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Paternidade socioafetiva reconhecida em cartório, sem assistência jurídica: proteção ou tiro no pé?

Paternidade socioafetiva reconhecida em cartório, sem assistência jurídica: proteção ou tiro no pé?

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A paternidade socioafetiva exige análise complexa, tal e qual a natureza do próprio instituto. A via extrajudicial implica em risco, mormente quando provimentos desburocratizantes apelam às raias do exagero, ao ponto de dispensar, até mesmo, a presença do advogado.

1. LINHAS INTRODUTÓRIAS E A PROBLEMÁTICA

O Provimento nº 149, de 13 de janeiro de 2017, da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, seguindo a toada de alguns outros Estados da Federação, trata do reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva, perante os Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais, sem nenhuma assistência de operador do Direito.  Vale dizer, o cidadão, jurisdicionado, não precisa mais subir o caminho áspero do fórum, içado por advogado, para reconhecer essa paternidade; basta passar, sozinho, no cartório, e pronto, está reconhecida sua paternidade. Afinal, se ele se diz “o pai”, dito está, então o é.

Partindo da premissa de que o legislador constituinte confere à família a cláusula geral de tutela do Art. 226 (“especial proteção do Estado”), e que é notória a complexidade que envolve a identificação desse vínculo socioafetivo, que tem suscitado desafios e tarefa hercúleos dos juristas (em seus variados espaços de ação – juízes, advogados, doutrinadores), custa crer que o referido Provimento (e tantos quantos) atenda aos parâmetros constitucionais de proteção.

O que se deduz, com perplexidade e temor, é que a intenção de desjudicializar e desburocratizar, neste caso, não são sinônimos de proteção (quem dirá “especial proteção”) e segurança jurídica, mas uma temerária exposição a riscos elevados, para a família e para a sociedade. Detalhe: esse reconhecimento é irretratável.

Antes de avançar, porém, cumpre esclarecer dois conceitos: paternidade socioafetiva e desjudicialização.

1.1 AINDA À GUISA DE INTRODUÇÃO: O QUE É PATERNIDADE SOCIOAFETIVA?

Em dias de pós-modernidade os juristas constataram (com notório atraso em relação à Psicanálise) que o vínculo biológico entre um homem e seu descendente não era sinônimo de paternidade, mas poderia representar mera genitalidade. Que o homem poderia ser o genitor, sem nunca ter sido pai, considerada a premissa de que paternidade é função e não o mero liame biológico em si mesmo.

Possível imaginar este quadrante de hipótese, tanto quando o genitor não pratica a chamada “paternidade responsável” (que deveria se chamar apenas “paternidade”, e bastaria), como quando é doador anônimo de sêmen. Aliás, que diferença existiria, em essência, entre o homem que apenas dorme com a mulher (e desaparece na manhã seguinte), e aquele homem que em anonimato depositou seu material biológico em banco de reprodução assistida?

Passou-se, então, desde dessas constatações, a valorizar o vínculo que determinado homem constrói (trata-se de construção psicológica) em relação a alguém que não seria seu filho biológico, mas, que, na cotidianidade da vida se esboça paulatina e inexoravelmente num aprofundamento qualificado de relação parental. O homem não apenas constrói (em face de), como também é construído, numa dialética natural e lógica (embora não haja consanguinidade), que faz surgir a perfeita identificação do vínculo paterno-filial.

Ora, ainda que o mundo inteiro conspirasse, negando essa paternidade ou essa filiação, os dois protagonistas (pai e filho) dessa construção nem se importariam com opinião contrária, pois quem sabe de suas identidades psíquicas, são eles, embora seja normal o reconhecimento social nesses casos.

Paternidade socioafetiva, portanto, é vínculo parental que surge de continuada e intensa cotidianidade, entre duas pessoas que se envolvem e reciprocamente edificam suas identidades de pai e de filho. Na palavra simplória do leigo, pai é quem cria. Criação, no sentido mais restrito e mais sublime possível, de criação de identidade.

1.2 AINDA À GUISA DE INTRODUÇÃO: O QUE É DESJUDICIALIZAÇÃO?

A desjudicialização, o que seria? Em que medida a desjudicialização pode ser uma ameaça no caso sub judice?

