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O parecer da PGFN em face da segurança jurídica.

Filme de comédia ou de horror?

O parecer da PGFN em face da segurança jurídica. Filme de comédia ou de horror?

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            O Parecer do Procurador-Geral da Fazenda Nacional nº 1.087, de 19 de julho de 2004 (em que consta a conclusão de que "existe, sim, a possibilidade jurídica de as decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, que lesarem o patrimônio público, serem submetidas ao crivo do Poder Judiciário, pela Administração Pública, quanto à sua ilegalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato") apresenta-se, em nosso entendimento, como uma desagradável tentativa de esvaziamento da discussão administrativa, provocando justificadamente certa indignação do meio jurídico.

            Na realidade, o motivo de toda a celeuma reside na suposta possibilidade, expressamente admitida pela PGFN no aludido Parecer, conforme inclusive estampado em sua ementa, de anulação, mediante ação judicial, de decisão de mérito proferida pelo Conselho de Contribuintes, denominada "juridicidade" no corpo do trabalho!

            A surpreendente conclusão do Parecer não apenas contraria o disposto no artigo 45 do Decreto nº 70.235, de 06 de março de 1972, que determina que em "caso de decisão definitiva favorável ao sujeito passivo, cumpre à autoridade preparadora exonerá-lo, de ofício, dos gravames decorrentes do litígio", como também anteriores decisões do Superior Tribunal de Justiça e até do Supremo Tribunal Federal, sem mencionar os aprofundados e sérios estudos já realizados sobre o assunto, causando preocupação aos contribuintes.

            O temor dos contribuintes decorre do fato de que a esfera administrativa tem se mostrado como um aconselhável palco para a discussão de assuntos tributários, provocada pela lavratura de auto de infração de tributos federais pelas autoridades fazendárias.

            Isso porque, diversamente da controvérsia que se trava no âmbito judicial, em que se busca a verdade formal, o processo administrativo tributário é marcado pelo princípio da verdade real, oferecendo, nos limites de sua formalidade, a ampla possibilidade de produção de provas.

            De igual modo, não podemos deixar de reconhecer que no processo administrativo tributário o contribuinte pode, na busca da verdade real, discutir assuntos de técnica contábil, economia e práticas negociais, e. g., método da equivalência patrimonial, formação do preço de venda, os quais são de difícil compreensão por um magistrado federal, que além de não estar acostumado a julgar essas questões no seu dia-a-dia, encontra-se ocupadíssimo com milhares de processos a analisar.

            Não é por outra razão que o Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda tem proferido celeremente louváveis decisões, primando pela técnica jurídica, distribuindo, quer favorável ou desfavoravelmente aos contribuintes, efetivamente justiça; chegando, por vezes, a contrariar julgamentos tomados na seara judicial sobre assuntos semelhantes.

            Dentro desse panorama, sob a fundamento mediato de que as decisões do Conselho de Contribuintes podem provocar genericamente lesão ao patrimônio público, testemunhamos uma situação inusitada em que o Senhor Coordenador-Geral da Representação Judicial da Fazenda Nacional solicita ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional, parecer sobre a possibilidade jurídica de anulação de decisão de mérito proferida pelo Conselho de Contribuintes, resultando no Parecer em comento.

            De pronto, ao se verificar por quem o Parecer foi solicitado, quem o elaborou e as premissas adotadas nesse trabalho, que relata decisão favorável proferida pelo Conselho de Contribuinte, em caso de alta relevância econômica, obtida por Fundo de Previdência Privada, o leitor do Parecer sente-se como se estivesse vendo um filme pela segunda vez, em que ele já sabe exatamente qual o final da história.

            Resta saber se se trata efetivamente de um filme de comédia ou de horror!

            O Parecer menciona que a decisão de mérito proferida pelo Conselho de Contribuintes poderá gerar lesão ao patrimônio público, utilizando esta expressão de forma genérica. Ora, ainda que o Parecer não tenha aclarado o significado de "lesão ao patrimônio público" por meio de legendas, pode-se concluir que ao admitir a possibilidade de discussão de decisão favorável ao contribuinte dada pelo Conselho de Contribuintes, a Procuradoria está a reconhecer que qualquer decisão favorável ao contribuinte seria potencialmente lesiva ao patrimônio público!

            O Parecer se apóia basicamente no disposto no inciso XXXV, do artigo 5º da Constituição Federal, situado no Capítulo I, "Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos" do Título II da Constituição Federal de 1988, "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", que estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito."

            Causa espanto o fato do Parecer não ter justificado a menção a um dispositivo, presente desde a Constituição de 1946, que estabelece direitos e garantias individuais e coletivos voltados à proteção das liberdades individuais e coletivas como forma de assegurar o Estado Democrático de Direito, o qual apenas e tão-somente deve ser obedecido pelo Estado, mas nunca ser invocado para a discussão, pelo Estado, de decisão de mérito proferida por ele mesmo!

            Ademais, o Parecer, sustenta-se em estudo, cujo nome não foi citado, elaborado pela Juíza Federal Cearense, Dra. Germana de Oliveira Moraes, no qual a autora defende a ampliação do grau de intervenção jurisdicional sobre o ato administrativo, pleiteando que o exame judicial ultrapasse os limites da legalidade para se infiltrar na análise da compatibilidade do ato administrativo com os princípios constitucionais, o que, segundo a autoria, traria a conciliação dos postulados insertos na Magna Carta que delineiam a harmonia e independência dos poderes e o princípio da inafastabilidade da apreciação jurisdicional!

            A par do princípio da inafastabilidade da apreciação jurisdicional ter sido inapropriadamente invocado pelo próprio Estado no Parecer e no estudo citado, que, diga-se de passagem, não chegou a mencionar a necessidade de análise, pelo Poder Judiciário, de decisão de mérito proferida pela Administração, de um mero detalhe olvidou-se o Parecer, o de que a harmonia entre os princípios da Administração Pública e os demais princípios constitucionais faz prevalecer um dos pilares do Estado Democrático de Direito, que é a Segurança do Direito.

            E nada é mais amedrontador e instaurador de insegurança jurídica do que a suposta possibilidade de a Administração, inconformado com o teor de decisão de mérito por ela mesma proferida em processo administrativo, ingressar no Judiciário, para pleitear a anulação de sua própria decisão, que teria sido produzida por meio de uma interpretação menos autorizada – essas são as palavras utilizadas no Parecer.

            Ao refletirmos sobre toda essa situação provocada pelo Parecer, imaginando a Administração Pública, figurando no pólo ativo de ações, em que ela pleiteia, no Poder Judiciário, a anulação de decisões por ela proferidas, custa a acreditar que a própria Administração Pública seria indicada no pólo passivo, completando uma situação, para dizer o mínimo, incomum.

            Dessa forma, analisando com vagar o conteúdo do Parecer, depreende-se que todas as cenas de horror que ele provoca no leitor são de difícil implementação, quer pela completa ausência de direitos da Procuradoria, quer pela certa reafirmação da segurança jurídica esperada do Poder Judiciário, o que nos faz concluir que todo esse filme não passa, na realidade, de uma comédia água com açúcar!

            Assim, os contribuintes podem, no regular exercício de suas atividades, analisando o caso concreto, optar por percorrer a seara administrativa, na espera de uma decisão célere, técnica e justa, sem a preocupação de que a Procuradoria da Fazenda Nacional obterá êxito em alterá-la perante o Judiciário, caso a decisão lhe seja favorável.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA, Luiz Rogério Sawaya. O parecer da PGFN em face da segurança jurídica. Filme de comédia ou de horror?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 647, 16 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6523. Acesso em: 28 mar. 2024.