge tão só as partes, enquanto aquele a todos obriga.

Entretanto, vale gizar que a possibilidade de sanção no DI é posta de forma relativizada. Como se sabe, não há um Governo Internacional Central capaz de obrigar Estados ao cumprimento de tratados, costumes, princípios, tampouco as decisões das cortes internacionais. Aliás, para que haja julgamento nessas cortes, há a necessidade de consentimento dos Estados, no sentido de submeterem-se a elas.

O direito internacional, diferentemente do direito interno, é muito mais negociado e “jogado” do que imposto. Qualquer Estado, antes de fazer valer sua soberania, em determinada disputa, certamente avaliará os riscos diplomáticos e comerciais pela violação de um tratado. Pode não receber sanção, caso não se submeta às decisões das cortes, mas certamente amargará perdas outras pelas retaliações impostas pelos demais Estados.

Voltando a Hart[9], os Estados quando violam normas internacionais não se esquivam pela alegação de que não são elas obrigatórias. Ao revés, despendem esforços para demonstrar que de fato não houve violação. Estariam preocupados se as normas não fossem vinculantes? Na verdade, a obrigatoriedade se traduz no temor das represálias e retaliações. Eis o texto esclarecedor do autor que se analisa:

Entretanto, aquilo que essas normas exigem é considerado obrigatório e como tal é mencionado; há uma pressão generalizada em favor da obediência a elas; pretensões e reconhecimentos de baseiam nessas normas e considera-se que sua transgressão justifica não apenas exigências insistentes de reparação como também represálias e medidas de retaliação. Quando as normas são desobedecidas, não é com base no argumento de que não são vinculantes; pelo contrário, envidam-se esforços para esconder os fatos.

Nesse aspecto, pode-se dizer que o mesmo ocorre com a soft law. Se violada, não haverá sanção tradicional, mas pode o Estado ser alijado de novos compromissos internacionais e sofrer retaliações e represálias da comunidade internacional, nos mesmos moldes da hard law. Não se trata de possibilidade vaga ou de elucubrações teóricas. É como se dá na prática. Desse modo, a aceitação da soft law como obrigatória é cada vez mais crescente, como enfatiza a Professora da George Washington University Law School, Dinah Shelton[10]:

A crescente complexidade do sistema jurídico internacional está refletida no aumento da variedade de formas de compromisso adotadas para regular o Estado e os entes não-estatais no que diz respeito a um número cada vez maior de problemas transnacionais. É pouco provável que veremos o retorno da dicotomia direito - liberdade. Em vez disso, os diversos atores internacionais criarão e tentarão cumprir uma série de compromissos internacionais, alguns dos quais estarão em forma legal, outros dos quais serão definidas em instrumentos não vinculativos. A falta de forma vinculativa pode reduzir as opções para a execução no curto prazo (ou seja, não contencioso), mas isso não nega que pode existir expectativas sinceras e profundamente adotadas em conformidade com as normas contidas na forma não vinculativa. (tradução livre do autor)[11]

Com essas considerações, este autor pugna pelo entendimento de que, a soft law, em razão das mudanças e transformações ocorridas no cenário internacional, é fonte de direito internacional, posta por consenso pela comunidade dos Estados. Ainda que estes não declarem o status vinculativo dessas normas flexíveis, comportam-se de modo a obedecê-las, em clara demonstração de opinio juris.

Quanto ao grau de coercitividade, alguns autores defendem que as resoluções internacionais, em forma de recomendações, são desprovidas de efeitos cogentes. Os seus destinatários não estariam obrigados à submissão e não cometeriam infração no caso de não as respeitarem.  Em posição mais moderada, o jurista francês Nguyên Quoc Dinh[12], já advertia sobre o valor normativo das recomendações:

A falta de força obrigatória das recomendações não significa que não tenham qualquer alcance. Se fosse esse o caso, seria difícil explicar a obstinação dos debates que conduziram à sua adoção. O seu impacto político é muitas vezes fundamental e mesmo o seu valor jurídico não é de desprezar.

Seria de todo um contrassenso político, diplomático e jurídico o fato de os Estados participassem de forma ferrenha, investindo tempo e dinheiro em grandes encontros internacionais e, depois de fazerem trabalho de convencimento com as nações de interesses convergentes para a aprovação de um texto final, não se sujeitarem a ele. Portanto, a soft law é, no aviso deste articulista, norma cogente, em absoluta harmonia com as transformações por que passa o direito internacional.


VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que a soft law tem caráter de universalidade. Embora não seja ideal para relações bilaterais, exsurge como meio mais eficaz para a solução dos problemas globais. Por meio dela se tem envidado esforços de normatização nas relações comerciais e, máxime, nas medidas de proteção aos direitos humanos e ao meio ambiente.