Desjudicializar, em definição singela, significa criar alternativas para o acesso à Justiça, alternativas em relação ao aparelho judiciário complexo e moroso. Essa alternativa pode ser (e tem sido), a via administrativa, desburocratizada no possível, permitindo ao cidadão, devidamente assistido por advogado, solver amigável e espontaneamente uma questão, consumando essa solução perante o cartório de notas, com lavratura de escritura pública, que, nestes casos, tem peso de sentença judicial, peso este conferido por lei.

Quando se fala em desjudicialização, parte-se de pressupostos mínimos como (i) disponibilidade de direitos e (ii) capacidade das partes, além da (iii) assistência por advogado.

Agora, atenção: resolver administrativamente o reconhecimento da paternidade socioafetiva implica em confiar questão demasiadamente complexa aos cartórios, e, como se não bastasse, pode hoje ser feito sem, nem mesmo, a presença de advogado, como no caso do Estado de Mato Grosso do Sul.

Recomenda-se aqui, que é preciso rever normas regimentais que permitam essa alternativa ao cidadão, pois ao invés de se lhe abrir caminho mais suave, poder-se-ia estar criando um atalho para o abismo. Abismo da falta de proteção estatal a direito personalíssimo, abismo da insegurança jurídica.


2. A DESJUDICIALIZAÇÃO PARA PROMOVER A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

É notório o movimento estatal no sentido de descentralizar matérias que sempre foram tratadas sob vara judicial, tendência esta que resulta da ineficiência que vem tomando o Poder Judiciário, cujas forças se esgotam diante da crescente demanda jurisdicional. Esse volume crescente de demanda, por sua vez, pode ser explicado pelo acesso que se garante constitucionalmente à população carente (Art. 5º, LXXIV), combinado aos demais efeitos democratizantes, voltados para a emancipação do sujeito de direito e consequente promoção da dignidade da pessoa humana.

Nessa enxurrada de demandas versus necessidade de promoção da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, CF), a saída (ou por falta de saída), tem sido deslocar matérias importantes, inclusive do Direito de Família, para a via administrativa, com lavratura de escritura pública, com assistência de advogado.

Dentre essas normas desjudicializantes, para focar nas questões de família (caso sob análise), cite-se a Lei nº 11.441/2007, que oferece a via alternativa para o divórcio, o reconhecimento e o desfazimento de união estável, além de permitir inventário e partilha.

Note-se que ao advogado o poder público passou a confiar a missão de aplicar e fiscalizar a lei. Diferente da Justiça convencional, em que esse papel cabia ao magistrado e ao órgão do Ministério Público, pela primeira vez foi possível concretizar, em mãos de um profissional liberal, dois munus ontologicamente opostos: o interesse público (boa aplicação da lei) e o interesse privado (do cliente). Essa situação sui generis, que não se condena, antes se aplaude, é pauta para outra empreita (não cabe aqui).

É bem verdade que já na década de 1990 sinalizou-se essa tendência desjudicializatória, quando a Lei nº 8.560/1992 permitiu que se fizesse o reconhecimento da paternidade biológica, espontaneamente, perante a serventia extrajudicial. Referida Lei viria, inclusive, a ser recepcionada pelo Código Civil, em seu Art. 1.609:

O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:

I - no registro do nascimento;

II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;

III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;

IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.

[...] 

 No caso da paternidade biológica, compreende-se, o simples reconhecimento espontâneo, admitindo o vínculo de sangue, bastava e basta. Na dúvida, poder-se-ia testar com o exame de D.N.A., antes de declarar-se pai.

Em distância de léguas, porém, encontra-se a paternidade socioafetiva. Permitir que esse vínculo seja reconhecido com a maior acessibilidade possível (desburocratização), claro, é um avanço na promoção da dignidade da pessoa, mas, daí a dizer-se que a parentalidade socioafetiva (com a complexidade que envolve a questão) possa ser admitida como verdade jurídica, sem a presença, pelo menos, de um único operador do Direito, não é o caminho, por certo, para tal desiderato.


