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Assassinato de Marielle e de Anderson

Assassinato de Marielle e de Anderson

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O brutal assassinato do motorista Anderson Gomes e a execução sumária da vereadora Marielle Franco possuem vários significados e consequências, mas um chama ainda mais a atenção: o caminho para a "mexicanização" das forças de segurança e da sociedade brasileira.

Na prévia diremos que o México é o Brasil amanhã, porque sempre tivemos capitães do mato caçando capitães de areia. Mas, agora, tudo pode ser diferente. Sim, mas para pior. Os capitães de areia foram escorraçados para jogar bola (e bala) no asfalto e já divisam os quartéis. Em suma: o velho país de pensamento hipócrita e totalitário, travestido de terno e gravata, está no ponto de colapso da Guerra Civil.

O estopim da “mexicanização” é a Intervenção no Rio de Janeiro.

A Guerra Civil está na cara do bom entendedor. Nunca se ausentou. Porém, o brutal assassinato do motorista Anderson Gomes e a execução sumária da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ) tem vários significados e consequências, mas um chama ainda mais a atenção: o caminho para a “mexicanização” das forças de segurança e da sociedade brasileira. Isto, em outras palavras, traz a certeza de que, se o espectro político do Estado já estava carcomido e ocupado por grupos criminosos, agora as principais forças policiais (e militares) também serão contaminadas. Basta recordar que este germe vem do regime militar, misturando presos comuns e presos políticos: obtenção de segurança pessoal na masmorra do cárcere em troca de conhecimento e de capacidade de organização.

Depois, o Complexo Carandiru em São Paulo gerou centenas de mortes e a criação do PCC, como mecanismo de defesa contra o Estado exterminador. Por fim, na década de 2000, com o desengajamento de militares treinados em táticas de forças especiais, como medida de “contenção de despesas”, levou oficiais e suboficiais, no auge de sua forma e formação, direto ao coração do crime organizado no Rio de Janeiro.

O passo seguinte foi a criação de milícias próprias, formadas por ex-policiais e ex-militares, que agora agiriam em causa própria.

Todavia, com a execução da vereadora, vem à tona o fato de que os militares do Exército envolvidos na Intervenção Federal – assim como muitos policiais civis e militares – estão no alvo dos cofres do tráfico carioca. Um fenômeno que se alastraria rapidamente por todo o país, exatamente como se verificou no México, à medida que esse tipo de intervenção (ou de GLO) fosse expandida para outros Estados-membros. Por isso se chamou de “mexicanização” da (in)segurança pública.

Intervenções federais desembocariam em reformas da Constituição e se instituiria um Estado de Emergência ou a ressuscitação mecânica da Lei de Segurança Nacional. O fato de o Rio de Janeiro ser sondado como “laboratório” para o uso/sistemático dos meios de exceção apenas reforça o dado negativo de que mais forças de segurança não-convencionais seriam expostas a um tipo de guerra para a qual seus soldados não são treinados a lutar: as batalhas pela sobrevivência individual em meio ao caos corrompido da política institucional.

É óbvio que a legalidade em não-fazer reformas constitucionais desse tipo pouco importa, sobretudo quando o Poder Político já está todo imerso no processo da “mexicanização”. É um tipo de Estado de Sítio invertido, quando o indivíduo está incapacitado de sair do cerco de malefícios; impedido, portanto, de procurar o resgate da normalidade, resigna-se ou é submetido à exceção.

Não bastasse o uso de meios específicos do Estado de Exceção, pôs-se em movimento, no México (Lei de Segurança Interior) e no Brasil (Garantia da Lei e da Ordem + Intervenção Federal), a exceção militarizada para “conter” o fracasso e os descalabros do sistema do capital que serve ao Império do Norte.

Significa que o Estado de Direito quebrou em sua espinha dorsal e que, no lugar das regras convencionais, são acionadas regras excepcionais de poder. Contudo, o assassinato da vereadora e ativista dos direitos humanos implica também em crime contra a democracia. Porque Marielle defendia e atuava em defesa do conjunto complexo dos direitos humanos, dos civis e dos policiais igualmente vitimados.

No México, ainda se via uma aliança com “milícias cidadãs”: polícias comunitárias. Por aqui são reconhecidas como “grupos da morte” ou – se estão do outro lado da força – simplesmente como milícias: formadas, sobretudo, por ex-policiais – corrompidos – e ex-militares altamente treinados em Comandos e desligados pelas forças armadas para abater gastos.