 Destarte, a soft law tem desempenhado papel relevante sobre temas abrangentes e que incomodam a humanidade nesse século. É o caso da escassez da água, das mudanças climáticas que ameaçam a vida no planeta, das preocupações com o rastro deixado pela atuação deletéria do homem em desarmonia com a natureza e tantas outras questões que afetam de maneira uniforme a comunidade internacional.

Os Estados e demais atores internacionais perceberam a ineficácia dos tratados, na forma em que foram concebidos no passado, para dar conta dessas novas estratégias diplomáticas e jurídicas de solução para os problemas de abrangência globais. Daí o espaço que vem ganhando a soft law como instrumento de composição e concerto internacionais.  

A velocidade das transformações mundiais não comporta mais as velhas formas de negociação, como as dos tratados multilaterais, com suas formalidades e engessamentos que demandam tempo que já não se tem, haja vista a urgência das medidas necessária à recuperação do planeta.

Nesse contexto é que se defende a soft law como fonte de direito internacional, ainda que com a resistência de alguns doutrinadores, mais preocupados com a teoria do direito do que com a função do direito.


VII – REFERÊNCIAS

DINH, Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito internacional público. Tradução: Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.

GIOVANOLI, Mario, A new Architeture for the Global Financial Market Legal: Legal Aspects of International Financial Standard Setting, in GIOVANOLI, Mario (Edit.). International Monetary Law: Issues for the New Millenium, Oxford: Oxford University Press, 2.000.

HART, H. L. A. O Conceito do Direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

NASSER, Salem Hikmat. Fontes do direito internacional: um estudo sobre a soft law. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006.

SHELTON, Dinah. Law, Non-Law and the Problem of ‘Soft Law’, in SHELTON, Dinah. (Edit) The Role of Non-Binding Norms in the International Legal System, New York: Oxford University Press, 2000.                  


Notas

[2] NASSER, Salem Hikmat. Fontes do direito internacional: um estudo sobre a soft law. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 24.

[3] GIOVANOLI, Mario, A new Architeture for the Global Financial Market Legal: Legal Aspects of International Financial Standard Setting, in GIOVANOLI, Mario (Edit.). International Monetary Law: Issues for the New Millenium, Oxford: Oxford University Press, 2.000, p. 33. 

[4] With a few exceptions in respect of rules embodied in proper instruments of international law […], most of the international rules, guidilenes, standards and other arrangements governing cross-border financial relations are not a legally binding nature and are therefore generally referred to as ‘soft law’.

[5] HART, H. L. A. O Conceito do Direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 281.

[6] Idem, p. 283.

[7] Op. Cit. 35-36.

[8] In fact, there is no black and white distinction to be made between ‘soft law’ and ‘hard law’, but rather a gradation, from professional and trade practice and so-called ‘natural” (ie not legally enforceable) obligations, at the lowest level, to guidelines and progressively more binding arrangements, with various degrees of consequences in the event of non-compliance (from implementation left to discretion of the parties concerned to various forms of assessment, surveillance, penalties and arbitration).

[9] Op. Cit. , p. 284.

[10] SHELTON, Dinah. Law, Non-Law and the Problem of ‘Soft Law’, in SHELTON, Dinah. (Edit) The Role of Non-Binding Norms in the International Legal System, New York: Oxford University Press, 2000, p. 17. 

[11]  The growing complexity of the international legal system is reflected in the increasing variety of forms of commitment adopted to regulate state and non-state behavior with regard to an ever-growing number of transnational problems. It is unlikely that we will see the return of a law/freedom of action dichotomy. Instead, the various international actors will create and attempt to comply with a range of international commitments, some of which will be in legal form, others of which will be contained in non-binding instruments. The lack of binding form may reduce the options for enforcement in the short term (i.e., no litigation), but this does not deny that there can exist sincere and deeply held expectations of compliance with the norms contained in the non-binding form.

[12] DINH, Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito internacional público. Tradução: Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 252 - 253.


Autor

  • Matusalém Gonçalves Pimenta

    Pós-Doutor em Direito Marítimo pela na Universidade Carlos III de Madri - Espanha. Doutor em Direito Ambiental Internacional e Mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos. Pós-Graduado em Ciências Náuticas. Professor da Maritime Law Academy. Advogado Maritimista. Autor de algumas obras. Entre elas: "Responsabilidade Civil do Prático", 2007; "Processo Marítimo. Formalidades e Tramitação", 1ed, 2010 - 2ed., 2013; "Direito Marítimo: Reflexões Doutrinárias", 2015 e "Praticagem, Meio Ambiente e Sinistralidade", 2017.

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