3. A PECULIARIDADE DO DIREITO DE FAMÍLIA E A COMPLEXIDADE DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EXIGEM ATENÇÃO E PRUDÊNCIA

Como pode uma pessoa leiga, sem qualquer assistência jurídica, declarar-se pai socioafetivo? Essa pessoa tem consciência (aptidão volitiva), sabe o que está declarando perante o poder público?

A complexidade, ao que se vê, é questão ontológica mesmo, resulta da natureza jurídica do vínculo socioafetivo. É muito diferente conferir paternidade biológica e conferir paternidade socioafetiva. Numa metáfora, a distância entre uma e outra paternidade, seria como conferir fronteira delimitada por cerca de arame farpado e fronteira delimitada pelo centro do álveo do rio, respectivamente.

O Escritório de Advocacia Oton Nasser Advogados Associados, em Campo Grande-MS, representado nas pessoas de seus advogados familiaristas, subscreveram requerimento administrativo à Ordem dos Advogados no Estado de Mato Grosso do Sul, cujo expediente quis alertar para os riscos potencialmente provocados pelo Provimento nº 149/2017 (da Corregedoria do referido Estado), norma esta que permite o reconhecimento de paternidade socioafetiva por mera declaração do alegado pai ao Oficial do Registro Civil.

O escopo do documento produzido pela referida Banca de advocacia, teve por base a complexidade do instituto dessa paternidade versus a falta de proteção que, imagina-se, resulte da desburocratização exagerada (dispensa, inclusive, advogado). Em última análise, produziu-se referido documento na esperança de que a Ordem dos Advogados venha/viesse a exercer o seu papel de defesa da Constituição.

3.1 ALGUNS ASPECTOS PECULIARES DO DIREITO DE FAMÍLIA

É velha conhecida a peculiaridade do Direito de Família, enquanto sub-ramo do Direito Civil, senão, veja-se, em apertada síntese:

a)o Direito de Família é campo que exige interpretação especializada (daí os juízos especializados), não em vão, mas por ser campo orientado predominantemente por normas de ordem pública (Venosa, 2015), com notória interferência do Estado em pleno Direito privado, interferência esta, unicamente, com viés protetivo (Art. 226, CF: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”);

b)como exata decorrência da alínea anterior (intervenção protetiva), os negócios jurídicos de família possuem a indisponibilidade típica dos direitos da personalidade (Diniz, 2007), de modo que ditos atos, uma vez consumados, irradiam, ipso iure, toda a sua eficácia. É sabido que o sujeito não tem controle sobre tais efeitos, por resultarem da projeção já desenhada na lei.

3.2.A COMPLEXIDADE DO VÍNCULO SOCIOAFETIVO

A paternidade socioafetiva é uma construção jurídica desafiadora, seja por se tratar de instituto ainda em seu frescor, seja pela complexidade abstrata desse vínculo paterno-filial.

A verificação desse vínculo, consoante doutrina autorizada, perpassa, basicamente, por três elementos: nome, trato e fama (Tartuce, 2015). Diferente da paternidade sanguínea, na socioafetividade predominam aspectos abstratos, subjetivos, tais quais a modernidade líquida de Bauman (2001).

Não bastasse a dificuldade dessa exigência (nomen, tractatus e reputatio), denota-se em Tartuce (2015), que, em verdade, esses elementos são apenas a premissa (ponto de partida, mesmo!) para se constatar o vínculo propriamente, que é a conferência da identidade psíquica (FREUD, 1974). Reconhecer a paternidade socioafetiva exige essa constatação do vínculo indelével bordado na alma do indivíduo, indo muito além do escopo de uma simples declaração de vontade. Essa paternidade é uma realidade inexorável, mas tão real quanto difícil de constatar, de aferir.

Nas academias (Graduação e Pós-Graduação), o tema é repercutido com insistência, com as investigações científicas que sua complexidade ontológica suscita, tornando objeto de centenas de trabalhos de conclusão de curso.

Na extensa literatura civilística brasileira, acirra-se o debate na busca dos contornos dessa parentalidade, que não pode ser testada com exame de D.N.A.; que perpassa necessariamente pela análise da construção cotidiana do vínculo, de cuja cotidianidade surge (nessa construção) o tratamento recíproco de pai e filho (é o elemento trato), que é notório aos olhos de todos (elemento fama), o que acaba, por força dessas circunstâncias (geradas naturalmente na cotidianidade da vida), levando ambos os vinculados a buscarem o registro dessa realidade fática (elemento nome).