O fato é que o México, desde que aderiu à Alca – o acordo de livre comércio com EUA e Canadá – em 1994, entrou em uma espiral de miséria e de corrupção institucional sem precedentes. Nos anos 90, o México havia sofrido embate internacional a fim de que o próprio exército não massacrasse sua população indígena no Estado de Chiapas. Os Zapatistas conseguiram bloquear o extermínio de sua cultura mobilizando a opinião pública internacional, por celulares e Internet, para deter o avanço do genocídio do capital comandado pelo Estado – muito corrompido àquela altura.

Neste momento, o tráfico internacional de drogas – especialmente cocaína e metanfetaminas – sinaliza a formação de um real Estado Paralelo, até que nenhuma instituição, em toda a Federação, esteja livre de seus tentáculos. E para onde vão milhares de toneladas de drogas? Sobretudo para os EUA. Todos os dias morrem, aproximadamente, 142 estadunidenses por overdose causada por drogas legais e ilegais.

Estima-se que os cartéis de drogas lucrem 30 bilhões de dólares anualmente. No México, o tráfico internacional funciona como uma multinacional, operando em consórcios financeiros – exportando ou interiorizando suas franquias (exemplo é o cartel Los Zetas) para grupos menores.

Os cartéis são especializados em suas funções – jurídica, financeira, logística –, além de lançarem na contabilidade do Livro Razão o que fizeram em lucros: reinvestindo os ganhos em mais drogas, pagando pessoal ou “lavando” o dinheiro em empresas de fachada, como restaurantes nos EUA. Los Zetas aplicam-se à meritocracia para decidir sua estrutura hierárquica, não por relações de parentesco. E são formados por ex-militares de elite!

Logo, voltamos ao ponto inicial da exceção militarizada. Quanto maior o emprego de militares destreinados para o confronto da miséria social, maior a suscetibilidade frente ao pagamento antecipado. Estima-se que, no Rio de Janeiro, uma hora de treinamento dos traficantes com militar de elite custe cinco mil reais.

No México, a atomização dos grandes grupos ainda gerou uma autonomização: fragmentado, como o capital financeiro, a cartelização das drogas expandiu seus negócios para outras áreas. (Por aqui, PCC e CV disputam áreas especialmente lucrativas como sinal da cartelização das drogas).

Portanto, a roda ilógica (da exceção que se criminaliza) explica o porquê de a exploração da natureza e da miséria humana não encontrar limites, e se alimentar da militarização dos processos de exceção. A exclusão social respondida com exceção jurídica vista tão claramente no México, passa a receber o interesse da mídia oficial no Brasil.

No México, com grande fluxo de caixa, o grupo apontado como o mais promissor é chamado de cartel Jalisco Nova Geração (CJNG), recrutando atiradores de elite e jovens especializados em finanças e informática, e que tenham visto de entrada nos EUA, assim como boas relações na Europa. É o cartel com a patente do século XXI: financeirizado, especializado em sumir com o dinheiro das drogas em complexas operações de algoritmos. Por isso, com a cartelização do PCC e do CV, e a suposta militarização do combate à violência, diz-se que “o México é o Brasil amanhã”. No México, esse custo chegou a 2.370 vidas em um mês. 

No Brasil, nos últimos 18 meses, as forças armadas foram utilizadas 11 vezes, sob a bandeira da GLO: o comandante-geral do Exército chama a atenção para o fato corriqueiro que se transformou o uso excepcional das forças armadas no controle social. Em outras palavras, quer dizer que um problema de polícia se converteu em notória questão de política. Na verdade, sempre foi assim. Some-se a isto a ocorrência de deturpação jurídica, em que a legislação exclusivamente militar tem sofrido interpretações benéficas às polícias estaduais: as interpretações extensivas, certamente, favorecem o poder de comando, uma vez que o controle social já não é mais prioridade.

Em nosso caso, o emprego de métodos do Estado de Exceção indica a consciência de que a força bruta não mitiga a violência social provocada pela miséria humana – ainda que nem todos os governantes e comandantes saibam disso.  No país, o uso das forças armadas como reserva na segurança pública triplicou desde a década de 1990. Além da retórica política, a banalização do uso de mecanismos jurídicos sustentados pela exceção militarizada é o que parece ser realmente banalizado. Assim como a vida dos ativistas em prol dos direitos humanos, uma vez que ocupamos o quarto lugar dentre os países que mais matam os que defendem aqueles que, historicamente, sempre menos receberam do Poder Público.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Assassinato de Marielle e de Anderson. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5374, 19 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64851. Acesso em: 28 mar. 2024.