Completam-se, assim, os requisitos que os doutores do Direito assinalaram como essenciais (nome, trato e fama), que, em verdade, resultam de uma situação fenomênica fática de contornos psicológicos categóricos da denominada (para os juristas) posse do estado de pai (mas, não só) e posse do estado de filho (vetor de mão dupla).

Veja-se que a paternidade socioafetiva não exprime uma convenção particular de vontade, mas, necessariamente, o reconhecimento dessa paternidade é a juridicização do vínculo (que já existe). Sobre a complexidade dessa análise, veja-se a lição de Tartuce (2015, p. 397), que após fazer referência a quinze doutrinadores, arremata: “Em suma, todos os principais Manuais de Direito de Família da atualidade analisam a questão”.

Para os juízos familiaristas, a análise da socioafetividade tem sido um desafio constante. A prática forense mostra que esse desafio leva os operadores a formar suas opiniões na perspectiva de laudos interdisciplinares, projetados da técnica dos núcleos psicossociais que lhes dão suporte.

Tem-se precedentes de casos que a instância superior fez retornar a matéria proba-pericial à primeira instância, para reexame, tal é o desafio que a socioafetividade enseja, a exemplo do acórdão gaúcho (TJRS, Processo 70011086956, 8ª Câmara Cível, Rel. Juiz José Ataídes Siqueira Trindade):

“[...] Paternidade socioafetiva. Em havendo alegação de erro no registro de nascimento da ré, sem relato de ‘adoção à brasileira’, deve ser oportunizada a instrução do feito, até para que seja conferida, também, a comprovação da paternidade socioafetiva, embora o duplo exame de DNA que excluiu a paternidade biológica. Sentença desconstituída, para que seja reaberta a instrução e investigada a paternidade socioafetiva. Apelação provida, por maioria”.

Dessarte, a  paternidade socioafetiva exige análise, e mais, análise complexa, tal e qual a natureza do próprio instituto, deixando entrever, dantemão, que a via alternativa implica em risco, mormente quando provimentos desburocratizantes apelam às raias do exagero, ao ponto de dispensar, até mesmo, a presença do advogado.

3.3 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL PRECONIZADA REPROVA PROVIMENTOS DESBUROCRATIZANTES EM EXCESSO

O Art. 226 da Constituição, ao preconizar que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, certamente está a exigir cautelas extraordinárias na proteção das relações familiares, aí ínsito, por óbvio, o vínculo paterno-filial, que deve ser apreciado e reconhecido com a prudência minimamente hábil a produzir segurança jurídica.

No referido dispositivo, “[...] especial proteção”, que é discurso do constituinte, não é mero jogo semântico, mas cláusula geral de tutela constitucional, a exigir atenção redobrada nas questões que envolvem a família.

Nessa perspectiva, não é possível admitir que o reconhecimento de paternidade socioafetiva, a partir de simples declaração de vontade perante o Oficial do Registro Civil, atenda a esse critério constitucional. Entende-se que não é possível atender a esse parâmetro constitucional (repita-se), dispensando, inclusive, a presença do advogado, como franqueia o Provimento nº 149/2017, da Corregedoria Geral de Justiça de Mato Grosso do Sul.

Entende-se, nessa toada, ser inadmissível (pede-se máxima venia) que ato jurídico dessa monta seja praticado sem a presença de um único operador do Direito (um único que seja, no caso, o advogado).

O referido Provimento e tantos quantos consagrem esse nível excessivo de desburocratização, admitindo/garantindo que um homem se dirija ao cartório e declare que é pai socioafetivo de alguém, não passam pelo teste da constitucionalidade, vista esta sob o prisma (para o caso) da proteção e da segurança jurídica. Afinal, trata-se de matéria que exige parâmetros firmes, categóricos, seja por se tratar de direito da personalidade, seja pela irretratabilidade, seja pelos ricos efeitos que ex-surgem desse ato de reconhecimento.

Prima-se pela segurança jurídica, sobretudo, em matéria desse jaez. A falta de atenção adequada produzida por normas regimentais dessa estirpe cria um risco social elevado, que atinge - nada mais, nada menos - que a família nuclear, base e matriz social.

O homem que se declara pai socioafetivo, nos termos dessas normas regimentais desburocratizantes, ainda que (claro!) esteja movido da mais pura boa-fé, poderá arrepender-se a qualquer momento, quando constatar que cometeu um equívoco.

É do domínio científico e do senso comum a efemeridade atual das uniões matrimoniais, por exemplo, o que poderá ser motivo (com o desenlace) para o arrependimento desse reconhecimento inocente (ingênuo). Mas, não só uniões matrimoniais, como, também, ainda em maior número (talvez), uniões estáveis que se configuram e num sopro se extinguem.

É possível imaginar que, até como forma de conquistar a confiança do outro consorte, se ofereça como prova de amor o reconhecimento do enteado. Com o fim do “amor de Vinícius”, todavia, não se sabe em que medida esse desenlace poderia implicar no vínculo socioafetivo reconhecido (ou pseudo-vínculo).

Ainda na dimensão da segurança jurídica, aliada à proteção preconizada na Lei Maior, vale registrar, nesta análise, que a fraude grassa pelo país, de modo que esse reconhecimento de uma pseudo-socioafetividade poderia servir de porta à fraude contra a previdência, à medida que o aposentado que não tenha um beneficiário que o suceda, poderá, tranquilamente, “inventar” esse beneficiário que herdará a pensão, bastando que reconheça alguém como seu filho socioafetivo.

Esse reconhecimento ab hoc et ab hac (a torto e a direito) poderia, ainda, ser uma ferramenta à traficância de crianças, à prática de crimes contra pessoas menores, em hipóteses que nem se arrisca arrolar aqui, pela amplitude dos matizes ilícitos nas mentes perversas.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo tem a simples, mas severa, pretensão de alertar sobre a possível inconstitucionalidade de normas regimentais (a exemplo do Provimento nº 149/2017, da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul) que, na busca da desburocratização do acesso à Justiça, acaba por desbordar dos limites de proteção preconizados pela Lei Maior.

Percebe-se que o constituinte estabeleceu, dentre outras, a cláusula geral de tutela do Art. 226, preconizando a “especial proteção do Estado”. Surge, então, o desafio, que está em desburocratizar o reconhecimento do vínculo paterno-filial socioafetivo, por se tratar de matéria que, além de personalíssima (logo, indisponível), traz em sua compleição (análise ontológica) notória intangibilidade, com variáveis de difícil constatação e aferição.

Sabe-se que todo o enfado das jornadas desburocratizantes presta-se, mormente, à promoção da dignidade da pessoa humana. Nesse jaez, aplaude-se a desjudicialização enquanto atalho para essa promoção do sujeito, mas toque-se a trombeta de alerta frente a essas normas regimentais que se propõem a garantir o reconhecimento de paternidade socioafetiva, em cartório, sem, nem mesmo, a presença de advogado. O atalho pode virar caminho para o abismo da insegurança jurídica e consequentes lesões a direitos da personalidade, com reflexos sobre o sujeito declarante, sobre o filho reconhecido, sobre a família (enquanto célula e matriz) e, por consequente, sobre todo o organismo social.


Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2001.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito de família. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 5.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: Obras psicológicas completas. Trad. Orizon Carneiro. Rio de janeiro: Imago, 1974, v. XII.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família. 10. ed. Sâo Paulo: Método, 2015, v. 5.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 15. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2009, v. 6.


Autor

  • Delmiro Porto

    Delmiro Porto

    Advogado Familiarista - Família e Sucessões. Leciona na Universidade Católica Dom Bosco. Coord. da Pós-Graduação em Direito Civil, com ênfase em Família e Sucessões. Adjunto Jurídico aposentado do Comando da Aeronáutica.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Delmiro. Paternidade socioafetiva reconhecida em cartório, sem assistência jurídica: proteção ou tiro no pé?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5523, 15 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64841. Acesso em: 28 mar. 2024.